Maurício Drumond
Esporte e juventude são elementos frequentemente associados em regimes autoritários, especialmente nos de inspiração fascista. Um dos principais objetivos do fascismo perante as massas era o de “mobilizar e unificar as energias nacionais para o renascimento e o engrandecimento do país” (Paxton, 2007: 235). Tendo em vista esse fim, a mobilização do esporte (e das atividades físicas em geral) por esses regimes foi uma prática amplamente observada.
Juntamente com o esporte, encontrava-se a ideia de formação da juventude nacional. A constituição física dos jovens, os “novos” homens e mulheres da nação, futuros lutadores apolíneos e cidadãos obedientes, era uma grande preocupação de tais regimes. Seja na Itália fascista, na Alemanha nazista, na Espanha franquista, no Portugal salazarista, no Brasil varguista ou mesmo na Argentina peronista, organizações de mocidade paralelas ao sistema escolar estatal, de filiação mais ou menos obrigatória e com maior ou menor sucesso, foram criadas.
Na Itália surge, em 1926, a Opera Nazionale Balilla (ONB). Na Alemanha, a Juventude Hitlerista foi concebida em 1922, tornando-se responsável por toda juventude alemã a parir da ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933. O mesmo ocorreu em Portugal, com a criação da Mocidade Portuguesa (MP), em 1935, a partir da experiência com a Associação Escolar Vanguarda (AEV), de 1934. Herdeira aparente de suas congêneres alemã e italiana, a MP teve grande adesão popular, sendo sua participação obrigatória para todos os jovens, e sua inscrição anotada junto à caderneta escolar.


A relação entre a Mocidade Portuguesa e o esporte foi estreita desde sua origem. No Congresso de Clubes Desportivos, a primeira grande iniciativa de organização do esporte português, ocorrida em 1933, o dirigente Salazar Carreira já reivindicava a criação de uma organização “semelhante aos Balilas de Itália”, em Portugal. Esta seria, segundo ele, encarregada de preparar os rapazes portugueses que viriam a ser os futuros defensores da pátria.
E é de fato sobre o modelo da Opera Nazionale Balilla e da Juventude Hitlerista que a MP iria ser formada. Luís Figueira, Comissário Nacional Adjunto do primeiro comissariado nacional da Mocidade Portuguesa teve a função de visitar as organizações da Itália e da Alemanha, tendo em vista estudá-las para melhor desenvolver a organização lusa. Desse modo, assim como na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussonlini, a organização da juventude em Portugal iria assumir o controle do ensino e da prática de esportes entre os jovens do país.
De acordo com Alberto Rosário (1996: 50), “[as atividades desportivas] constituíram para a MP o pilar principal do seu edifício e o cavalo de Tróia com que penetrou em muitos meios levando no bojo a ideologia do regime”. Ou seja, de acordo com o autor português, o esporte é um dos principais meios pelos quais os jovens eram atraídos à Mocidade Portuguesa, atuando como um “cavalo de Troia”. Joaquim Vieira destaca a importância do esporte para o sucesso da organização:
As razões para o sucesso inicial da MP junto da juventude portuguesa ficaram a dever-se, na maior parte, às portas que a organização abriu aos rapazes para o desenvolvimento de atividades físicas, fossem elas competições desportivas, exercícios de ginástica, desfiles e paradas, acampamentos ou a simples ocupação dos tempos livres em ações de carácter manual. (…) A MP aproveitou assim a lacuna crónica do sistema de ensino português no que respeitava ao cumprimento de sucessivos métodos e programas de educação física, que, apesar de adotados oficialmente, não passavam do papel, pela simples razão de que esse era um capítulo absolutamente menorizado, e até desprezado, na ação pedagógica. As modalidades desportivas nas escolas eram virtualmente inexistentes e o sistema de exercícios físicos praticados baseava-se nos princípios da chamada ginástica respiratória, de natureza estática, frustrando o instintivo desejo de movimento, ação e competição entre os rapazes.
Joaquim Vieira (2008: 159)
O desporto era, portanto, um elemento fundamental na estrutura da Mocidade Portuguesa e em sua capacidade de mobilização dos jovens. Vale lembrar que seu primeiro Comissário Nacional foi Francisco Nobre Guedes, nome conhecido do campo esportivo português, membro do Comitê Olímpico Português e profundo entusiasta do que definia como um caráter educacional do esporte. É dessa forma que, meses após sua criação, a MP tem uma delegação composta por 29 jovens entre 15 e 18 anos, enviados para representar o país no Campo Internacional da Juventude, um acampamento que reunia jovens de vários países, uma iniciativa dos organizadores dos Jogos Olímpicos de Berlim, que acontecia no mesmo momento. Antes de partirem, os jovens da MP foram a Palácio de São Bento e visitam Salazar e Carmona, chefes de governo e de estado de Portugal. O evento, descrito como o “primeiro ato público” da MP, mostrava a forte interação entre o esporte e a nova entidade.

É necessário aqui se atentar para o caráter mobilizador do esporte. Além da preparação física da juventude, este exercia um grande atrativo para a atuação dos jovens junto à organização. De acordo com Serrado e Serpa (2010: 254), a prática do futebol nas ruas era proibida pela polícia de Lisboa, nessa época. Vidal e Gonçalves (2011: 156) citam ordens de serviços da polícia de Lisboa que informam que o Código de Posturas, em 1914, indicava uma multa para os que “se entregam ao jogo da bola, malha, foot-ball, etc.”, e mostram que havia certa tensão na prática de esportes na rua. Com a ginástica sendo priorizada frente ao desporto nas escolas e a prática de esportes nas ruas sendo reprimida pelas forças policiais, a Mocidade Portuguesa se tornava um dos espaços privilegiados para a prática de atividades físicas.
Foi assim que o esporte acabou por se tornar uma das principais estratégias de atração da juventude para a Mocidade Portuguesa. Ainda que Joaquim Vieira (2008: 167) afirme que “no ambiente das atividades desportivas da MP, a atmosfera era despolitizada, desprovida de proselitismo”, a participação ativa dos jovens nas organizações estatais da juventude do Estado Novo era em si o tipo de participação política almejada pelo governo. Não era almejada a discussão política e doutrinária em meio às atividades esportivas. Isso poderia ocorrer em outros momentos, de forma mais ou menos aparente. A própria presença dos jovens nas atividades da MP era o alvo final. A formação de redes de sociabilidade ligadas ao aparato do governo era o objetivo.
Essa função do esporte não passada despercebida pelos dirigentes da entidade. Em carta endereçada ao Ministro da Educação Nacional, o Comissário Nacional interino da MP em março de 1945, José Soares Franco, declara ser o orçamento da entidade para aquele ano insuficiente e pede novos incentivos. Em suas justificativas, ele cita os gastos envolvendo o esporte, declarando:
O desporto é hoje um poderoso meio de atração dos rapazes. A extensão alcançada pela obra deve-se em grande parte a essas atividades.
Não se pode, por outro lado, pôr já em dúvida as vantagens da educação física como processo educativo.
Os campeonatos segundo a orientação sempre seguida são indispensáveis como objetivo a apontar às atividades normais e motivos de interesse para a juventude.
(…)
Por outro lado, há a maior vantagem em prosseguir na Campanha do Mar, que encontrou entre os rapazes uma crescente aceitação e vem ao encontro de uma política tradicional da Nação, que convém desenvolver.
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mocidade Portuguesa, cx. 978, ff. 34-35)
O esporte era visto como um forte meio de se atrair os jovens para a obra do governo, sendo os campeonatos esportivos forte motivo de interesse para eles. Praticavam-se diversos esportes na Mocidade Portuguesa, como vela, remo, futebol, handebol, rúgbi, basquetebol, tênis, voleibol, pingue-pongue, hóquei sobre a grama, atletismo, ginástica, tiro, esgrima, hipismo e natação. No entanto, as competições esportivas não estavam disponíveis a todos. Alguns esportes, como o futebol e outras modalidades de contato físico, deveriam ser praticados apenas para os mais velhos. Para os mais jovens, recomendavam-se jogos com bolas ou esportes sem contato físico, como a vela.
É também importante ressaltar que nem todos os jovens atraídos pela prática de esportes eram, de fato, arregimentados pelos ideais salazaristas. Muitos só estavam interessados na prática de esportes. Marcelo Caetano queixava-se deste fato:
Disse e repito: há muitos rapazes portugueses que não andam fardados, não estão inscritos em qualquer Centro, não se encontram em contato com nenhum dirigente, – e são nossos porque comungam no nosso espírito.
E há imensos jovens enquadrados na Organização mas que só cá estão presentes em corpo, para fazer número e aproveitar egoisticamente certas vantagens, porque a alma, essa, mantem-se de todo alheia aos nossos propósitos e ideais.
As competições desportivas realizadas ultimamente vieram demonstrar que ainda existem muitos desses corpos sem alma, verdadeiros cadáveres vivos, na M.P.
Meninos que se inscreveram na Organização apenas para fruir em boas condições do ensino e do treino em qualquer modalidade desportiva, julgando-se sócios sem encargos de um clube elegante, mas ignorando o sentido de certas virtudes essenciais da M.P. chamadas disciplina, sacrifício, austeridade, dedicação.
Marcelo Caetano (1942: 238)
Para alguns, segundo ele, a Mocidade Portuguesa seria apenas um “clube elegante” gratuito. Mas para o governo, sua importância era outra. E mesmo a atividade esportiva dentro da MP deveria assumir sua função de formação física da juventude. Para seus dirigentes, a prática de atividades físicas tinha um papel fundamental na formação do jovem português. Buscava-se formar uma juventude que iria suplantar uma suposta “raça degenerada” portuguesa, indolente e cansada, inapta para a luta e para grandes conquistas. Como afirmou Raul Vieira:
A nação armada não poder ser constituída apenas pelo material destinado á defesa nacional. De nada valerá esse material se os seus filhos não possuírem a necessária preparação atlética. (…)
Raul Vieira (1934:8)
Toda despesa dispendida no aperfeiçoamento de sua constituição física deve ser considerada produtiva, porque um país será tanto mais forte quanto mais robusta for a sua raça.
Via-se assim uma importância fundamental na formação eugênica da juventude, como meio de fortalecimento nacional. Para tanto, via-se a necessidade de se criar uma nova cultura corporal, de forma a possibilitar o surgimento de um novo homem estadonovista, idealizado e divulgado pela propaganda oficial.
Dentro deste projeto, o esporte era defendido como um meio de saúde e educação, como uma ferramenta para se alcançar o aperfeiçoamento eugênico e cívico da juventude. Ele se tornava um elemento essencial de todo o processo educacional. Começando pela ginástica e encerrando-se no esporte, a prática de atividades físicas seriam o grande impulsionador para uma juventude mais sadia e forte, que formaria a nação forte do futuro. Essa era, ao menos, a ideia apresentada nos discursos produzidos por agentes do estado em relação ao esporte.
PS: O site RTP Arquivos traz algumas imagnes de competiçõe esportivas da Mocidade Portuguesa. Deixo o link de alguns abaixo:
- Finais dos Campeonatos Nacionais de Basquetebol e Voleibol da Mocidade Portuguesa, em 1969, na categoria de juniores, jogo entre o Porto e Aveiro (basquete), e Póvoa de Varzim e Lisboa (volei). Pavilhão do Estádio Universitário. LINK
- Campeonato Nacional de Atletismo da Mocidade Portuguesa de 1968, no Estádio Nacional. LINK
Lista de referências
CAETANO, Marcelo. “A Mocidade Portuguesa é alma”. Boletim mensal do Comissariado Nacional, n. 8, v. 2, Lisboa, jun.1942.
PAXTON, Robert O. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
ROSÁRIO, Alberto Trovão do. O desporto em Portugal: reflexo e projeto de uma cultura. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
SERRADO, Serrado; SERPA, Pedro. História do futebol português: das origens ao 25 de Abril – uma análise social e cultural. Lisboa: Prime Books, 2010.
VIDAL, Frédéric; GONÇALVES, Gonçalo Rocha. O desporto na rua em Lisboa no início do século XX. In: José Neves e Nuno Domingos (orgs.). Uma história do desporto em Portugal: volume I – corpo, espaços e média. Vila do Conde: Quidnovi, 2011.
VIEIRA, Joaquim. Mocidade Portuguesa. Lisboa: Esfera dos Livros, 2008.
VIEIRA, Raul. A difusão do desporto: meios eficientes para obtê-la em todo o país. Tese apresentada no Congresso de Clubs Desportivos organizado pelo jornal “Os Sports” – 26 de novembro a 3 de dezembro de 1933. Lisboa: [s.n.], 1934, p. 8.
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