Adhemar Ferreira da Silva: representações de um herói olímpico (parte 3)

29/11/2021

Fabio Peres e Victor Melo*

DO GALEÃO ATÉ O OBELISCO. Ademar Ferreira da Silva Aclamado Ontem Por Toda a População Carioca. Regresso Triunfal do Maior Atleta Brasileiro de Todos os Tempos - O Povo, Emocionado, Viu e Ovacionou o Herói [...] (Última Hora, 14/12/1956, p.8)  

O retorno de Adhemar ao Brasil, após a conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Melbourne, foi cercado por um misto de expectativa e exaltação. Os periódicos refletiam e, ao mesmo tempo, fomentavam uma certa inquietação em torno do “herói” que “mais uma vez, soube fazer tremular a bandeira do Brasil no mastro olímpico maior”[i].

Desde a vitória e, principalmente, nos dias que antecederam a sua chegada, os jornais anunciaram cada vez com maior comoção e destaque o seu regresso. O Diário Carioca até mesmo noticiou na primeira página da edição de 13 de dezembro a programação completa do cerimonial de sua recepção no Rio de Janeiro. O feito de Adhemar foi considerado tão memorável que a TV Tupi fez uma cobertura ao vivo[ii], algo bastante incomum à época.

A solenidade começou ainda no Aeroporto com a entrega de um galhardete bordado em ouro pelo presidente do Departamento de Imprensa Esportiva da Associação Brasileira de Imprensa. Altas autoridades do país estavam presentes, entre os quais o ministro da educação e cultura (Clóvis Salgado) e o prefeito do Distrito Federal (Negrão de Lima)[iii]. Um cortejo de automóveis, que passou pela Av. Rio Branco, uma das principais da cidade, conduziu o atleta para ser recebido pelo presidente da República, Juscelino Kubitschek.

Nos jornais, foram publicadas fotografias da recepção no Palácio do Catete (sede do poder executivo), nas quais Adhemar aparecia ao lado do presidente da República. As legendas que as acompanhavam são emblemáticas das representações que se buscava construir em torno do atleta, nas quais se mesclavam as ideias de povo, Estado e nação. O leitor era informado que Adhemar recebeu uma “consagradora recepção […] do povo carioca”, bem como ouviu do governante máximo da nação “palavras de estímulo e agradecimento pela extraordinária projeção que deu ao Brasil através da sua magnífica vitória […]”[iv].

Última Hora (14/12/1956, p.1) e Diário Carioca (14/12/1956, p.1)                 

A despeito dessa exaltação, novos tempos vivia o Brasil. O governo Vargas, imerso em denúncias e escândalos, acabou de forma trágica, com o suicídio do líder histórico. O governo de transição foi marcado por grande tensão, assim como a eleição de Juscelino Kubitschek, que assumiu e governou sempre sob muitas críticas e conflitos. Sua administração (1856-1961) seria marcada pela aceleração do processo de industrialização e crescimento econômico, mas também pelo aumento da dívida pública e inflação. Houve grande projeção do país no cenário internacional, especialmente por fatos do âmbito cultural, como a bossa nova, a arquitetura moderna e as conquistas esportivas (entre as quais o título máximo do futebol, na Copa do Mundo da Suécia, em 1958)[v].

Dessa vez, a vitória de Adhemar não foi unanimemente celebrada. Ainda que as contestações não recaíssem sobre a imagem de Adhemar, a ausência de outros bons resultados nos Jogos Olímpicos chamou a atenção e foi motivo de debate. Considerava-se tal ocorrido como sinal da fragilidade do Estado brasileiro, críticas que se dirigiam à atuação do novo presidente da República. Wilson Brasil foi bem explícito:

FRACASSO! Papelão! O Brasil novamente fracassa redondamente nas Olimpíadas. E que fracasso! Não conseguimos nada, senão o título de Adhemar Ferreira da Silva. Felizmente, ainda temos essa exceção. Aliás, esporte em nosso país é isso: Adhemar e futebol. Além disso, nada mais há[vi].

Se antes a vitória de Adhemar era considerada como grande triunfo da nação, fato que projetaria uma boa imagem do Brasil no exterior, a nova conquista foi por alguns encarada como bálsamo não suficiente para esconder os problemas enfrentados pelo país. Como sugeriu um cronista:

Estamos sempre por baixo de países insignificantes, que nenhuma importância tem no concerto mundial. Se não fosse Adhemar Ferreira da Silva, teríamos ficado atrás de paisinhos que quase não aparecem no mapa […]. Está positivado que nos encontramos ainda muito distantes da maturidade. Precisamos enxergar a realidade como ela é e nos convencermos de nossa insignificância […] a fim de conseguirmos alguma coisa no futuro[vii].

Essa compreensão estava se delineando desde os Jogos Pan-Americanos de 1955 (Cidade do México), quando a delegação brasileira não teve bom desempenho, explicitando para alguns “a nossa inferioridade esportiva”[viii]. Ainda assim, a conquista, de Adhemar (medalha de ouro e quebra de recorde mundial[ix]) ganhou grande repercussão. O Globo fez questão de não apenas publicar uma matéria especial, de página inteira, como também organizou uma homenagem no estádio do Maracanã, o grande palco do esporte nacional[x].

O Globo, 19/03/1955, segunda seção, p.1.

As competições internacionais continuavam sendo valorizadas como forma de projeção nacional, contudo com menor ufanismo ao seu redor. Aliás, poucos dias após a notícia da vitória de Adhemar, chamou-se a atenção para a apropriação política em torno da exaltação exagerada da nação. Numa coluna em que eram apresentados os piores e melhores fatos da semana, a “pior coisa” escolhida foi a posição de “urubus e demagogos”, “abutres” que tratavam a conquista do atleta com “frases ocas, enfeitadas, demagógicas, estarrecedoras, falando em bandeiras, patriotadas etc.”[xi].

Em todo caso, ainda prevaleceu um tom festivo e celebratório ao herói. Afinal, a vitória em Melbourne correspondeu à expectativa construída nos meses anteriores às Olimpíadas, mesmo que o atleta tenha enfrentado certas dificuldades para conseguir o índice de classificação.

Uma ampla matéria sobre as chances dos atletas brasileiros em Melbourne destacou – ainda que ponderando sobre as dificuldades que Adhemar teve para treinar durante o ano – que ele era a principal esperança da delegação nacional obter alguma medalha de ouro[xii]. A expectativa ganhou também contornos continentais. O Jornal do Brasil chamou atenção ao fato de que foi o único latino-americano com possibilidade de vitória nas provas de atletismo indicado por cronistas esportivos europeus “mais destacados”[xiii]. Já Jesse Owens, o “Homem das Quatro Medalhas de Ouro em Berlim”, havia declarado poucos dias antes do Jogos que Adhemar era “sem dúvida alguma um dos maiores atletas mundiais do momento”[xiv].

Última Hora, 9/11/1956, p.16.

No próprio dia das provas do salto triplo, o Diário Carioca chegou a informar, logo na capa, aumentando a expectativa do leitor, que Adhemar se classificara “reservando energias” para a final que ocorreria à tarde[xv]. O Globo e o Última Hora se colocavam como testemunhas privilegiadas e, de modo indireto, também como partícipes e caudatários da conquista[xvi].

A popularidade e o prestígio de Adhemar, não é demais assinalar, se tornaram bastante expressivos no intervalo entre as duas Olímpiadas. Seu nome era frequentemente citado como o maior esportista do Brasil, inclusive por atletas de outras modalidades, como o futebol[xvii]. Matérias e colunas de jornais dedicadas à vida de “famosos”[xviii] e “personalidades”[xix], para além do campo esportivo, se referiam a ele como uma celebridade. A pista de atletismo de Belo Horizonte (MG) foi batizada com seu nome[xx].

O sentimento de nacionalismo, caro à participação de atletas brasileiros em contendas internacionais desde o começo do século XX[xxi], ganhou novos contornos na segunda conquista olímpica de Adhemar. A exaltação do atleta como símbolo do êxito da nação foi conciliada a certas qualidades individuais do bicampeão olímpico, algo que aparecera menos intensamente na vitória de 1952.

Negro, culto e portador de “virtudes” tanto atléticas como psicológicas, intelectuais e morais – as representações sobre Adhemar incorporavam a autoimagem de uma nação que seguia buscando consolidar, interna e externamente, uma narrativa identitária mestiça – entendida como sinal positivo da formação social brasileira.

Não foram poucos os traços apreciados, às vezes de maneira difusa, nos jornais. Eles abarcam desde questões como a facilidade de Adhemar se expressar publicamente (inclusive em outros idiomas como o inglês, francês e espanhol), passando por sua ampla formação e trajetória educacional formal, chegando a seu jeito pessoal, suas relações familiares, a vocação para o trabalho e seu posicionamento no mundo do esporte.

Um dia após a conquista da medalha em Melbourne, o Última Hora buscava sintetizar todas essas qualidades em uma coluna que homenageava Adhemar. Tratava-se de – como salientava o periódico em letras garrafais – de um “embaixador” que “honra todo o Brasil”[xxii]:

O leitor entenderá perfeitamente que se preste nestas colunas uma homenagem particularmente vibrante e comovida ao atleta excepcional que fez com que o mundo inteiro, ontem, pronunciasse com admiração o nome do Brasil. Pois as qualidades do coração e do espírito de Adhemar estão à altura do valor excepcional dos seus músculos. E em qualquer ponto do globo em que o grande campeão do salto triplo vai exibir-se, torna-se, com efeito, um magnífico embaixador esportivo.

Parte do reconhecimento passava, assim, pela ideia de representatividade positiva do Brasil em terras estrangeiras, pela capacidade de figurar como símbolo de uma nação. Adhemar seria, nesses termos, um arauto de uma certa “brasilianiedade” laudatória: 

Bom filho, bom esposo, bom pai, Adhemar é um homem inteligente, estudioso, mais culto do que a média dos atletas, que sempre pensa em deixar a melhor impressão em todo país que vai visitar, e em fazer a mais benéfica propaganda das coisas e da gente do Brasil.

Não era incomum que a afetividade das relações familiares e seu papel na índole do triplista estivessem frequentemente presentes nos periódicos. O Última Hora, assim que recebeu o telegrama de Melbourne anunciando a conquista, se incumbiu de transmitir “em primeira mão” a notícia do feito aos pais do atleta em São Paulo. No dia seguinte (28/11/1956), o jornal carioca publicou com exclusividade a reportagem intitulada “O Campeão Cumpriu com a Palavra: Antes de Seguir Para Melbourne Adhemar Prometeu à Esposa uma Nova Conquista Para o Brasil” em que, não apenas noticiava a felicidade dos “genitores” com a vitória do filho, como também reproduzia a emoção de sua esposa:

Confesso que não dormi direito essa noite, pois esperava aflita pelo resultado da prova”, disse, inicialmente, dona Elza […] E, olhando para Adiel, a filhinha do casal, concluiu: “Papai cumpriu o que nos havia prometido! Quando foi para Helsinki prometeu uma medalha para Adiel. Agora, prometeu uma medalha para o nosso segundo filho. E cumpriu a palavra”, finalizou (Última Hora, 28/11/1956, p.8).

Os laços familiares voltariam a figurar nos periódicos nas comemorações de seu retorno ao Brasil. O Globo publicou na capa da edição do dia 14/12/1956 uma fotografia de Adhemar, cercado por fãs no desembarque do aeroporto, sorrindo com a sua filha no colo. Adicionalmente no caderno interno da edição, além da fotografia em que Adhemar recebia os cumprimentos do presidente da república, a matéria continha uma terceira fotografia em que o atleta beijava sua filha: “assim que desembarcou […] Adhemar foi cercado pelos presentes, tendo sempre ao colo a sua filhinha Adiel, que com sua esposa e seus pais chegara na véspera de São Paulo para recebe-lo”[xxiii], destacava o periódico. No mesmo dia, o Última Hora, por sua vez, publicou não apenas três fotografias de Adhemar com a sua família – entre tantas outras que compunham a cobertura de sua chegada ao Rio – como também fez questão de publicar uma pequena seção cujo título era a “Emoção dos Pais” em que o periódico assinalava “o agradecimento sincero dos que o querem de coração”; seus pais, esposa e filha “estavam lá, emocionados e comovidos (mais do que nós)”[xxiv].

Última Hora, 14/12/1956, p.16 e Última Hora, 14/12/1956, Tabloide, p.1

Algumas vezes os laços familiares figuravam associados à origem “humilde” e, apesar disso, à educação tanto formal como informal do atleta. A edição especial dos Dia das Mães da revista O Cruzeiro em maio daquele ano, por exemplo, publicou uma matéria “Mães do Brasil”. Com o subtítulo “Os filhos são famosos. Delas foi o sacrifício”, a fotografia da mãe de Adhemar pendurando roupas no varal aparecia entre fotografias de mães de outras personalidades como de César Lattes, célebre físico e pesquisador brasileiro, e de Vinícius de Moraes, já na época diplomata, dramaturgo e compositor. A legenda que acompanhava a foto destacava “O filho, Adhemar Ferreira da Silva, é campeão olímpico. Lavando roupa, D. Augusta educou-o. Antes de bater recordes na Europa, ele estudou escultura”[xxv]. Essa, na realidade, era uma outra dimensão ressaltada nos jornais. A coluna-homenagem do Última Hora mencionada anteriormente, prossegue apresentando características do atleta:  

Falando corretamente francês e inglês, nunca sai para o estrangeiro sem aprender os elementos da língua da nação em que vai competir. Sabia expressar-se (e cantar) em alemão quando foi a Dortmund para os Campeonatos Mundiais Universitários, e em finlandês quando foi conquistar sua primeira medalha de ouro em Helsinque. E até quando foi saltar em Tóquio, surpreendeu felizmente a todos quando, no centro do gramado do estádio principal da capital japonesa, apresentado ao antigo campeão olímpico e “recordman” mundial de salto triplo Tamura, em vez de usar o aperto de mão internacional, cumprimentou o veterano a moda do país, usando os gestos tradicionais e a língua nipônica. O estádio inteiro irrompeu em ovações frenéticas e todo um povo achou que brasileiro era realmente gente amável e cortes, gostando de agradar a todos.

A formação cultural e o caráter “diplomático” de Adhemar eram recorrentemente salientados nos jornais. Por ocasião de uma excursão pelos Estados Unidos, patrocinada pelo programa estudantil do Departamento de Estado do país, para “tomar parte em provas atléticas e conhecer o país – se apresentava “sob o braço” com o livro Abraham Lincoln, do biografo Emil Ludwing, escrito em “inglês, idioma que fala fluentemente”[xxvi]. Na mesma língua saudou os que o esperavam, bem como deu uma entrevista em espanhol ao correspondente da United Press, demonstrando seu contentamento por estar nos Estados Unidos e, especialmente, ressaltando que a viagem tinha menos a ver com vitórias e recordes: “participarei […] animado de um espírito esportivo fraternal. Naturalmente, procurarei vencer […] porém o principal será competir e intercambiar com os atletas norte-americanos”.

Em 1956, já formado em artes, era aluno da Escola de Educação Física de São Paulo, escultor, jornalista, radialista, além de atleta amador[xxvii]. Quando perguntado sobre o que gostava de ler, foi categórico: Érico Veríssimo, um dos principais escritores brasileiros do século XX. De forma humilde e generosa disse que, na sua opinião, os atletas brasileiros mais completos eram seus companheiros de atletismo José Telles da Conceição (salto triplo, salto em altura e provas de velocidade) e Ary Façanha de Sá (salto em distância)[xxviii].

O atleta sabia construir sua imagem pública. Ao voltar de Melbourne, “fez questão de endereçar” uma carta de próprio punho para agradecer o “povo brasileiro”, publicada na íntegra, no Última Hora, juntamente com uma fotografia[xxix]. Até mesmo por isso, foi ampliando suas redes sociais.

Última Hora, 14/12/1956, p.8.

Em 1956, foi convidado para atuar numa peça de teatro que posteriormente se tornou célebre, “Orfeu da Conceição”, escrita por Vinícius de Moraes, com trilha sonora composta por Tom Jobim e cenário por Oscar Niemeyer[xxx]. Ainda que tenha desempenhado um papel secundário, fora lembrado para integrar o até então considerado “maior elenco negro” da dramaturgia brasileira[xxxi].

Diário de Notícias, 23/09/1956, Suplemento Especial, p.5 e Última Hora, 22/09/1956, p.8.

A admiração por Adhemar chegou até mesmo às camadas mais restritas da sociedade. Poucos dias antes da viagem para Melbourne, por ocasião de um jantar promovido pela Sociedade de Teatro e Arte, um grupo de sócios do exclusivo Rio de Janeiro Country Club, agremiação da alta elite da cidade, o homenageou com um escudo e flâmula[xxxii].

Correio da Manhã, 4/11/1956, 2º Caderno, p.4

O célebre jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues dedicou uma coluna para fazer um “retrato” de Adhemar em que destacou que o atleta, apesar das adversidades, tinha antes de tudo “estado de alma”[xxxiii]. O jornalista Marc Gauldichau, em reportagem especial direto de Melbourne, sugeriu que o “escultural atleta negro” era um autêntico Deus em um “recital”[xxxiv].

Para os jornais, as qualidades de Adhemar eram intermináveis, como o Última Hora em sua coluna-homenagem queria destacar:

Mas a lista seria muito longa se quiséssemos contar aqui todos esses pequenos fatos que, de qualquer modo, nos levariam à mesma conclusão: Adhemar sabe sempre agir em qualquer ocasião, como um “sportman” de verdade, um “gentleman” que respeita o espírito esportivo do “fair play”, granjeando simpatias unânimes em favor do Brasil. Eis por que, todos nós de ULTIMA HORA, desde Samuel Wainer até o mais humilde dos colaboradores deste jornal, que estamos em contato diário com esse homem de verdade, simples e sorridente, trabalhador e talentoso nas suas atividades de jornalista esportivo, responsável pela nossa seção de atletismo e esportes amadoristas, como o é nas pistas de competição, nos orgulhamos hoje com o triunfo magnífico do nosso amigo, bicampeão olímpico, “recordman” olímpico e “recordman” do mundo, que mais uma vez fez tremular a bandeira do Brasil no mastro maior do Estádio Olímpico, em Melbourne. Muito bem, querido Adhemar, o muito obrigado de TODOS NÓS[xxxv].

O “espírito esportivo” de Adhemar se estendia para além das caixas de areia. A preocupação com as condições da prática esportiva, bem como a solidariedade com os atletas e técnicos, podem ser vistas em diversas matérias tanto escritas pelo próprio esportista como por outros jornalistas. Ele denunciava constantemente a precariedade da estrutura do atletismo, bem como das instituições responsáveis pela sua organização[xxxvi].   

De fato, esse sentimento de “classe” ou de “corporação” esteve presente em vários momentos de sua carreira. Nas primeiras entrevistas publicadas após a vitória em Melbourne, o Última Hora chamou atenção para a frase “Dedico minha vitória a todos os desportistas do Brasil”. Além disso, declarou: “tenho sobretudo que confessar que devo minha vitória aos meus técnicos”[xxxvii]. Esse traço do atleta chamou atenção do jornalista Marques Rebelo:

Chegou Adhemar! Compridão, modesto, delicado, biolímpico, o melhor dos camaradas, e decente, tão decente que nunca se esquece depois dos seus êxitos espetaculares de falar no seu velho treinador e de repartir com ele o mérito das suas conquistas. Chegou Adhemar, o homem do ano! Não desembarcou com as medalhas de ouro no peito; o que no peito trouxe foi o coração de ouro mais nobre […][xxxviii].

Quando foi recebido no Palácio do Catete, ao retornar ao país, fugiu do protocolo de apenas ouvir os agradecimentos do presidente da República e fez um apelo para que continuasse “olhando e amparando a infância e os desportos”[xxxix]. Demonstrava, assim, sua preocupação com o futuro do país, com uma vida melhor para os mais populares, o estrato social do qual emergiu e nunca negou.

Adhemar, em síntese, era representado como uma imagem daquilo que o Brasil gostaria de fazer prevalecer internamente, mas, sobretudo, para o mundo como forma de autoafirmação. Adhemar seria “sem dúvida alguma […] uma das raríssimas instituições do Brasil, que não decepcionam nem se contentam com vices…”[xl]. Mais do que isso, Adhemar – no olhar dos periódicos – seria o portador de um elemento cultural identitário brasileiro original e virtuoso:

Assim é o brasileiro. Quando põe a funcionar o sentimento, ninguém o contém, ninguém o segura, ninguém o amarra. Amigos, permitam-me um esgar de patriotismo, à maneira do Olavo Bilac dos reservistas: – Com sua vitória olímpica. Adhemar Ferreira da Silva esfregou na cara do mundo a alma de todos nós e cada um de nós, o que equivale dizei: — a alma do Brasil[xli].

 Adhemar era a materialização de um grande projeto para o Brasil. A esperança pouco precisa de ser algo que, lamentavelmente, o país ainda não é e deve seguir perseguindo ser, não somente nas construções idealizadas ao redor de um grande atleta, mas como realidade concreta para sua população.


* Texto publicado originalmente em PERES, Fabio de Faria; MELO, Victor Andrade de. Adhemar Ferreira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero. In: Antonio Sotomayor; Cesar R Torres. (Org.). Olimpismo: The Olympic Movement in the Making of Latin America and the Caribbean. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2020, p. 95-110.

[i] Última Hora, 14 dez. 1956, Tabloide, p. 1.

[ii] Diário Carioca, 19 dez, 1956, p. 6.

[iii] Diário da Noite, 10 dez. 1956, 2ª Seção, p. 6.

[iv] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 1. Logo após a conquista da medalha, Juscelino e o vice-presidente João Goulart já haviam telegrafado ao atleta congratulando-o pela conquista (Diário Carioca, 2 dez. 1956, 3ª Seção, Suplemento Dominical, p. 2).

[v] Para mais informações sobre o período, ver: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida N. (org.). O Brasil Republicano – O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[vi] Mundo Esportivo, 14 dez. 1956, p. 6.

[vii] Mundo Esportivo, 14 dez. 1956, p. 6.

[viii] Última Hora, 22 nov. 1956, p. 16.

[ix] O recorde mundial de Adhemar só foi definitivamente homologado na reunião da Federação Internacional de Atletismo em Melbourne, durante os Jogos Olímpicos.

[x] O Globo, 19 mar. 1955, segunda seção, p. 1.

[xi] Mundo Esportivo, 30 dez. 1956, p. 13

[xii] Última Hora, 9 nov. 1956, p. 16.

[xiii] Jornal do Brasil, 25 out. 1956, p. 13.

[xiv] Última Hora, 20 nov. 1956, p.8. De acordo com o jornal, Jesse Owens estava em Melbourne como um dos representantes do presidente norte-americano Eisenhower.

[xv] Diário Carioca, 27 nov. 1956, p. 1 e 9.

[xvi] O Globo, 27 nov. 1956, p. 1; Última Hora, 27 nov. 1956, p. 1.

[xvii] Por exemplo, no Mundo Esportivo, na coluna Perguntas e Respostas – dedicada a entrevistar personalidades esportivas, em sua maioria do futebol – comumente perguntava-se “qual é a maior expressão esportiva do Brasil?”. Com frequência os atletas escolhiam o nome de Adhemar, às vezes seguido de termos como “indiscutivelmente” (ver edições de 23 mar. 1956, p. 2; 27 abr. 1956, p. 2; 11 mai. 1956, p. 2; 25 mai. 1956, p. 15; 15 jun. 1956, p. 3).

[xviii] O Cruzeiro, 12 mai. 1956, p. 118.

[xix] A Noite, 31 ago. 1956, 2º Caderno, p. 2.

[xx] Última Hora, 28 ago. 1956, p. 8.

[xxi] Para mais informações, ver: MELO, Victor Andrade; PERES, Fabio de Faria. Primeiros ventos olímpicos em terras tupiniquins. Revista USP, São Paulo, n. 108, p. 39-48, 2016.

[xxii] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 16

[xxiii] O Globo, 14/12/1956, p.18.

[xxiv] Última Hora, 14/12/1956, p.8.

[xxv] O Cruzeiro, 12/05/1956, p.118.

[xxvi] O Globo, 26 abr. 1955, p. 12.

[xxvii] Nos anos 1960, Adhemar atuaria também como adido cultural na Embaixada da Nigéria.

[xxviii] A Noite, 31 ago. 1956, p. 3.

[xxix] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 8.

[xxx] Correio da Manhã, 22 set. 1956, p. 13.

[xxxi] Correio da Manhã, 22 set. 1956, p. 13.

[xxxii] Correio da Manhã, 4 nov. 1956, 2º Caderno, p. 4.

[xxxiii] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 24.

[xxxiv] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 8.

[xxxv] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 16

[xxxvi] Exemplos das colunas de Adhemar podem ser vistas nas edições do Última Hora de 5 jun. 1956, p. 8, 6 jun. 1956, p. 8, 21 ago. 1956, p. 8 e 29 ago. 1956, p. 8.

[xxxvii] Última Hora, 27 nov. 1956, p.6.

[xxxviii] Última Hora, 18 nov. 1956, p.1

[xxxix] Última Hora, 25 nov. 1956, p.6.

[xl] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 6.

[xli] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 6.


Adhemar Ferreira da Silva: representações de um herói olímpico (parte 2)

11/07/2021

Fabio Peres e Victor Melo[i]

Após a vitória 1952, em Helsinque, as notícias veiculadas nos periódicos revelavam, mesmo sem querer, nuances e ambiguidades – pouco visíveis e invisibilizadas – da construção da nossa identidade nacional.

No olhar de muitos cronistas, as representações sobre Adhemar orgulhavam mais por serem ecoadas pelas agências internacionais de notícias, que o descreviam como “um negro alto, de longas pernas” que:

“[…] obteve ainda um grande sucesso de simpatia quando, depois de receber sua medalha de ouro, efetuou espontaneamente uma volta na pista, cumprimentando a multidão, encantada com a maneira pitoresca pelo qual o atleta brasileiro expandiu sua alegria”[ii].

Em outra ocasião, uma agência ressaltou a “modéstia” do atleta: “Limitei-me a fazer o possível”, “não contava fazer nada parecido com isso”[iii], afirmara Adhemar.

Na representação da imprensa do Brasil, os surpreendidos olhos estrangeiros acabavam por confirmar algumas características do caráter brasileiro, pacífico e mestiço, à moda do que tinha sido categorizado por Gilberto Freyre, cujo pensamento na altura já gozava de grande prestígio[iv]. Porém, esses mesmos olhares jogavam luz, de forma não intencional, sobre diferenças na “construção social da cor”.

A célebre cantora e dançarina Josephine Baker, que se encontrava no país para apresentar seu espetáculo, em entrevista intitulada “Quero dar um beijo em Adhemar da Silva”, afirmou que: “uma vitória de um homem de cor é também a minha[v].

Josephine Baker durante sua passagem pelo Brasil na década de 1950 Foto: Theopompo do Amaral/28-08-1952. Fonte: O Globo.

A artista, que gostava “muito de esporte”, amiga de Joe Louis e Sugar Ray Robinson (boxeadores negros americanos)[vi], era ativista dos Direitos Civis e chamava atenção pela sua atitude política, estilo de vida e preferências sociais. Josephine Baker participava de diversas organizações que lutavam contra a discriminação racial. Em sua visita ao Brasil se reuniu com intelectuais, entre eles Edgard Santana (médico, que em parte participava de forma “vacilante” do que foi conhecido como “contra-ideologia racial”), para debater o racismo e articular formas de apoio aos grupos locais[vii].

Para ela, era “muito normal” a admiração que os finlandeses expressaram por Adhemar “porque […] como todos os escandinavos, estão na vanguarda do movimento contra as discriminações raciais”. O que a surpreendeu foi a imprensa brasileira dedicar muitas páginas para um atleta de “cor”. O jornal destacou que a cantora exaltou a consolidação da democracia brasileira:

Mandarei logo 50 exemplares da Última Hora para todos os amigos nos quatro cantos do mundo para mostrar como os jornais de um país democrático dedicam uma justa recompensa a um dos seus grandes filhos. […] A vitória de Adhemar reforça ainda o grande amor que tenho para o Brasil, o país que eu levo no meu coração como o símbolo da democracia das Américas. E quando Adhemar estiver de volta, dar-lhe-ei um grande abraço para agradecer estas emoções que fizeram o dia de hoje o mais feliz dia desde que cheguei no Brasil. Eu sabia que neste país uma coisa maravilhosa via me acontecer. Deus ajuda todos que lutam para um ideal puro [viii].

De maneira ambígua, Adhemar acabava sendo eleito a representante de algo que, de fato, não existia e nunca existiu no Brasil – o mito da harmonia de raças. A valorização de suas conquistas não conseguia mascarar as injustiças de várias ordens que cercavam a população brasileira, inclusive de natureza racial.

Devemos atentar para as nuances que permeavam a vida social brasileira na naquele momento, algo que começara a se gestar na década de 1930, mas que ganhou corpo na década de 1950. No plano cultural, Adhemar e outras celebridades negras ou pardas não eram associados a termos como “negro”, “preto” ou “colored”. Na imprensa e nos meios de comunicação, em geral, essas conotações eram usadas com sentido pejorativo, evidenciando o racismo, ora mais, ora menos, tácito. Adhemar e as demais personalidades eram tratados como “ilustres brasileiros”, sendo suas respectivas “negritudes”, por assim dizer, “visíveis” apenas aos olhos estrangeiros.

De toda forma, o prestígio do país no cenário internacional, de acordo com os periódicos, não era nada trivial. No dia seguinte à vitória, o Correio da Manhã fez questão de registrar que Adhemar não apenas havia sido aclamado como herói pela conquista da medalha, como também por ter realizado um “fato inédito nos anais olímpicos”[ix], bater o recorde mundial por quatro vezes seguidas no mesmo certame. Para o cronista, o feito ajudava a deixar claro o valor do Brasil para o mundo.

O aplauso do público e de outras delegações foi encarado como suposto reconhecimento das qualidades nacionais – a cordialidade, empatia, modéstia:

O Hino Brasileiro foi entoado em coro por todos os torcedores de Adhemar Ferreira da Silva. Em seguida, o titular do segundo lugar nessa prova, o russo Scherbakov, fez questão de demonstrar ao brasileiro sua indizível admiração […] E quando o brasileiro, (…), lançou-se na pista, da qual fez uma volta completa, sob as ovações dos espectadores que o aclamavam e se levantavam à sua passagem; teve-se a impressão de que nem mesmo Zatopek teve tão grande triunfo, em sua vitória na corrida dos 10 mil metros. O público guardará por muito tempo no espirito a imagem do triunfador, detendo-se em meio à corrida para abraçar uma loura admiradora cujo entusiasmo a colocara na linha de frente[x].

José Brígido, do Diário de Notícias, conclamou os leitores a celebrar a conquista da medalha de ouro com “o maior entusiasmo possível, pois fez projetar o nome do nosso país no mais importante certame do mundo e de maneira verdadeiramente sensacional”[xi]. As expectativas de difusão internacional de uma boa imagem do Brasil estavam longe de serem modestas e, mais do que isso, incluíam todos os compatriotas como participes da conquista:

Não resta a menor dúvida que o feito de Adhemar valeu todos os sacrifícios que fizeram os brasileiros para participar deste grande certame, valerá ainda mais porque hoje em todas as páginas, de todos os jornais do mundo, seu nome ao lado do Brasil, estará estampado, todas as difusoras do mundo falarão de sua proeza e o cinema e a televisão reproduzirão as cenas principais de sua prova e tudo isso valerá como grande propaganda da nossa terra e da nossa gente[xii].

O técnico da delegação, Osvaldo Gonçalves, chegou a declarar que, dada a importância do feito para o Brasil, não havia menino que não quisesse se transformar “num Adhemar”[xiii]. Independentemente dos exageros típicos de uma cobertura ufanista, pode-se dizer que o Brasil largamente se irmanou ao redor da vitória de Adhemar:

os aplausos e vivas partem de todos os lados, não só dos desportistas como de todos os funcionários das empresas aéreas e do aeroporto, desde os mais modestos até aos chefes. Era a manifestação de agradecimento de milhões de brasileiros, através de cerca de setenta pessoas, ao maior campeão brasileiro de todos os tempos, autor de uma façanha senão impossível, dificílima de ser igualada por qualquer atleta do mundo[xiv].

Os jornais buscaram sintetizar o orgulho do país construindo laços simbólicos entre o indivíduo e a nação. Adhemar, o “campeão olímpico que assombrou o mundo”, declarou “Venci porque sou brasileiro” [xv]. O herói se punha a serviço da nação.

Última Hora, 11/8/1952, p.7

Quatro anos depois, tais traços da construção da identidade nacional ganharam novas cores e roupagens com a conquista da segunda medalha de ouro. Mas essa história ficará para o próximo post.


[i] Texto publicado originalmente em PERES, Fabio de Faria; MELO, Victor Andrade de. Adhemar Ferreira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero. In: Antonio Sotomayor; Cesar R Torres. (Org.). Olimpismo: The Olympic Movement in the Making of Latin America and the Caribbean. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2020, p. 95-110.

[ii] Diário de Notícias, 24 jul. 1952, 3ª Seção, p. 3.

[iii] Correio da Manhã, 25 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[iv] Para mais informações, ver: GIUCCI, Guillermo; LARRETA, Enrique Rodríguez. Gilberto Freyre, uma biografia cultural: a formação de um intelectual brasileiro (1930-1936). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

[v] Última Hora, 2 ago.1952, 2º Caderno, p. 4.

[vi] Última Hora, 2 ago.1952, 2º Caderno, p. 4.

[vii] Última Hora, 21 jul. 1952, 2º Caderno, p. 12. Sobre contra-ideologia racial, ver FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes (vol 2). São Paulo: Globo, 2008.

[viii] Última Hora, 2 ago.1952, 2º Caderno, p. 4.

[ix] Correio da Manhã, 24 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[x] Correio da Manhã, 24 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[xi] Diário de Notícias, 24 jul. 1952, 3ª Seção, p. 1.

[xii] Diário de Notícias, 31 jul. 1952, 3ª Seção, p. 3.

[xiii] Correio da Manhã, 25 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[xiv] Última Hora, 11 ago. 1952, p. 7.

[xv] Última Hora, 2 ago. 1952, 2º Caderno, p. 3; 11 ago. 1952, p. 7.


Adhemar Ferreira da Silva: representações de um herói olímpico (parte 1)

27/09/2020

por Fabio Peres e Victor Melo[i]

Adhemar Ferreira da Silva destacou-se no movimento olímpico internacional por se sagrar bicampeão na prova do salto triplo (Helsinque/1952 e Melbourne/1956). Suas conquistas tiveram grande repercussão no cenário brasileiro. Na década de 1950, o Brasil estava há 32 anos sem ganhar uma medalha de ouro olímpica (desde a edição de 1920, quando uma delegação do país participou pela primeira vez do evento[ii]).

Naquele momento, o Brasil tentava se afirmar no cenário esportivo internacional, mas lidava com a “tragédia” da Copa do Mundo de Futebol de 1950, quando a seleção nacional foi derrotada pelo selecionado uruguaio em pleno Maracanã. No olhar do jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, esse fracasso se converteu em um ethos que anos mais tarde seria ironicamente denominado de “complexo de vira-latas”, um certo “pudor em acreditar em si mesmo” mesclado com o “medo da desilusão”; em outras palavras, um sentimento de “inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”[iii].

Naquela década, politicamente, o país passava por um momento de transição democrática, depois de viver 15 anos sobre a presidência de um mesmo líder (1930-1945), que governou de forma ditatorial durante oito anos (1937-1945) – Getúlio Vargas, que voltou ao cargo pela via eleitoral em 1951. Do ponto de vista econômico, passos mais seguros eram dados no caminho da industrialização, modificando-se a estrutura societária nacional. As cidades cresceram bastante, diversificando-se o perfil de seus habitantes. O fortalecimento dos meios de comunicação contribuiu tanto para expor as crises identitárias pelas quais passava o Brasil quanto para mobilizar mais intensamente os brasileiros ao redor da ideia de nação[iv].

Nesse contexto, deve-se considerar que Adhemar Ferreira da Silva tinha um perfil típico de boa parte da população brasileira. Negro, nascido na maior cidade do Brasil (São Paulo), era membro de uma família de camada popular (filho de um operário com uma cozinheira) que conseguiu melhorar sua condição socioeconômica. Não fora o primeiro grande atleta a receber atenção do país, nem tampouco o primeiro esportista negro a tornar-se reconhecido (o antecedeu, por exemplo, o notável futebolista Leônidas da Silva). Mas foi certamente o que maior fama obteve até então, antecipando a espetacular repercussão que outro personagem teria a partir da década de 1960, o Pelé.

Mas quais foram as representações veiculadas na imprensa do Rio e de São Paulo sobre as conquistas olímpicas de Adhemar? Como elas se cruzavam com as questões nacionais, com os conflitos e desejos de uma nação que passava por rápidas e intensas mudanças e, ao mesmo tempo, mantinha contradições históricas? Como elas nos ajudam a ter um olhar um pouco mais complexo sobre o campo esportivo brasileiro?

Divido em três partes, abordaremos neste e nos próximos posts estas questões e as histórias que enredam as conquistas de 1952 e 1956 de Adhemar.

1952: “Venci Porque Sou Brasileiro”, o encanto de uma comunidade imaginada que “assombrou o mundo”

Pouco tempo antes de embarcar para Helsinque, a fim de disputar os Jogos Olímpicos de 1952, uma parte da imprensa brasileira, ainda que de forma cautelosa, depositava em Adhemar a esperança de conquista da medalha de ouro que o Brasil não ganhava desde 1920. Naquela altura, o atleta já havia igualado o recorde mundial do salto triplo (em 1950) e vencido os campeonatos pan-americano de 1951 e sul-americano de 1952.

O periódico Última Hora chegou a recorrer à opinião de especialistas para avaliar a “representação brasileira” que participaria dos Jogos Olímpicos. Osvaldo Gonçalves, catedrático da cadeira de atletismo na Escola Nacional de Educação Física e treinador da equipe que iria para Helsinque, considerado “um dos maiores técnicos nacionais”, asseverou:

É na realidade a seleção dos maiores valores do atletismo nacional. Todos possuindo performances e técnica a altura da grandeza dos Jogos Olímpicos. Contudo, passar pelas duas eliminatórias contra os expoentes do atletismo mundial, para classificar-se até o 6º lugar na final, não é tarefa fácil ou coisa que se espere que aconteça como proteção da sorte ou por simples “chance” oferecida por erros de fortes concorrentes. Nos jogos Olímpicos participarão os maiores campeões com os mesmos desejos de uma medalha até o 3° lugar. Uma classificação assim tão honrosa, exige do atleta esforço, treinamento, capacidade física e muito apuro de técnica[v].

Tratava-se, de acordo com o técnico, de uma perspectiva realista considerando as marcas e os desempenhos obtidos por cada membro da equipe no decorrer daquele ano[vi]. Alcançar a classificação para a final já era considerado um “grande feito”. De todo modo, Adhemar era cotado pelo treinador como um dos prováveis vencedores. Oswaldo Gonçalves considerava que o brasileiro se encontrava no mesmo patamar que outros atletas já consagrados mundialmente:

Poucas são as provas em que se poderão apontar os possíveis vencedores. Neste caso, já não são mais campeões e sim campeoníssimos. Dos atletas nacionais, Ademar Ferreira, no Triplo Salto, está nessa classificação, juntamente com Jim Fuchs, recordista mundial do Peso com 17m95; com Zatopeck nos 10.000 metros, com 29m02s […].[vii]

A despeito dessa análise, o técnico posteriormente foi mais comedido, sugerindo esperar uma “honrosa colocação”. A prudência era justificável. Não apenas os obstáculos para uma melhor preparação de atletas amadores eram significativos, como o Brasil já havia sofrido a “traumática” perda da Copa do Mundo de Futebol de 1950. O excesso de confiança e a falta de modéstia pareciam ser vistos com desconfiança por determinados atores do campo esportivo, incluindo, jornalistas e treinadores.

Em todo caso, o Última Hora fez questão de reverenciar os competidores brasileiros do atletismo, contrastando com o estilo ponderado do catedrático. O jornal estampou no dia do embarque a manchete em letras garrafais “ESTES ATLETAS DEFENDERÃO O BRASIL”[viii]. Os termos usados na matéria não eram casuais. As ideias de defesa e elogio da nação eram posturas valorizadas no contexto histórico pelo qual o país atravessava (e que ainda persistem como chaves interpretativas da história, em especial, política e econômica brasileiras[ix]).

Destaque para os atletas que representariam o Brasil no atletismo (Última Hora, 7 jul. 1952, p.8.)

Os periódicos, naquele momento, de fato, davam grande repercussão à luta entre os partidários do “nacionalismo” e os do que foram pejorativamente chamados de “entreguistas”. Eram correntes que defendiam modelos conflitantes de desenvolvimento do Brasil, de um lado, com uso de capital e usufruto exclusivamente nacionais com monopólio estatal, de outro, com a participação do capital privado, sobretudo internacional, e exploração das “riquezas” nacionais por grupos estrangeiros[x].

Neste sentido, a discussão sobre o papel que o Estado deveria ocupar na “modernização” do país delineava projetos distintos de nação. O então presidente Getúlio Vargas (1951-1954), vale sublinhar, ganhou as eleições com uma plataforma que propunha a independência e soberania econômica através da nacionalização progressiva da indústria vis-à-vis à superação do modelo agroexportador[xi].

Não surpreende, portanto, a natureza dos discursos dos periódicos acerca da vitória de Adhemar. Quase todos os jornais estamparam fotografias do atleta acompanhadas de textos com tom ufanista. A conquista da medalha de ouro se colocou acima de disputas políticas, com diferentes e mesmo divergentes grupos buscando se vincular ao feito. A busca pela legitimação internacional do país era por todos desejada, ainda que com interesses e apropriações distintas no que tange à construção de narrativas sobre a nação[xii]

De toda forma, as representações sobre a conquista da medalha de ouro de Adhemar Ferreira pareciam se alinhar mais aos discursos que inflavam o valor do nacional em detrimento de possíveis estrangeirismos. A propósito, as instituições esportivas brasileiras – a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), regida desde 1941 pelo Conselho Nacional de Desportos (CND)[xiii], assim como o Comitê Olímpico Brasileiro – eram diretamente ligadas ao Estado, que no momento defendia a “bandeira nacionalista”[xiv] – o que não impedia apropriações diversas.

Propaganda da Esso por ocasião da medalha nos Jogos Olímpicos – Standard Oil

Para a imprensa, Adhemar era um exemplo da abdicação e dedicação que caracterizam os mártires nacionais. Um cronista sugeriu que o atleta “prometera tudo fazer, não pela projeção individual do seu nome, mas, para projetar ainda mais, no cenário esportivo mundial, o nome do Brasil” [xv]. A sua índole e sua devoção à nação adquiriam maior dimensão, em especial, pela origem “pobre e modesta” de seus pais[xvi]. O esportista, a propósito, constantemente enfatizava as dificuldades de ser um esportista amador. De fato, a trajetória de Adhemar reflete em parte as tensões presentes no amadorismo brasileiro, sobretudo, para aqueles oriundos das camadas populares: desde o começo de sua carreira, o atleta teve que conciliar diversas ocupações profissionais com o treinamento e viagens para competições nacionais e internacionais. Uma das situações mais emblemáticas das contradições da condição de amador foi quando, mesmo já tendo ganho sua medalha de ouro em 1952, Adhemar teve seus vencimentos descontados durante 18 dias por ter comparecido aos Jogos Sul-americanos de 1953, sendo, depois, dispensado do cargo que ocupava na Prefeitura de São Paulo pelo então prefeito Jânio Quadros[xvii]. Na época houve protestos contra a medida. Parte inclusive de sua transferência de São Paulo para o Rio de Janeiro se deve justamente por questões laborais e financeiras[xviii].

Todavia, não poucas vezes, fazia questão de destacar sua principal motivação para superá-las – seu compromisso com o país:

Confiava em minhas possibilidades, apesar de reconhecer que encontraria grandes adversários. Mas, além disso, havia o desejo de não decepcionar os meus patrícios. E, pensando no Brasil, somente no Brasil, parti para a caixa de areia onde consegui o maior resultado de toda a minha carreira (grifos nossos)[xix].

O sentimento de pertencimento à nação demarcava, nos seus discursos, o auge de suas experiências: “Quando tocaram o Hino Nacional brasileiro senti que estava vivendo o maior momento de minha vida”[xx]. Sensação semelhante se repetira ao chegar no refeitório da Vila Olímpica, quando atletas de todos os países da América Latina levantaram-se e gritaram “Brasil! Brasil!”, ovacionando Adhemar[xxi].

Dias depois de sua vitória, o olhar estrangeiro, ao dar ênfase a um aspecto invisibilizado (ou visível em outros termos), iria contrastar com o olhar da imprensa brasileira: a “cor” de Adhemar. Mas essa história ficará para o próximo post.


[i] Texto publicado originalmente em PERES, Fabio de Faria; MELO, Victor Andrade de. Adhemar Ferreira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero. In: Antonio Sotomayor; Cesar R Torres. (Org.). Olimpismo: The Olympic Movement in the Making of Latin America and the Caribbean. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2020, p. 95-110.

[ii] Guilherme Paraense conquistou uma medalha de ouro na prova de tiro (pistola de velocidade ou tiro rápido).

[iii] Manchete Esportiva, 31 mai. 1958, p. 4. Meses antes, o autor já havia se referido a tal sentimento de inferioridade no jornal Última Hora (7 fev. 1958, p. 14). Para mais informações, ver: ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. “Com brasileiro, não há quem possa!”. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.

[iv] Para mais informações sobre o período histórico, ver: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida N. (org.). O Brasil Republicano – O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[v] Última Hora, 21 jun. 1952, Suplemento Esportivo, p. 2.

[vi] A delegação brasileira de atletismo era composta por Wanda dos Santos (80 metros com barreira e salto em distância), Ary Façanha de Sá (salto em distância e 4 x 100), José Teles da Conceição (salto em altura, salto triplo e 4 x 100), Helena Cardoso de Menezes (100 metros e salto em distância), Devse Jurdelína de Castro (200 metros e salto em altura), Wilson Gomes Carneiro (110 e 400 metros com barreira e 4 x 100), Argemiro Roque (400 e 800 metros), Hélcio Buck Silva (salto com vara), Geraldo de Oliveira (salto em distância, triplo e 4 x 100), além de Adhemar Ferreira da Silva.

[vii] Última Hora, 21 jun. 1952, Suplemento Esportivo, p. 2.

[viii] Última Hora, 7 jul. 1952, p. 8.

[ix] Como consequência desse contexto, o Brasil viu surgir uma série de intelectuais que buscariam interpretar e mesmo nomear o “lugar” ocupado pelo país no sistema capitalista, entre os quais, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado. Para mais informações, ver: SAMPAIO Jr., Plínio de Arruda. Entre a nação e a barbárie: uma leitura de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado à crítica do capitalismo dependente. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.

[x] Para mais informações sobre o período histórico, ver: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida N. (org.). O Brasil Republicano – O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[xi] Dias antes da viagem da delegação de atletismo para a Finlândia, o Última Hora publicou na capa – por ocasião do avanço na extração de petróleo em Candeias (no estado da Bahia) – com grandes letras que ocupavam mais que ¼ da página a fala do presidente: “Ninguém arrebata das minhas mãos a bandeira nacionalista”. O texto era antecedido por uma explicação de importante valor simbólico “Vargas mergulhou a mão no petróleo e a estendeu aos técnicos e trabalhadores”, sendo acompanhado por uma fotografia do próprio presidente com uma das mãos estendida para o alto, na qual se lia a seguinte legenda: “Presidente sob aplauso da multidão: ‘Nada pedimos ao estrangeiro. Dele, nada precisamos’”. Última Hora, 24/6/1952, p.1. Vale destacar que o debate entorno da exploração dos bens nacionais, inclusive, do petróleo já vinha desde a década de 1930, quando Vargas também era presidente. Em outubro de 1953, foi aprovada e sancionada por Vargas que dispôs sobre a Política Nacional do Petróleo e definiu as atribuições do Conselho Nacional do Petróleo, instituiu a Sociedade Anônima Petróleo Brasileiro S. A. (que usaria a sigla Petrobrás). Em síntese, a lei garantia o monopólio estatal na exploração, produção, refino e transporte do petróleo no Brasil.

[xii] A própria realização da Copa do Mundo de Futebol de 1950 era vista pelo governo e demais autoridades brasileiras – naquele momento em posição contrária ao monopólio estatal na exploração dos recursos considerados estratégicos para o país – como forma de projetar a imagem do Brasil no exterior. Maiores informações ver: CABO, Alvaro Vicente. Copa do Mundo de 1950: Brasil X Uruguai — uma análise comparada do discurso da imprensa. In MELO, Victor Andrade (org.). História comparada do esporte. Rio de Janeiro: Shape, 2007, p. 47-60.

[xiii] Brasil. Decreto-lei nº 3.199, April 14,1941, accessed May 23, 2017.,http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del3199.htm

[xiv] Em uma cerimônia realizada na Finlândia, o ministro brasileiro das relações exteriores, Jorge Latour, declarou: “Esta noite, nós brasileiros, sentimo-nos particularmente felizes pela vitória de Ademar Ferreira, que atleta modesto e simples, recebeu a consagração espontânea do público que assistiu sua brilhante vitória […]” (Correio da Manhã, 24 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1).

[xv] Correio da Manhã, 24 jul. 1952, 2º Caderno, p. 2.

[xvi] Na cidade de São Paulo, chegou-se a organizar uma iniciativa para oferecer uma casa para a família de Adhemar (Diário de Notícias, 24 jul. 1952, 3ª Seção, p. 1.) A doação, porém, ao fim não se concretizou, pois acreditava-se que poderia se configurar como pagamento, o que iria de encontro ao status de amador do atleta.

[xvii] Mundo Esportivo,São Paulo, May 12, 1953, 2; Imprensa Popular, Rio de Janeiro, January 1, 7.

[xviii] Revista do Rádio, Rio de Janeiro, April 14, 1956, 14.

[xix] Última Hora, 11 ago. 1952, p. 7.

[xx] Correio da Manhã, 25 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[xxi] Correio da Manhã, 25 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.


O dia em que o Maracanã reverenciou o “maior atleta do mundo”: histórias das (des)construções de uma identidade nacional

10/09/2017

por Fabio Peres[i]

A história é fascinante e cheia de nuances. No dia 19 de março de 1955, o leitor do jornal O Globo era informado sobre uma exibição prevista para ocorrer em abril no Maracanã. O evento se daria antes de uma partida de futebol, o match entre Rio-São Paulo. A ocasião não parecia ser trivial. Uma medalha de ouro, inclusive, estaria sendo cunhada especialmente para a ocasião.

O “grande campeão” a ser homenageado, porém, não era ligado (pelo menos diretamente) ao “mundo” do futebol; já na época o esporte mais popular do Brasil. Mas sim ao atletismo. O triplista Adhemar Ferreira da Silva, campeão olímpico em 1952 (Helsinque), havia conquistado mais uma façanha: bateu o recorde mundial no salto triplo nos Jogos Pan-americanos da Cidade do México com a marca de 16,56m – uma diferença de 33 centímetros a mais, que os periódicos buscavam quase sempre registrar, do seu rival russo Leonid Scherbakov. Diante do contexto da época não parece casual o reforço da suposta rivalidade entre Brasil e Rússia (algo que merece ser melhor investigado).

O Globo fez questão de publicar uma matéria especial, de página inteira, similar aos infográficos atuais, com vários dados sobre Adhemar (ver figura 1)[ii].

Figura 1: O Globo, 19/3/1955, segunda seção, p.1.

 

Na perspectiva do periódico carioca não se tratava de um feito que seria rapidamente esquecido, mas sim um marco histórico do atletismo. Uma das manchetes destacava que “OS TÉCNICOS E OS LIVROS EM 16 M 48 O MÁXIMO A SER ALCANÇADO POR QUALQUER ATLETA – FEITO SUPERIOR A [Roger] BANNISTER[iii] AO ULTRAPASSAR A ‘BARREIRA DO SOM’ NA MILHA”. Até mesmo uma charge brincava com a ideia da necessidade de nomear uma avenida com o nome do atleta (ver figura 2).

Figura 2: Charge de Constantino, O Globo, 19/3/1955, 2ª Seção, p.1. No texto superior à direita lê-se: Quando Bob Mathias ganhou o decatlo dos Jogos Olímpicos [o decatleta ganhou ouro nas Olímpiadas de 1948 (Londres) e de 1952 (Helsinque)] , a pequena cidade norte-americana de Tulare – onde nasceu Mathias – resolveu mudar o nome em MATHIASVILLE.
Abaixo da imagem lê-se: TURISTA – Ó mister guarda, pode me indicar a Avenida Ademar Ferreira da Silva?

 

 

A conquista, porém, não se dera sem um tom dramático. Dias antes, Adhemar havia sido desclassificado no salto em distância (Última Hora, 15/3/1955, p.12). Certa expectativa cercava, então, o desempenho do triplista. Talvez por isso, a notícia de sua vitória ganhou um colorido de catarse. Os jornais não apenas destacavam que aos “soluços” o atleta dissera que poderia ter saltado mais, como “ninguém parecia acreditar no que a fita métrica afirmava”.  A manchete do Última Hora refletia e, ao mesmo tempo, reforçava os sentimentos de orgulho, identidade e pertencimento compartilhados pela “comunidade imaginada” (Anderson, 2008) ao dar destaque a fala do “grande campeão do mundo”: “VENCI NÃO PARA MIM; MAS PARA O BRASIL” (Última Hora, 17/3/1955, p.12). A importância ao feito era tão grande que o jornal publicou a sequência de fotografias que resultou recorde (ver Figura 3).

Figura 3: Última Hora, 17/3/1955, p.12

 

Dias depois, o Última Hora fazia questão de publicar a opinião do técnico americano Don King que afirmava que o Brasil nas Olímpiadas de 1960 só ficaria atrás dos Estados Unidos e da Rússia; expressando assim que tal sentimento de nacionalidade também passava pelo reconhecimento do olhar do outro, não qualquer estrangeiro, mas o estrangeiro “qualificado” (Última Hora, 19/3/1955, 2º Caderno, p.1).

Isso não significava, por sua vez, que esse sentimento não era alvo de críticas. Uma coluna não assinada destacava em seu título: “BRASIL ENVERGONHA NO MÉXICO”. O texto destacava:

O noticiário aí está diário, doloroso, triste para todos os brasileiros. Nós, que temos a péssima moda de achar que nosso avanço esportivo em determinados setores é ultra espetacular, somos forçados a reconhecer que ainda não atingimos a expressão de outras nações, que somos discípulos, ainda, em esportes que nos julgávamos senhores de primazia (Mundo Esportivo, 25/3/1955, p.2).

O desempenho dos atletas brasileiros, de acordo com a análise, não correspondia às expectativas, à “propaganda” que se torna “ruinosa”, mostrando para nós e – vale destacar – principalmente para o mundo “a nossa inferioridade esportiva” que “mais se acentua entre os países que lá estão representados” (op. cit.). A coluna não deixava de sublinhar a decepção com os resultados dos demais atletas brasileiros, ainda que enfatizasse a importância de Adhemar e do boxeador Luiz Ignácio, responsáveis pelas únicas medalhas de ouro que o Brasil conquistou no México:

Tiremos o chapéu ao fabuloso Adhemar Ferreira da Silva. Saudemos Luiz Ignácio, do boxe, outro campeão, que forma, com o campeão do salto triplo, a dupla que se recomenda na delegação brasileira. Estes dois falam bem do Brasil. […] Verdade dura, duríssima, fruto único da ilusão criada de que nossos índices são compatíveis com o avanço internacional no terreno esportivo. […] Nossas equipes envergonham no México. (Mundo Esportivo, 25/3/1955, p.2).

 

As matérias, por conseguinte, acabavam por reforçar os méritos de Adhemar como também por valorizar as competições internacionais como forma de projeção nacional. Por outro lado, as colunas no jornal Mundo Esportivo contrastam com um sentimento ufanista presente em determinadas coberturas sobre a atuação dos atletas brasileiros. Isso se deu, inclusive, no bicampeonato olímpico de Ademar no ano seguinte em Melbourne (1956). Poucos dias após a notícia de sua vitória, uma pequena nota no jornal esportivo já chamava atenção para apropriação política em torno da exaltação exagerada da nação. Na seção Galeria Branca e Negra, em que eram apresentados os piores e melhores da semana, a “pior coisa” escolhida pelo periódico eram os “urubus e demagogos”; “abutres” que revestiam a conquista de Adhemar com “frases ocas, enfeitadas, demagógicas, estarrecedoras falando em bandeiras, patriotadas etc.” (Mundo Esportivo, 30/12/1956, p.13). De fato, não foram poucas as manifestações, inclusive de políticos, exaltando o feito.

Em todo caso e a despeito de alguns contrastes, prevaleceu um tom festivo e celebratório ao redor do herói e, por associação, da nação. A popularidade e o prestígio de Adhemar, não é demais assinalar, se tornaram bastante expressivos no intervalo entre as duas Olimpíadas. Além da repercussão das conquistas de 1952 e no Pan-americano de 1955, seu nome era frequentemente citado como o maior esportista do Brasil, inclusive por atletas de outras modalidades como o futebol[iv]. Matérias e colunas de jornais sobre “famosos”[v], vi] e “personalidades”[vii], mesmo fora do campo esportivo, se referiam a ele.

Figura 4: Vitória de Luiz Ignácio no boxe (Última Hora, 28/3/1955, p.1).

 

O retorno do triplista ao Brasil não poderia ser menos noticiado. A capa do Última Hora do dia 31/3/1955 saudava o campeão que chegara no dia anterior na cidade do Rio de Janeiro, dando mais um destaque à fala daquele que “abalou os meios esportivos do mundo inteiro, pondo em dúvida até o princípio da lei da gravidade”: “NÃO PODIA FALTAR À CONFIANÇA DO MEU POVO”.

Figura 5: capa do Última Hora do dia 31/3/1955.

 

O Globo, por sua vez, destacava que “O BRASIL AGRADECE AO SEU CAMPEÃO” estampando uma fotografia do então presidente Café Filho apertando a mão do triplista. A recepção foi marcada por uma solicitação do atleta ao presidente, que o tratava o triplista por “meu herói”, de que o governo “ajude o esporte cada vez mais”.

Figura 6: O Globo, 1/4/1955, p.10.

 

Não se sabe ao certo o que aconteceu com a exibição do salto de Adhemar, que seria organizado pelo O Globo. Vale lembrar que o atleta se tornou também repórter do Última Hora. De todo modo, Adhemar de terno deu (talvez a primeira) volta olímpica do Maracanã na final do torneio Rio-São Paulo:

Nem tudo foi tristeza para os cariocas, na noite de football no Maracanã. A presença de Ademar Ferreira da Silva, que fez a volta olímpica sob a ovação da assistência, foi uma nota marcante do espetáculo de ontem. Foram torcedores, cariocas e paulistas, irmanados na homenagem ao grande recordista mundial do salto triplo (O Globo, 1/4/1955, p.12).

Figura 7: O Globo, 1/4/1955, p.12.

 

As construções dos sentimentos de nacionalidades através do esporte é cheia matizes. Passaram também por outras modalidades, além do futebol, merecendo ser melhor investigadas, assim como o uso político do esporte e o uso esportivo da política. Mas esse debate ficará para um próximo post.

***

EM TEMPO: esse post é dedicado à memória de Oswaldo Sérvulo de Faria, que não nos deixava esquecer – mesmo diante das adversidades – de mantermos sempre a esperança, e que possuía grande orgulho de Adhemar ter vestido as cores de seu time, o Clube de Regatas Vasco da Gama.

____________________________

[i] Uma pequena parte dessa história foi escrita com Victor Melo e está inserida no capítulo “Adhemar Fereira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero” do livro organizado por Antonio Sotomayor e Cesar Torres, que será lançado em breve.

[ii] O Globo, 19/03/1955, segunda seção, p.1.

[iii] Por exemplo, no Mundo Esportivo a coluna Perguntas e Respostas – dedicada a entrevistar personalidades esportivas, em sua maioria do futebol – comumente perguntava “qual é a maior expressão esportiva do Brasil?”. Com frequência os atletas escolhiam o nome de Adhemar, às vezes seguido de termos como “indiscutivelmente” (ver edições de 23/3/1956, p.2; 27/4/1956, p.2; 11/5/1956, p.2; 25/5/1956, p.15; 15/6/1956, p.3).

[iv] O Cruzeiro, 12/05/1956, p.118.

[v] Última Hora, 12/10/1956, Caderno 2, p.3.

[vi] A Noite, 31/08/1956, 2º Caderno, p.2.


3, 2, 1… Colombia en los Juegos Olímpicos

01/08/2016

Por:
David Quitián

Esta semana empieza la trigésimo primera edición de los Juegos Olímpicos de la era moderna. Los “Juegos Olímpicos de verano” –como también se les conoce- se realizarán en la estación de invierno del hemisferio sur; detalle nominal que delata la eugenesia del evento inventado por el Barón Pierre Fredy de Coubertin (1863-1937).

Es la primera vez que las justas realizadas por el Comité Olímpico Internacional, COI, se escenifican en una nación lusófona y en suelo sudamericano. De esa forma Brasil comparte con México una doble coincidencia: ser los únicos países de América Latina que fueron sede y que –además- asumieron el doble reto de organizar también una Copa Mundo de fútbol en un lapso de dos años (México lo hizo a la inversa: Olímpicos en 1968 y Mundial en 1970).

Jorge Perry fue el primer colombiano en Olímpicos (el desmayo en su debut contribuyó a su leyenda).

              Jorge Perry Villate fue el primer colombiano en Juegos Olímpicos (el desmayo en su debut contribuyó a su leyenda).

Colombia inició su historia olímpica antes de constituir una entidad filial del COI: fue en Los Ángeles 1932 y desde entonces, con la excepción de Helsinki 1952, nunca dejó de participar en el programa atlético que tributa a la diosa griega Nike. Esa primera participación se dio con un boyacense de ascendencia inglesa y española que logró ser admitido para la prueba del maratón: Jorge Perry Villate apenas correría 10 kilómetros de la competencia, pero ganó medalla al mérito de la organización y pasó a la historia como el primer atleta olímpico del país.

Esa participación brindó el empujón que faltaba para que el Comité Olímpico Colombiano, COC, fuese creado el 03 de julio de 1936, días antes del siguiente programa olímpico en Berlín en el que competirían 5 atletas en representación del pabellón patrio. La fecha de creación de la entidad olímpica nacional fue motivo de celebración hace pocas semanas cuando se recordó la octogésima efeméride: en la fundación del COC –hace 80 años- estuvieron representantes del tenis, basquetbol, fútbol y atletismo; con la veeduría de periodistas de El Tiempo, El Espectador y El Mundo al Día.

Son en total 19 participaciones, para un total de 826 deportistas, de ellos 228 mujeres. La primera participación femenina fue en las justas de México a las que acudieron cinco atletas; pero fue desde los primeros juegos del milenio, en Sidney 2000, cuando la presencia de ellas alcanzó tal vigor al punto de superar la representación masculina en Londres 2012 (46 hombres y 58 mujeres) y estar igualada para el torneo en suelo carioca: al momento de publicar este post se han clasificado 73 mujeres y 75 hombres.

María Isabel Urrutia levantó en arranque 110 y en envión 135 kgs para ganar el oro en Sidney 2000

María Isabel Urrutia levantó en arranque 110 y en envión 135 kgs para ganar el oro en Sidney 2000

Sin embargo la eficacia femenina es superior: de las 19 medallas cosechadas en la historia de los juegos, nueve han sido conquistadas por ellas. Una razón más para el orgullo femenino es que los dos únicos oros fueron ganados por mujeres: María Isabel Urrutia en la prueba de levantamiento de pesas (75 kgs) en Sidney 2000 y Mariana Pajón en bicicrós hace cuatro años.

Las 19 medallas sumadas por las delegaciones colombianas a lo largo de los juegos (una en promedio por cada edición), se distribuyen así: 11 de bronce, 6 de plata y 2 de oro. Todas obtenidas en deportes individuales, en ocho disciplinas distintas, que incluyen pódiums de dos de los deportes nacionales: el ciclismo y el boxeo. La estadística es esta:

• Halterofilia: 4 (1 oro, 2 plata, 1 bronce)
• Ciclismo: 4 (1 oro, 1 plata, 2 bronce)
• Tiro deportivo: 2 (2 plata)
• Atletismo: 2 (1 plata, 1 bronce)
• Boxeo: 3 (3 bronces)
• Lucha: 2 (2 bronces)
• Judo: 1 (1 bronce)
• Taekwondo: 1 (1 bronce)

Esas cifras permiten plantear algunas generalidades que merecen mayor desarrollo en otro espacio académico:

• Las mujeres son más eficaces y su progreso es más notorio (9 medallas en 11 juegos)
• Los atletas afrocolombianos han ganado más del 50% de las medallas (10 de las 19)
• Antioquia (7 medallas, una de oro), Valle del Cauca (4 medallas, una de oro) ratifican internacionalmente su supremacía en el ámbito colombiano.
• Medellín es la ciudad de más campeones olímpicos (4), seguida por Barranquilla (2)
• La costa atlántica, como región, es la otra gran aportante de atletas y medallas olímpicas (5 preseas)
• El boxeo en Colombia es caribeño: casi la totalidad de los clasificados por ese deporte son costeños y los tres bronces cosechados hasta el momento son de pugilistas de esa región.
• Las medallas de halterofilia y boxeo han sido cosechadas por afrocolombianos; las de ciclismo por andinos (todos de Antioquia).
• Los logros en ciclismo demuestran que este es el deporte nacional por excelencia: 2 hombres y 2 mujeres (ambas han sido abanderadas) han colectado medallas en tres de las cuatro pruebas olímpicas del ciclismo: la ruta, la pista y el BMX.

Mariana Pajón es llamada la "reina de las pistas" del bicicrós. Medalla de oro del BMX en Londres 2012

Mariana Pajón es llamada la “reina de las pistas” del bicicrós. Medalla de oro del BMX en Londres 2012 y con posibilidades de repetir en Rio. 

Se viene el encendido de la pira olímpica, la cuenta regresiva ya es de un dígito. En breve comenzará a escribirse el libreto de unos juegos que –a juzgar por el cubrimiento de los medios nacionales- puede parecerse en emoción a lo vivido en el Mundial de Brasil 2014: habrá más periodistas colombianos que nunca (especialmente de pequeños medios regionales) y puede darse la llegada de un número de aficionados que se acerque a los 120 mil que vinieron hace dos años.

Por ahora la sensación es que son unos juegos “casi en casa” (de hecho, la Selección femenina de fútbol juega cerca de la frontera, en Manaos) y eso puede estimular una faena parecida a la histórica cifra de ocho medallas conseguidas en Londres 2012.

Llegan estos juegos en medio de un clima de efervescencia por el reciente título de Atletico Nacional en Copa Libetadores y de los podiums de los ciclistas (los “escarabajos”) en el Giro de Italia y el Tour de France.

Se da la largada para RIO 2016 y los que podemos estar en la “cidade maravilhosa” agradecemos la feliz oportunidad.

Twitter: @quitiman


Ecos dos Jogos Olímpicos de 1896 no Rio de Janeiro

20/04/2014

por Fabio Peres

Grécia. Os Jogos Olympicos. Athenas, 6. – Começaram aqui os tradicionaes jogos olympicos, que despertam, como de costume, o maior interesse[1].

Há 118 anos, assim se iniciava a cobertura dos Jogos Olímpicos de 1896 na imprensa carioca. A pequena e tímida nota publicada no Jornal do Brasil não ia muito além disso. Informava apenas que a família real (supostamente da Grécia, mas sem especificar qual) esteve presente e que o número de estrangeiros que afluíram à “festa” era considerável[2], [3].

Nos dias que se seguiram até o final dos Jogos não houve muita mudança nesse cenário: somente breves informes sobre a vitória de um ou outro atleta, além de uma síntese do número de vencedores por país[4]. Na verdade, parte dessas informações era divulgada pela Agência Havas, talvez uma das primeiras e principais agências de notícias internacionais, que prestava seus serviços a diversos jornais do mundo, incluindo o Jornal do Brasil, a Gazeta de Notícias, entre outros periódicos brasileiros.

Somente depois dos Jogos, cerca de 15 dias após o encerramento, é que o Jornal do Brasil e O Apostolo publicaram uma matéria (cujo conteúdo era praticamente o mesmo), divulgando algumas informações adicionais. Nela ficamos sabendo que o primeiro dia dos Jogos “fôra soberbo, embora o tempo se conservasse ameaçador”, sendo a cerimônia considerada “das mais imponentes”:

O rei foi recebido ao som hymno nacional, tocado por 600 executantes. Guarneciam o amphitheatro 60 000 espectadores que acclamaram calorosamente o soberando […] O príncipe herdeiro fez um discurso vibrante de enthusiasmo e patriotismo, sendo ruidosamente applaudido. Depois desta allocução, seiscentos músicos, sob a direcção do compositor grego Samaras executaram o Hymno Olympico. Depois começaram os jogos, que tiveram grande êxito […] (Jornal do Brasil, 02/05/1896, p.2; O Apostolo, 10/05/1896, p.2).

 

Gravura representando a abertura dos Jogos Olímpicos. Fonte: COUBERTIN, P.; PHILEMON, T.J. POLITIS, N.G.; & ANNINOS, C. The Olympic Games B.C. 776. - A.D. 1896 (Second Part). The Olympic Games in 1896. Athens: Charles Beck, Publisher / London: H. Greveland Co., 1897, p.54.

Gravura representando a abertura dos Jogos Olímpicos. Fonte: COUBERTIN, P.; PHILEMON, T.J. POLITIS, N.G.; & ANNINOS, C. The Olympic Games B.C. 776. – A.D. 1896 (Second Part). The Olympic Games in 1896. Athens: Charles Beck, Publisher / London: H. Greveland Co., 1897, p.54.

 

Curiosamente, os relatos mais extensos e detalhados foram publicados na Gazeta de Petrópolis, também após a realização dos Jogos (20/05/1896, p.1-2). Sob o título “Restabelecimento dos Jogos Olympicos na Grécia“, a matéria destacava, entre outras coisas, a grandiosidade do evento e sua suposta ligação com um passado longínquo; aspectos que vão ajudar a garantir sua importância:

Esses jogos, a mais importante festa nacional da antiga Grécia, cuja origem se perde na noite dos tempos prehistoricos, acabam de ser restabelecidos com grande brilhantismo e pompa, no antigo Stadion Panathenaico, em Athenas, graças á generosidade do cidadão grego Jorge Averoff, que forneceu os fundos necessarios para o gigantesco trabalho de reconstruir um sala de espetáculo, com lugares para 60,000 pessoas soas e tendo 260 metros de comprimento e 140 m. de largura, dos quaes cabem á arena ou pista 232 m. de comprido e 33 de largo. Durante a semana santa, diante Ida famosa Acropolis, coroada de ruinas magestosas, feericamente illuminadas, á noite, por luz electrica, nas margens do Illisus dessecado, diante dos brilhantes magasins da rua Hermes, em Athenas, os caminhos de ferro e os tramways a vapor despejaram numerosos bandos de athletas, vindos da França, Inglaterra, America, Allemanha, Suécia, etc, para se medirem com os filhos da histórica Attica.

 

Croquis do Panathenaic Stadion (composição). Fonte: COUBERTIN, P.; PHILEMON, T.J. POLITIS, N.G.; & ANNINOS, C. The Olympic Games B.C. 776. - A.D. 1896 (Second Part). The Olympic Games in 1896. Athens: Charles Beck, Publisher / London: H. Greveland Co., 1897, p.33-34.

Croquis do Panathenaic Stadion (composição). Fonte: COUBERTIN, P.; PHILEMON, T.J. POLITIS, N.G.; & ANNINOS, C. The Olympic Games B.C. 776. – A.D. 1896 (Second Part). The Olympic Games in 1896. Athens: Charles Beck, Publisher / London: H. Greveland Co., 1897, p.33-34.

 

Multidão em frente e dentro do estádio Pan-ateniense. Fonte Olympic.org (httpwww.olympic.orgmultimedia-playerall-photos20021201xaapx001)

Multidão em frente e dentro do estádio Pan-ateniense. Fonte Olympic.org (httpwww.olympic.orgmultimedia-playerall-photos20021201xaapx001)

 

Outras informações ajudavam a compor um repertório de imagens e símbolos em torno dos Jogos: a coroação dos vencedores com um ramo de oliveira; a vitória do jovem “herói” camponês grego (Spiridon Louis) – que percorreu a distância de 42 km, sendo ovacionado por 50.000 pessoas no Stadion; as diversas instalações esportivas destinadas às competições de várias modalidades. “Foi, em summa. uma festa memoravel, e que despertou o maior interesse em toda a Europa e America do Norte”, conclui a Gazeta da cidade da região serrana fluminense, na época capital do estado no lugar de Niterói, devido principalmente à Revolta da Armada.

 

Gravura representando a chegada de Spiridon Louis no Panathenaic Stadion no dia da prova de maratona. Fonte  COUBERTIN, P.; PHILEMON, T.J. POLITIS, N.G.; & ANNINOS, C. The Olympic Games B.C. 776. - A.D. 1896 (Second Part). The Olympic Games in 1896. Athens Charles Beck, Publisher  London H. Greveland Co., 1897, p. 77.

Gravura representando a chegada de Spiridon Louis no Panathenaic Stadion no dia da prova de maratona. Fonte  COUBERTIN, P.; PHILEMON, T.J. POLITIS, N.G.; & ANNINOS, C. The Olympic Games B.C. 776. – A.D. 1896 (Second Part). The Olympic Games in 1896. Athens Charles Beck, Publisher London H. Greveland Co., 1897, p. 77.

 

Contudo, essas notícias podem despertar um interesse histórico que ultrapassa a mera curiosidade sobre dados do evento em si.

Uma leitura apressada pode nos levar a acreditar que a pouca atenção dada aos Jogos na cidade revelaria a (tênue) tessitura do campo esportivo carioca em finais do século XIX. Essa visão parcial e unilateral nos conduziria àquele “mal-estar”, que salienta Roberto Schwarz (2001), da experiência do caráter “postiço, inautêntico, imitado” da vida cultural brasileira e latino-americana. Em outras palavras, a “ausência” estaria deste lado do Atlântico. Seríamos, sob esse ponto de vista, um pastiche imperfeito, incompleto e vexatório. No entanto, tal conclusão é ilusória, uma vez que a questão – e, por conseguinte, a sua interpretação – estão mal colocadas.

As notícias publicadas na imprensa da capital podem ser lidas a partir de outras perspectivas. Lançam luz sobre, não apenas como o campo esportivo no Rio de Janeiro estava se configurando naquele final de século, mas também oferecem pistas de como os Jogos ainda estavam ganhando forma. Aliás, sob alguns aspectos, de maneira bastante incipiente.

A análise do discurso a respeito dos Jogos, cuja legitimidade (ao menos em parte) se baseia em uma leitura idealizada e de continuidade entre passado e presente, é uma possibilidade de investigação[5]. A mobilização de determinados conceitos e valores parece dar o tom de quase todas as notícias[6].

Por exemplo, diversas notícias publicadas no Rio de Janeiro, sejam elas oriundas de agências internacionais ou não, permitem entrever que aqueles Jogos Olímpicos não gozavam, pelo menos naquela ocasião, do mesmo prestígio e legitimidade que viriam a ter no decorrer do século XX. Um sinal disso é que ainda não havia monopólio sobre o próprio sentido do termo “jogos olympicos”. Os Jogos Olympicos eram um entre outros jogos olympicos. Isso significa, entre outras coisas, que seus idealizadores tiveram que “lutar” pelo “monopólio da imposição da definição legítima”[7] do termo e dos sentidos associados a ele.

Apenas para se ter uma ideia, em 1856 o Circo Olympico, instalado na Rua da Guarda-Velha (atual Avenida Treze de Maio), exibia espetáculos denominados “jogos olympicos”. Já no carnaval de 1862, o Theatro Lyrico Fluminense – localizado no Campo da Aclamação, entre as Ruas dos Ciganos (atual, Constituição) e do Hospício (hoje, Buenos Aires) – oferecia o Primeiro Grande Baile Mascarado, no qual depois de algumas quadrilhas e polcas, estava programada a quadrilha “jogos olympicos”.

 

Composição com as programações do Circo Olympico (Correio Mercantil, 28/09/1856, p.4) e do Theatro Lyrico Fluminense (Correio Mercantil, 02/03/1862, p.4).

Composição com as programações do Circo Olympico (Correio Mercantil, 28/09/1856, p.4) e do Theatro Lyrico Fluminense (Correio Mercantil, 02/03/1862, p.4).

 

Inclusive, vale aqui fazer uma pequena digressão. A desconfiança sobre o caráter “tradicional” dos Jogos de 1896 foi colocada em xeque logo nos dias seguintes à sua abertura. Um cronista da Gazeta de Notícias, de modo irreverente, fez suas ressalvas (provavelmente após ler a mesma nota publicada no Jornal do Brasil que utilizamos para abrir este post):

“Athenas, 6. – Começaram aqui os tradicionaes jogos olympicos […]” A gente lê isto, deixa cahir o jornal, fecha os olhos e tem vontade de chorar. […] E a alma começa a imaginar, pelo que sonhou e pelo que estudou, o que seriam esses jogos da idade de ouro, – quando os gregos não vestiam sobrecasaca nem comiam a patê de foi gras, – raça livre e bella […]  Ai! Palavra de honra! A gente tem vontade de chorar quando lê, no serviço da Havas, que no dia 6 de abril de 1896 […] começaram, em Athenas, os jogos olympicos com assistência da família real da Grécia… Mas a vontade de chorar cessa logo, para ceder o logar a uma grande e irresistível vontade de rir…. E, imagina-se, então, o que por lá vai… […] Começaram aqui os tradicionaes jogos olympicos… E a gente se desfoga n’uma grande gargalhada…. (08/04/1896, p.1).

Enfim, a hipótese, mesmo que de forma imprecisa, é que essas questões nos ajudam a deslocar e a perspectivar o nosso olhar. As perguntas, nesse sentido, devem se voltar para ambos: para o lado de cá e o lado de lá da linha.

 __________________________________________

[1] Jornal do Brasil (edição de 06 e 07/04/1896, p.1).

[2] Vale destacar que curiosamente no dia 25/03/1896 foi publicada uma nota no Jornal do Brasil, informando que os jogos olímpicos haviam começado no dia anterior. Considerando que a notícia se referia aos mesmos jogos, ela não seria plausível, uma vez que os Jogos Olímpicos foram realizados entre os dias 06 e 15 de abril do calendário gregoriano, adotado no Brasil (isto é, entre 25/03 e 03/04 do calendário juliano, que na época vigorava na Grécia).

[3] Antes de 1896, foi noticiado no jornal O Paiz (05/08/1894) a realização do congresso internacional, em Paris, para preparar as bases da regulamentação que serviria para a organização dos Jogos Olímpicos.

[4] Ver por exemplo as edições do Jornal do Brasil de 16 e 17/04/1896.

[5] Para uma reflexão sobre essa discussão, ver MELO, Victor Andrade de. Esporte e lazer: conceitos. Rio de Janeiro: Apicuri: Faperj, 2010 e MELO, V.A, SANTOS, J.M.M.C., FORTES, R., DRUMOND, M. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

[6] As publicações editadas pelos próprios organizadores do evento se inserem nesse esforço. Ver, por exemplo, as fontes das gravuras utilizadas nesse post.

[7] BOURDIEU, Pierre. Como é possível ser esportivo? In:________. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p.136-163.


Uma trama policial sobre os Jogos de 1992

27/01/2014

Rafael Fortes

Conheci os romances policiais de Manuel Vázquez Montalbán através de uma coleção com capa preta que a Companhia das Letras publicava anos atrás, e que incluía Luiz Alfredo Garcia-Roza, Tony Bellotto e Joaquim Nogueira – só para citar os brasileiros cujos livros li e recomendo pra quem gosta desse tipo de literatura.

FutbolPara quem não o conhece, Montalbán foi um jornalista, ficcionista e ativista catalão, admirado por muitos leitores mundo afora. Por exemplo, Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, é dedicado a ele (e a Pilar, claro). Torcedor do Barcelona, teve algumas de suas crônicas e textos jornalísticos sobre o clube reunidas em Fútbol: una religión en busca de un Dios (deste, confesso, não gostei, embora adore crônicas de futebol). Uma seleção de seus escritos jornalísticos foi publicada em três volumes entre 2010-2012.

*  *  *

Meses atrás, entrei numa livraria de Barcelona. Perguntei ao vendedor o que tinha de Montalbán. Enquanto caminhávamos até a estante, ele tentou me convencer a ler em catalão:

– Muito mais parecido com o português que o castelhano! Olha só!

Disse, enquanto abria um livro no idioma para comprovar o que dizia. Respondi:

– É uma língua interessante, mas vou ficar com o castelhano mesmo, que eu já consigo entender.

Enquanto o vendedor chutava – e acertava – os títulos que eu lera, mostrou-me onde estavam. Escolhi Sabotaje Olímpico, curioso por tomar conhecimento de uma história do detetive Pepe Carvalho relativa à Olimpíada de 92.

*  *  *

Lançado em 1993, o livro tem enredo e narrativa bem estranhos. A maior parte da trama se desenvolve durante os jogos de 1992. Uma série de acontecimentos  sugerem um movimento de sabotagem do megaevento esportivo, o que leva as autoridades – há uma profusão delas, estabelecendo entre si relações às vezes bizarras e inusitadas – à convocação de Carvalho para auxiliar as investigações. Entre as ocorrências, um sequestro do então presidente do Comitê Olímpico Internacional, o catalão Juan Antonio Samaranch.Sabotaje

O leitor se depara com trecho como este: “Durante dezessete dias a cidade estaria ocupada por uma ampla minoria de desportistas praticantes e por uma imensa maioria de esportistas por palavra, pensamento e omissão.”

Rapidamente aparecem muitos suspeitos para a sabotagem: empresas que não conseguiram comprar os direitos exclusivos para patrocinar os jogos; um político italiano desacreditado; setores das cidades de Madri e Sevilha, com grandes rivalidades em relação a Barcelona (Sevilha sediou um megaevento no mesmo ano: a Expo 92); setores da sociedade espanhola antipáticos às intenções independentistas catalãs, canais de televisão dos Estados Unidos, a Ku Klux Klan e a princesa Caroline de Mônaco, entre outros.

Mesmo as ironias mordazes e os absurdos se relacionam a elementos econômicos, políticos e culturais do contexto em que a obra foi escrita – que coincide com aquele em que se passa a trama. Sitiando Barcelona estão “submarinos errantes” cujos tripulantes se negam a aceitar o fim da União Soviética; a gastronomia catalã aparece em vários momentos como elemento identitário da região.

A obra pode ser lida como um contraponto ao senso comum que até hoje apresenta a Olimpíada de Barcelona como uma espécie de exemplo para o mundo de como uma competição esportiva de grande envergadura pode mudar positivamente uma cidade. Não é difícil encontrar este ponto de vista edulcorado sobre aqueles jogos na imprensa esportiva brasileira.

Assim como outras fontes de arte mencionadas neste blogue (por exemplo, do cinema, da pintura e da literatura), pode ser analisada historicamente, o que significaria ter em conta tanto o conteúdo quanto a forma. No caso desta, destaco a reflexividade, que se manifesta, por exemplo, nas menções a outras obras – como Os Mares do Sul – e na descrição de Carvalho em dado momento como um importante personagem literário do pós-franquismo.

O desfecho do sequestro? Não vou contar, claro.

Referência bibliográfica

MONTALBÁN, Manuel Vázquez. Sabotaje olímpico. Barcelona: Planeta, 2011.


Copa e Olimpíada: tocamos as obras, violamos direitos, vamos em frente

29/08/2011

Por Rafael Fortes

No finzinho de 2010, escrevi uma análise (com traços de prognóstico) sobre a organização dos megaeventos esportivos no Brasil, no que diz respeito aos interesses da maioria da população e aos cofres públicos. De lá para cá, para tragédia do país onde nasci e, em particular, da cidade onde vivo (Rio de Janeiro), os acontecimentos indicam que eu estava certo.

Estou longe de ser o único com esta avaliação, inclusive entre os que estudam esporte. Em entrevista publicada no jornal Brasil de Fato, Gilmar Mascarenhas de Jesus, professor de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), apresenta dados e interpretações bastante críticos a respeito da forma como os megaeventos esportivos vêm sendo preparados no Brasil. Além disso, descortina os interesses e projetos de cidade aos quais os megaeventos estão associados e subordinados.

Movimentos sociais, ONGs, moradores atingidos pelas obras e (poucos) mandatos legislativos e políticos vêm, com imensas dificuldades, lutando para garantir direitos, conter o rodo e divulgar os acontecimentos. Um exemplo é vídeo abaixo, feito com o objetivo político de mobilização a favor da instalação da CPI das Remoções na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Trata-se de compilação de vídeos relativos às remoções que vem acontecendo na cidade (veja também a segunda parte). Na fala do morador (a partir de 4’49”), repare que a casa atrás dele está pintada com números e as iniciais SMH, que provavelmente correspondem a Secretaria Municipal de Habitação. A fala de Raquel Rolnik, professora da USP e relatora da ONU para o direito à moradia, é tão clara quanto estarrecedora.

A legitimação política, ideológica, econômica e prática para a realização da maioria destas obras é preparar a cidade para a realização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. A quantidade e qualidade das ilegalidades, arbitrariedades e crimes cometidos pelo poder público (executivos municipais, estaduais e federal, mas não só) impressiona.

Vale a pena conferir também um relato em inglês dos acontecimentos e da produção de quatro curtas, bem como os próprios vídeos (os quais formam a base dos dois vídeos-coletânea citados acima). Num deles, um morador que teve sua casa destruída afirma se sentir “um otário”, pois comemorou a escolha do Brasil para sede da Copa de 2014, mas agora percebe as consequências nefastas da decisão.

Percebe-se claramente a lógica de rolo compressor – ou rodo, como defini em outro espaço – que orienta as ações. O depoimento de um morador da Vila Recreio 2, num dos vídeos citados, deixa clara a falta de informação e de acesso aos projetos das obras. Ao final deste vídeo, a mesma Rolnik explica que prejudicar os pobres faz parte desta mesma lógica.

Esta lógica não é coisa nossa. Recentemente, funcionou também na África do Sul (Copa do Mundo de 2010) e Grécia (Olimpíada de 2004). Há numerosas análises sobre as consequências da última Copa. Uma delas foi feita recentemente por um professor sul-africano em evento promovido pelo IPPUR, da UFRJ, e relatada no boletim Olhar Virtual:

Ao final de sua apresentação, o convidado concluiu que a melhor maneira de organizar um mega evento como a Copa do Mundo é incluindo a população, para evitar revoltas sociais e ajudar no desenvolvimento do país (…)

Ou seja, justamente o contrário do que ocorre no Brasil.

Vivemos em uma democracia formal desde 1979, 1985, 1988 ou 1989 – dependendo do marco escolhido. Contudo, a população e a sociedade organizada ficam fora da discussão e da tomada de decisões, contrariando leis e qualquer parâmetro de bom senso, ética, decência e razoabilidade. Decisões e realizações (sobre obras, projetos, liberação e uso de recursos públicos etc.) são feitas de forma secreta, sem participação da população. Temos, no governo e no poder, partidos integrados por centenas, talvez milhares de perseguidos pelo regime de exceção instaurado em 1964. Tragicamente, a organização dos megaeventos, ao menos em certos traços, lembra a época do “Ninguém mais segura este país”.

*  *  *

Por indicação do colega de blogue Coriolano, li esta inacreditável entrevista de Ricardo Teixeira, presidente da CBF, à revista Piauí. Outro escriba deste espaço, Victor Melo, leu recentemente Jogo Sujo, do jornalista britânico Andrew Jennings, e disse que, a julgar pelo relato, a situação é duzentas vezes mais cabeluda do que imaginamos. A obra é apresentada pela editora brasileira como “o livro que a Fifa tentou proibir”.

Capa do livro que Ricardo Teixeira conseguiu proibir.

No caso brasileiro, talvez, em breve, consiga. Afinal, há um precedente: CBF – Nike, escrito pelos então deputados federais Aldo Rebelo (PCdoB/SP) e Silvio Torres (PSDB/SP) e editado em 2001 pela Casa Amarela, foi recolhido e permanece, até hoje, proibido. (É possível encontrá-lo em sebos, inclusive virtuais. Mas a proibição jogou o preço lá em cima.) Eles foram, respectivamente, presidente e relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) CBF/NIKE, que investigou a relação da confederação com a fornecedora de material esportivo – e acabou em pizza, “sem votação do Relatório” final.

Segundo o excelente texto de Daniela Pinheiro, Teixeira declarou: “Meu amor, já falaram tudo de mim: que eu trouxe contrabando em avião da Seleção, a CPI da Nike e a do Futebol, que tem sacanagem na Copa de 2014. É tudo coisa da mesma patota, UOL, Folha, Lance, ESPN, que fica repetindo as mesmas merdas.” A lista é precisa: concentra os veículos que, dentro da mídia corporativa, fazem uma cobertura crítica – ora mais, ora menos; uns mais, outros menos – em relação ao esporte, à maneira como estão sendo organizados os megaeventos esportivos e à condução das entidades que mandam no esporte brasileiro, como a CBF.

De acordo com o relato, Teixeira compara a CBF a entidades privadas como o banco Bradesco, afirmando que as pessoas não têm nada a ver com a contabilidade da entidade. Em outro trecho, lembra que, ao gravar entrevistas ocm dirigentes da entidade sobre a preparação para a Copa do Mundo, os jornalistas da TV Globo nada perguntaram sobre as numerosas denúncias de corrupção.

Lá no início, falei que as obras eram uma tragédia não apenas para a maioria da população, mas também para os cofres públicos. Exemplo disso é a matéria “Gasto olímpico grego ilustra a perda de controle das finanças“, de Vitor Paolozzi, publicada no jornal Valor Econômico. Além de entrevistar um professor da London School of Economics cujo sobrenome, curiosa e apropriadamente, é Economides, aponta vários erros e absurdos cometidos. Um dos problemas principais, no caso grego, foi o suborno de autoridades por parte de empresas interessadas em ganhar licitações e fornecer produtos e serviços para os jogos e para as obras a eles relacionadas.

Difícil imaginar que esteja acontecendo e vá acontecer algo semelhante no Brasil, não?


Jogos Olímpicos de 2016 – O que o Massacre de Tlatelolco tem a nos ensinar?

03/07/2011

por Felipe Deveza

Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando em História pela mesma universidade.

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Em 1968 no México, há dez dias do início das Olimpíadas que ocorreriam na capital mexicana, tanques, metralhadoras e atiradores de elite cercaram a Praça das Três Culturas, em Tlatelolco, e abriram fogo contra a multidão. Mais de 300 pessoas foram covardemente assassinadas, alguns falam em mais de mil mortos, centenas foram espancados e foi imposto o terror contra os que ousavam protestar em meio aos Jogos Olímpicos.

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Grandes manifestações evocam os estudantes assassinados

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A Matança de Tlatelolco, como o episódio ficou conhecido no México, pode nos dar uma importante lição sobre o que os governos são capazes de fazer para manter a aparência de controle social nos períodos que antecedem os Jogos Olímpicos ou outro evento internacional qualquer. A invasão das favelas cariocas com a justificativa de “pacificação” demonstrou o primeiro esforço nesse sentido. Como tropas de um exército inimigo, impuseram o terror, romperam com qualquer resquício de legalidade, invadiram casas, roubaram, extorquiram, destruíram. É claro, como sempre, “todos os mortos eram traficantes”. Tudo com o apoio incondicional da imprensa e da manipulação do sentimento de insegurança.

Esses ingredientes não faltaram em 1968: desrespeito aos direitos do povo por parte do Estado, massacre premeditado, terror de Estado e apoio incondicional da imprensa reacionária.

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O ano de 1968 foi um período emblemático para a geração que tinha por volta de 20 anos. Foi o ano das famosas rebeliões estudantis e operárias em diversos países pelo mundo afora. Foi um ano de radicalização do movimento negro nos Estados Unidos, de enormes protestos contra a Guerra do Vietnã e muito conhecido pela rebelião estudantil na França.

No México, os estudantes do Instituto Politécnico e da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) se rebelariam contra diversas medidas repressivas do governo mexicano, reclamariam liberdade política e procurariam utilizar a visibilidade que o México ganharia no mundo com os jogos olímpicos para protestar.

Foi formado um Comitê Nacional de Greve e várias universidades e escolas no país aderem à greve. A UNAM se transforma em centro da rebelião juvenil. Um estudante declararia no megafone: “UNAM, território libre de la America Latina!”. Muitos estudantes dormiam nas salas de aulas para não perder sequer uma assembleia. A universidade fervilhava. O auditório da UNAM seria rebatizado com o nome de Ernesto Che Guevara e diversos estudantes participariam de brigadas de panfletagem nas ruas, entre os operários e moradores de bairros populares.

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O governo reprimia os atos e mantinha presos os estudantes. Quanto mais o governo reprimia, mais volumosas se tornavam as manifestações.

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A MATANÇA DE TLATELOLCO

02 de outubro, 18 horas. Dia e hora marcados para um protesto na Praça das Três Culturas, em Tlatelolco. Para reprimir o ato, o exército infiltrou atiradores de elite nos prédios que cercam a praça. Trezentos tanques foram mobilizados e helicópteros sobrevovaram a área.

Devido ao clima de repressão, um estudante anuncia o cancelamento do protesto. Já era tarde, às 18:10, fachos de luz sinalizadora verde são lançados de um helicóptero autorizando o massacre. Policiais infiltrados atiram em direção aos soldados, a fim de justificar o ataque, e em pouco tempo os estudantes estão cercados. Começa a saraivada de tiros. No início, imaginavam ser balas de festim, mas logo começam a cair os corpos, os tanques avançam sobre a multidão, uns correm sobre os outros, as tropas avançam e os que não são atingidos pelos atiradores, são espancados barbaramente.

O massacre não termina. Seguiria pela noite adentro, com mais espancamentos e invasões de apartamentos nos prédios que circundam a praça.

Muitos foram levados para a penitenciária de Lecumberri, outros tiveram de atravessar um corredor polonês de pontapés e socos, suas roupas são rasgadas, suas calças arriadas e outros simplesmente desaparecem.

No dia seguinte ninguém falava do massacre. Nada. Nem uma palavra nos jornais, nem uma denúncia.

Passados alguns dias, os jornais começariam a noticiar o ocorrido em Tlatelolco, mas à semelhança de muitos episódios de repressão brutal, as vítimas apareceriam como causadoras de suas mortes. O jornal Novedades colocaria a seguinte manchete no dia 4 de outubro: “O exército mantém a tranquilidade e informa oficialmente 29 mortos. O senado condena a agitação e diz que existem nacionais e estrangeiros com propósitos antiamericanos e muito perigosos!”

Calados os estudantes, as Olimpíadas de 68 ficariam conhecidas pelo mundo como a Olimpíada Black Power, pelo protesto de atletas norte-americanos negros contra o racismo. Dois atletas negros eternizaram a imagem dos punhos cerrados, com luvas características do grupo revolucionário Panteras Negras, no pódio olímpico.

Poucos foram responsabilizados mais de 40 anos depois. Não se sabe ao certo o número de mortos e muita coisa ainda falta descobrir sobre os acontecimentos de 2 de outubro de 1968.

Foi construído um memorial e um monumento em homenagem às vítimas, mas o maior legado deixado pelos que lutaram em 1968 foi a manifestação que acontece todos os anos no dia 2 de outubro, data de rebeldia, de luto e de protesto popular no México.

2 DE OUTUBRO NÃO SE ESQUECE

Ao som de palavras de ordem “2 de octubre no se olvida!” (não se esquece, em português), milhares de mexicanos marcham por cerca de 3 quilômetros, indo de Tlatelolco até o Zócalo capitalino, em frente ao Palácio Nacional, sede do governo mexicano. A manifestação de 2 de outubro já chegou a reunir mais de 3 milhões de pessoas.

Nesse dia, os estudantes ficam mais ousados, escrevem mensagens rebeldes pelas ruas, os professores parecem mais orgulhosos da profissão, os eletricistas ostentam suas faixas e protestam contra as recentes privatizações. Os bravos camponeses trazem Zapata e Pancho Villa em suas faixas, relembram as conquistas e lutas, animando-se para as que virão.

No Brasil o Massacre de Tlatelolco é quase desconhecido, mas nos mostra o que as classes dominantes são capazes de fazer para passar ao mundo uma imagem de tranquilidade e controle social que garanta os gordos lucros que, Olimpíadas, Copas do Mundo de futebol e outros eventos podem trazer.

Tlatelolco nos alerta que os massacres, as repressões e o desrespeito aos direitos do povo, que ocorreram recentemente sob o nome de “pacificação” no Rio de Janeiro, são somente o início do que virá.


Um feliz 2011 (e além) para o esporte no Brasil?

27/12/2010

Por Rafael Fortes

Aproveitando o fim de ano, período propício a balanços, resolvi sair do tema sobre o qual costumo escrever por aqui e costurar algumas leituras e vídeos que vi recentemente. Aviso: o texto é maior que o usual.

Um exemplo: o Maracanã

O Maracanã fechou em 2010 e só reabrirá em 2013. A população fluminense e os quatro times grandes da cidade passarão duas temporadas inteiras e alguns meses privados do estádio com maior capacidade e melhor acesso. Este fato, por si só, permite problematizar a ideia de que a população local é beneficiada pelos megaeventos e seu “legado”.

Quem passa por ali vê placas informando que o consórcio responsável pelas obras é formado por Andrade Gutierrez, Delta e Odebrecht. Grandes empreiteiras, portanto. Há anos envolvidas em fraudes, corrupção e falcatruas afins. Grandes financiadoras de campanhas eleitorais. Outra placa apresenta a previsão para a duração da obra: 900 dias. Pode-se ver ainda o custo: R$ 705 milhões (alguém duvida que a conta final ficará muito além do valor contratado?).

Enquanto isso, as pessoas que caminham, pedalam e correm em volta do estádio têm que meter o pé na grama e na lamapara fazer seus exercícios, pois uma das ruas do entorno do estádio foi fechada. A opção é correr contra os carros na beirada da pista da movimentada Avenida Radial Oeste. Obviamente, ninguém pensou em dar uma ajeitadinha na redondeza (construindo uma ciclovia, por exemplo), de maneira a não prejudicar quem faz uso cotidiano da área. Afinal, a Copa do Mundo não é para os cariocas, fluminenses ou brasileiros. Ela é para os turistas e os (poucos) que vão lucrar antes, durante e depois. A população e o cotidiano que se danem.

Reportagem da Folha de S. Paulo publicada meses atrás informa que, ao final da obra, o estádio encolherá: serão cerca de 7.000 (não lembro o número exato) lugares a menos. E crescerá o número de camarotes. Ou seja, dinheiro público é usado para reduzir os lugares abertos ao povo (embora este já esteja um tanto afastado, pois o ingresso vêm custando cada vez mais) e aumentar os reservados aos ricos e às empresas. Tem sido assim, pelo menos, desde a reforma que acabou com a geral, realizada pelo governo Rosinha Garotinho (PMDB).

Trata-se, portanto, de política pública de longo prazo, sistemática, cujo objetivo é restringir o acesso popular ao equipamento esportivo mais importante da cidade. Neste caso, além de afastar o público, a obra contribuirá para piorar o espetáculo oferecido. Sim, porque as dimensões do campo serão reduzidas. Um dos poucos estádios do país a contar com as dimensões máximas de campo (110×75 m) terá sua dimensão reduzida. Em nome do espetáculo para os abastados e a televisão, menos espaço para as jogadas, maior tendência ao jogo amarrado.

Vamos, então, ampliar a escala e falar um pouco da entidade organizadora do futebol mundial e da maneira como seus dirigentes tomam decisões – por exemplo, a de escolher a sede de uma Copa do Mundo.

“Os segredos sujos da Fifa”

Abaixo estão os vídeos das duas partes (alguém fez o favor de quebrar o programa em dois blocos de 15 minutos e colocá-lo no Youtube) de uma edição recente do programa Panorama, do bom canal público inglês BBC. O título é “Fifa’s Dirty Secrets”, algo como “Os segredos sujos da Fifa”. Foi ao ar antes do anúncio da sede da Copa de 2018 e gira em torno da candidatura inglesa (derrotada) e do recebimento de propinas por parte de dirigentes da entidade. À parte um estilo espalhafatoso à la Michael Moore – o repórter fica gritando perguntas a distância para quem não se dispõe a dar entrevista -, há informações de arrepiar os cabelos.

Na primeira parte, uma das figuras em destaque é Nicolás Leoz, presidente da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol). Outra é Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). As acusações contra João Havelange, ex-presidente da Fifa e prócer do esporte no Brasil e no mundo, aparecem na segunda metade.

(Aposto que o vídeo não será exibido na televisão brasileira – seja na TV Brasil ou nos canais privados. Prestaria um grande serviço ao esporte quem se dispusesse a legendar, em português, o vídeo – fica a sugestão.)

Na segunda parte, ficamos sabendo que o governo holandês divulgou publicamente as exigências feitas pela Fifa, que põe contra a parede o governo do país que se dispõe a sediar a Copa. Nada que já não saibamos: basicamente se trata de colocar as autoridades da Fifa, o comitê organizador e as pessoas e empresas envolvidas com os eventos acima da lei. A diferença é que os absurdos estão materializados em documentos oficiais – aos quais sequer os membros do Parlamento britânico tiveram acesso. Leis diplomáticas (relativas a vistos, por exemplo), trabalhistas e outras são suspensas, de maneira que os organizadores possam fazer o que quiserem sem poderem ser processados.

Para o bem de quem? A partir de 1/1/2011, a Fifa está isenta de pagar impostos ao Governo Federal. E você?

E sem precisar pagar impostos. O lucro sai limpinho, limpinho – ao contrário do que ocorre, em geral, com trabalhadores e empresas mundo afora. Na prática, isto significa que, provavelmente, em 2011, 2012, 2013 e 2014 eu vou pagar mais imposto (retido na fonte) ao governo brasileiro do que a corporação multinacional dirigida por Joseph Blatter. Na verdade, é pior: eu vou pagar imposto (o que, diga-se de passagem, é justo); a Fifa e as empreiteiras responsáveis pelas obras, não.

No vídeo, o ex-ministro do Esporte inglês diz que as exigências da Fifa não diferem das feitas por outros órgãos, como o COI em relação aos Jogos Olímpicos. Como o Brasil vai sediar ambos, fica claro o que vem por aí.

Olhares sobre a Copa de 2010

Na África do Sul, o rodo passou e continua passando sobre a população pobre. Um exemplo está no trailer abaixo, do filme Tin Town: the unnacountable cost of the 2010 World Cup, feito pela organização Sport for Solidarity:

Uma matéria da Agência Brasil – com o sugestivo título “Copa mais bem-sucedida da história tem efeito limitado na economia sul-africana” –  elucida algumas questões:

Segundo o professor [Udesh Pillay], o primeiro é que um evento como a Copa do Mundo, em geral, não traz muitos benefícios ao país que o sedia no que se refere à geração de riquezas. Outra razão, de acordo com Pillay, é que a África do Sul não se planejou como deveria para tirar o melhor proveito do que o Mundial pôde oferecer ao país.

‘O governo caiu na ilusão da realização de uma Copa do Mundo’, afirmou. ‘Assumiu todas as responsabilidade e obrigações para sediar o Mundial. Já o lucro foi todo para a Fifa.’

Tenho poucas dúvidas de que a maioria dos pontos mencionados na reportagem se repetirão no Brasil. Aliás, já estão se repetindo.

E por aqui?

As autoridades do Comitê Olímpico Internacional (COI) visitaram o Rio de Janeiro em 2009, antes de a escolherem sede da Olimpíada de 2016. Passaram alguns dias na cidade. Segundo o insuspeito (para estes fins) relato de O Globo, “no fim da tarde, os técnicos internacionais conheceram o metrô do Rio. Em vagões exclusivos, a comissão entrou na estação Glória para ir até Cantagalo, ambas na Zona Sul da cidade.

Era primeiro de maio. O metrô carioca, em dias úteis, é um meio de transporte caro e presta um péssimo serviço a seus usuários. Além de ser feriado, os inspetores foram colocados em vagões exclusivos e para andar em uma parte do trajeto na linha 1 (costumeiramente menos cheia e com estações e vagões mais confortáveis que os da linha 2). Ou seja, as autoridades passaram vários dias no Rio, mas, curiosamente, andaram de Metrô num feriado, em vagões exclusivos e no trajeto mais curto e confortável, descendo em uma estação nova (inaugurada há poucos anos). Como a data é feriado em praticamente todo o mundo, os agentes do COI não foram ludibriados pelas autoridades brasileiras. Sabiam o que estavam fazendo. Convido o(a) leitor(a) a pensar: que motivo os terá levado a tal atitude?

Quanto à Copa do Mundo, não vou me estender. Recomendo a leitura desta reportagem de capa da revista Carta Capital. Ela trata dos preparativos para 2014, incluindo a composição e o modo de operar do Comitê Organizador Local (COL), em que Ricardo Teixeira manda. Um trecho:

O comitê da Copa de 2014 é composto ainda por Joana Havelange, filha de Teixeira, nomeada secretária-executiva. A diretoria jurídica ficou a cargo de Francisco Müssnich, advogado número 1 de Daniel Dantas e companheiro de Verônica, a irmã do banqueiro condenado a dez anos de cadeia por corrupção ativa em primeira instância. Rodrigo Paiva, assessor de imprensa da CBF e da Seleção desde 2002, atua na mesma função no comitê.

O arquiteto Carlos de La Corte, que assessorou o Ministério do Esporte em 2002 para projetos de centros esportivos, tornou-se o consultor de estádios. Na diretoria financeira, Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central e administrador do patrimônio pessoal de Teixeira. É tudo.

Nenhum representante da sociedade brasileira. Nenhum representante do governo ou do Estado brasileiros. Tal composição de um COL, “que presta contas somente à Fifa“, é “fato inédito nas 19 edições do Mundial“. Trata-se, portanto, de inovação e contribuição genuinamente brasileiras à organização de megaeventos: gestão de dinheiro público por um condomínio privado. Privadíssimo.

Passando o rodo

Pelo que pude ver até agora, o panorama para 2014 e 2016 se parece com o ocorrido por conta dos Jogos Pan-Americanos de 2007. (Naquele ano, escrevi, em meu blogue pessoal, um texto com meu ponto de vista sobre o tema: parte um e parte dois.) A diferença é a escala da intervenção do poder público, as somas de dinheiro envolvidas, e a antecedência com a qual o rodo começou a passar.

Uma das consequências é a expulsão da população pobre de áreas valorizadas. Não chega a ser uma política nova, se olharmos a história da cidade. Nem se pode atribuir aos Jogos a implantação desta lógica. Afinal, “muitos desses projetos de revitalização já estavam definidos antes mesmo da escolha do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016. A eleição só fez acelerar o cronograma (o texto citado traz, inclusive, uma boa discussão sobre o conceito de revitalização)”.

Raquel Rolnik, professora da USP, intitulou Olimpíadas Truculentas um artigo veiculado semana passada. Suas palavras dão a dimensão concreta da política pública em execução, às vésperas do Natal:

Uma equipe do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro conseguiu, em caráter emergencial, uma liminar que suspendia as remoções forçadas, pois os oficiais da subprefeitura agiam sem ordem judicial de despejo ou intimação. Entretanto o pesadelo para os moradores dessas três comunidades da zona oeste carioca não terminou, já que a liminar da justiça não era válida a todos os imóveis.

Nem as casas de santo – terrenos sagrados à tradição Candomblé, há décadas instalados ali – estão seguras das máquinas. Os moradores e representantes religiosos já realizaram duas mobilizações de repúdio a ação da prefeitura do Rio pelo modo como vem conduzindo as obras das Olimpíadas em detrimento do direito e da dignidade dos que vivem no caminho dos projetos.

Sem muito efeito, na madrugada do dia 17 para o dia 18 policiais arrombaram casas expulsando as famílias e ameaçando todos de prisão. Muitos descrevem as cenas como a de uma batalha: roupas, objetos pessoais, malas, tudo jogado no chão na beira da via por onde trafegam continuamente caminhões, automóveis e agora pessoas sem um lugar para onde ir ou voltar.

Nem espírito natalino, nem respeito e cumprimento da lei. Os geógrafos Marcelo Lopes de Souza, Tatiana Tramontani Ramos e Marianna Fernandes Moreira sintetizam o cenário:

Percebe-se, assim, como o ‘sonho olímpico’ é uma construção ideológica que, para os movimentos sociais e grande parte dos pobres do Rio de Janeiro, tende a assumir as características de um ‘pesadelo’ – para muito além de temas como lisura e eficiência dos gastos públicos.

Em Copenhague, Eduardo Paes, Sérgio Cabral Filho, Carlos Nuzman, Luiz Inácio Lula da Silva e Orlando Silva comemoram a escolha do Rio para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Fonte: Blog do Planalto.

Assim como ocorreu com a Vila do Pan, as moradias construídas para uso durante os Jogos não serão destinadas à habitação popular. Esta decisão contraria frontalmente as reivindicações dos movimentos sociais. Estas reivindicações vêm sendo explicitadas em diversas ocasiões. Logo, as autoridades esportivas e políticas não podem alegar desconhecimento.

No município do Rio de Janeiro, a Prefeitura encaminha os projetos e a Câmara de Vereadores aprova. O vereador Eliomar Coelho (PSOL) apresentou críticas ao Pacote Olímpico. Em 27/10/2010, o boletim eletrônico do político informou sobre a aprovação do pacote:

A Câmara Municipal aprovou […] o Pacote Olímpico, um conjunto de três proposições legislativas (PLC 44, PL 715 e PL 716), de autoria da Prefeitura, que tem como objetivo ‘organizar’ a cidade para a realização da Copa de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Eliomar votou contra os três projetos, mas antes tentou encaminhar algumas emendas que pudessem diminuir seu impacto negativo. Duas emendas supressivas ao PL 716 tentavam retirar os incentivos fiscais dados aos setores hoteleiro e imobiliário, e também aos patrocinadores dos jogos e à emissora anfitriã. Apesar do absurdo dessas isenções, as emendas foram rejeitadas. Uma emenda modificativa ao PL 44 previa a modalidade de hospedagem domiciliar. Outra emenda supressiva ao mesmo projeto eliminava a possibilidade de não se considerar as áreas de uso comum como área edificada nas novas construções, o que aumentará a densidade de ocupação imobiliária. E outras emendas propunham a criação de área de Habitação de Interesse Social no entorno do Sambódromo, onde será realizada uma Operação Interligada, para garantir a permanência da população residente no local. De todas as propostas apresentadas, somente duas foram aprovadas, que apenas alteram a redação dos parágrafos, mas não representam nenhuma intervenção significativa. É lamentável que, mais uma vez, um projeto dessa dimensão tenha sido discutido e aprovado a toque de caixa. Quem perde é a cidade.

Para quem não sabe, a área em volta do Sambódromo é ocupada por grande número de moradias populares.

Em entrevista ao Observatório de Favelas, Juca Kfouri, uma rara voz crítica no jornalismo esportivo das corporações de mídia, apresenta argumentos para desconfiar do que ocorre e do que virá, tendo em vista os dirigentes à frente das decisões políticas e operacionais:

Diria que à luz do passado não tenho nenhum motivo para acreditar nessa gente.

Nos Comitês Olímpico e da Copa não há um nome sequer de algum esportista brasileiro, de algum notável que a sociedade brasileira acredite. Nem da iniciativa privada, de um Antônio Ermírio de Moraes, um Jorge Gerdau, que a sociedade possa dizer que eles não iriam sujar seus nomes e suas empresas por isso. Não temos.

Esses eventos vão servir para fazerem uma grande farra com o dinheiro público. Não vejo outra possibilidade. E quem vai pagar por isso somos nós.

O rodo (ou “rolo compressor ideológico“) está passando. E continuará. Contudo, se o(a) leitor(a) preferir, pode ficar com a visão oficial dos Jogos apresentada pelo maravilhoso mundo da publicidade:

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O(a) leitor(a) atento terá percebido que o texto foi construído exclusivamente com informações públicas (com a ressalva de que boa parte do material está em inglês). Isto torna frágil a possível alegação, no futuro – seja por pessoas comuns, seja, principalmente, por pesquisadores e pelas autoridades políticas e desportivas – de desconhecimento.

Saiba mais:

Counter Olympics Network: blogue que reúne organizações e indivíduos que lutam para que a Olimpíada de 2012 não passe o rodo em Londres e em sua população.

Evento “O Desafio Popular aos Megaeventos Esportivos“.

Games Monitor: sítio dedicado a desfazer mitos relativos à organização da Olimpíada de 2012. (Traduzindo mitos, neste caso: o mesmo tipo de conversa que autoridades esportivas e políticas vendem por aqui.)

Sport for Solidarity: “organização independente que usa filmes e confrontação não-violenta para expor os problemas do esporte global”.