Medicina, ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX

28/03/2022

Fabio Peres e Victor Melo*

Em posts anteriores1, 2, 3, contamos um pouco sobre a história do processo de legitimação, institucionalização e difusão do saber médico a respeito das práticas corporais, em especial a ginástica, no Rio de Janeiro do século XIX.

Uma das premissas principais dessa história é que a relação entre exercícios corporais e saúde não era a princípio tão óbvia e muito menos incontestada. Tratou-se de uma construção que se deu de forma lenta, paulatina e muitas vezes pouca harmônica entre agentes, instituições, práticas e saberes que configuravam o campo médico-científico nos oitocentos. Uma relação que se consolidou no decorrer daquele século, apesar de inúmeras controvérsias. Não apenas a comunidade médica teve que “lutar” pela legitimação de suas práticas e saberes junto ao Estado e à sociedade, como também teve que lidar internamente com a regulação dos conflitos e dilemas dessa mesma comunidade pari passu em que o campo científico também mudava.

Os primeiros indícios desse processo se deram nos anos 1830, conforme apresentado nos posts anteriores. Porém, ainda na década de 1830, é possível identificar algumas modificações no trato do tema nos periódicos médicos científicos.

Novos objetos, abordagens e legitimidades

Mesmo que ainda persistissem alguns traços identificados no Semanário de Saúde Pública (1831-1833), a abordagem sobre a ginástica ganhou maior especificidade. Diferente do caráter mais geral e informativo, começou-se a publicar estudos mais detalhados, ao mesmo tempo em que a autoridade e a legitimidade médica se expandiram para outras esferas.

Embora se perceba a permanência de textos com características ensaísticas – um padrão narrativo no qual há, em geral, uma mistura entre opiniões, reconstrução histórica, julgamentos morais e projetos políticos -, alguns artigos já apresentavam feições, consideradas hoje, por assim dizer mais científicas, cuja audiência principal seria a própria comunidade médica[1]. Tais escritos abordaram de maneira mais detalhada os benefícios da ginástica, sejam eles biológicos ou sociais.

O processo de institucionalização da ginástica passou a progressivamente contar com importantes fundamentos e alicerces das ciências médicas. Isso, todavia, não significou que no interior do campo médico havia consenso absoluto. Valerá prospectar os debates publicados na Revista Médica Fluminense (1835-1841) e na Revista Médica Brasileira (1841-1843), ambas editadas pela antiga SMRJ, já transformada em Academia Imperial de Medicina[2], bem como em outros periódicos médicos da ocasião.

Importa assinalar que naquele momento começaram a circular, em alguns jornais da Corte, algumas matérias sobre a ginástica, nas quais há referências a sua importância para a saúde. Um exemplo é o artigo “Da Ginástica”, publicado em duas ocasiões: no Diário do Rio de Janeiro[3] e no Museu Universal[4]. Além do destaque ao estabelecimento de ensino dirigido por Francisco Amoros[5], na França, o texto salienta que, em 1780, o médico Tissot escreveu a obra Ginástica Medica, em que estabeleceu regras e métodos para os exercícios corporais. De acordo com o artigo, a prática contribuiria para educar homens vigorosos, revertendo a má dirigida educação física da primeira infância, que formaria “arlequins” e “afeminados”.

Em abril de 1836, a Revista Médica Fluminense publica um pequeno trecho da obra Essai general d’education physique, morale et intellectuelle, escrito por Jullien de Paris[6].  O autor, ao defender a necessidade de o médico conhecer o homem físico e moral, sugere que a ginástica é uma estratégia eficiente para manter o equilíbrio do corpo humano.

Mesmo não sendo médico, a preocupação do autor francês com as relações entre saúde e educação acabava por reiterar a importância da medicina no que tange à instrução da infância e da juventude. Na Revista Médica Fluminense já houvera antes uma aproximação entre a ginástica e a formação de crianças e da “mocidade”. Nesse caso, todavia, se tratava de uma obra reconhecida no campo educacional, aprovada e adotada pelo Conselho Real de Instrução Pública francês. O periódico, nesse sentido, procura endossar a autoridade do saber médico a partir do reconhecimento da legitimidade que outras áreas lhe conferem.

Alguns anos depois, em 1839, um artigo sobre pneumonia tuberculosa, de autoria de Mr. Fourcault, é publicado na Revista Médica Fluminense[7]. Ao tratar da influência do clima e dos lugares nas afecções ligadas à doença, o autor destaca o problema da falta de exercícios (passeios, corridas, ginástica, dança e esgrima):

É sobretudo na segunda infância, e ao tocar a época da puberdade, que se deve prevenir a incubação lenta e graduada das moléstias tuberculosas; desditosos os meninos débeis e linfáticos, cuja inteligência prematura se cultiva à custa das forças físicas! Os estudos porfiados, a falta de exercício ao ar livre, alteram sua constituição, e os dispõe às mais graves afecções. Os passeios frequentes, as carreiras, a ginástica, a esgrima, a dança etc., são pois indispensáveis na tenra idade para manter o equilíbrio de uma importante função (p. 112).

A ginástica – entendida como um conjunto específico de técnicas corporais ou como sinônimo de qualquer exercício – passaria, no decorrer do século XIX, a ser citada em diversos estudos associados ao tratamento de moléstias de diferentes naturezas: enxaqueca[8], anemia[9], tísica[10],[11], paralisia[12], ortopedia[13], alienação mental[14], doenças crônicas do coração[15] etc.

Ainda em 1839, um médico publicaria um artigo sobre os benefícios da ginástica em terras brasileiras. Mas essa história ficará para um próximo post.


* Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494&gt;. ISSN 2236-3459.

[1] A linguagem, o formato, a análise de dados, a citação de referências e pesquisas acadêmicas no corpo do texto, entre outros, são aspectos que os diferem do gênero ensaio.

[2] Brasil. Decreto de 8 de Maio de 1835. Converte a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro em Academia, com o titulo de Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro; e dá-lhe estatutos. Na ocasião, a Academia passou a receber recursos do Tesouro público.

[3] Diário do Rio de Janeiro, 09/03/1838, p. 1.

[4] Museu Universal, ed. 43, 28/04/1838, p. 341.

[5] Além de diretor do Ginásio Normal de Paris, Francisco Amoros (Valência, 1770 – Paris, 1848) é considerado um dos precursores da Educação Física moderna e um dos difusores do ensino da ginástica na França. Para mais informações, ver Sirvent (2005) e Arnal (2009).

[6] Revista Médica Fluminense, ed. 1, vol. II, abril de 1836, p. 237-243.

[7] Revista Médica Fluminense, ed. 3, junho de 1839, p. 103-112.

[8] Arquivo Médico Brasileiro, dezembro de 1846, p. 89.

[9] Arquivo Médico Brasileiro, janeiro de 1848, p. 73-77.

[10] Arquivo Médico Brasileiro, abril de 1847, p. 175.

[11] O Progresso Médico, 1877, p. 449-457.

[12] Annaes Brasilienses de Medicina, abril de 1852, p. 172-177.

[13] Annaes Brasilienses de Medicina, outubro de 1853, p. 13-16.

[14] Annaes de Medicina Brasiliense, julho de 1848, p. 12-16

[15] O Brasil Médico, setembro de 1888, p. 266-269.


As ideias de Jahn na sociedade da Corte: Deutscher Turnverein

24/11/2019

Fabio Peres e Victor Melo[i]

 

Em 1859, se estruturou, no Rio de Janeiro, a Sociedade Alemã de Ginástica (nos jornais também, por vezes, chamada de Clube Ginástico Alemão), a pioneira agremiação dessa natureza na América do Sul. Sua primeira sede se localizava na Praia de Santa Luzia[ii], no centro da cidade, provavelmente na residência de um dos membros da diretoria, H.W. Reimer[iii].

Em 1861, o clube foi convocado a se ajustar ao decreto 2.711, de 19 de dezembro de 1860[iv]. Deveria solicitar tanto autorização para funcionamento quanto a aprovação de seus estatutos, para que não incorresse no artigo 5º do decreto 2.686, de 10 de novembro de 1860[v]. Quase um ano depois, em outubro de 1862, a agremiação recebeu a licença para continuar a funcionar[vi].

Seus estatutos, contudo, sofreram alterações, claramente indicações do exercício do controle governamental. Uma das exigências estabelecidas é que fosse suprimido o artigo que indicava que a Sociedade seria regida pelas regras germânicas. Exigia-se ainda que o uniforme do clube somente fosse “usado dentro dos edifícios, e lugares sociais, e não nas ruas, ou praças públicas”[vii]. No futuro, o mesmo não será solicitado de outros grupos ginásticos. Tal decisão, naquele momento, pode ter algumas razões: a preocupação com a exibição pública de símbolos de outras nações; ou mesmo simples mudanças de critérios, que, de fato, nem sempre foram muitos claros.

Devemos lembrar que a Alemanha somente concretizou o seu processo de unificação em 1871. Esse aspecto deve ser levado em conta para melhor entendermos o perfil das agremiações germânicas no Brasil instaladas, inclusive o caso da Sociedade Ginástica Alemã. Ajuda a compreender, por exemplo, a força com que certos símbolos eram cultuados, um sinal de desejo de fortalecimento de uma identidade que, embora de construção bastante antiga, ainda estava se estruturando como Estado-Nação[viii].

Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro (RJ), 1867, p.378.

Nos estatutos, estabeleceu-se um nome alemão de referência junto a sua denominação (“Deutscher Turnverein, Sociedade Ginástica Alemã”), bem como o idioma germânico como o que deveria ser adotado nas reuniões. Além de deixar claros os vínculos com a Alemanha, esses artifícios estabeleciam um perfil desejado de associado.

Havia três categorias de sócios: ativos, aqueles que participavam dos exercícios ginásticos; passivos, que não participavam dessas atividades; e alunos de ginástica, categoria destinada aos menores de 18 anos. Somente aos primeiros era concedida a prerrogativa de deliberar nas assembleias, sinal de que a prática era mesmo considerada de importância na agremiação.

Os intuitos do clube eram assim explicitados:

a) Cultivar as forças físicas e intelectuais dos seus membros;

b) Estabelecer relações entre todos os Alemães existentes no Brasil[ix].

Sua fundação tinha motivações semelhantes às que levaram à criação de outras congêneres alemãs, como a Sociedade Germânia, fundada em 1821 e até hoje existente[x]. Era a materialização do desejo de um grupo de estrangeiros de estabelecer laços de sociabilidade ao redor de hábitos culturais de seu lugar de origem. Deixava-se claro nos estatutos que “Cada novo membro é considerado como irmão e amigo”.

Estabeleceu-se como divisa “Frisch, Fromm, Froehlirh, Frei (Fresco, bom, allegre, livre)” e como saudação “Gut Heil (boa ventura)”[xi]. Tratava-se de uma clara vinculação com as ideias de Friedrich Jahn, principal líder do movimento alemão de ginástica, no qual a prática era concebida como uma escola de vida, com regras morais muito bem definidas[xii]. Nas Turnverein, que no Brasil foram muito atuantes em outras cidades (como São Paulo, Juiz de Fora e cidades da região sul do país), concebia-se que os exercícios deveriam estar a serviço da aquisição de determinados comportamentos[xiii].

Essas concepções manifestavam-se claramente na dinâmica cotidiana da sociedade. Os estatutos procuravam garantir de forma rigorosa o seu bom funcionamento. O presidente gozava de grande poder, mas tinha que se reportar, em muitos casos, ao Conselho, uma diretoria formada por 11 membros. Entre os cargos, percebe-se a valorização de algumas atividades: além da ginástica, o canto e a leitura.

Muitos eram os itens destinados a regulamentar a prática da ginástica. Havia indicações sobre a manutenção dos espaços e aparelhos, bem como sobre a dinamização dos ensaios/aulas, dirigidos pelos que melhor desempenho demostrassem: “Os ensaiadores serão escolhidos entre os membros da primeira divisão[xiv]. Superioridade na execução dos exercícios e vivo interesse para a Sociedade decidem a escolha”[xv]. Mais ainda, previa-se: “Os ensaiadores executam os exercícios uma vez por semana na presença do Presidente”[xvi].

Vejamos, portanto, que, a princípio, não se previra a contratação de professores. Os ensaiadores eram escolhidos entre os sócios, considerados personalidades de grande importância. Todos deveriam seguir suas determinações nas aulas/ensaios. Previa-se que:

“Ao ensaiador é lícito excluir da sua divisão qualquer membro que não se portar convenientemente; deverá, porém findos os exercícios, comunicá-lo ao Presidente, cuja resolução determinará mais especialmente as providências que se devem dar”.

Com o decorrer do tempo, houve professores contratados? Não conseguimos identificar. De fato, das sociedades ginásticas que existiram no Rio de Janeiro, o clube dos alemães foi o mais discreto. Nas fontes consultadas, somente eventualmente se vislumbra algo de suas atividades. Por exemplo, em um relatório publicado na Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, a respeito do funcionamento do Jardim Botânico, ficamos sabendo que, em 1884, a colônia alemã organizou uma festividade em honra do Príncipe da Prússia, composta por um banquete, música, canto, ginástica e dança”[xvii]. Não muito mais do que isso. Vejamos que a informação sequer foi publicada em um periódico de grande circulação.

De toda maneira, é possível perceber que o clube se manteve bem ativo no decorrer do século XIX, não só no que se refere aos exercícios ginásticos, como também promovendo atividades sociais, como bailes, saraus, passeios, reuniões de associados[xviii].

Mais conhecida e ativa na vida social da Corte foi a Sociedade Francesa de Ginástica, fundada em 1863. Mas essa história ficará para um próximo post.

 

[i] Texto foi publicado originalmente em MELO, Victor Andrade de; PERES, Fabio de Faria. A gymnastica no tempo do Império. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2014. (Coleção Visão de Campo).

[ii] Em 1874, o clube já estava instalado na Ladeira do Castelo. Em 1884, transferiu-se para a rua do Riachuelo (na Imperial Fábrica de Cerveja Nacional, de Henrique e Leon Leiden). Dois anos depois se localizava na rua da Misericórdia (próxima ao Castelo); em 1888, na rua da Ajuda (nas redondezas da atual Cinelândia).

[iii] Almanak Laemmert, 1862.

[iv] Brasil. Decreto nº 2.711, de 19 de dezembro de 1860. Contém diversas disposições sobre a criação e organização dos Bancos, Companhias, Sociedades anônimas e outras (Coleção de Leis do Império do Brasil – 1860, p. 1125, v. 1, pt II). Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-2711-19-dezembro-1860-556868-publicacaooriginal-77043-pe.html>. Acesso em: 26 mai. 2013.

[v] Brasil. Decreto nº 2.686, de 10 de Novembro de 1860. Marca o prazo dentro do qual os Bancos e outras Companhias e Sociedades anônimas, suas Caixas Filiais e agências, que atualmente funcionam sem autorização e aprovação de seus Estatutos, devem impetra-las (Coleção de Leis do Império do Brasil – 1860, p. 1061, v. 1, pt II). Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-2686-10-novembro-1860-556835-publicacaooriginal-77005-pe.html>. Acesso em: 26 mai. 2013.

[vi] Brasil. Decreto nº 2.980, de 2 de Outubro de 1862. Concede á Sociedade Alemã de Ginástica autorização para continuar a exercer as suas funções, e aprova os respectivos Estatutos (Coleção de Leis do Império do Brasil – 1862, p. 348, v. 1, pt. II). Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-2980-2-outubro-1862-555720-publicacaooriginal-75087-pe.html>. Acesso em: 26 mai. 2013.

[vii] Brasil, 1862, op. cit.

[viii] Para mais informações, ver Andrade (2007).

[ix] Brasil, 1862, op. cit.

[x] Para mais informações sobre a Sociedade Germânia, ver <http://cidadesportiva.wordpress.com/2011/08/27/germania-o-mais-antigo-clube/>. Acesso em: 26 mai. 2013.

[xi] Brasil, 1862, op. cit.

[xii] Para mais informações sobre as propostas de Jahn, ver estudo de Quitzau (2011).

[xiii] Na verdade, a ideia de turnen, que em sentido literal se refere à ginástica (como verbo ou substantivo), também incluía jogos, caminhadas, teatro e coral (TESCHE, 2000).

[xiv] Havia um ensaiador para cada divisão, turma formada por nível de desempenho.

[xv] Brasil, 1862, op. cit.

[xvi] Entre os ensaiadores, sabemos, por exemplo, por uma homenagem pelo clube realizada, que um dos mais ativos foi o dinamarquês Adolphe Jorge Guilherme Hamann. Em 1866, quando a Sociedade era presidida pelo mestre de ginástica H. Frey, um professor de esgrima é admitido no Conselho (M. Sturzenecker).

[xvii] Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, março de 1884, p. 123.

[xviii] Para um olhar sobre a presença de alemães na sociedade da Corte, ver Lenz (1999) e Kelli (2011).


Educação Física, Higiene e Saúde Pública na Corte – Parte 3

20/11/2016

por Fabio Peres[i]

No século XIX, a educação física e, em particular, a ginástica se tornaram pouco a pouco em um domínio defendido pelo saber médico. Como mencionado em outras ocasiões (por exemplo, aqui e aqui), tratou-se de uma relação que se consolidou no decorrer daquele século, apesar de inúmeras controvérsias. Não apenas a comunidade médico-científica teve que “lutar” pela legitimação de suas práticas e saberes junto ao Estado e à sociedade, como também teve que lidar internamente com a regulação dos conflitos e dilemas dessa mesma comunidade.

A própria emergência da educação física nos periódicos médicos do século XIX pode ser lida como justaposição entre, por um lado, a formação e, por isso, controle de uma comunidade médico-científica que estava se conformando no período e, por outro, a instrução de um público mais amplo, reforçando a sua legitimação enquanto saber médico.

Um capítulo dessa história, mostrado em um post anterior, foi a elaboração em 1830 do relatório da Comissão de Salubridade Geral, no qual o tema foi abordado[ii]. Outro indício importante desse processo se deu dois anos depois, em 1832. A ginástica voltaria a ser objeto de atenção no Semanário de Saúde Pública (11/08/1832, n.113). A ata da sessão realizada no dia 14 de julho daquele ano informa que o capitão Guilherme Luiz Taube entregou à Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ), para avaliação, uma memória intitulada A Short Treatise on the Physic, and Moral Effects of Gymnastic, and Kalistenic Exercises.

Taube na ocasião tinha em mente duas iniciativas: a tradução do material apresentado, escrito em inglês e abrir um estabelecimento para oferecer aulas de ginástica. O sueco exercera o cargo de mestre em um colégio de ginástica em Nova York. No Brasil, atuara como capitão do Exército Imperial (é possível, portanto, que tenha chegado depois de 1822), tendo se casado com uma brasileira. Ficara desempregado em função dos desdobramentos da Lei de 24 de Novembro de 1830[iii], motivo pelo qual desejava ministrar aulas.

Guilherme Taube solicitava que a SMRJ emitisse um parecer sobre seu tratado, atestando os benefícios dos exercícios ginásticos. A intenção era que a escola de ginástica, que pretendia estabelecer na capital, tivesse o respaldo científico da entidade. Na mesma sessão, ficara definido que o relator do parecer seria o médico De-Simoni, membro titular e secretario perpétuo da SMRJ.

Relatorio sobre huma memoria do Sr. Guilherme Luiz Taube acerca dos effeitos physicos e moraes dos exercicios gymnasticos: lido na Sociedade de Medecina do Rio de Janeiro, em 4 de agosto de 1832 (Simoni, Luiz Vicente de, 1792-1881)

Relatorio sobre huma memoria do Sr. Guilherme Luiz Taube acerca dos effeitos physicos e moraes dos exercicios gymnasticos: lido na Sociedade de Medecina do Rio de Janeiro, em 4 de agosto de 1832 (Simoni, Luiz Vicente de, 1792-1881)

 

Menos de um mês depois, o relatório foi lido em uma das sessões da SMRJ, sendo depois publicado nas edições do Semanário de Saúde Pública[iv] (o relatório completo pode ser acessado aqui). Luiz Vicente De-Simoni percebe a validade do material, mesmo reconhecendo que carece de base científica:

A Memória que o Sr. Guilherme Luiz Taube apresentou a esta Sociedade, e de cujo exame vos dignastes encarregar-me, não é trabalho de um escritor que se proponha ilustrar esta parte da ciência, mas sim de um indivíduo, que, tencionando estabelecer neste pais uma escola, aonde os exercícios ginásticos sejam praticados debaixo da sua direção; dirige-se a prevenir o público em favor do seu estabelecimento, e do objeto dele; o que, para acreditar perante o mesmo público a utilidade física, e moral deles, assim como a veracidade das asserções com que ele a afiança no seu escrito, recorre a esta Sociedade submetendo ao seu juízo e aprovação o mencionado seu trabalho; não para ela julgar da sua perfeição como obra, mas da sua veracidade como peça dirigida a um público que pode duvidar dos princípios nela expendidos, e da utilidade da instituição que ele se propõe (1832, n.119, p. 413).

Mesmo não tendo acesso ao tratado entregue à SMRJ, é possível dimensionar, pelo relatório escrito por De-Simoni, os principais argumentos que Guilherme Taube utilizou para solicitar um parecer favorável da instituição médica. Além da descrição dos possíveis benefícios físicos (como desenvolvimento da força muscular; aumento da flexibilidade, da agilidade e da energia; diminuição dos efeitos da vida sedentária) e dos morais (como a interdependência do intelecto e do físico, o incremento do brio, da coragem, da confiança, entre outros), Guilherme Taube “assevera que em diferentes partes do mundo, entre as nações mais clássicas, os exercícios ginásticos têm sido adotados, animados, e muito proveitosos, e como tais julgados necessários pelos Médicos” (1832, p. 414).

Para além dos argumentos utilizados por Taube, segundo De-Simoni já havia na época posições consolidadas, pelo menos em parte da comunidade médica, sobre o valor da ginástica:

A Sociedade sem garantir a perfectibilidade do método que o Sr. Taube se propõe empregar, o que ele não expende, pode emitir o seu parecer em geral acerca da utilidade dos estabelecimentos ginásticos, o afiançar que quanto o Sr. Taube assevera no seu escrito, sobre esta utilidade é uma verdade reconhecida por todos os Médicos, e escritores ilustrados […]. Os Médicos mais distintos por seu saber tem abonado a ginástica em todos os tempos e em todas as partes do mundo instruído (1832, p. 414).

De acordo com o membro titular da SMRJ, o parecer positivo refere-se a uma preocupação maior, ao reconhecimento da relação entre saúde e condições sociais, tão cara à naquele início de século:

[…] pois o fim desta declaração não é somente beneficiar um indivíduo que os estabelece, mas a população no meio da qual o estabelecimento vai ser erigido; por isso que as vantagens que este pode produzir podem ser grandes, e gerais, e são incontestáveis, e certas quando os exercícios sejam nele praticados com método, e debaixo dos preceitos da higiene. Trata-se neste caso, não de favorecer a instituição de hum simples estabelecimento particular, mas a de um estabelecimento público cujas vantagens poderão ser aproveitadas por muitas pessoas, e principalmente pela classe mais débil, e enferma da população; estabelecimento que até poderá influir sobre a conservação da saúde dos que o não forem, e sobre o melhoramento da constituição individual da nossa mocidade; desenvolvendo melhor seus órgãos, e a sua forca para melhor defender e servir a pátria, quer como Soldados, quer como Cidadãos, e artífices (1832, p. 414).

Para De-Simoni, a prática poderia “exercer uma grande influência sobre o caráter, a glória, e prosperidade de uma nação, e não só ela é capaz de a beneficiar debaixo de um ponto de vista higiênico, como também social, e politico” (1832, p. 415). O médico enfatizou que a relação entre a prática corporal e as ciências médicas não era uma novidade, lançando mão de um artifício argumentativo: uma mobilização da história:

As vantagens pois da ginástica não são problemáticas a face da Medicina; elas são atestadas pela história, e afiançadas pela ciência; nada há mais reconhecido, e provado do que elas. A opinião favorável dos Médicos de todos os países e de todos os séculos podemos francamente adicionar a nossa, e favorecer com ela a instituição de um estabelecimento a ela destinado, tal como o que se propõe o Sr. Taube (1832, p. 416).

Não temos informação se Guilherme Luiz Taube abriu, de fato, o referido estabelecimento que ofereceria aulas de ginástica na Corte. O que sabemos, através dos jornais, é que Taube foi nomeado mestre de ginástica do Colégio Pedro II em 1841[v].

De todo modo, pode-se entrever que já naquele momento não se tratava somente de uma ginástica, mas de uma ginástica médica, que se institucionalizava à luz dos preceitos da higiene e da saúde pública, mesmo que ainda de forma incipiente.

Anos mais tarde, a tentativa de fundar um instituto ginástico e ortopédico na Corte evidenciaria cisões e divergências na comunidade médica. Mas essa história ficará para um próximo post.

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[i] Esse post é um desdobramento das pesquisas realizadas com Victor Andrade de Melo no pós-doutorado, entre 2012-2015, no PPGHC/IH/UFRJ. Parte dele foi publicado em MELO, V. A.; PERES, F.F. A gymnastica no tempo do Império. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.

[ii] A ata da sessão da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (19/6/1830), em que houve a aprovação do relatório,  foi posteriormente publicada no Semanário de Saúde Pública (9/4/1831).

[iii] Brasil. Lei de 24 de Novembro de 1830. Fixa as forças de terra para o anno financeiro de 1831-1832 (Coleção de Leis do Império do Brasil – 1830, p. 55, v. 1, pt. I). Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37992-24-novembro-1830-565665-publicacaooriginal-89410-pl.html>. Acesso em: 18 de novembro de 2016. Por essa lei, à exceção daqueles que participaram da campanha da independência, foram mutilados ou gravemente feridos em conflitos, os estrangeiros foram demitidos e proibidos no Exército.

[iv] Inicialmente, uma síntese do parecer emitido por De-Simoni foi publicada no número 117 de 8 de setembro de 1832 (p. 405). Foi depois publicado na íntegra no número 119 de 22 de setembro de 1832 (p. 413-416).

[v] Jornal do Commercio, 8/10/1841, p.1


Educação Física, Higiene e Saúde Pública na Corte – Parte 2

10/05/2015

por Fabio Peres[i]

Em um post anterior destacamos como alguns relatórios da Junta Central de Hygiene Pública no final do século XIX deixavam entrever, não apenas o estabelecimento da relação entre educação física, exercícios corporais, saúde pública e higiene, como também sua institucionalização: isto é, enquanto saber médico materializado nas ações do Estado.

Contudo, como foi mencionado, essa relação não era gratuita, nem óbvia e muito menos incontestada. Tratava-se de uma construção que se deu de forma lenta, paulatina e muitas vezes pouca harmônica entre atores, práticas e ideias que configuravam o saber médico-científico do século XIX.

Na verdade, médicos da Corte já debatiam sobre a importância de tal associação desde, pelo menos, a década 1830. Periódicos médicos como o Semanário de Saúde Pública (1831-1833), Revista Médica Fluminense (1835-1841), a Revista Médica Brasileira (1841-1843), entre outros, revelam como a educação física se tornou pouco a pouco um domínio defendido pelos esculápios (Melo, Peres, 2014)[ii].

Em uma das sessões da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (19/06/1830), cuja a ata foi publicada no Semanário de Saúde Pública em 1831 (09/04), houve apresentação do relatório da Comissão de Salubridade Geral, no qual a educação física era mencionada.

Vale destacar que tal comissão era responsável por apresentar sugestões para melhoramentos da higiene pública que a SMRJ defenderia junto ao Estado, que naquele mesmo ano reconhecera a entidade como colaboradora no aperfeiçoamento das questões ligadas à saúde.

1831.04.09.Semanario.de.Saude.Publica.ed.p77

No relatório que foi aprovado pela Sociedade, dois pontos reforçam a ideia de que a educação física e, em particular, a ginástica, começavam a se institucionalizar no saber médico da cidade.

Por um lado, havia uma maior preocupação com a educação física das crianças.  A proposta era que, dada a existência de diversas obras sobre o tema publicadas em francês e inglês, a SMRJ deveria lançar uma contribuição própria que reunisse o que sobre o assunto “parecesse melhor”. O objetivo principal era a circulação, “em língua vulgar” (p. 77), de informações que fossem úteis a “todos os pais de família”.

Por outro, ao listar uma série de tópicos que deveriam ser considerados pelo poder público, tendo em vista a questão da salubridade, o relatório fez menção à ginástica, considerada pela Comissão como uma prática ligada à saúde e aos divertimentos públicos, cuja importância deveria ser reconhecida pelo governo:

Ainda nos restaria muito a dizer sobre a construção viciosa das nossas casas, o estreitamento das ruas, […] a falta de passeios, de plantações de árvores nas praças, […] a falta de exercícios ginásticos, em que muito ganharia o povo, e o Governo, que deve interessar-se em vê-lo alegre e divertido […] (1831, p. 79).

Chama atenção a chave pela qual são lidas tais referências à educação física e à ginástica. A Comissão defendia a interdependência entre higiene privada e higiene pública como um dos eixos norteadores da elaboração do documento, revelando as relações entre indivíduo e sociedade que permeavam a concepção de saúde naquela ocasião.

Poucos anos depois a educação física e a ginástica voltariam a ser temas debatidos pelos médicos, quando a SMRJ é procurada por um não-médico para dar um parecer sobre um tratado de sua autoria . A intenção do autor era abrir um estabelecimento que oferecesse aulas de ginástica, obtendo antes o respaldo da Sociedade Médica da Corte. Mas essa história fica para um próximo post.

[i] Esse post é fruto das conversas e pesquisas realizadas no âmbito do projeto “O corpo da nação: educando o físico, disciplinando o espírito, forjando o país: as práticas corporais institucionalizadas na sociedade da Corte (1831-1889)”, que conta com o apoio da FAPERJ e do CNPq e é coordenado por Victor Andrade de Melo.

[ii] Maiores informações ver MELO, V. A.; PERES, F.F. A gymnastica no tempo do Império. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.


Para matar o tempo: uma “academie” voltada para os divertimentos no Rio de Janeiro do século XIX

29/12/2014

por Fabio Peres[i]

A história é curiosa. Nos meses finais de 1857 foi encontrado durante um passeio ao Corcovado o estatuto de uma nova associação inaugurada na Corte: a Academie pour tuer le temps (em tradução livre, Academia para matar o tempo).

Tudo levava a crer que no local da descoberta foi realizada uma sessão magna, uma ocasião solene e festiva de criação da “nobilíssima” academia (nomeada, vale destacar, com o adjetivo “nacional”). Não era para menos, o “curioso manuscrito” se encontrava em meio a garrafas quebradas e escritos variados, entre romances e programas ministeriais, dentro de um chapéu da mais fina qualidade.

O narrador da história, que assina como Dr. Soledade na seção Comunicado do Correio Mercantil (23/11/1857, p.2), descreve na integra os estatutos da inusitada associação fundada na capital do Império. Ficamos sabendo, logo no primeiro artigo, que o “utilíssimo e agradabilíssimo” propósito da Academie é “passar a vida suave e naturalmente”.

Os artigos seguintes não são menos reveladores do ethos que animava a instituição.

Além do número de “ilustres” sócios ser ilimitado (art. 2º), não havia presidente nem secretários, a sua “mesa é a mesa dos banquetes, do jogo, das irmandades, da costureira, e a mesa-redonda” (art. 3º). Seus membros eram de todo tipo; honorários, efetivos, transitórios, aspirantes e jubilados (art. 5º) que – pela “honra e glória da academia” – nunca perderiam “festa alguma, como sejam paradas, fogos de artifício, presepes, romarias e festas pontifical, ficando sempre à porta da igreja para não ouvirem sermão” (art. 17º).

As sessões magnas deveriam ser constituídas por discursos que versassem somente sobre “dançarinas, moda, passeios, cantoras, bailes, visitas, jantares, tratamentos oficiais, genealogias, brasões, equipagens, caçadas, jogos de prendas, charadas, pescarias, preços de fazendas e força muscular” (art. 15º). Todos os sócios, aliás, deveriam “tomar um ar de importância catedrática em todas essas questões” (art. 20º)

As reuniões ordinárias, por sua vez, demonstram uma relação particular com a cidade, podendo ser realizadas em “todas as partidas e bailes, nas galerias das câmaras e do júri, na rua do Ouvidor, da Quitanda  e botequins, nos teatros, nos circos, no Jardim Botânico, no Passeio Público, nas festas de grandes cantarolas, no cais Pharoux, nas barcas de vapor, em S. Domingos, no Catete, Paquetá, Penha, no hipódromo, nas praias onde houver regata, nos fogos de artifício, nas boticas velhas, nos armarinhos novos e no templo da Petalógica[ii]” (art.4º).

Notável entusiasmo era compensado com a proibição aos sócios e sócias de se levantarem antes das 10 horas da manhã e deitarem antes das 2 horas da madrugada, sendo reconhecidos com o título de benemérito aqueles que “fizerem duas sestas por dia e comerem dois jantares” (art. 16º).

Havia, por outro lado, uma preocupação com a formação intelectual dos sócios. Com o objetivo de que “não degenerem pela ignorância” era recomendada a leitura “exclusiva de certos livros e jornais” (art. 9º), mas eram expressamente proibidas outras obras como a bíblia sagrada, as de Bossuet, as dos santos padres, entre outras.

Por certo, a história toda não passava de burla. Contudo, a narrativa apresenta indícios de ser bem mais séria do que parece. A ironia atroz por trás de uma suposta Academie na sede do Império aponta para os intrincados dilemas de uma nação, cujos caminhos, na visão do autor, eram incertos e tortuosos.

O próprio nome da instituição em francês – Academie pour tuer le temps – não é fortuito. O Dr. Soledade, ao que parece fazendo um trocadilho (com aves, marionetes e o prefixo franc-), levanta a hipótese da associação ser “obra de alguns francolins ou francatripas[iii], notáveis pelo seu aspecto fisionómico, trajo e evoluções singularíssimas”.

O deboche aos estrangeirismos em terras nacionais pode ser observado na premiação aos sócios, prevista no artigo 10, que empregarem em seus discursos palavras estrangeiras: “O francês servirá para tudo que não for maquinas e caminhos de ferro; o espanhol para provérbios e exagerações e o italiano exclusivamente para a música. Em matérias sentimentais e gastronômicas é permitida a língua da Torre de Babel” (23/11/1857, p.2).

No caso da política, haveria certas restrições, embora também fosse estimulado o uso de vocábulos estranhos ao português: “Os sócios que se ocuparem de política pessoal, única permitida por ser a mais geral, usarão de termos ingleses, porque o francês, o alemão, o russo, o italiano, lazarônico, o turco, o árabe, o indostânico, o tártaro, o chim e o paraguaio têm seus inconvenientes na atualidade” (art. 11º, grifos do autor).

Já na literatura encorajava-se a leitura de romances modernos, sobretudo, do novelista francês Paul de Kock (1793-1871)[iv], de poemas épicos e didáticos, dos folhetins, de todas as comédias do teatro francês (principalmente as que ridicularizavam os maridos), entre outros (art. 9º). Aliás, os estrangeiros gozariam das mesmas regalias que os sócios brasileiros.

Vejamos que na semana anterior o Dr. Soledade já alertara seu sobrinho sobre algumas de suas preocupações[v]:

O que convém já e já é combater ideias com ideias, é preparar os ânimos para uma reorganização social pelo exemplo e pelos meios de uma educação que faça do menino um cidadão em vez de um brilhante papagaio. Estimaria hoje muito mais se tivessem-me ensinado bem a minha língua do que o fizeram obrigando-me a perder tempo em traduzir outras e a ficar uma espécie de Babel, como outros muitos que por aí andam recolhendo palavras e compondo a mais ridícula algaravia que se conhece. […] Tudo está falsificado entre nós, e tudo vai se falsificando (Correio Mercantil, 16/11/1857, p.1-2, grifos nossos).

 

Tais inquietudes não se limitavam à formação intelectual, mas também à própria corporeidade que, entre outras coisas, perdia os elementos de uma suposta identidade – ou melhor, “natureza” – nacional (informada, sem dúvida, por um viés de gênero):

A beleza americana, a gentil morena, a filha do sol, a virgem que tem seu rosto e porte os atrativos da idade das flores, empasta as faces de arrebiques, faz do seu rosto um rosto de mármore à força do pó de arroz e outros místicos, para que se não conheça quando enrubesce ou empalidece! Para que servem essas faces caiadas que à luz do gás, no teatro lírico, se parecem com cara de gesso?!  O que denota isto senão que a mulher, a melhor coisa entre nós, já não é aquela boa mãe de família, mas uma cômica arrebicada, e suas filhas bonecas da rua do Ouvidor, que só servem para estadear por cima do horrível balão os tecidos da moda, dessa soberana vertiginosa de todos os espíritos fúteis? A arte dos tempos corrompidos não repara os estragos da natureza (Correio Mercantil, 16/11/1857, p. 2, grifos nossos).

Sobre os homens sua análise não é menos lancinante:

Tu não vês todos os rapazes do meu tempo, e aqueles que achei no mundo varões formados, funcionários públicos, como estão com o cabelo tão pretinho? Quanto nitrato de parta e quantas dores de cabeça não andam por aí! Com que fim escondem eles as cãs honrosas, a coroa respeitosa da velhice, para se confundirem com rapazes, que deles com razão tanto escarnecem? Talvez tenham razão. Quem não passou da juventude não é digno de ostentar os sinais da venerada velhice; é um perfeito e ridículo anacronismo ver a idade do conselho privada da experiência; mas há de ser muito dura essa vida contrafeita, esse pelejar contínuo contra a ordem natural contra as modificações fisiológicas da idade […] (Correio Mercantil, 16/11/1857, p. 2, grifos nossos).

As transformações pelas quais passavam a sociedade brasileira e, em especial, a fluminense eram vistas com desconfiança; evidências de um declínio moral e político articuladas a certos modismos, luxos e frivolidades:

Todo os fatos do sibaritismo, todas as reduções do epicurismo, representadas no pote de banha todo dourado, na latinha de conservas, na caixa de papelão, no almanak das modas, nas águas cheirosas, nos arrebiques da rua do Ouvidor, têm um grande atrativo para nós; a modista e o cabelereiro andam de sege e fazem fortunas colossais!… Tudo que não é trabalho intelectual prospera: o pensamento ainda não se legalizou na tarifa social, ainda vive como em contrabando. Onde está o espírito militar da nossa mocidade? Onde está o espírito público da outra juventude? O seu entusiasmo é para as cômicas e cantoras […]  (Correio Mercantil, 16/11/1857, p. 2, grifos nossos).

E alerta:

Escuta: Temos na nossa terra um grupo de que se quer arrogar o privilégio dos Brâmanes e constituir-se uma carta particular e sagrada! Olha que este grupo está estragando o teu país com uma espécie de oligarquia sem se lembrar que o Brasil é um dos países mais felizes do mundo, porque ainda não conhece o que é nobreza e clero […].

À luz desses comentários, a leitura dos estatutos da excêntrica Academie ganha novos contornos e um colorido especial. Contrastes e incongruências das sociedades política, intelectual, artística e econômica –  responsáveis em parte pelo futuro da nação – são objeto de sátira e ironia, muitas vezes de forma espirituosa, porém mordaz. Por exemplo, sobre a composição dos sócios – em contraste (nem tanto assim) à outra academia, que também se fundou na Corte – o Dr. Soledade comenta:

Pelas notas que encontrei à margem e por um discurso apenso aos tais estatutos, vim ao conhecimento de que esta sociedade está em guerra com outra intitulada Il dolce far niente, o que me não maravilha, pois é sempre motivo de rivalidades a concorrência ao mesmo fim. A primeira academia é composta de quase todos os candidatos à diplomacia; de bancarroteiros que quebraram para mais se consolidarem, homens que fizeram ponto na bolsa alheia; de alguns tesoureiros demitidos, processados e absolvidos; de antigos protetores da agricultura africana; de testamenteiros fidelíssimos: de cantores desafinados por darem notas falsas; de agentes de subscrições filantrópicas; de postulantes a empregos, e de alguns fumistas que evaporam 24 charutos por dia. […] A outra academia, que parece pender mais para as ideias transmontanas, é composta de gente jubilada e provecta; tem uma boa parte do nosso corpo diplomático; tem até ministros de estado, generais formados e reformados, todos os deputados e senadores que sairão Cíceros e Demostenes num parlamento de mudos; tem altos conselheiros e todos os nossos grandes estadistas que publicarão obras no ano de 2857!! Pelos estatutos verá claramente os seus fins e o quanto a nossa pátria e o futuro têm que esperar dela. O nosso governo deveria olhar seriamente para uma associação que tanto auxilia no fiat voluntas tua (Correio Mercantil, 23/11/1857, p. 2, grifos do autor).

 

Nota-se, aliás, que a associação concorrente Il Dolce Far Niente, segundo o autor, foi fundada por uma “comissão composta por dois cônegos, dois frades e alguns empregados em comissões literárias, um dos quais é membro do Instituto Histórico”.

Ninguém fica de fora: Estado, mercado, artistas, jornalistas, intelectuais e mesmo clubes são objetos de uma crítica ferrenha.  A composição social da Academie é inclusive regulamentada nos artigos 6º e 7º de acordo com as características hierárquicas valorizadas pela associação, entre as quais figura a participação nos divertimentos oferecidos na sociedade fluminense:

Art. 6º. Só poderão ser membros honorários os empregados aposentados com menos de 40 anos de idade e em prefeita saúde; membros efetivos todos os consumidores de heranças ou pensionistas de viúvas abastadas; membros transitórios todos os fazendeiros que vêm passar o inverno na corte, os deputados de voto certo, os provincianos requerentes e em expectativa, os que esperam solução de grandes empresas, os candidatos às mitras, os diplomatas com licença, e todos os requerem graças por serviços impessoais ou esperam pagamento do tesouro. Art. 7º. Os membros jubilados deverão provar que têm mais 12:000$000 de renda anual em apólices, ações bancais ou aluguéis de prédios e que estes são cobrados por seus procuradores; deverão jurar perpétuo celibato e a obrigação de viajar de tempo e tempo pelas hospedarias do velho mundo. Além destes requisitos deverão ser sócios de todos os clubes e círculos, assinantes de todos os teatros, cassinos, hipódromos, regatas, noites fluminenses e de todos os beliquetes (grifos do autor).

De modo geral, todas as críticas têm um eixo central: a preocupação com os rumos e as incongruências de uma nação recém-independente. Na verdade, o autor não parece ser contra os divertimentos em si, mas contra um tipo social que se estava conformando na sociedade imperial, que insistia – para utilizar os termos de Schwarz (2001, p.74)[vi] – em “adorar, citar, macaquear, saquear, adaptar ou devorar estas maneiras e modas todas, de modo que refletissem, na sua falha, a espécie de torcicolo cultural em que nos reconhecemos”.  Em todo caso, a vida social carioca na metade do século XIX parecia ser bastante divertida, embora muito mais séria do que se imaginava.

 

[i] Esse post é fruto das conversas e pesquisas realizadas no âmbito do projeto “O corpo da nação: educando o físico, disciplinando o espírito, forjando o país: as práticas corporais institucionalizadas na sociedade da Corte (1831-1889)”, que conta com o apoio da FAPERJ e do CNPq e é coordenado por Victor Andrade de Melo.

[ii] Informações sobre a Sociedade Petalógica, que supostamente o autor faz referência, podem ser encontradas no post de Mires Batista Bender (29/08/2014), disponível em: http://sapereaudelivros.blogspot.com.br/2014/08/voce-sabe-sociedade-petalogica.html) e na crônica de 11/09/1864 de Machado de Assis da série Ao Acaso (Crônicas da Semana), disponível em  http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/cronica/macr04.htm. De acordo com Machado “A sociedade Petalógica, como é sabido, teve nascimento na antiga casa do finado e sempre chorado Paula Brito. Quando a sociedade nasceu já estava feita; não se mudou nada ao que havia, porque os membros de então eram aqueles que já se reuniam diariamente na casa do finado editor e jornalista. Cuidavam muitos que; por ser petalógica, a sociedade nada podia empreender ­que fosse sério; mas enganaram-se; a Petalógica tinha sempre dois semblantes; um jovial, para as práticas íntimas e familiares; outro sisudo, para os casos que demandassem gravidade. Todos a vimos, pois, sempre à frente das manifestações públicas nos dias santos, da história brasileira. Ainda neste ano a velha associação (honni soit qui mal y pense!) mostrou-se animada do mesmo entusiasmo de todos os anos”.

[iii] Maiores informações ver Diccionario da língua brasileira. (Pinto, 1832) e Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (2009).

[iv] Maiores informações ver NADAF, Y. O romance-folhetim francês no Brasil: um percurso histórico. Letras, Santa Maria, v. 19, n. 2, p. 119–138, jul./dez. 2009. Disponível em: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/letras/article/view/12014/7428 ; PAES, Alessandra Pantoja. Das imagens de si ao mundo das edições: Paul de Kock, romancista popular, 2013. Dissertação (Mestrado em Letras), UFPA. Disponível em http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/arquivos/dissertacao_alessandra_paes.pdf

[v] Vale destacar que o gênero literário utilizado pelo autor (i.e. carta pessoal, que denomina como ementário) desempenha um papel central nos propósitos dos textos.

[vi] SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: ____. Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.59-83.


Educação Física, Higiene e Saúde Pública na Corte – Parte 1

15/12/2013

por Fabio Peres[i]

Em 15 de abril de 1885, a Junta Central de Hygiene Pública apresentava um relatório, cuja “espinhosa tarefa” era “levar ao conhecimento do Governo Imperial os factos mais culminantes occorridos no Império relativamente à saúde publica” (1885, p. A-F-1)[ii]. A análise da estatística das mortes na cidade do Rio de Janeiro, um dos pontos centrais do relatório, dedicava especial atenção às causas da “notável” mortalidade infantil ocorrida no ano anterior:

Serão os defeitos da educação physica que produzem tão funesto resultado? […] Incontestavelmente a educação physica das mães e das crianças não é a mais adequada ao nosso clima; a esta proposição se estende desde o recém-nascido até a criança que caminha para a adolescência. […] si considerarmos a educação physica e a hygiene escolar entre nós, achamol-as eivadas de numerosos e graves inconvenientes. Desenvolver o entendimento sem attender as necessidades do physico é realisar uma educação incompleta (1885, p. A-F-9-10-11).

Havia, nesse sentido, uma percepção ampla de educação física, que a concebia próxima à puericultura, incluindo preocupações com alimentação, vestuário e condições gerais de limpeza e higiene da infância no espaço privado e escolar. Mas além disso, também somava-se a ela uma compreensão dos benefícios específicos da prática ao corpo per se:

 E’ preciso, pois, guardar um meio termo: dar impulso ás faculdades intellectuaes sem desprezar um exercicio razoável dos órgãos corporeos. […] E’ pois necessário modificar a hygiene escolar, reformal-a pela base, derrocando a inveterada rotina que dà em resultado a formação de sábios e ao mesmo tempo de inválidos. O ensino gymnastico e militar nas escolas primarias è adoptado na Allemanha, na França e em outros paizes. Manuaes adequados são remettidos aos instituidores, assim como as collecções de apparelhos para a installação dos gymnasios escolares e um certo numero de armas para exercicio ao alvo e esgrima (1885, p. A-F11).

O relatório da Junta Central de Hygiene Pública deixava entrever, não apenas o estabelecimento da relação entre saúde, higiene e exercício corporal, como também sua institucionalização: isto é, enquanto saber médico materializado nas ações do Estado. Na verdade, Domingos José Freire[iii], presidente na época da Junta Central de Hygiene Pública, já havia assinalado no relatório do ano anterior que entre as causas que contribuíam para a incidência de epidemias e, em particular, da tuberculose na cidade estavam os “nossos hábitos que condenmam o exercício”, a “vida sedentária” e a “inacção” (1884, p. A-F2-24)[iv].

Relatório do Presidente da Junta Central de Hygiene Pública (1885)

Devemos ter em vista um pouco do contexto em que se insere a produção do relatório. Como se sabe, as relações entre higiene, medicina e saúde estruturaram projetos públicos e privados de educação (sobretudo, escolar) da população brasileira no decorrer do Império. Em maior ou menor grau, tais projetos envolviam uma concepção de educação física, que mobilizava a articulação entre domínios corporais, morais e intelectuais, adequada à nação moderna e civilizada que se pretendia construir, ao mesmo tempo, em que era necessário lidar com condições econômicas, políticas e sociais específicas e concretas de um país recém-independente, periférico e ainda em formação (Melo, Peres, 2013). Aliás, não é por acaso que frequentemente o tema tem sido abordado a partir da perspectiva da história da educação (e não de outras áreas, por exemplo).

Por outro lado, a Junta Central de Hygiene Pública, inicialmente chamada apenas de Junta de Hygiene Pública, foi criada em 1850[v], como um dos principais desdobramentos das medidas que tinham o objetivo de melhorar o estado sanitário da capital e do Império, em geral. Uma epidemia de febre amarela acabara de assolar a Corte, colocando na ordem do dia a salubridade pública e as condições higiênicas da cidade. Estima-se que entre a população de 166 mil habitantes, cerca de 90 mil contraíram a doença, provocando 4.160 mortos (alguns estudos calculam que esse número pode ter chegado a 15 mil óbitos)[vi].  Nesse cenário, a Junta possuía, entre outras atribuições, propor ao governo as ações necessárias para promover a salubridade pública e exercer o papel de polícia médica e sanitária[vii].

Posteriormente, outras enfermidades e epidemias se abateram sobre a população da Corte, bem como a do resto do país, aumentando bastante as taxas de mortalidade: além da febre amarela, cólera, tuberculose, disenterias, malária, entre tantas outras enfermidades, que eram lidas e tratadas através das teorias médicas e de diversas outras práticas não-científicas. O que reforçava o papel e as responsabilidades da Junta em melhorar as condições de saúde da capital, incluindo preocupações com a educação física da população.

Contudo, a relação entre educação física, exercícios corporais e saúde pública – presente no relatório de 1885 e que no final do século XIX e começo do XX se tornaria cada vez mais frequente e intensa – não era gratuita e nem óbvia. Tratava-se de uma construção que se deu de forma lenta, paulatina e muitas vezes pouca harmônica entre atores, práticas e ideias que configuravam o saber médico-científico do século XIX.

Cerca de meio século antes da publicação do relatório de 1885, médicos da Corte já apontavam a importância de tal associação. E mesmo logo após a sua criação, a Junta Central de Hygiene Pública já enredava (às vezes de maneira fina) essa tessitura. Mas essa história fica para um próximo post.


[i] Esse post é fruto das conversas e pesquisas realizadas no âmbito do projeto “O corpo da nação: educando o físico, disciplinando o espírito, forjando o país: as práticas corporais institucionalizadas na sociedade da Corte (1831-1889)”, que conta com o apoio da FAPERJ e do CNPq e é coordenado por Victor Andrade de Melo.

[ii] FREIRE, Domingos José. Relatório do Presidente da Junta Central de Hygiene Publica. In: BRASIL. Ministério do Império. Relatorio do anno de 1884 apresentado a assemblea geral legislativa na 1ª sessão da 19ª legislatura (publicado em 1885). Rio de Janeiro: Ministério do Império. p.A-F-1 – A-F-9. 1885.

[iii] Maiores sobre o médico Domingos José Freire ver BENCHIMOL, Jaime Larry. A instituição da microbiologia e a história da saúde pública no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2000, vol.5, n.2, p. 265-292 e BENCHIMOL, Jaime L. Domingos José Freire e os primordios da bacteriologia no Brasil. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Jun 1995, vol.2, no.1, p.67-98 .

[iv] FREIRE, Domingos José. Relatório apresentado ao governo imperial pelo Dr. Domingos José Freire, Presidente da Junta Central de Hygiene Publica. Epidemias na cidade e subúrbios. Endemias. Tuberculoses pulmonares. In: BRASIL. Ministério do Império. Relatorio do anno de 1883 apresentado a assemblea geral legislativa na 4ª sessão da 18ª legislatura (publicado em 1884). Rio de Janeiro: Ministério do Império. p.A-F2-1 – A-F2-39. 1884.

[v] Decreto nº 598, de 14 de Setembro de 1850. Concede ao Ministerio do Imperio hum credito extraordinario de duzentos contos para se exclusivamente despendido no começo de trabalhos, que tendão a melhorar o estado sanitario da Capital e de outras Povoações do Império.

[vi] Maiores detalhes da epidemia de 1850 ver artigo “A morte anunciada” de Monique de Siqueira Gonçalves em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/a-morte-anunciada

[vii] Posteriormente, em 1851, foi promulgado o Decreto nº 828, de 29 de Setembro que detalha e manda executar o regulamento da Junta de Hygiene Publica.


 

MELO, V. A., PERES, F. F. O corpo da nação: posicionamentos governamentais sobre a educação física no Brasil monárquico. História, ciências, saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, 2013, no prelo.


Gymnastica-espetáculo na Corte (Ou quando a gymnastica era theatro e circo)

14/01/2013

por Fabio Peres

Primeiro Ato[1]

No século XIX, diversas formas de diversão e entretenimento eram vivenciadas pela sociedade carioca. Festas, teatros, passeios, procissões, danças e saraus faziam parte de uma série de manifestações artísticas e culturais presentes no cotidiano da cidade e, que após a constituição do Império brasileiro, se tornaram cada vez mais frequentes, variadas e ecléticas.

Neste cenário, as apresentações de ginástica – por mais incrível e inusitado que pareça – se tornaram um dos espetáculos mais divertidos e fascinantes da cidade. Em agosto de 1837, por exemplo, o periódico O Sete d’Abril anunciava em letras garrafais e com grande irreverência que na “quinta feira, 24 do corrente, dia de S. Bartolomeu” seria apresentado o “Grande Espetáculo!! O Theatrinho dos Garimpeiros”. No final de um dos atos estava previsto a realização de “equilíbrios gymnasticos” pela Madame Injustiça e Mr. Patronato (ver Figura 1).

Não se sabe ao certo se tal espetáculo efetivamente ocorreu ou se o anúncio era apenas uma maneira bastante jocosa e criativa de fazer críticas severas às vicissitudes do Império (o que era mais provável). Em todo caso, mesmo em se tratando de uma anedota, a intenção de que anúncio fosse verossímil e, por isso, cômico reforça a ideia de que os exercícios ginásticos eram recorrentes na cena teatral carioca. Além disso, a apropriação por metáfora e o uso paradoxal do termo, isto é, imaginar que a injustiça e o patronato buscavam manter o “equilíbrio” e conservar o status quo, denota que o vocábulo não era estranho à sociedade da Corte, garantindo, assim, o riso do leitor.

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Figura 1: Anúncio do “Grande Espetáculo!! O Theatrinho dos Garimpeiros” em 9 de agosto de 1837 (O Sete d’Abril).

Os anúncios teatrais, em geral, e dos espetáculos theatrais-gymnaticos se tornaram mais frequentes e ocupavam parte considerável das últimas páginas dos periódicos cariocas. Ao que parece, o sucesso e a importância de tais espetáculos para cidade foram tão expressivos que – além da propaganda do “produtor”, na seção de “anúncios a pedidos” – os editoriais dos próprios jornais passaram divulgá-los em seções especiais que informavam os eventos culturais na Corte. Um dos espetáculos contaria inclusive com a presença do Imperador D. Pedro II e a “Augusta Família Imperial”, como mostra o jornal O Despertador de 19 de abril de 1838 (Figura 3). O “pomposo espetaculo gymnastico e dramatico” O Poeta e a Inquisição[2] – segundo o jornal, uma “excellente tragedia” – seria representada por Mr. Valli, o Hércules Francês, no Theatro Constitucional Fluminense (antigo Real Theatro de São João, atual Teatro João Caetano[3]).

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Figura 2: Anúncio do espetáculo ginástico-dramático “O Poeta e a Inquisição” (O Despertador, 19 de abril de 1838). A tragédia fora composta por Domingos José Gonçalves de Magalhães (Visconde de Araguaia) – ensaísta, poeta, médico e diplomata; um dos iniciadores do Romantismo no Brasil. Destaca-se que o ginasta-artista, segundo o jornal, não omitiria esforços para satisfazer o Imperador e o público, realizando os “mais lindos e delicados exercícios gymnasticos, forças e posições acadêmicas”.

Interessante perceber que cada vez mais os anúncios faziam alusão à capacidade de tais espetáculos divertirem o público. De modo geral, não noticiavam apenas informações básicas da realização do evento (dia, endereço etc.), como até então era mais comum, para incluir detalhes, que supostamente atrairiam o público. A divulgação das sessões teatrais associava o entretenimento do espetáculo às narrativas dramático-teatrais em que exercícios ginásticos estavam inseridos[4] e, além disso, às habilidades corporais e acrobáticas dos gymnastas (ver Figura 2 e 3).

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Figura 3: Anúncio do espetáculo ginástico no Theatro São Januário (O Despertador, 04 de setembro de 1839). A programação detalhada do “escolhido divertimento” contava com as participações de Mr. Levrero (“conhecido na Europa por hum dos melhores dançarinos de corda”) e Mr. Macerata.

Força, equilíbrio, robustez e acrobacias equestres eram concebidas no plano do extraordinário: atraindo atenção do público pela beleza e maestria física. Em outras palavras, isso significa que o corpo (e as representações em torno dele) ganhava ou já possuía novos sentidos e sensibilidades, ainda que com peculiaridades bastante distintas da que se gestou no final do século XIX e começo do XX.

Intervalo

Nesta mesma época, por volta do final da década de 1830, intensifica-se um processo que muda o espaço físico e social das apresentações. A gymnastica-espetáculo passa cada vez mais a ser exibida nos circos, ainda que até o final do Império algumas sessões fossem encenadas nos teatros da cidade (Figura 4). Possivelmente as explicações para esse deslocamento são variadas e envolvem uma série de aspectos. Um deles pode estar ligado à diminuição da presença da linguagem dramática enquanto mote para os espetáculos ginásticos. Em maior ou menor grau, esses espetáculos passaram a ser valorizados mais pelas habilidades e técnicas corporais por si, do que pelos enredos e tramas narradas.

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Figura 4: Anúncio do Circo Olympico que ocupava aproximadamente 1/4 da última pagina do Correio Mercantil de 22 de janeiro de 1860. Localizado na Rua da Guarda-Velha (atual 13 de Maio), o Circo Olympico foi inaugurado em 1857 e, posteriormente, em 1871, se transformou no Theatro D. Pedro II[5].

Por outro lado, o caráter supostamente mais popular do circo pode significar que se ampliava o público e o mercado em torno da assistência do espetáculo-ginástico. De certa forma, esse processo, cada vez mais intenso, de deslocamento do espaço social da ginástica-espetáculo (e das relações sociais que o sustentam) revela talvez um traço, não apenas das divisões sociais presentes no Império, mas também das eventuais disputas e autonomização dos campos artístico-culturais na cidade.

No entanto, independente do local em que ela fosse encenada (seja no teatro, seja no circo), a gymnastica-espetáculo foi frequentemente representada, até o final do Império, enquanto linguagem associada ao campo das artes[6]. Diversas vezes, inclusive, fora considerada como prática diferente das sportivas (corridas de cavalo, regatas etc.), que a partir de meados da década de 1870, possuíam uma seção específica dedicada ao acompanhamento das modalidades e das provas (ver exemplo na Figura 5).

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Figura 5: Trecho da primeira página do jornal Diário de Notícias (4 de outubro de 1886), no qual o espetáculo ginástico, previsto para ser realizado no Theatro Politheama Fluminense (situado na rua do Lavradio), encontra-se na seção FOYER, enquanto que as notícias do Derby Club e do Club de Regatas Paquetaense se encontram na seção SPORT.

Segundo Ato

O caráter aparentemente inusitado das apresentações ginásticas pode abrir um espaço para uma reflexão sobre os desafios colocados à história das práticas corporais no século XIX. A ausência desse tema – seja pela falta de acesso às fontes ou de trabalho empírico, seja pela reificação de determinadas interpretações ou documentos – pode comprometer uma compreensão mais densa da relação entre vida social, condições históricas e o processo de construção de um ethos corporal na sociedade da Corte.

A sedução e o encanto que tais espetáculos despertavam no público, ainda que não fossem suficientes para converter a plateia em praticantes, pode ser um indício de que havia uma sensibilidade específica ligada ao corpo e a certas técnicas/habilidades corporais (como força, vigor, equilíbrio, energia etc). Em outras palavras, é como se determinadas propriedades corporais, diferentes das exigidas em outras práticas, passassem a estar em primeiro plano. A ênfase no ímpeto muscular e na robustez dos gymnastas, enquanto elementos de atração e sedução do público, podem ter ajudado a construir (e ao mesmo tempo eram produto de) uma sensibilidade/estética corporal, que supostamente começava a mudar.

Por outro lado, a ginástica-espetáculo coloca em questão teorias e interpretações que com o tempo se consagraram e se tornaram lugar-comum. Ao longo dos anos foi construído e reforçado um “mito de origem” em que a gênese e a popularização de determinadas práticas corporais na sociedade brasileira (ginástica, natação, educação física e do esporte em geral) se deram quase exclusivamente por instituições militares e, em alguns casos, por escolas públicas. Longe dessa perspectiva linear e monocausal, a gymnastica-espetáculo parece sugerir – ou pelo menos nos faz refletir – que tais práticas se constituíram e se difundiram a partir de constelações sociais mais complexas e pluridimensionais, que envolvem outros atores, processos e instituições sociais.


[1] Esse post é fruto das pesquisas realizadas no âmbito do projeto “O corpo da nação: educando o físico, disciplinando o espírito, forjando o país: as práticas corporais institucionalizadas na sociedade da Corte (1831-1889)”, que conta com o apoio da FAPERJ e do CNPq e é coordenado por Victor Andrade de Melo.

[2] O drama romântico “O Poeta e a Inquisição” (1838) pode ser lido na integra no Portal Domínio Público.

[3] Maiores informações acessar a página do Centro Técnico de Artes Cênicas /Funarte, dedicada aos Teatros do Centro Histórico do Rio de Janeiro.

[4] Diversas apresentações ginásticas também entremeavam sessões teatrais, no intervalo das peças, entretendo e divertindo os espectadores.

[5] Maiores informações na página do Centro Técnico de Artes Cênicas /Funarte, dedicada aos Teatros do Centro Histórico do Rio de Janeiro.

[6] Isso não significa que a dimensão “espetáculo” da ginástica ficasse restrita ao campo das manifestações artístico-culturais. Em determinadas circunstâncias ela também foi associada aos campos sportivos e escolar.