Do turismo aos títulos Mundiais: apontamentos sobre Automobilismo e política na Argentina (1904-1955)

25/01/2021

por Maurício Drumond

Em meios a tantas leituras e anotações decorrentes da produção de um artigo acadêmico, por vezes nos deparamos com assuntos e ideias que acabam não se desenvolvendo ao longo do trabalho. Os motivos para isso variam. Por vezes, o recorte do artigo foge um pouco ao material encontrado. Em outros casos, as ideias não se enquadram exatamente ao escopo da análise proposta no artigo. Isso é ainda mais comum ao escrevermos com limite máximo de páginas ou palavras, onde temos menos espaço para olhares tangenciais que contribuem para a compreensão do objeto, mas que não são essenciais e acabam ficando de fora da edição final. 

Muitas vezes, separamos essa informação com a intenção de utilizá-la em um novo artigo, no futuro. No entanto, são raras as oportunidades em que esse novo trabalho acaba por se concretizar. Eventualmente, damos a sorte de ter uma postagem agendada no blogue no momento em que isso ocorre. É por isso que aproveito minha postagem dessa semana para estabelecer alguns apontamentos sobre automobilismo e política na Argentina durante a primeira metade do século XX, fruto de um trabalho de História Comparada em andamento que acabará por não abarcar todos os elementos aqui presentes. 

Origens do automobilismo argentino – as primeiras décadas do século XX

O automobilismo começa a tomar corpo na Argentina a partir de Buenos Aires, ainda no início do século XX. Os registros históricos apontam que os primeiros automóveis com motor de combustão interna, movidos à gasolina, chegaram à capital argentina entre 1896 e 1898. Dalmiro Varela Castex importou da Europa um triciclo De Dion Bouton e foi o primeiro portenho a ter um registro com permissão para conduzir o automóvel.

Não demorou para que a nova máquina se popularizasse entre a elite local. De acordo com a historiadora Melina Piglia (2014), por volta de 1900 já havia mais de cem carros na cidade, e dez anos depois o número já chegava a quase 5.000 veículos. É nesse período que Dalmiro Varela Castex lidera, em novembro de 1904, a criação do Automóvil Club Argentino (ACA), uma instituição voltada para a organização, o incentivo e a fiscalização do automobilismo esportivo no país. Sua primeira corrida oficial foi realizada em dezembro de 1906, no já desaparecido hipódromo de Nuñez, que assim como o hipódromo do Derby Clube no Rio de Janeiro, deu lugar ao maior estádio de seu país. Nessas primeiras corridas, se enfrentavam renomados membros da elite afeita à modernidades e importadores de automóveis, como Juan Cassoulet.

Em 1910, o ACA organizou a primeira edição do Grand Premio de la Argentina, uma prova de resistência e velocidade ligando as cidades de Buenos Aires e Córdoba, passando por Rosário. De acordo com Eduardo Archetti (2001, p. 69), os carros demoraram dez horas para chegar em Rosário, e o primeiro a alcançar Córdoba demorou quatro dias. O último a chegar o fez apenas uma semana após a largada. a ausência de estradas, o desconhecimento do trajeto e inúmeros problemas mecânicos faziam do Grand Premio de la Argentina uma empreitada única para seu tempo. No entanto, já era possível observar elementos que caracterizaram as famosas corridas de Turismo Carretera que marcariam o automobilismo anos depois: “caminhos pobres, público curioso, pilotos cheios de coragem, verdadeiros aventureiros, e acompanhantes mecânicos capazes dos mais insólitos consertos” (ARCHETTI, 2001, p. 70).

Nas décadas de 1910 e 1920, era possível encontrar muitos pilotos de origens mais modestas, em geral mecânicos, e do interior do país. Alguns competiam empregados por empresas importadoras de carros e peças, ou por alguma revendedora local dos grandes fabricantes. No entanto, muitos outros eram pilotos independentes, que coletavam dinheiro para sua participação em suas cidades ou patrocinadores, em busca dos prêmios em dinheiro, cada vez maiores. A popularização do automóvel também impulsionava o esporte a novas fronteiras. Em 1920, a frota do país já alcançava o impressionante número de 1 automóvel para cada 160 habitantes, proporção maior do que na França (que tinha 1 para cada 169). Sete anos mais tarde, a proporção na Argentina vai  para 1 carro para cada 49 pessoas, com aproximadamente 200 mil veículos, o dobro da frota do Brasil, que possuía o triplo da população (FONTE: PIGLIA, 2018). 

O automobilismo argentino cresceu e se diversificou ao longo dessas décadas iniciais, dando origem a diferentes modalidades. Corridas de velocidade, tanto em circuitos fechados, geralmente disputadas em autódromos, como em circuitos abertos, em trechos de estradas, reuníam carros rápidos e especiais para corridas. No entanto, tornaram-se cada vez mais populares as corridas de regularidade, com grandes distâncias percorridas ao longo de dias, ou semanas. Havia ainda modalidades específicas para veículos com mecânica nacional ou importada, com diferentes cilindradas, ou com carros de corrida ou carros de passeio. 

Ao longo dos anos 1930 e 40 ganha popularidade uma modalidade tipicamente argentina. Corridas de resistência, disputadas em várias etapas em estradas não necessariamente fechadas para o trânsito. A partir de 1937, essas corridas seriam disputadas por automóveis de passeio (ou de turismo, como eram chamados) ligeiramente modificados. Essa modalidade ficou conhecida como Turismo Carretera

Turismo Carretera: Automobilismo e Turismo nas décadas de 1930 e 40

As ações do governo tiveram forte impacto no automobilismo argentino durante a chamada Década Infame. Se, por um lado, as ações do governo em manutenção e obras de melhoramento nas estradas criaram condições de ampliação do alcance do esporte, por outro, diversos empecilhos foram criados a fim de controlar os riscos presentes em sua prática. O já tradicional Grand Premio de la Argentina, organizado pelo ACA, não se limitava mais ao trajeto Buenos Aires-Córdoba, sendo realizado em trajetos diferentes a cada ano entre 1933 e 1943. Já as provas de velocidade, apesar de populares, acabaram  sofrendo embargo do governo em 1934, através da Dirección Nacional de Vialidad (DNV,  Administração Nacional de Rodovias), que proíbe a modalidade após recorrentes mortes em corridas locais. 

Com a proibição de provas de velocidade em território nacional, o Grande Prêmio do ACA é convertido no Primeiro Grande Prêmio Internacional, em 1935, unindo Buenos Aires a Santiago, Chile. O trajeto de cerca de 5.000 km era composto por cinco etapas (Buenos Aires-Mendoza; Mendoza-Santiago de Chile; Santiago de Chile-Neuquén; Neuquén-Bahía Blanca; e Bahía Blanca-Buenos Aires), disputadas por pilotos de ambos países,. A prova era travada com limite de velocidade em território argentino, e velocidade em território chileno. No ano seguinte, o trajeto foi expandido para mais de 6.000 kms e marcas como Chevrolet e Plumouth participam. 

Em maio de 1937, utilizando o argumento de que pretendia privilegiar a circulação de veículos de passeio, a DNV proibiu a realização de provas oficiais em rodovias nacionais, com exceção daquelas que “por seu caráter, busquem difundir o conhecimento do país e fomentem o turismo dentro do mesmo, mediante adequada utilização de estradas argentinas” (citado por PIGLIA, 2018). É nesse contexto em que aparece a nova modalidade de Turismo Carretera.

  O Grand Premio Argentino de Turismo Carretera (TC) foi realizado entre os dias 5 e 15 de agosto de 1937. A bandeirada de largada foi dada pelo presidente argentino, general Augustín Justo, e aparece como destaque o nome do jovem piloto Oscar Gálvez, que se tornaria uma das lendas do automobilismo no país, juntamente com Juan Manuel Fangio, que se iniciou no TC do ano seguinte. 

A própria concepção das TC foram forjadas pelo Estado argentino, através da DNV. Uma série de normas estabelecia que poderiam participar apenas carros de passeio (com poucas modificações permitidas), com chassis e motores da mesma marca, capota fechada, e velocidade máxima de 120 km/h. Todos os carros deveriam seguir as orientações gerais de trânsito e deveriam estar dentro das normas para rodar pelas cidades do país. 

O Estado buscava assim assegurar um propósito de integração nacional e de apoio ao turismo proporcionado pelo automobilismo. O esporte serviria como propaganda do turismo interno, estimulando viajantes a percorrer os mesmos trajetos com seus próprios carros, a visitar locais antes desconhecidos e a conhecer e confiar na rede de vias rodoviárias do interior do país. O fato dos automóveis que corriam nessas provas serem veículos de passeio faria com que turistas se sentissem mais confiantes na segurança das estradas. O limite de velocidade relativamente baixo tornava as corridas mais seguras para pilotos e para as pessoas que se aglomeravam ao lado das pistas para assistir. O menor número de acidentes fatais era fundamental para construir a confiança do público nas estradas. 

As provas internacionais levavam essas propostas a patamares ainda maiores. Inicialmente organizadas entre Argentina e Chile, em 1940 o ACA passa a organizar novas empreitadas que se coadunavam com o ideal Pan Americanista que ganhava força com a Segunda Guerra Mundial. A Argentina, país com tradição de neutralidade, reforçava suas relações com seus vizinhos hispanófonos da América. Nessa ocasião, foi organizado o Grande Prêmio Internacional do Norte,  ligando Buenos Aires a Lima, passando por La Paz. Juan Manuel Fangio, correndo com um Chevrolet, foi o vencedor da prova, com tempo total de 109 horas, 36 minutos e 16 segundos. 

O sucesso da prova foi tanto que o ACA planejava ampliá-la, planejando sua extensão à Caracas em 1941 e Nova York em 1942. No entanto, a escalada da guerra e a posterior entrada dos Estados Unidos após o ataque japonês em Pearl Harbor levaram ao cancelamento das provas até 1948. Os custos para os pilotos participantes era muito elevado. As provas duravam muitos dias e exigiam muito de pilotos e seus carros. Uma grande equipe de mecânicos e quantidade de peças era fundamental para resistir a todos os problemas que surgiriam durante a jornada. A dificuldade em conseguir peças, combustível e dinheiro para a participação levou ao cancelamento das principais provas, que foram sendo retomadas gradativamente após o final da guerra. 

Em 1948, já sob o governo de Juan Perón, a prova Buenos Aires-Caracas é realizada. Entre os 141 participantes, contavam-se 8 peruanos, 5 chilenos, 5 bolivianos, 3 venezuelanos, 1 uruguaio e 119 argentinos (ARCHETTI, 2001, p. 80). O trajeto, com 9,580 km, foi percorrido em 20 dias, com 5 dias de descanso. No entanto, o TC já começava a perder espaço para outra modalidade do automobilismo, as corridas de velocidade. Com a chegada de Perón ao governo, novos ideais passaram a reger o ideal do automobilismo como esporte e seu potencial serviço à nação. 

Um Novo Automobilismo na Nova Argentina de Perón.

O governo de Juan Domingo Perón estabelece uma nova relação entre Estado e os diversos campos esportivos na Argentina. Com aporte financeiro do Estado, o Automóvil Club Argentino adquire carros de corrida para formar uma equipe para disputar provas na Europa. Correndo com uma Maserati, Fangio venceu quatro provas na Europa em 1949. No ano seguinte, Fangio e José Froilán González estrearam na Fórmula 1 Internacional. A popularidade e habilidade dos pilotos argentinos era agora posta na vitrine internacional, em disputas com os melhores pilotos do mundo. A Nova Argentina de Perón exibia seus frutos, demonstrando a capacidade do povo argentino quando propriamente guiado, diria a propaganda do governo. 

E o resultado não poderia ter sido muito melhor. Fangio foi campeão mundial de Fórmula 1 em 1951, 1954 e 1955, durante o período peronista, e ainda em 1956 e 1957, já depois da queda do Presidente argentino. Já González foi vice-campeão em 1954 e ficou marcado por ter conseguido a primeira vitória da Ferrari em uma corrida de Fórmula 1, em 1951. A equipe argentina era acompanhada por jornalistas que transmitiriam as vitórias nacionais para a América. 

Em 1950, ao receber os pilotos que voltavam de sua temporada na Europa, Perón teria perguntado se os visitantes precisavam de alguma ajuda de seu governo. Fangio teria tomado a palavra ao afirmar: “Precisamos de um autódromo, general” (LUPO, 2004, p. 308). Sendo verdadeira ou não essa versão dos acontecimentos, o fato é que em janeiro de 1951, a cidade de Buenos Aires anunciou o início da construção do novo autódromo municipal, que ficaria pronto 15 meses depois. O autódromo, com diversos circuitos e capacidade para mais de 100 mil pessoas, seria um dos maiores símbolos dessa nova relação entre o automobilismo e o Estado argentino. 

Imagens do Grande Premio de Buenos Aires de 1953. Vale notar a presença de Perón nas imagens do evento.

Nomeado inicialmente como Autódromo 17 de Outubro, em homenagem a uma importante data do Peronismo, o dia da Lealdade, o circuito marcou o ingresso da Argentina no calendário oficial do circo da Formula 1, como a primeira prova do ano a partir de 1953. 

Considerações Finais

O Turismo Carretera Marcou uma importante fase no automobilismo argentino. Em um período em que as ambições políticas de projeção internacional do governo argentino tinham como maior ênfase sua relação de supremacia com seus vizinhos de língua espanhola (ou seja, excetuando-se o Brasil), a modalidade serviu tanto para o incentivo de uma política interna de unidade territorial e de difusão do turismo doméstico, como um mecanismo de afirmação da superioridade do país em uma área profundamente ligada à tecnologia e à modernidade como o automobilismo. 

A realização das provas internacionais fortaleceram esses laços, com provas de múltiplos trajetos unindo diversos países da América do Sul. Argentina, Chile, Peru, Bolívia e até Colômbia receberam os pilotos de Turismo Carretera, e mais países ainda tiveram pilotos participantes das provas, em geral dominadas por argentinos. 

Com o final da Segunda Guerra Mundial e a ascensão de Juan Perón, uma nova visão política sobre a Argentina e o esporte passa a vigorar no país. O final da primeira metade do século XX vê assim uma profunda mudança no automobilismo do país.O Turismo Carretera perde espaço para as provas de velocidade em circuitos fechados. Com financiamento do governo peronista, uma equipe argentina passa a disputar o principal campeonato do mundo e se destaca com as vitórias daquele que foi considerado por muito tempo o melhor piloto da história: Juan Manuel Fangio. Para completar, o novo governo argentino constrói um novo circuito para a cidade de Buenos Aires, que passa a abrigar provas internacionais de Fórmula 1. De referência regional, a Argentina se torna um símbolo mundial para o esporte. 

Referências:

Archetti, Eduardo P. (2001). El potrero, La Pista y el Ring: las Patrias del Deporte Argenitno [The Paddock, The Racetrack and the Ring: the Homelands of Argentine Sport]. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica.

Lupo, Victor (2004). Historia política del deporte argentino (1610-2002) [Political History of Argentine Sport (1610-2002)]. Buenos Aires: Corregidor.

Piglia, Melina (2014). Autos, rutas y turismo. El Automóvil Club Argentino y el Estado [Cars, Routes and Tourism. The Automobile Club of Argentina and the state]. Buenos Aires: Siglo XXI Editores.


Publicado novo número de Recorde: Revista de História do Esporte

01/02/2020

Em dezembro foi publicado o número mais recente de Recorde: Revista de História do Esporte – confira abaixo o sumário. Com ele completaram-se doze anos de publicação contínua da primeira revista da América Latina dedicada à História do Esporte e das Práticas Corporais Institucionalizadas. O periódico recebe artigos e resenhas em fluxo contínuo.

 

v. 12, n. 2 (2019)

Sumário

Artigos

Leonardo Brandão, Giancarlo Marques Carraro Machado
Onésimo Rodríguez Aguilar, Luis Diego Soto Kiewit, Cindy Zúñiga Valerio
Juliana Carneiro
Kelen Katia Prates Silva
Tiago Sales de Lima Figueiredo
Narayana Astra van Amstel, Carlos Alberto Bueno dos Reis Júnior, Leonardo do Couto Gomes, Ricardo João Sonoda Nunes
Ivo Lopes Müller Junior, André Mendes Capraro
Everton de Souza da Silva
Samuel Ribeiro dos Santos Neto, Edivaldo Góis Junior
Rogério Othon Teixeira Alves, Georgino Jorge de Souza Neto, Luciano Pereira da Silva
Luiz Antonio C. Norder

Resenhas

Mariana de Paula, Letícia Cristina Lima Moraes, Leonardo do Couto Gomes, Marcelo Moraes e Silva
Leonardo do Couto Gomes, Duilio Queiroz de Almeida, Marcelo Moraes e Silva
Miguel Archanjo de Freitas Junior, Edilson de Oliveira, Tatiane Perucelli, Bruno Pedroso

Mais sobre a cultura do surfe no Sul da Califórnia

29/05/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

Esta postagem completa uma trilogia iniciada por “Pesquisando história do surfe no Sul da Califórnia” e “Os museus de surfe da Califórnia“. Diferentemente do que geralmente faço, foco é mais em imagens que no texto. Todas as fotos são de minha autoria.

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A lista de surf shops, marcas, empresas, shapers e oficinas de produção de materiais e equipamentos originários do Sul da Califórnia é enorme. Cito algumas: Clark Foam, Dewey Weber, Gordon & Smith, Hobie, Infinity Surfboards, Mark Diffenderfer, Pat Curren, Rusty, Ventura Surf Shop, (há listas extensas na internet, como esta).

Em entrevista [em inglês] ao projeto Sport in the Cold War (Esporte na Guerra Fria), o historiador Mark Dyreson afirma que os Jogos Olímpicos foram arenas para a divulgação de produtos, hábitos, práticas, modalidades esportivas e valores associados à Califórnia: camisas “havaianas”, calças jeans, filmes de Hollywood, praia, natação, vôlei de praia, mountain bike. Isto se deu em diferentes momentos do século XX, em especial nos anos 1930 e nos anos 1980, quando Los Angeles sediou as Olimpíadas de verão, em 1932 e 1984. Na mesma cidade encontram-se os estúdios hollywoodianos, cujos filmes cumpriram uma dupla função: produtos de exportação, também funcionaram como instrumentos de propaganda de uma série de elementos do que se convencionou chamar de culturas californianas, tanto para consumo interno (para públicos dentro do país e tropas espalhadas pelo planeta) quanto em escala mundial.

Esta postagem está organizada por cidade/localidade, começando pelo Condado de San Diego.

San Diego

Entre os diversos centros culturais, museus e galerias do Balboa Park está o San Diego Hall of Champions. Um dos atrativos é um Hall da Fama homenageando atletas nascidos na cidade e/ou no condado. O skatista Tony Hawk, de Carlsbad (no norte do condado), é um dos homenageados no Hall da Fama.

San Diego é uma das capitais da cerveja e das cervejarias artesanais nos EUA. Algumas têm referências a praia (e se localizam próximas à praia) e/ou ao surfe, como Rip Current. De uma lista de cinco cervejas temáticas de surfe disponível no site da revista Surfer, duas são de cervejarias localizadas no Condado de San Diego (em San Diego e San Marcos). E outra da Surf Brewery de Ventura, outra importante cidade de surfe californiana.

Ao sul de San Diego encontra-se Imperial Beach, a última cidade e uma das últimas praias da Costa Oeste do país. Como de costume, o píer favorece a formação de boas ondas dos dois lados. Além de humanos, Imperial Beach também recebe surfistas caninos, que contam com um apoio de seus donos para dropar nas ondas. Até campeonato de surfe de cachorros eu tive oportunidade de assistir (uma boa onda está em 3’14”). Note-se que a gravação foi disponibilizada num site chamado Dog Sports News, algo como Notícias de Esportes Caninos. Havia um conjunto de barraquinhas com produtos especializados, venda de petiscos e cervejas, brinquedos e brincadeiras para crianças etc. O campeonato contava com palanque, sistema de som, chamada de competidores e distribuição de camisetas antes do início de cada bateria etc.

Ao norte do condado, Oceanside, sede do California Surf Museum, é outra cidade que respira surfe. Tal como Imperial Beach, tem seu píer.

Huntington Beach

Esta pequena cidade considera a si mesma a capital do surfe competitivo na Califórnia. Motivos não faltam, como se pode ver nas fotos e legendas acima. Campeonatos, história, passado, campeões, ídolos, comércio, turismo e outros elementos formam uma notória e especial relação entre surfe, território, cultura e economia. Os lados do píer são um importante pico de surfe, assim como da prática de vôlei de praia – a Califórnia é o principal celeiro de jogadores(as) de vôlei de praia dos EUA. Atravessando a rua a partir do píer, chega-se à Calçada da Fama do Surfe, inaugurada em 1978 (mais informações nas legendas das fotos). Nela há uma estátua de Duke Kahanamoku.

Cerca de Los Angeles: DE Santa Monica a Venice

Embora haja um predomínio do surfe no litoral, o skate também é muito praticado. Em cidades como Santa Monica e Venice, a quantidade de cartazes e placas proibindo o skate é um indicativo de sua relevância e ubiquidade.

Santa Cruz

Santa Cruz é outra surf city importante. Localizada bem mais ao norte, é também conhecida pelas águas geladas. Na colina da qual se desce para pegar onda em Steamer Lane encontra-se a placa acima – o tipo de artefato cultural que enche os olhos de um pesquisador de humanidades. Nele lê-se o seguinte (tradução minha):

– O primeiro surfista na onda [ou seja, a ficar de pé sobre a prancha] tem a preferência

– Reme dando a volta na onda, não pelo meio dela

– Controle sua prancha

– Ajude os outros surfistas

Por Sam Reid

O estabelecimento de regras – e os métodos e iniciativas para tentar garantir que sejam cumpridas e obedecidas – são uma característica importante do surfe, ainda que objeto de muita controvérsia. Na visão de muitos de seus praticantes, devido ao número limitado de ondas (sobretudo de ondas boas e de fácil acesso), é preciso estabelecer critérios de preferência e convivência de forma a reduzir a ocorrência de conflitos.

San Clemente

Abaixo estão outras fotos do Surfing Heritage and Culture Center:

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Este texto já estava pronto quando soube da notícia da morte de John Severson, aos 83 anos.”Nascido e criado em Pasadena e San Clemente” [ambas na Califórnia], em 1960  Severson publicou um impresso para divulgar um filme que produzira. Chamava-se The Surfer, depois virou Surfer. Transformou para sempre esta notável atividade sobre a qual escrevo desde 2004, além de ter inspirado praticamente todos os periódicos congêneres de surfe do mundo. Severson vendeu a revista na primeira metade dos anos 1970, mas sempre se manteve próximo ao surfe, inclusive em sua produção artística. Surfline, Liga Mundial de Surfe e a Surfer publicaram belos necrológios. Outros virão.


Os Garotos da Praia de Waikiki: surfe, turismo, homens e mulheres

10/04/2016

Por Rafael Fortes

Num livro publicado em 2011, o historiador Isaiah Helekunihi Walker celebra o surfe como prática de resistência no Havaí durante o século XX. Entre os méritos da obra estão o uso de fontes que transcendem o inglês – sobretudo jornais em havaiano – e o destaque à articulação do surfe com movimentos políticos do arquipélago. Tem também problemas, comWalker - Waveso a grande facilidade para enxergar resistências e o esforço de corrigir textos de memória e jornalísticos – frequentemente, rechaçando os mitos apenas para colocar outros em seu lugar. Contudo, esse texto não é uma resenha do livro. Avisos aos navegantes: todas as citações do livro estão originalmente em inglês e foram traduzidas por mim; os vídeos, quando narrados, o são em inglês.

O que me interessa discutir é um trecho – intitulado “Garotos da Praia: Empurrando Mulheres e Fronteiras” (p. 70-77) – do capítulo três. O capítulo trata da rivalidade entre os frequentadores da praia de Waikiki, em Honolulu, que se agruparam em torno de dois clubes: o Outrigger Canoe Club, “formado em 1908 por (…) Alexander Hume Ford” e composto majoritariamente por haoles brancos nascidos no continente (p. 59); e o Hui Nalu, fundado e composto por membros de famílias históricas havaianas, entre os quais Duke Kahanamoku e o príncipe Jonah Kūhiō Kalanianaʻole, membro da família real deposta na última década do século XIX, antes da anexação pelos EUA, em 1898 (não confundir este clube com o Hui O He’e Nalu, formado nos anos 1970 e existente até hoje, cujos membros se tornaram conhecidos no Brasil como black trunks). O Hui Nalu, “embora existisse de forma pouco organizada desde 1905, (…) foi oficialmente formado (…) em 1911” (p. 62). Waikiki era e continua sendo a praia mais turística do arquipélago.

De acordo com Walker, “a partir de 1915, surfistas do Hui Nalu abriram lucrativos negócios sob concessão em Waikiki” e passaram a ser conhecidos como os “Garotos da Praia de Waikiki” (p. 70). Eles “eram salva-vidas, guarda-costas, instrutores, animadores e guias turísticos para os visitantes. Por um preço relativamente alto, levavam clientes para a arrebentação para descer ondas em canoas e pranchas.” Faziam e vendiam artesanato e davam aulas de ukelele.  À medida que os negócios se desenvolveram, alguns garotos passaram a atuar em tempo integral como funcionários particulares de famílias ou indivíduos de alta renda que visitavam Waikiki: levavam para passeios, atuavam como secretários particulares e desempenhavam funções diversas por períodos que variavam de “duas semanas até três meses” (p. 71).

As informações contidas e as histórias contadas nesta parte do capítulo se baseiam majoritariamente em entrevistas de história oral feitas com os próprios Garotos da Praia (a maioria, feitas em 1985 e disponíveis num banco de dados). Ao narrarem as relações com os e, principalmente, as turistas, a coisa fica mais animada.

Entre as graças que faziam para entreter os clientes, contavam histórias e piadas e surfavam sentados em cadeiras de praia ou na companhia de um cachorro. Este vídeo identifica um dos irmãos Kahanamoku como um surfista que descia ondas com seu cão Spot, o que pode ser visto em 3’19”. (Adendo: em outras ondas, a prancha em que está o cachorro não consegue ser captada pela câmera, o que provavelmente se deve à dificuldade de manejar o equipamento e à diferença de velocidade entre a prancha filmada e a canoa em que, suponho, encontrava-se a câmera.)

“À medida que ostentavam suas habilidades sociais e surfísticas, eles se tornaram celebridades locais capazes de atrair mais do que dinheiro. Garotas e mulheres brancas se aglomeravam na praia para aprender a surfar com os Garotos da Praia havaianos. ‘Naquela época’, recordou Louis Kahanamoku, ‘especialmente as wahine [mulheres] brancas iam todas nos Garotos da Praia. Os Garotos da Praia eram conhecidos por cortejar diversos tipos de mulheres de fora – divorciadas, ricas, vedetes e filhas de visitantes ricos” (p. 72).

Havia turistas que confiavam suas filhas aos cuidados dos Garotos da Praia. Houve histórias de amor entre os Garotos e vedetes que deram em casamento. E evidentemente, havia quem os considerasse “um bando de homens preguiçosos que se prostituem ganhando a vida em cima de desquitadas do continente” (p. 72).

Uma das principais formas de ensinar as damas a surfar, e também de “impressioná-las”, era descer as ondas junto com elas, na mesma prancha. Por exemplo, levantando-as sobre os ombros, o que, de acordo com um dos Garotos, “convidava a manobras excitantes e íntimas”. Na volta, “subiam em cima da parte de trás das garotas haoles” na remada para o outside (p. 72). O vídeo abaixo mostra, em 2’20”, uma sorridente mulher descendo uma onda em surfe duplo. (No último vídeo deste texto, há também um amplo sorriso captado em 5’07, em meio à excitação de descer uma onda numa canoa.)

(Breve comentário sobre o vídeo acima: como se pode ver, ele traz fartura de boas ondas surfadas com desenvoltura – e grande estilo – por um cachorro, que abre os trabalhos no sonrisal em 2’44” e depois manda ver no hang ten.)

Cenas com homens aproveitando a aproximação dos corpos para certos contatos e iniciativas, embora mantendo uma postura que cinicamente permita alegar que nada demais está acontecendo, também aparecem em Gidget, produção de 1959 com trama situada no litoral da Califórnia. Eis o trecho:

A partir de 0’16”, um dos personagens fala: “Aí está, querida! Reta como uma panqueca, hein?! Quase, né? (…) Posso te deixar mais à vontade?” Ao final, o mesmo personagem diz: “Muito bom para a primeira vez, né? Agora vou um levá-la um pouco mais fundo!” O filme, de acordo com vários pesquisadores, foi decisivo para espalhar a febre do surfe pelos EUA. A situação da personagem adolescente Gidget, que busca aceitação e tenta aprender a surfar em meio a vagabundos de praia mais velhos, é muito distinta daquela das turistas que buscavam e contratavam os serviços dos Garotos da Praia de Waikiki – elementos que podem permitir uma boa e complexa discussão sobre consentimento, abuso, vulnerabilidade etc.

Voltando a Waikiki… Quando na areia, a legítima preocupação de evitar queimaduras pela exposição ao sol levava os Garotos a realizar, “com frequência regular”, sessões de massagem para aplicação de óleos na pele de quem estava sob seus cuidados (p. 73).

À noite, vestindo smoking, os Garotos cantavam e tocavam instrumentos musicais, atraindo especial interesse do público feminino. As letras de algumas músicas tratam destas interações, do clima de romance e do duplo sentido em movimentos e gestos. Após o encerramento das atividades, os pares/casais se espalhavam em diversas direções – alguns, rumo ao mar, para novas sessões de surfe a dois.

O vídeo a seguir reitera esta narrativa da “boa vida” dos Garotos com diversas fotos, especialmente a partir de 3′ (e, diga-se de passagem, tem uma visão ainda mais positiva e idílica que Walker).

Como se pode imaginar, “por meio de tais interações, os Garotos da Praia de Waikiki violavam regras sociais de uma sociedade americana governada por leis antimiscigenação e ameaçavam a hegemonia haole por conquistarem propriedade que haviam construído e que era seu privilégio” (p. 75). Para Walker, isto evidencia que o mar – e, particularmente, a prática do surfe – constituía um espaço de exceção, de inversão de valores. Ali os homens havaianos eram poderosos, admirados e desejados. “Enquanto a indústria do turismo promovia as ilhas como uma ‘mulher’ a ser conquistada, os homens havaianos não eram propagandeados como objetos sexuais da maneira como ocorria com as mulheres dançarinas de hula-hula. Portanto, estes homens não estavam desempenhando ou se adequando a expectativas de conquista sexual de turistas; em vez disso, as desafiavam” (p. 75-6). Embora o argumento tenha valor, eu sugeriria que eles estavam também se adequando às expectativas das turistas.

No início dos anos 1930, num contexto de intensa crise econômica; acusações de estupro; e o transplante, para as ilhas, do discurso racista e histérico a respeito do negro como um predador sexual, o clamor social legitimou uma intensa reorganização do espaço social e econômico da praia de Waikiki, que passou a ser completamente controlada pelos brancos ligados ao Outrigger. Restou aos Garotos se sujeitarem a trabalhar em condições muito piores que as anteriores, tentarem ganhar a vida como frilas ou simplesmente abandonar a praia. A Segunda Grande Guerra fecharia as praias do arquipélago – de acordo com Walker, Waikiki foi cercada com arame farpado.

Bibliografia

WALKER, Isaiah Helekunihi. Waves of Resistance: Surfing and History in Twentieth-Century Hawai’i. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2011.

 

 

 

 


1949: pílulas sobre o esporte em Belo Horizonte

12/12/2011
por André Schetino
O ano vai terminando, e com ele meu último post da temporada 2011 aqui do História(s) do Sport. Recebi por email a indicação do vídeo abaixo, que divido com vocês. Trata-se de Belo Horizonte em 1949, em um filme produzido pelo Escritório de Serviços Estratégicos Americanos em colaboração com o Escritório de Coordenação dos Negócios Inter-americanos dos E.U.A.
Vale lembrar que que o período em questão é de grande desenvolvimento para a cidade, marcado pela industrialização, os investimentos do Prefeito Juscelino Kubitschek e a busca por parceiros comerciais para a capital mineira, naquele momento a 7ª do país e com pouco mais de 200mil habitantes.
O vídeo é longo, são 17 minutos ao todo (divididos em 2 partes), e aborda diversos aspectos do desenvolvimento de Belo Horizonte. Na primeira parte o destaque é a indústria da mineração, que alavancava a economia do Estado. Destaco a segunda parte do vídeo, especialmente a partir dos 5’22” onde o lazer e o esporte entram em cena.
Primeiro ao mostrar o Parque Municipal, que podemos considerar como o berço do esporte na cidade. Lá ocorreram competições de ciclismo, jogos de futebol, patinação, tenis e muitos outros. O Parque até hoje é um dos espaços privilegiados para o lazer na cidade, famoso por estar sempre lotado aos domingos para os passeios em família ou de casais de namorados.
Além disso, o Minas Tennis Clube, que já foi tema do meu segundo post aqui no blog sobre os clubes esportivos da cidade. As imagens são belíssimas, com destaque para as exibições de ginástica. No Iate Clube, na recém construída Pampulha, os esportes náuticos faziam sucesso àquela época. Além, é claro, do Cassino (onde hoje se localiza o Museu de Arte).
Desejo a  todos os leitores ótimas festas de fim de ano, e um 2012 com muitas alegrias. Um abraço!

As antigas e as novas faces do Rio turístico

01/10/2011

Por Valéria Guimarães

O post desta semana é dedicado aos novos usos turísticos na cidade do Rio de Janeiro, que passa por transformações profundas para receber os balados jogos esportivos, criticadas de forma muito pertinente nos posts anteriores. Espera-se que um dos “legados” dos jogos na cidade remodelada seja fortalecer a sua imagem turística no exterior, tornando-se um importante destino internacionalmente competitivo. Embora seja a principal cidade do país procurada para o turismo de lazer, é inexpressiva a participação do Rio de Janeiro – e do Brasil – como destino turístico no cenário mundial. Isso se explica pelo mau aproveitamento do potencial turístico da cidade, mal planejada e mal gestada ao longo de toda a história do seu desenvolvimento turístico.

Os novos empreendimentos públicos associados ao capital privado para o setor turístico, embalados pelo reposicionamento e projeção da “marca Rio de Janeiro” na vitrine mundial, concentram-se na exploração do mix de cultura e lazer como produtos, transformando em espetáculo pago as novas opções de turismo e lazer projetadas para a cidade, especialmente aquelas intervenções burguesas, de elevadíssimo custo social, concentradas na área portuária ou na “nova” Lapa.

Como bem analisa Victor Melo , a cidade vivenciou na primeira metade do século XX uma experiência moderna de construção identitária que consagra o uso de espaços públicos, especialmente da praia, como lugar do sujeito carioca. Ficariam para trás os valores sociais e estéticos que elegiam os tipos magros, pálidos e engravatados, para dar lugar aos signos que associavam juventude e modernidade carioca: corpos expostos, atléticos, modelados pela prática esportiva ao ar livre e dourados pelo sol.

As representações historicamente construídas sobre o paraíso tropical, terra de sol e de mar, de gente hospitaleira e mulheres exuberantes, associadas às novas sociabilidades que se manifestavam na urbe, especialmente nos novos usos da praia como espaço de lazer e de uma nova relação com o corpo a ser ali exibido, assumiram por muitas décadas um lugar central no discurso turístico sobre o Rio de Janeiro.

A idéia de uma “vocação natural” do Rio de Janeiro para a prática de um turismo de sol, de mar, de apreciação da floresta urbana, do samba e da mulher bonita de biquíni mínimo foi plenamente incorporada no discurso oficial, nas políticas públicas e privadas para o turismo, e divulgada na folheteria turística, nos guias impressos, nos cartões postais, nos souvenires e nas atrações culturais voltadas para os turistas – particularmente os shows de mulatas.

Os cartões postais de mulheres de biquíni, os preferidos dos turistas internacionais, estão proibidos por uma polêmica lei desde 2005, sob o argumento de vinculação da imagem da mulher e da cidade a um paraíso do turismo sexual. Fonte: http://colees-e.blogspot.com/2009/06/sera-que-e-de-proibir.html

A esse repertório, que compunha a maior parte dos roteiros comercializados pelas agências de turismo, sugeridos pelos guias e espalhados pelo “boca a boca”, somaram-se o futebol e a bossa nova como elementos representativos da cultura de uma cidade para turista ver, coração e síntese da cultura do Brasil. Essa imagem turística do Rio de Janeiro (e por que não dizer do país?), que ganha força na segunda metade do século passado, sem dúvida, amplificada pelo cinema de Hollywood, que construiu e reforçou estereótipos e acentuou no olhar estrangeiro o quanto éramos “sensuais”, “exóticos” e “pitorescos”, imagem esta reproduzida pelo próprio discurso turístico nacional.

O turismo no Rio de Janeiro hoje vem sendo ressignificado não só pelos novos investimentos feitos a pretexto da realização dos megaeventos esportivos e seu “legado”, mas também por uma nova visão de mundo da sociedade a partir das demandas sociais por inclusão das minorias étnicas e culturais e ampliação de seus direitos civis, como o direito à propriedade da terra, por exemplo. Até então invisíveis ao turismo, os bens culturais produzidos por esses grupos socialmente excluídos passam a ser objeto de interesse turístico, alargando consideravalmente o repertório turístico da cidade.

Tamanha é a importância do turismo em favelas na cidade do Rio de Janeiro que o mercado turístico já o reconhece como um “nicho”; outras formas de viver relacionadas à presença histórica de grupos étnicos na cidade – e no estado – também passaram a ser objeto de interesse dos turistas. Você já ouviu falar em “turismo étnico”? É possível hoje hospedar-se em aldeias indígenas de Niterói ou de Angra do Reis, por exemplo. Na cidade, o Mercadão de Madureira, a “Pequena África no Rio de Janeiro”, localizada na região portuária, particularmente o Quilombo da Pedra do Sal, escolas de samba, centros de candomblé e festas religiosas negras passaram a integrar o roteiro de muitos turistas negros, especialmente provenientes dos Estados Unidos, à procura de uma origem comum (“afro-americana”) por eles imaginada. Os novos gringos na cidade já não são identificados apenas pela pele clara e pelos olhos azuis ou pelas coloridas roupas florais.

Fachada de uma das loja de tecidos e roupas de santo do Mercadão de Madureira. A concentração e o movimento nas lojas de artigos para a prática de religiões de matriz africana viraram atrativo turístico. Foto de João Xavi. Fonte: http://www.overmundo.com.br/guia/mercadao-de-madureira

 E quando o turista é o próprio morador, a descobrir a sua cidade? Quem anda pelas ruas do Centro do Rio já deve ter reparado um aumento significativo no número de pessoas que em pleno frenesi dos dias úteis, onde quase somos atropelados se voltarmos para olhar uma banca de jornal, por exemplo, procura apreciar as belezas e os detalhes que os mais apressados nunca tem tempo de notar. Nas redes sociais, grupos de aficcionados pela cidade se organizam para passeios a pé, inventando novos roteiros que fogem aos ícones Pão de Açúcar–Floresta da Tijuca–Praia de Copacabana–Cristo Redentor e gastam muito pouco ou nenhum dinheiro, dependendo do roteiro, se for operado por pequenos empreendedores ou oferecidos de graça.

 

Visitas noturnas ao centro do Rio, promovidas gratuitamente, por iniciativa do Projeto Roteiros Geográficos do Rio (IGEO/UERJ): uma forma original de apreciação estética do Rio de Janeiro e de ocupação da cidade como alternativa à violência. Fonte: youtube=http://www.youtube.com/watch?v=vuyWRIvSmCc

De dia ou de noite, da Pedra do Sal, aqui já citada, ao “território da Daspu” , tudo atrai a atenção dos curiosos, a maioria moradores da cidade, que raramente tem a oportunidade de apreciar um espaço onde nos acostumamos a percorrer marchando ou, literalmente, correndo. E cruzar as fronteiras simbólicas da cidade? Quantos moradores começam, embevecidos, a despertar para o interesse de atravessar o túnel, embarcar num trem em direção ao subúrbio, comer uma feijoada numa quadra de escola de samba, participar de eventos, conhecer territórios simbolicamente impenetráveis?

Vídeo Samba na Pedra, de David Obadia, registra um dia de festa na Pedra do Sal. Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=FdKMROSWkGM

O mochileiro, aquele “turista alternativo”, que se hospeda em hostels (os antigos albergues agora com nomes moderninhos) ou na casa de pessoas comuns, no estilo “cama e café”, que vem fazendo bastante sucesso por aqui, há muito tempo aprendeu – talvez até primeiro que muitos de nós – a descobrir e curtir lugares invisíveis à ótica do turismo tradicional. Para muitos deles, mais vale a experiência no contato com os nativos do que a quantidade de atrativos/clichês turísticos criados para serem consumidos pelos turistas.

Enquanto o poder público e o empresariado se unem nas parcerias público-privadas para formatar produtos turísticos com cara globalizada, desenvolvidos para um perfil de consumidor com poder aquisitivo elevado e onde muito poucos ganham muito, a cidade turística mais importante do país, que pleiteia junto à UNESCO o título de Paisagem Cultural da Humanidade , ainda bem, continua oferecendo opções de turismo e lazer alternativos que atraem moradores e turistas interessados em conhecer as outras faces de um Rio que, apesar dos pesares (vide o abandono de nossos bens culturais, como o triste caso dos bondes de Santa Teresa), insistem em sobreviver.