Presença feminina nos primórdios do esporte em São Paulo

11/07/2022

Por Flávia da Cruz Santos

A presença feminina se faz sentir, nos momentos iniciais do esporte na capital paulista, pela ausência, pelos silêncios das fontes. O corpo feminino era algo quase que proibido, em que não se podia tocar e cujas formas não era permitido conhecer. As vestimentas não apenas adornavam, mas escondiam e deformavam o corpo feminino. Elegância era a palavra de ordem, era o que orientava a participação das mulheres na cena pública. Ao menos era esse, o desejo das elites paulistanas, que estruturavam a sociedade partir da ideologia patriarcal.  

A participação das mulheres, apesar de ser desejada e incentivada, se restringia às arquibancadas. O embelezamento do espetáculo, por vezes, se limitava à sua presença, às suas vestes e adornos. Depois de afirmar, que as corridas do Grande Prêmio, no Hipódromo da Mooca, haviam sido “uma verdadeira decepção”, o colunista, que assina como “Jack, Entraineur” avalia:

Apesar de tudo isso porém, Jack está satisfeito, porque as senhoras apresentaram-se como deviam, vestidas com luxo e esmero. Ocuparam as arquibancadas, enquanto nós outros vínhamos para o encilhamento ou para as imediações da pista.
Lá em cima, viam-se os reflexos das sedas, ao lado das cores embasadas dos vestidos de lã ou de linho, flutuavam rendas, e agitavam-se leques de infinitas formas, uns de plumas, outros de gaze e entre eles um muito chique formado de folhas de begônias. (O Estado de S. Paulo, 21 out. 1890, p. 1)

Todos se sentiam autorizados a avaliar as mulheres, até mesmo alguém cuja especialidade era o treinamento. Tentava-se reduzi-las a isso, à aparência, às vestimentas, penteados e adereços. Essa é a representação das mulheres, dominante nos periódicos. Contudo, tanto as mulheres das classes dominantes, quanto as mulheres das camadas populares, estavam longe de restringir seu papel social ao embelezamento.

As mulheres pobres (brancas, forras, escravas) desempenhavam diferentes funções (costureiras, bordadeiras, quitandeiras, lavadeiras), e também, quando necessário, ocupavam papéis tipicamente masculinos (tropeiras, roceiras) (DIAS, 1995). As mulheres das camadas dominantes, eram empresárias ativas, formadoras dos filhos, socializadoras e treinadoras dos escravizados, administradoras de suas propriedades e lavouras (CANDIDO, 1951).

Mas, se a elegância, entendida nos termos de nosso interlocutor, era uma exigência, não é difícil concluir que as mulheres que estiveram presentes nesses momentos iniciais da conformação do esporte em São Paulo, pertenciam exclusivamente às elites. Pois, a impossibilidade da exibição de luxos pelas camadas populares nos momentos de diversão, era apontada pelos próprios paulistanos daquele tempo:

Ora, todos nós sabemos quanto custa frequentar sociedades hoje em S. Paulo, principalmente quem tem mulher e filhos. Como porém me asseveraram que na Concórdia Familiar eram expressamente proibidas as sedas, as joias e as luvas, verbas todas estas elevadíssimas para os pais de família, acedi a entrar para esta nova sociedade.
 
Qual não foi, porém, Sr. redator, o meu desapontamento quando entrando noite de sábado na casa onde se dava a partida da Concórdia, vi algumas senhoras cobertas de seda e brilhantes, com finíssimas luvas Jouvin! Fiquei furioso assim como minha Eva, e mais prole, que todas tinham ido com seus vestidinhos de 6$rs., sem luvas nem adereços. Ora, uma sociedade familiar não é lugar para se ostentar riqueza, porque ofende e faz pouco nos outros, que não tem a felicidade de agarrarem boas empresas, que não tem lucros fabulosos, podendo por essa razão gastarem a grande. (Correio Paulistano, 22 out. 1872, p. 2)

O investimento nas roupas e adornos era um imperativo para aqueles que frequentavam espaços de sociabilidade, o que acabava por deles excluir uma parcela nada pequena da população da capital. Pois, a sociedade paulistana era “muito desigual, hierarquizada ao extremo e com elevado índice de concentração de riqueza” (DIAS, 1995, p. 192).


Referências

DIAS, Maria Odila Leite da Sila. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995.

CANDIDO, A. The Brazilian family. In: LYNN SMITH, T. e MARCHANT, A. Brazil: portrait of half a continent. New York: Dryden, 1951, p. 291-312.


A Criação do CND: o futebol a serviço do Estado Novo

13/06/2021

Maurício Drumond

No dia 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas fechou o Congresso e instaurou um novo regime conhecido como Estado Novo, fortalecendo seu poder e passando a investir ainda mais em uma política de centralização e união nacional. No campo esportivo, essa postura levaria a uma maior aproximação do governo com o esporte, que já poderia ser observada na ocasião da III Copa do Mundo, realizada na França em 1938.

Ciente da popularidade do esporte e de sua importância como símbolo nacional, o novo regime concede vultosa subvenção à delegação brasileira para se apresentar no evento – Tomás Mazzoni (1941, p. 16) chega a destacar o “interesse do ministro das Relações Exteriores à delegação que esteve na III Taça do Mundo”. Deve-se somar a isso o fato de que a CBD permanecia como responsável pela representação brasileira no certame, e que Luiz Aranha era seu presidente desde 1936 e sua proximidade pessoal com a alta cúpula do governo, sobretudo com o referido ministro das Relações Exteriores no período do evento, Oswaldo Aranha, seu irmão. A imagem do governo é ainda mais intimamente associada ao escrete brasileiro com a declaração de que Alzira Vargas, filha de Getúlio, receberia o simbólico título de madrinha da seleção nacional.

Alzira Vargas, a madrinha da Seleção Nacional de 1938, e os atletas do escrete brasileiro.

Antes do embarque para a França, a seleção foi recebida pelo Presidente da República, que fez questão de cumprimentar os jogadores, um a um. Pela primeira vez, o Brasil contava com sua força máxima em uma Copa do Mundo. A miscigenação racial da equipe brasileira era vista no Brasil como o verdadeiro retrato de nossa democracia racial, o que servia de forma perfeita aos ideais de ufanismo nacional e harmonia social propagandeados pelo Estado Novo. 

Apesar da derrota para a Itália na semifinal, a destacada apresentação dos jogadores brasileiros na Europa eram vistos como prova do sucesso esportivo e da capacidade física nacional. Até mesmo Getúlio Vargas acompanhou a Copa e se surpreendeu com a reação popular frente à derrota para os italianos, escrevendo em seu diário: “A perda do team brasileiro para o italiano causou uma grande decepção e tristeza no espírito público, como se tratasse de uma desgraça nacional” (Vargas, 1995, v.2, p. 140). De volta ao Brasil, a seleção foi recebida nas ruas como “campeã moral” do campeonato, sob a alegação de que sua derrota teria sido fruto de um pênalti ilegal.  “Queira ou não queira a FIFA, somos campeões do mundo”, estampava o Jornal dos Sports, logo após a conquista do terceiro lugar (JORNAL DOS SPORTS, 20 jun. 1938, p. 1).

O sucesso popular da Copa do Mundo foi mais um sinal para o governo da importância de controlar mais de perto o futebol no Brasil. Menos de três anos mais tarde, Getúlio assinaria o decreto-lei que oficializou a intervenção governamental nos esportes e colocou o grupo de Luiz Aranha de volta ao comando do futebol nacional. No dia 16 de abril de 1941 o Diário Oficial da União trazia em suas páginas o decreto-lei que criava o Conselho Nacional de Desportos (CND), no Ministério da Educação e Saúde, que teria como função “orientar, fiscalizar e incentivar a prática dos desportos em todo o país” (BRASIL, 1941). Em outras palavras, o conselho detinha o controle total dos esportes.

O Decreto-Lei n. 3.199 vai além da criação do CND.  Toda a estrutura da organização desportiva brasileira é alterada. De acordo com o decreto, cada esporte, ou grupo de esportes, poderia se organizar em apenas uma confederação em todo território nacional, sendo essa, necessariamente filiada à entidade internacional de seu ramo desportivo. Cada unidade territorial brasileira – Distrito Federal, estados e territórios – teria apenas uma federação filiada a cada uma das seis confederações esportivas reconhecidas pelo decreto-lei: Confederação Brasileira de Desportos; Confederação Brasileira de Basquetebol; Confederação Brasileira de Pugilismo, Confederação Brasileira de Vela e Motor; Confederação Brasileira de Esgrima; e Confederação Brasileira de Xadrez. Uma nova confederação só poderia ser criada através de decreto presidencial.

Um dos principais jornalistas esportivos do país, Tomás Mazzoni, sob o pseudônimo Olímpicus, que utilizava em suas colunas esportivas, escreveu um livro em homenagem à intervenção no esporte, intitulado “O Esporte a Serviço da Pátria”, cujo prólogo é datado “abril-maio de 1941” (MAZZONI, 1941, p. 18). A obra, de grande teor apologético ao regime estadonovista, defende a oficialização do esporte:

Somente, pois, graças à oficialização e com o espírito de 10 de novembro, dentro da doutrina do Estado Novo, aplicando os princípios do regime atual, é que poderíamos tomar rumos novos! O 10 de novembro esportivo deve ser completo! Exterminar as tais “assembleias”, “judiciários”, “pactos”, “inquéritos”, “caciquismos” – é extinguir a política, o personalismo, o clubismo, é dar rumo certo e vida sã ao esporte! (MAZONI, 1941, p. 20).

A intervenção esporte, aludido por Mazzoni como “o 10 de novembro esportivo”, em referência à data de instauração do Estado Novo, seria assim a adequação do esporte ao ideal do regime vigente.  Assim como outros regimes do período, como a Alemanha nazista, Itália fascista, Espanha franquista e França de Vichy, o Brasil se adequava, segundo o jornalista, a um novo período do esporte mundial. Suas referências a “assembleias”, “pactos”, “caciquismos”, e “clubismo” são alusões nada veladas às disputas internas dos dirigentes brasileiros, no que definira algumas páginas depois como uma forma de dirigir o esporte “com a mentalidade do governante brasileiro de vinte anos atrás, (…) por parte dos políticos do velho regime”, em uma explícita referência à Primeira República, que terminara com o movimento militar que colocou Vargas no poder em 1930 (MAZZONI, 1941, p. 27).

A Confederação Brasileira de Desportos se estabeleceu então como a principal confederação desportiva do país, sendo responsável pela organização do futebol, do tênis, do atletismo, do remo, da natação, dos saltos, do polo aquático, do vôlei, do handebol e de qualquer outra modalidade desportiva que não se enquadrasse em nenhuma das outras confederações. As outras confederações tinham competência administrativa sobre as modalidades descritas em sua nomeação. Isso não significa que o futebol receberia o mesmo tratamento que as outras modalidades desportivas, visto que o próprio decreto-lei afirmava que “o futebol constitui o desporto básico e essencial da Confederação Brasileira de Desportos” (BRASIL, 1941, art. 16, §2º).

O CND detinha controle quase total não apenas sobre os esportes, como também sobre as entidades desportivas. Os estatutos das confederações e das federações a elas filiadas tinham que ser aprovados pelo CND, que poderia propor ao Ministro da Educação a criação ou a supressão de qualquer confederação. No tocante às competições internacionais, o Conselho Nacional de Desportos exercia um controle ainda mais rígido. A participação de qualquer clube ou entidade em uma competição internacional deveria ser previamente autorizada pelo CND. Caso o conselho decidisse pela participação de alguma equipe em um campeonato internacional, esta não poderia abster-se da convocação. Assim, os clubes que cedessem jogadores a esses campeonatos não poderiam pleitear qualquer indenização pela perda temporária de seus atletas, a não ser em caso de jogos amistosos.

Buscava-se controlar o esporte nacional, ainda que mantendo na direção do órgão estatal de controle paredros dirigentes conhecidos da elite desportiva brasileira. Mesmo com a intervenção do governo brasileiro sobre o esporte, pouco muda de forma efetiva em sua organização. No entanto, o Estado agora se equipava com a possibilidade de intervir em clubes e federações caso julgasse necessário, como ocorreu com o Corinthians ainda em 1941. A disputa entre o grupo do então presidente Manuel Correcher e da oposição, liderada por Ricardo R. de Moura e Saverio Nigro, levou o governo paulista a apontar Mário Henrique Almeida como interventor no clube, cargo que ocupou por pouco tempo (MAZZONI, 1950, p. 292).

Manuel Correcher (15) e Mário Henrique Almeida (16)

Na visão dos defensores da intervenção, como Tomás Mazzoni (1941, p. 17), os “políticos e arruaceiros terão, pois, suas azas cortadas”, não podendo mais assim “arrumar panelinhas e (…) se defender com prestígio equívoco”. A oficialização colocava em xeque a antiga ordem esportiva, mas ao mesmo tempo garantia a permanência daqueles que se adequassem aos novos tempos. O futebol estaria, assim, a serviço da pátria.

O sentimento nacional seria mobilizado com maior veemência com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942. Dentro desse quadro de patriotismo exacerbado pelo envolvimento no conflito, o CND decretou que as associações esportivas – clubes ou outras agremiações – só poderiam ser presididas por brasileiros natos ou naturalizados. O conselho abria exceção apenas a estrangeiros radicados no Brasil há mais de vinte anos, que já tivessem exercido o cargo anteriormente, ou a portugueses que tivessem se destacado nos meios esportivos.  O CND já apontava para a importância cívica das associações esportivas no decreto-lei 3.199.  De acordo com o decreto, as entidades esportivas não poderiam gerar lucro para seus financiadores ou para seus dirigentes, visto que essas entidades exerciam uma função de caráter patriótico.

O esporte era então visto como um dos grandes símbolos da nação. Antes mesmo da declaração oficial de guerra contra o eixo, agentes do Departamento de Ordem Social e Política (DOPS) paulista começaram a pressionar a diretoria de clubes que apresentassem membros de nacionalidade estrangeira, especialmente italianos e alemães. A ação baseava-se no Decreto 383, de 18 de abril de 1938, que vedava a estrangeiros a atividade política no Brasil, incluindo a organização, criação e manutenção de “sociedades, fundações, companhias, clubes e quaisquer estabelecimentos de caráter político”, ou mesmo se associarem a tais agrupamentos (BRASIL, 1938). O próprio Decreto-Lei 3.199, que criou o CND, reforçava a ideia em seu artigo 51, atestando que “As diretorias das entidades desportivas serão compostas de brasileiros natos ou naturalizados; os seus conselhos deverão constituir-se de dois terços de brasileiros natos ou naturalizados pelo menos” (BRASIL, 1941).

A pressão sobre os clubes ligados a colônias estrangeiras aumentou com a publicação do decreto-lei 4.166, de 11 de março de 1942, que avultava a possibilidade do confisco de bens e direitos de cidadãos de nacionalidade alemã, japonesa e italiana, fossem pessoas físicas ou jurídicas. O confisco incluiria uma parte de todos os depósitos bancários e patrimoniais superiores a dois contos de réis (BRASIL, 1942). Para os clubes de futebol, pessoas jurídicas sob o jugo do decreto-lei, havia o risco do confisco de sua sede e de seu estádio, além de boa parte de seus depósitos bancários. Dessa maneira, os paredros dos clubes de colônias decidiram mudar o nome de suas agremiações que fizessem referência direta a um dos países do eixo.

Em São Paulo, o Palestra Itália, que em março de 1942 passou a se chamar apenas Palestra de São Paulo, mudou sua denominação para Sociedade Esportiva Palmeiras ainda em setembro do mesmo ano. Já o Germânia, clube que lançara Arthur Friedenreich no futebol, mas que não aderira ao profissionalismo nos anos 1930, mudou seu nome para Pinheiros, após passar por uma intervenção governamental. Em Belo Horizonte, no mesmo ano, o Palestra Itália passou ser conhecido como Esporte Clube Cruzeiro, adotando o nome de um dos maiores símbolos brasileiros. Em Curitiba, o Savóia – nome da família real italiana – mudou de nome para Esporte Clube Brasil, em uma afirmação hiperbólica do nacionalismo de sua diretoria.

Nos anos seguintes, o CND se estabeleceu como a principal entidade de supervisão e controle do esporte, sobrevivendo ao final do Estado Novo. O conselho detinha controle quase total não apenas sobre os esportes, como também sobre as entidades desportivas. Os estatutos das confederações e das federações a elas filiadas tinham que ser aprovados pelo CND, que poderia propor ao Ministro da Educação a criação ou a supressão de qualquer confederação. No tocante às competições internacionais, o Conselho Nacional de Desportos exercia um controle ainda mais rígido. A participação de qualquer clube ou entidade em uma competição internacional deveria ser previamente autorizada pelo CND, que também era responsável pelas delegações que acompanhavam a seleção brasileira de futebol.

Mesmo após o fim do Estado Novo e o restabelecimento da democracia, o Conselho Nacional de Desportos não sofreu grandes alterações. A entidade ainda detinha a prerrogativa de regular os clubes, federações e competições esportivas nacionais, indicava os chefes de delegações que acompanhavam a seleção brasileira em competições no exterior e pairava sobre toda a organização esportiva nacional, ainda que não exercesse todas suas atribuições de forma regular. Foi apenas com a publicação da Lei Zico – Lei n. 8.672, de 6 de julho de 1993 – que o Conselho Nacional de Desportos foi extinto, tendo durado mais de 50 anos.

Referências:

BRASIL. Decreto-lei n. 383, de 18 de abril de 1938. Diário Oficial da União, 19 abr. 1938, p. 7357.

BRASIL. Decreto-Lei n. 3.199, de 14 de abril de 1941.  Diário Oficial da União, 16 abr. 1941, p. 7453.

BRASIL. Decreto-Lei n. 4.166, de 11 de março de 1942. Diário Oficial da União, 12 mar. 1942, p. 3918.

MAZZONI, Tomás. O esporte a serviço da pátria. São Paulo: [s.n.], 1941.

MAZZONI, Tomás.  História do futebol no Brasil: 1894-19550. São Paulo: Edições Leia, 1950.

VARGAS, Getúlio. Diário.  2V.  São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV, 1995.


Go Army, Beat Navy: o esporte nas Forças Armadas estadunidenses no contexto da Primeira Grande Guerra

21/03/2016

Por: Karina Cancella (karinacancella@gmail.com)

O esporte é na atualidade um fenômeno presente no cotidiano das mais diversas instituições ao redor do mundo. As Forças Armadas, claro, não ficaram de fora desse contexto. Ao longo do século XIX e especialmente no século XX, as aproximações entre militares e prática esportiva se ampliaram significativamente em diversas regiões do planeta. Entre finais do oitocentos e décadas iniciais do novecentos, países como Inglaterra, Alemanha, França, Estados Unidos da América e Brasil passaram a investir em programas de treinamento do corpo de suas tropas utilizando os esportes e as ginásticas com vistas a não somente desenvolver o aspecto físico de seus contingentes mas também o reforço da moral e da masculinidade (CANCELLA, 2014).

No post de hoje, vamos tratar brevemente sobre como os Estados Unidos da América (EUA) mobilizaram algumas práticas esportivas nos períodos de preparação para participação na Primeira Grande Guerra e durante o desenrolar do conflito.

Nos EUA, assim como no restante do mundo ocidental, a cultura esportiva apresentou maior desenvolvimento no final do século XIX, beneficiada pelas melhorias no transporte, pelo crescimento dos meios de comunicação, particularmente os jornais mais baratos, pela urbanização e industrialização. Em 1898, por exemplo, o esporte já fazia parte do calendário nacional e garantia atenção de diferentes grupos da população para competições de baseball e football (futebol americano). No entanto, a maior aproximação dos militares dessas práticas somente ocorreria na entrada dos Estados Unidos no conflito com a Espanha, conhecido como Guerra Hispano-Americana, pelo controle das colônias espanholas no Golfo do México no ano de 1898. Segundo Wanda Wakefield, após a derrota da Espanha no conflito, os comandantes americanos criaram intencionalmente oportunidades para os soldados e marinheiros praticarem baseball, corrida e experiências com outras competições atléticas. (WAKEFIELD, 1997).

O esporte foi principalmente defendido pelos comandantes como oportunidade de distração saudável para os militares em campanha, sendo sempre enfatizada a necessidade de afastamento de práticas consideradas ilícitas pelos comandos, como ingestão de bebidas alcoólicas, envolvimento com prostituição e jogos de azar. (WAKEFIELD, 1997).

Esse argumento de defesa da prática esportiva entre os militares como elemento de promoção de bons hábitos e boa ordem foi reforçado no processo de preparação dos EUA para o ingresso na Primeira Grande Guerra. Paralelamente a esse movimento pelo esporte, os grupos que defendiam a moralização da sociedade e buscavam a proibição de venda de bebidas alcoólicas e da prostituição ganharam força no processo de organização do United States Army e United States Navy para o embarque para o cenário de operações. Utilizando o argumento de estarem em tempo de guerra emergencial e do significativo aumento dos acampamentos de treinamento militar, esses grupos moralistas intensificaram as pressões para proibir a prostituição, pois seria um risco para a saúde e segurança dos soldados e também por ser um atrativo para jovens mulheres que viviam no entorno dos acampamentos como uma possibilidade de recebimento por favores sexuais. (WAKEFIELD, 1997).

Essas proibições se baseavam na defesa de que as energias dos jovens deveriam ser direcionadas unicamente para o preparo para as batalhas. Nesse contexto, o esporte era uma prática recreativa desejável e moralizante, já que garantia uma distração aos soldados e, ao mesmo tempo, auxiliava no condicionamento físico, nas relações interpessoais e no companheirismo, além de serem instrumentos para reforço da masculinidade. (WAKEFIELD, 1997).

Nos acampamentos de treinamento, algumas entidades civis atuavam para desenvolver atividades entre os soldados. A Young Men’s Christian Association (YMCA), por exemplo, enviou representantes que organizavam aulas sobre a bíblia, grupos de canto, jogos, atuavam como árbitros em lutas de boxe, auxiliavam jovens soldados com pouca instrução a escrever cartas, entre outras distrações vistas como sadias pelos comandos das FA. (WAKEFIELD, 1997).

O estabelecimento dessas práticas nos acampamentos auxiliou, inclusive, no processo de popularização de um dos esportes mais importantes atualmente entre os estadunidenses: o futebol americano. James Mennell (1989) afirma que a introdução do futebol americano como parte do treinamento militar e atividade de horas de lazer para os recrutas que atuaram durante a Primeira Guerra foi um dos fatores responsáveis pela ampliação dos interesses nessas práticas ao longo da década de 1920. Seguindo nessa linha apontada por Mennell, Steven Pope (1997), ainda aponta que:

A campanha de preparação para a Primeira Guerra Mundial reforçou a expansão geográfica do futebol. Envolto em trajes patrióticos, o jogo tornou-se um terreno de formação para a cidadania e prontidão militar. Líderes de preparação trabalharam para transformar o futebol de um mero esporte de espectadores em uma base componente da educação cívica. […] Joseph Lee, presidente do Associação de Recreação e Playgrounds da América […] apontou para o futebol como sendo o mais adequado para a preparação para a guerra, devido ao seu cultivo de lealdade de equipe, o que poderia facilmente ser equiparado à lealdade nacional. […] Discussões em tempo de guerra foram específicas sobre as qualidades físicas desejadas cultivadas pelo futebol, que preparou os homens jovens para a guerra. (POPE, 1997, p. 93-94).[1]

Tanto no Exército como na Marinha dos EUA foram implementadas divisões atléticas com responsabilidade de desenvolver programas esportivos para os militares. No caso do Exército, a modalidade com maior investimento inicialmente foi o boxe, defendido como prática mais útil naquele momento para o serviço militar. Foi inclusive realizada uma busca por um “boxeador habilidoso” para ajudar na instrução nos campos. Não havia uma diretriz da Divisão Atlética do US Army inicialmente para o desenvolvimento da prática do football. Um dos argumentos era o fato de ser muito caro fornecer os equipamentos necessários para a prática a todos os soldados. Normalmente, dependia-se de doações para conseguir os materiais. O programa de treinamento atlético e recreação era ainda bastante recente no US Army e, por essa razão, a Divisão Atlética se empenhou em desenvolver a prática do boxe de forma mais generalizada e deixou os esportes recreativos (como era considerado o futebol americano) como responsabilidade dos diretores de cada campo. Sendo assim, não havia nenhuma diretriz política oficial da Divisão Atlética para se criar um programa de futebol em serviço. O surgimento do programa foi por ação específica dos campos, já que o futebol mostrou-se como uma prática já bem estabelecida, com um corpo de técnicos e funcionários qualificados dispostos a ajudar. Além disso, os soldados e marinheiros apresentavam grande interesse e entusiasmo pelo jogo. Como consequência, começaram a surgir oportunidades de promover jogos com faculdades e outros campos em grandes estádios. Foi com grande rapidez que as equipes dos acampamentos tornaram-se organizadas, equipadas e prontas para jogar uma temporada completa de futebol americano (MENNELL, 1989).

Já no caso da Divisão Atlética da US Navy havia um incentivo maior para o programa de futebol em serviço, especialmente porque o responsável, Walter Camp, tinha uma grande proximidade com esse esporte. Camp foi um dos mais importantes esportistas dessa modalidade em seu tempo e é considerado o principal responsável pela normatização da prática nos moldes que ela é jogada até os dias atuais, tendo participado das primeiras partidas nos EUA ainda no século XIX e atuado nos processos de reformulação e criação das regras para o futebol americano. (WCCF, 2015).

Walter Camp defendia a prática do futebol americano como elemento recreativo e de distração para os marinheiros. No entanto, outro ponto foi também enfatizado por ele na defesa pela difusão da modalidade: a natural rivalidade entre soldados e marinheiros, que poderia ser utilizada para a promoção de jogos de futebol americano atraentes entre as equipes dos campos do Exército e das Estações Navais estabelecidas no processo de preparação para atuar na Primeira Guerra. Em 1917, Camp iniciou a organização dos jogos escrevendo para Raycroft, chefe da Divisão Atlética do US Army, pedindo autorização para que o time do Exército pudesse jogar. Seguiu para a seleção de um estádio com data disponível, sendo escolhido o Yale Bowl. Então, passou para a divulgação e promoção do evento na imprensa. Em carta redigida em meio às organizações com o objetivo de convocar o maior público possível, Walter Camp afirmou que aquele evento seria a primeira real grande competição entre Exército e Marinha envolvendo jogadores de todo o país. A promoção de jogos como esses, não somente entre os militares mas também com as equipes das universidades, foi compreendida como um grande contribuinte para a divulgação da prática. (MENNELL, 1989).

É preciso, no entanto, relativizar a colocação com relação a esse evento de 1917 ser a primeira grande competição entre Exército e Marinha. Estabelecendo um levantamento na base de dados da Library of Congress no catálogo Chronicling America – Historic American Newspapers, que apresenta um acervo de consulta on-line para o período de 1836 a 1922 com sistema de busca por palavra-chave, foram identificadas notícias em periódicos de diferentes regiões dos EUA noticiando jogos entre militares do US Army e da US Navy e competições com equipes de universidades desde o século XIX. As ocorrências se intensificam consideravelmente no século XX, mas desde a década de 1890 a imprensa dedicava espaço para noticiar processos de organização de competições esportivas entre os militares, especialmente aquelas realizadas entre suas escolas de formação.

Para ilustrar, segue abaixo a transcrição traduzida de notícia publicada no jornal “The Sun” em 29 de novembro de 1890 em que se comenta realização da primeira competição esportiva entre militares da Academia de West Point (US Army) e de Annapolis (US Navy).

O jogo de futebol de cadetes

O jogo de futebol mais marcante do ano, em alguns aspectos é o estabelecido para hoje em West Point entre os cadetes da Academia Militar e os cadetes da Academia Naval.

Os espectadores não serão numerosos como as multidões em Eastern Park e em Springfield. Pode não ser tão brilhante em bloqueio e desarme, passes e jogos, mergulhos através da linha ou correndo em torno das extremidades, como nas poderosas lutas de Harvard com Yale e de Yale com Princeton. Na verdade, os jovens de Annapolis, que tiveram uma grande experiência e esperam para fazer um jogo animado com os rapazes de West Point, foram derrotados na última quinta-feira, em uma pontuação de 24 a 4, em seu próprio campo, por Lehigh, que está na segunda posição dos jogadores de futebol da faculdade.

Mas o que torna este jogo memorável é que ele marca a entrada dessas duas escolas do governo no campo de competições atléticas com o outro. Eles se desprendem de velhas ideias e observâncias tradicionais. Com um jogo de futebol realizado e um duo de jogo de volta no próximo ano, não há nenhuma razão para o baseball não seguir com jogos entre as duas academias na próxima primavera e, em seguida, uma competição anual em vários exercícios de atletismo.

Tudo isso faria uma mudança na relação social das Academias de West Point e Annapolis, que até então não tinham muito mais a ver com o outro do que se eles pertencessem a diferentes países. Sob as velhas noções, competições em esportes encontraram pouco favor entre os líderes militares. A mudança começou quando as equipes do Exército participaram das competições de rifle em Creedmoor. Desde que a fixação de tais competições no próprio Exército, com distintivos e medalhas fornecidos pelo Governo, foi apenas um passo; E na medida em que o plano militar foi seguido em ter oficiais e homens competindo em pé de igualdade, as competições de rifle tornaram-se decididamente a instituição mais democrática do exército. Mesmo no tempo presente, recomendações são feitas ocasionalmente para o estabelecimento de competições separadas para oficiais e soldados, mas esta mudança não foi feita. Quanto à Academia Naval, tem por vários anos mantido times de baseball e de futebol que disputavam nines e elevens[2] com universitários vizinhos e escolas.

O jogo de cadetes do exército e da marinha é, portanto, um desenvolvimento tão natural a partir desses costumes modernos que, atualmente, a única surpresa é como não foi estabelecido há muito tempo. Este jogo anual, com as suas exigências severas sobre a força, coragem, rapidez e habilidade, em breve vai atrair grande interesse popular, enquanto os oficiais que trocaram a escola para servir em navios ou fortes vão se interessar por ele como o que estão sentindo os antigos universitários graduados sobre as fortunas do futebol do vermelho, do azul e do laranja e preto. [3], [4]

Como é possível verificar na transcrição da notícia, esse jogo realizado em 1890 é considerado como um grande responsável não somente por introduzir as escolas de formação militar das Forças Armadas dos EUA no panorama de competições esportivas daquele momento mas também por aproximar as relações entre as duas instituições. Nesse sentido, o esporte assumiu um papel importante nas interações políticas entre as forças e também na relação com as universidades e escolas civis.

Até os dias atuais, os confrontos esportivos entre US Army e US Navy são importantes eventos nos Estados Unidos. No perfil oficial do US Army na rede social Facebook, por exemplo, foi publicada em 04 de dezembro de 2013 uma nota de convocação aos seguidores para votar o pôster de divulgação do confronto de futebol americano entre os times “The Army Black Knights of West Point – The U.S. Military Academy” e “United States Naval Academy Midshipmen”, que seria realizado em 14 de dezembro de 2013. Entre os 10 cartazes disponibilizados na página para voto, um fazia referência direta aos jogos realizados entre as forças ao longo do século XX, como se pode ver a seguir:

1480749_10151894051183558_1283661905_nFonte: The U.S. Army – the official U.S. Army Facebook page. Disponível: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10151894051183558&set=a.10151894035343558.1073741841.44053938557&type=1&theater. Acesso 04 dez. 2013.

Ao longo da atuação na Primeira Guerra, as FA dos EUA organizaram entre seus militares inúmeros eventos esportivos em diferentes modalidades como futebol americano, beisebol, atletismo, boxe, além da criação de competições para exercícios militares específicos como lançamento de granada, atividades de ordem unida, manipulação de armas e exercícios de companhia. (WAKEFIELD, 1997).

Além dessas atividades com intuito recreativo, o esporte ainda foi utilizado no front como forma de treinamento de habilidades militares de forma mais “agradável”. Ao treinar o beisebol, os militares eram lembrados que o lançamento das bolas era similar ao processo de lançamento de granadas. Para que os soldados aprendessem a utilizar as máscaras de gás em combate, eram realizados extensos treinamentos com jogos, momentos em que os militares jogavam as partidas utilizando as máscaras sob os argumentos de que se conseguissem utilizar o instrumento no “campo de jogo”, poderiam utilizá-lo sem problemas no “campo de batalha”. Para encorajar os soldados a se sentirem confortáveis com as agressões que enfrentariam na guerra, as regras do boxe foram alteradas com a redução do tempo dos rounds para que não ocorresse a estagnação durante a luta, aumentando a intensidade do combate. (WAKEFIELD, 1997).

O esporte foi elemento presente e constante no cotidiano dos militares estadunidenses ao longo das primeiras décadas do século XX, sendo utilizado sob diferentes objetivos. Com o fim dos conflitos da Primeira Guerra em 1918, as Forças Armadas envolvidas nos eventos iniciaram o processo de desmobilização e retorno para seus países. Como forma de celebração da vitória dos Aliados, Elwood S. Brown, Diretor do Departamento de Atletismo da YMCA, escreveu ao Coronel Bruce Palmer, membro da equipe do General John Pershing (comandante da Força Expedicionária dos Estados Unidos na Primeira Guerra), informando que a entidade poderia organizar em conjunto com as FA competições esportivas entre os aliados como forma de celebração e reforço dos hábitos saudáveis entre os militares. (TERRET, 1999).

Após discussões e acordos, os Jogos Interaliados, o primeiro evento esportivo internacional no pós-guerra,[5] foram realizados em junho de 1919, em Paris, com a participação de 18 nações e 1.500 atletas em 24 diferentes modalidades. A liderança no processo de organização e realização desse evento e a massiva participação dos militares estadunidenses nas competições evidenciam a importância do esporte no contexto das atividades dessas FA ao longo dos anos iniciais do século XX. (TERRET, 1999).

Referências:

CANCELLA, K. O esporte e as Forças Armadas na Primeira República: das atividades gymnasticas às participações em eventos esportivos internacionais. Rio de Janeiro: BibliEx, 2014.

DPTMS – Directorate of Plans, Training, Mobilization and Security. Camp Lewis, 1917-1919. Disponível em: <http://www.lewis-mcchord.army.mil/dptms/museum/camp.htm&gt;. Acesso 05 dez. 2013.

MENNELL, J. The Service Football Program of World War I: Its Impact on the Popularity of the Game. Journal of Sport History, v. 16, n° 3, Winter, 1989, p. 248-260.

POPE, S. Patriotic Games: Sporting Traditions in the American Imagination, 1876–1926. New York: Oxford University Press, 1997.

TERRET, T. Le Comité International Olympique et les “olympiades militaires” de 1919. Olympika The International Journal of Olympic Studies, v. VIII, 1999, p. 69-80.

WAKEFIELD, W. Playing to win: sports and the American Military, 1898-1945. Albany: State University of New York Press, 1997.

[1] Tradução da autora.

[2] Nines e elevens é uma referência aos jogos de baseball (9 jogadores) e football (11 jogadores).

[3] A indicação ao vermelho, azul e laranja e preto é uma referência direta às universidades citadas no texto e as cores de seus brasões: vermelho – Harvard, azul – Yale, laranja e preto – Princeton.

[4] The Sun, 29 de novembro de 1890, p. 6.

[5] Por ocorrência dos conflitos, os Jogos Olímpicos de 1916, previstos para ocorrerem em Berlim, não foram realizados, interrompendo a sequência de edições a cada quatro anos desde os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, promovidos em 1896.