Grandes estádios e a memória da ditadura

23/08/2021

Por Rafael Fortes (rafael.soares@unirio.br)

Durante o período da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), dezenas de estádios de futebol foram construídos e inaugurados. Uma parcela importante – 14 estádios com grande capacidade – foi erguida e, posteriormente, administrada por governos estaduais que tinham à frente políticos da Aliança Renovadora Nacional (Arena). Dez deles receberam o nome do próprio governador que os construiu e inaugurou.

O assunto é explorado no artigo “‘Brasil-grande, estádios gigantescos’: toponímia dos estádios públicos da ditadura civil-militar brasileira e os discursos de reconciliação, 1964-1985“, escrito por João Malaia, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e por mim e publicado no dossiê Lugares de memória e de consciência na América Latina da revista Tempo (UFF).

Abordamos superfaturamentos e fraudes em licitações (condizente com a dinâmica mais ampla de atuação e fortalecimento de empreiteiras descrita e analisada por Campos (2014) ), acidentes e confusões nas inaugurações (com dezenas de feridos e levando a prisões e acusações arbitrárias), evasão de divisas por meio da administração posterior dos estádios e complexos esportivos e o papel predominantemente adesista e celebratório da imprensa esportiva (não só à época, mas também nas décadas seguintes).

Um de nossos objetivos é inserir tal fenômeno nas discussões historiográficas sobre construção de consentimento durante o período e após – considerando que a maioria permanece com os mesmos nomes nos dias atuais. Já no subcampo da história do esporte, embora um número razoável de trabalhos sobre esporte e ditadura tenha sido publicado nos últimos anos, aspectos como a construção de consensos, o papel dos clubes e de seus dirigentes, a atuação de governos estaduais (tanto de governadores quanto de entidades criadas para administrar os estádios, como as superintendências estaduais de desportos) e os estádios têm ficado em segundo plano. A atenção frequentemente se volta para experiências de resistência (em geral utilizando como exemplo um jogador, treinador ou time) e para a seleção brasileira, sobretudo durante o governo Medici.

O teor e os sentidos políticos de tais nomeações, que duram décadas, fazem parte da construção e manutenção, no presente, de imagens positivas do regime ditatorial entre setores da sociedade brasileira. Mesmo entre os pesquisadores e ativistas mais atentos, é pouco provável que tais nomes de estádios chamem a atenção quanto a uma possível identificação com o regime civil-militar. Em outras palavras, tais nomes de governadores – lideranças políticas civis no interior do regime – não causam identificação imediata, diferentemente do que acontece, por exemplo, com as homenagens, em todo o país, aos generais ex-presidentes Medici, Castelo Branco e Costa e Silva.

*  *  *

Amanhã (terça-feira, 24/8/2021) João Malaia e eu falaremos sobre o assunto no III Seminário Brasil Republicano, organizado pelo Instituto de História da Universidade Federal Fluminense. Transmissão pelo canal do Ludopédio: https://www.youtube.com/watch?v=NS87p9dJ5Ew.

Referências

CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói: Editora da UFF/Faperj, 2014.

MALAIA, João Manuel Casquinha; FORTES, Rafael. “‘Brasil-grande, estádios gigantescos’: toponímia dos estádios públicos da ditadura civil-militar brasileira e os discursos de reconciliação, 1964-1985”. Tempo, v. 27, n. 1, p. 165-183, jan.-abr. 2021. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/tem/a/dxyZ4FpZVhkw6KB6sb7K4Tn/?lang=pt>. Acesso em 18 ago. 2021.


Esporte na guerra: elemento para preservação da (o) moral das tropas

11/02/2019

por Karina Cancella

Durante momentos de mobilização para conflitos, uma das preocupações das lideranças das Forças Armadas (FA) é a manutenção do moral das tropas. Os longos períodos distantes da família e da terra natal e as próprias tensões impostas pelo conflito podem ser extremamente desgastantes para os militares. Essa questão é bastante presente em documentos oficiais das FA estadunidenses ao longo dos anos finais do século XIX e anos iniciais do século XX, por exemplo. Naquele momento, os comandos iniciaram um processo de planejamento de atividades que auxiliassem nos aspectos morais de suas tropas e o esporte ganhou espaço de destaque.

O termo moral, naquele contexto, poderia estar se referindo a dois aspectos distintos: “o moral”, no sentido de ânimo, disposição e “a moral”, como sinônimo de bons costumes. Nas documentações, foi possível perceber a mobilização do esporte como elemento reforçador do moral e da moral dos militares estadunidenses nos contextos de mobilização e atuação em guerras.

Wanda Wakefield, em sua obra “Playing to win: sports and the American Military 1898-1945”, afirma que o esporte foi defendido fortemente pelos comandantes das FA estadunidenses como oportunidade de distração saudável para os militares em campanha, sendo sempre enfatizada a necessidade de afastamento de práticas consideradas ilícitas pelos comandos, como ingestão de bebidas alcoólicas, envolvimento com prostituição e jogos de azar. (WAKEFIELD, 1997).

Utilizando também esse argumento “moralizante” para explicar a introdução do esporte de forma sistemática entre os militares estadunidenses, Joseph Mennell no artigo “The Service Football Program of World War I: Its Impact on the Popularity of the Game” trata especificamente da formação dos programas de esporte para tropas. Mennell afirma que as origens de um programa de competições esportivas como parte do treinamento dos militares estadunidenses se originou por uma situação que chamou de “escândalo sexual”, ocorrida em 1916. Naquele ano, parte do território estadunidense foi invadido por Pancho Villa e coube ao General John Pershing a proteção das terras e a captura de Villa. Para isso, foram enviados grupos de jovens da Guarda Nacional para concentração em Fort San Houston, no Texas, para atuar no policiamento de fronteira. O problema real se iniciou quando os jovens, por não terem atividades para ocupação de seus tempos livres, passaram a visitar as cidades no entorno dos acampamentos em busca de opções de divertimento. No entanto, encontraram de fato “doenças venéreas e álcool barato”. (MENNELL, 1989, p. 251).

Após as notícias sobre esses problemas chegarem a Washington, foram enviados representantes para realizar uma inspeção nos acampamentos e foi confirmado que os jovens militares estariam realmente se envolvendo em diversas formas de vício, hábitos mal vistos pelos comandos, por uma ausência de atividades recreativas controladas no interior dos acampamentos. Para iniciar a solução dos problemas, segundo os informes do relator, foram introduzidos equipamentos esportivos doados por uma Young Men’s Christian Association (YMCA) local. (MENNELL, 1989).

A entrada dos EUA na Primeira Guerra reforçou as preocupações com os momentos de tempo livre das tropas em serviço, uma vez que teriam grandes somas de homens jovens mobilizados para o conflito. Caso não fosse efetivada alguma providência no sentido de elaborar atividades de tempo livre dentro dos acampamentos, poderia ser repetido o escândalo de 1916, fator que causaria grandes prejuízos à imagem do então presidente Woodrow Wilson. (MENNELL, 1989, p. 251).

Após análises dos comandos, identificou-se que a melhor forma de prevenir os vícios dos jovens militares seria com a promoção de atividades recreativas organizadas e controladas. Foi então criada a “Commission on Training Camp Activities” no Exército para supervisionar atividades de lazer, com o esporte integrando seu quadro, sob a direção de Raymond Fosdick. A Marinha dos EUA, pouco depois, criou uma comissão nos mesmos moldes. Para a organização das atividades, foram nomeados diretores esportivos para cada um dos campos. Eles teriam atribuições de localizar treinadores para as modalidades que eles considerassem adequadas para seus militares. (MENNELL, 1989, p. 251).

Reafirmando esse ponto apresentado por Mennell, Wanda Wakefield (1997) lembra a importância da presença também de entidades civis, como a YMCA, no desenvolvimento de atividades nos campos.

Os aspectos da preservação da moralidade defendidos pelos militares foram ainda divulgados entre a sociedade estadunidense como forma de “tranquilizar” as mães que enviaram seus filhos para a guerra. O jornal “The Sun” de 1 de setembro de 1918 publicou uma matéria intitulada “Seu menino está totalmente seguro moralmente na Guerra”, em que apontava o empenho das FA em estabelecer condições para que os jovens tivessem suas concepções morais preservadas durante a atuação no conflito:

Seu menino está totalmente seguro moralmente na Guerra – A disciplina do Exército e o aumento do número de outras salvaguardas tornam sua vida melhor até do que quando está em casa

“Nenhuma mãe precisa ter medo secreto de seu filho ser moralmente contaminado na guerra de hoje. Não há lugar mais seguro para um menino do que o exército ou a marinha. Noventa e cinco por cento dos homens sairão da guerra maiores, melhores e mais limpos mental, moral, e fisicamente do que entraram, e dos 5 por cento, isso não, eu arrisco a dizer que 4 por cento levaram a deterioração da vida civil com eles para a guerra”.

O orador não era um pregador. Ele era um homem da medicina, e ele também era um diretor de esportes para a Divisão da YMCA no Exército, que tem desde o início da guerra vivido, comido, dormido, sonhado e trabalhado com os “meninos” da época em que foram registrados com roupas civis até que eles fossem para as trincheiras na linha de fogo. […].[1]

 

Novamente, é possível perceber no trecho a mobilização de argumentos sobre a importância da manutenção da moralidade no ambiente militar estadunidense. Nesse cenário, como já colocado, o esporte serviu como um instrumento de grande utilidade para os comandos das FA.

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Competição de cabo de guerra realizada nos Jogos Interaliados em 1919, ao final da Primeira Grande Guerra. Fonte: https://interalliedgames.org/category/tug-of-war/

 

Realizando uma rápida pesquisa em buscadores de informações nos dias de hoje, podemos perceber o grande destaque que as práticas esportivas ainda recebem no cotidiano militar nos Estados Unidos, tanto nos períodos de treinamento e preparação quanto nos momentos de atuação efetiva em conflitos ao redor do mundo. Os programas esportivos das Forças Armadas estadunidenses iniciados há mais de 100 anos seguem trabalhando intensamente em diversas regiões ao redor do planeta.

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As Forças Armadas dos Estados Unidos mantêm um setor específico dentro do Departamento de Defesa responsável por toda a gestão e organização esportiva envolvendo militares estadunidenses. Maiores informações, ver site: https://armedforcessports.defense.gov/

 

Fontes:

[1] LAUT, Agnes C. Your Boy Is Wholly Safe Morally in War. The Sun, 1 de setembro de 1918, p. 5.

Referências:

WAKEFIELD, W. Playing to win: sports and the American Military, 1898-1945. Albany: State University of New York Press, 1997.

MENNELL, J. The Service Football Program of World War I: Its Impact on the Popularity of the Game. Journal of Sport History, v. 16, n. 3, p. 248-260, 1989.


Go Army, Beat Navy: o esporte nas Forças Armadas estadunidenses no contexto da Primeira Grande Guerra

21/03/2016

Por: Karina Cancella (karinacancella@gmail.com)

O esporte é na atualidade um fenômeno presente no cotidiano das mais diversas instituições ao redor do mundo. As Forças Armadas, claro, não ficaram de fora desse contexto. Ao longo do século XIX e especialmente no século XX, as aproximações entre militares e prática esportiva se ampliaram significativamente em diversas regiões do planeta. Entre finais do oitocentos e décadas iniciais do novecentos, países como Inglaterra, Alemanha, França, Estados Unidos da América e Brasil passaram a investir em programas de treinamento do corpo de suas tropas utilizando os esportes e as ginásticas com vistas a não somente desenvolver o aspecto físico de seus contingentes mas também o reforço da moral e da masculinidade (CANCELLA, 2014).

No post de hoje, vamos tratar brevemente sobre como os Estados Unidos da América (EUA) mobilizaram algumas práticas esportivas nos períodos de preparação para participação na Primeira Grande Guerra e durante o desenrolar do conflito.

Nos EUA, assim como no restante do mundo ocidental, a cultura esportiva apresentou maior desenvolvimento no final do século XIX, beneficiada pelas melhorias no transporte, pelo crescimento dos meios de comunicação, particularmente os jornais mais baratos, pela urbanização e industrialização. Em 1898, por exemplo, o esporte já fazia parte do calendário nacional e garantia atenção de diferentes grupos da população para competições de baseball e football (futebol americano). No entanto, a maior aproximação dos militares dessas práticas somente ocorreria na entrada dos Estados Unidos no conflito com a Espanha, conhecido como Guerra Hispano-Americana, pelo controle das colônias espanholas no Golfo do México no ano de 1898. Segundo Wanda Wakefield, após a derrota da Espanha no conflito, os comandantes americanos criaram intencionalmente oportunidades para os soldados e marinheiros praticarem baseball, corrida e experiências com outras competições atléticas. (WAKEFIELD, 1997).

O esporte foi principalmente defendido pelos comandantes como oportunidade de distração saudável para os militares em campanha, sendo sempre enfatizada a necessidade de afastamento de práticas consideradas ilícitas pelos comandos, como ingestão de bebidas alcoólicas, envolvimento com prostituição e jogos de azar. (WAKEFIELD, 1997).

Esse argumento de defesa da prática esportiva entre os militares como elemento de promoção de bons hábitos e boa ordem foi reforçado no processo de preparação dos EUA para o ingresso na Primeira Grande Guerra. Paralelamente a esse movimento pelo esporte, os grupos que defendiam a moralização da sociedade e buscavam a proibição de venda de bebidas alcoólicas e da prostituição ganharam força no processo de organização do United States Army e United States Navy para o embarque para o cenário de operações. Utilizando o argumento de estarem em tempo de guerra emergencial e do significativo aumento dos acampamentos de treinamento militar, esses grupos moralistas intensificaram as pressões para proibir a prostituição, pois seria um risco para a saúde e segurança dos soldados e também por ser um atrativo para jovens mulheres que viviam no entorno dos acampamentos como uma possibilidade de recebimento por favores sexuais. (WAKEFIELD, 1997).

Essas proibições se baseavam na defesa de que as energias dos jovens deveriam ser direcionadas unicamente para o preparo para as batalhas. Nesse contexto, o esporte era uma prática recreativa desejável e moralizante, já que garantia uma distração aos soldados e, ao mesmo tempo, auxiliava no condicionamento físico, nas relações interpessoais e no companheirismo, além de serem instrumentos para reforço da masculinidade. (WAKEFIELD, 1997).

Nos acampamentos de treinamento, algumas entidades civis atuavam para desenvolver atividades entre os soldados. A Young Men’s Christian Association (YMCA), por exemplo, enviou representantes que organizavam aulas sobre a bíblia, grupos de canto, jogos, atuavam como árbitros em lutas de boxe, auxiliavam jovens soldados com pouca instrução a escrever cartas, entre outras distrações vistas como sadias pelos comandos das FA. (WAKEFIELD, 1997).

O estabelecimento dessas práticas nos acampamentos auxiliou, inclusive, no processo de popularização de um dos esportes mais importantes atualmente entre os estadunidenses: o futebol americano. James Mennell (1989) afirma que a introdução do futebol americano como parte do treinamento militar e atividade de horas de lazer para os recrutas que atuaram durante a Primeira Guerra foi um dos fatores responsáveis pela ampliação dos interesses nessas práticas ao longo da década de 1920. Seguindo nessa linha apontada por Mennell, Steven Pope (1997), ainda aponta que:

A campanha de preparação para a Primeira Guerra Mundial reforçou a expansão geográfica do futebol. Envolto em trajes patrióticos, o jogo tornou-se um terreno de formação para a cidadania e prontidão militar. Líderes de preparação trabalharam para transformar o futebol de um mero esporte de espectadores em uma base componente da educação cívica. […] Joseph Lee, presidente do Associação de Recreação e Playgrounds da América […] apontou para o futebol como sendo o mais adequado para a preparação para a guerra, devido ao seu cultivo de lealdade de equipe, o que poderia facilmente ser equiparado à lealdade nacional. […] Discussões em tempo de guerra foram específicas sobre as qualidades físicas desejadas cultivadas pelo futebol, que preparou os homens jovens para a guerra. (POPE, 1997, p. 93-94).[1]

Tanto no Exército como na Marinha dos EUA foram implementadas divisões atléticas com responsabilidade de desenvolver programas esportivos para os militares. No caso do Exército, a modalidade com maior investimento inicialmente foi o boxe, defendido como prática mais útil naquele momento para o serviço militar. Foi inclusive realizada uma busca por um “boxeador habilidoso” para ajudar na instrução nos campos. Não havia uma diretriz da Divisão Atlética do US Army inicialmente para o desenvolvimento da prática do football. Um dos argumentos era o fato de ser muito caro fornecer os equipamentos necessários para a prática a todos os soldados. Normalmente, dependia-se de doações para conseguir os materiais. O programa de treinamento atlético e recreação era ainda bastante recente no US Army e, por essa razão, a Divisão Atlética se empenhou em desenvolver a prática do boxe de forma mais generalizada e deixou os esportes recreativos (como era considerado o futebol americano) como responsabilidade dos diretores de cada campo. Sendo assim, não havia nenhuma diretriz política oficial da Divisão Atlética para se criar um programa de futebol em serviço. O surgimento do programa foi por ação específica dos campos, já que o futebol mostrou-se como uma prática já bem estabelecida, com um corpo de técnicos e funcionários qualificados dispostos a ajudar. Além disso, os soldados e marinheiros apresentavam grande interesse e entusiasmo pelo jogo. Como consequência, começaram a surgir oportunidades de promover jogos com faculdades e outros campos em grandes estádios. Foi com grande rapidez que as equipes dos acampamentos tornaram-se organizadas, equipadas e prontas para jogar uma temporada completa de futebol americano (MENNELL, 1989).

Já no caso da Divisão Atlética da US Navy havia um incentivo maior para o programa de futebol em serviço, especialmente porque o responsável, Walter Camp, tinha uma grande proximidade com esse esporte. Camp foi um dos mais importantes esportistas dessa modalidade em seu tempo e é considerado o principal responsável pela normatização da prática nos moldes que ela é jogada até os dias atuais, tendo participado das primeiras partidas nos EUA ainda no século XIX e atuado nos processos de reformulação e criação das regras para o futebol americano. (WCCF, 2015).

Walter Camp defendia a prática do futebol americano como elemento recreativo e de distração para os marinheiros. No entanto, outro ponto foi também enfatizado por ele na defesa pela difusão da modalidade: a natural rivalidade entre soldados e marinheiros, que poderia ser utilizada para a promoção de jogos de futebol americano atraentes entre as equipes dos campos do Exército e das Estações Navais estabelecidas no processo de preparação para atuar na Primeira Guerra. Em 1917, Camp iniciou a organização dos jogos escrevendo para Raycroft, chefe da Divisão Atlética do US Army, pedindo autorização para que o time do Exército pudesse jogar. Seguiu para a seleção de um estádio com data disponível, sendo escolhido o Yale Bowl. Então, passou para a divulgação e promoção do evento na imprensa. Em carta redigida em meio às organizações com o objetivo de convocar o maior público possível, Walter Camp afirmou que aquele evento seria a primeira real grande competição entre Exército e Marinha envolvendo jogadores de todo o país. A promoção de jogos como esses, não somente entre os militares mas também com as equipes das universidades, foi compreendida como um grande contribuinte para a divulgação da prática. (MENNELL, 1989).

É preciso, no entanto, relativizar a colocação com relação a esse evento de 1917 ser a primeira grande competição entre Exército e Marinha. Estabelecendo um levantamento na base de dados da Library of Congress no catálogo Chronicling America – Historic American Newspapers, que apresenta um acervo de consulta on-line para o período de 1836 a 1922 com sistema de busca por palavra-chave, foram identificadas notícias em periódicos de diferentes regiões dos EUA noticiando jogos entre militares do US Army e da US Navy e competições com equipes de universidades desde o século XIX. As ocorrências se intensificam consideravelmente no século XX, mas desde a década de 1890 a imprensa dedicava espaço para noticiar processos de organização de competições esportivas entre os militares, especialmente aquelas realizadas entre suas escolas de formação.

Para ilustrar, segue abaixo a transcrição traduzida de notícia publicada no jornal “The Sun” em 29 de novembro de 1890 em que se comenta realização da primeira competição esportiva entre militares da Academia de West Point (US Army) e de Annapolis (US Navy).

O jogo de futebol de cadetes

O jogo de futebol mais marcante do ano, em alguns aspectos é o estabelecido para hoje em West Point entre os cadetes da Academia Militar e os cadetes da Academia Naval.

Os espectadores não serão numerosos como as multidões em Eastern Park e em Springfield. Pode não ser tão brilhante em bloqueio e desarme, passes e jogos, mergulhos através da linha ou correndo em torno das extremidades, como nas poderosas lutas de Harvard com Yale e de Yale com Princeton. Na verdade, os jovens de Annapolis, que tiveram uma grande experiência e esperam para fazer um jogo animado com os rapazes de West Point, foram derrotados na última quinta-feira, em uma pontuação de 24 a 4, em seu próprio campo, por Lehigh, que está na segunda posição dos jogadores de futebol da faculdade.

Mas o que torna este jogo memorável é que ele marca a entrada dessas duas escolas do governo no campo de competições atléticas com o outro. Eles se desprendem de velhas ideias e observâncias tradicionais. Com um jogo de futebol realizado e um duo de jogo de volta no próximo ano, não há nenhuma razão para o baseball não seguir com jogos entre as duas academias na próxima primavera e, em seguida, uma competição anual em vários exercícios de atletismo.

Tudo isso faria uma mudança na relação social das Academias de West Point e Annapolis, que até então não tinham muito mais a ver com o outro do que se eles pertencessem a diferentes países. Sob as velhas noções, competições em esportes encontraram pouco favor entre os líderes militares. A mudança começou quando as equipes do Exército participaram das competições de rifle em Creedmoor. Desde que a fixação de tais competições no próprio Exército, com distintivos e medalhas fornecidos pelo Governo, foi apenas um passo; E na medida em que o plano militar foi seguido em ter oficiais e homens competindo em pé de igualdade, as competições de rifle tornaram-se decididamente a instituição mais democrática do exército. Mesmo no tempo presente, recomendações são feitas ocasionalmente para o estabelecimento de competições separadas para oficiais e soldados, mas esta mudança não foi feita. Quanto à Academia Naval, tem por vários anos mantido times de baseball e de futebol que disputavam nines e elevens[2] com universitários vizinhos e escolas.

O jogo de cadetes do exército e da marinha é, portanto, um desenvolvimento tão natural a partir desses costumes modernos que, atualmente, a única surpresa é como não foi estabelecido há muito tempo. Este jogo anual, com as suas exigências severas sobre a força, coragem, rapidez e habilidade, em breve vai atrair grande interesse popular, enquanto os oficiais que trocaram a escola para servir em navios ou fortes vão se interessar por ele como o que estão sentindo os antigos universitários graduados sobre as fortunas do futebol do vermelho, do azul e do laranja e preto. [3], [4]

Como é possível verificar na transcrição da notícia, esse jogo realizado em 1890 é considerado como um grande responsável não somente por introduzir as escolas de formação militar das Forças Armadas dos EUA no panorama de competições esportivas daquele momento mas também por aproximar as relações entre as duas instituições. Nesse sentido, o esporte assumiu um papel importante nas interações políticas entre as forças e também na relação com as universidades e escolas civis.

Até os dias atuais, os confrontos esportivos entre US Army e US Navy são importantes eventos nos Estados Unidos. No perfil oficial do US Army na rede social Facebook, por exemplo, foi publicada em 04 de dezembro de 2013 uma nota de convocação aos seguidores para votar o pôster de divulgação do confronto de futebol americano entre os times “The Army Black Knights of West Point – The U.S. Military Academy” e “United States Naval Academy Midshipmen”, que seria realizado em 14 de dezembro de 2013. Entre os 10 cartazes disponibilizados na página para voto, um fazia referência direta aos jogos realizados entre as forças ao longo do século XX, como se pode ver a seguir:

1480749_10151894051183558_1283661905_nFonte: The U.S. Army – the official U.S. Army Facebook page. Disponível: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10151894051183558&set=a.10151894035343558.1073741841.44053938557&type=1&theater. Acesso 04 dez. 2013.

Ao longo da atuação na Primeira Guerra, as FA dos EUA organizaram entre seus militares inúmeros eventos esportivos em diferentes modalidades como futebol americano, beisebol, atletismo, boxe, além da criação de competições para exercícios militares específicos como lançamento de granada, atividades de ordem unida, manipulação de armas e exercícios de companhia. (WAKEFIELD, 1997).

Além dessas atividades com intuito recreativo, o esporte ainda foi utilizado no front como forma de treinamento de habilidades militares de forma mais “agradável”. Ao treinar o beisebol, os militares eram lembrados que o lançamento das bolas era similar ao processo de lançamento de granadas. Para que os soldados aprendessem a utilizar as máscaras de gás em combate, eram realizados extensos treinamentos com jogos, momentos em que os militares jogavam as partidas utilizando as máscaras sob os argumentos de que se conseguissem utilizar o instrumento no “campo de jogo”, poderiam utilizá-lo sem problemas no “campo de batalha”. Para encorajar os soldados a se sentirem confortáveis com as agressões que enfrentariam na guerra, as regras do boxe foram alteradas com a redução do tempo dos rounds para que não ocorresse a estagnação durante a luta, aumentando a intensidade do combate. (WAKEFIELD, 1997).

O esporte foi elemento presente e constante no cotidiano dos militares estadunidenses ao longo das primeiras décadas do século XX, sendo utilizado sob diferentes objetivos. Com o fim dos conflitos da Primeira Guerra em 1918, as Forças Armadas envolvidas nos eventos iniciaram o processo de desmobilização e retorno para seus países. Como forma de celebração da vitória dos Aliados, Elwood S. Brown, Diretor do Departamento de Atletismo da YMCA, escreveu ao Coronel Bruce Palmer, membro da equipe do General John Pershing (comandante da Força Expedicionária dos Estados Unidos na Primeira Guerra), informando que a entidade poderia organizar em conjunto com as FA competições esportivas entre os aliados como forma de celebração e reforço dos hábitos saudáveis entre os militares. (TERRET, 1999).

Após discussões e acordos, os Jogos Interaliados, o primeiro evento esportivo internacional no pós-guerra,[5] foram realizados em junho de 1919, em Paris, com a participação de 18 nações e 1.500 atletas em 24 diferentes modalidades. A liderança no processo de organização e realização desse evento e a massiva participação dos militares estadunidenses nas competições evidenciam a importância do esporte no contexto das atividades dessas FA ao longo dos anos iniciais do século XX. (TERRET, 1999).

Referências:

CANCELLA, K. O esporte e as Forças Armadas na Primeira República: das atividades gymnasticas às participações em eventos esportivos internacionais. Rio de Janeiro: BibliEx, 2014.

DPTMS – Directorate of Plans, Training, Mobilization and Security. Camp Lewis, 1917-1919. Disponível em: <http://www.lewis-mcchord.army.mil/dptms/museum/camp.htm&gt;. Acesso 05 dez. 2013.

MENNELL, J. The Service Football Program of World War I: Its Impact on the Popularity of the Game. Journal of Sport History, v. 16, n° 3, Winter, 1989, p. 248-260.

POPE, S. Patriotic Games: Sporting Traditions in the American Imagination, 1876–1926. New York: Oxford University Press, 1997.

TERRET, T. Le Comité International Olympique et les “olympiades militaires” de 1919. Olympika The International Journal of Olympic Studies, v. VIII, 1999, p. 69-80.

WAKEFIELD, W. Playing to win: sports and the American Military, 1898-1945. Albany: State University of New York Press, 1997.

[1] Tradução da autora.

[2] Nines e elevens é uma referência aos jogos de baseball (9 jogadores) e football (11 jogadores).

[3] A indicação ao vermelho, azul e laranja e preto é uma referência direta às universidades citadas no texto e as cores de seus brasões: vermelho – Harvard, azul – Yale, laranja e preto – Princeton.

[4] The Sun, 29 de novembro de 1890, p. 6.

[5] Por ocorrência dos conflitos, os Jogos Olímpicos de 1916, previstos para ocorrerem em Berlim, não foram realizados, interrompendo a sequência de edições a cada quatro anos desde os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, promovidos em 1896.