MEU PRIMEIRO TEXTO PARA UMA REVISTA DE SKATE

02/01/2023

Leonardo Brandão

@leobrandao77

Historiador e Professor Universitário

No início de 2004, período no qual estava terminando meu bacharelado em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), publiquei meu primeiro texto sobre skate numa mídia impressa de alcance nacional: a revista 100% Skate (Atualmente a grafia desta revista/mídia digital aparece como CemporcentoSK%TE).

Nesta época, estava escrevendo meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), requisito obrigatório para a obtenção do meu almejado título de historiador. Eu havia resolvido pesquisar (para espanto de alguns professores mais ortodoxos, mas também motivado pelos entusiastas da “Nova História”) a prática do skate; tema até então inédito nos estudos historiográficos no país (havia alguns trabalhos na área da Educação Física, mas nada em História).

Foi neste contexto que tive a coragem de enviar pelos Correios (pois eu não tinha computador e nem acesso fácil à Internet nesta época) um pequeno texto para essa revista da qual já era leitor desde a sua fundação no ano de 1995.

O texto foi enviado com mais dúvidas do que certezas: Será que ele chegaria a seu destinatário? Será que seria lido pelo editor? (na época, o skatista profissional Alexandre Vianna) Será que seria publicado? Algum tempo se passou e, para minha surpresa, recebi pelos Correios a edição impressa da revista em minha residência; nela, havia meu texto publicado! Foi uma festa, mas também o início de uma parceria que se mantém (com períodos de maior e menor intensidade) até os dias atuais.

Relendo esse texto após quase duas décadas de sua publicação, ainda hoje o considero interessante, pois ele nos incita a pensar sobre as possibilidades do corpo. A seguir, reproduzo-o na íntegra para que ele chegue a novos leitores (talvez alguns que nem eram nascidos na época de sua publicação original). Após isso, escrevo outro breve texto atualizando algumas informações nele contidas e finalizo sugerindo alguns links para quem quiser saber mais sobre o assunto aqui tratado.

CONVITE À QUESTÃO: O QUE PODE O CORPO?

Quando, no século XVII, o filósofo holandês Bento Espinosa (1632 – 1677) escreveu “Ética”, um dos livros mais importantes de toda a história da filosofia, ele observou: “Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente, o que, considerado apenas como corporal pelas Leis da Natureza, o corpo pode fazer e não fazer”. Séculos passaram e a questão continua inquietante. Afinal: que pode o corpo?

Transportando essa questão para o universo do skate, ela parece redobrar o seu valor. Pois foi com ele e por ele que o corpo pôde saltar gigantescas escadas, descer corrimãos, andar por transições, bordas, bancos, palcos etc. O skate descobriu novas possibilidades para o corpo e, a cada dia que passa, skatistas demonstram algo novo que ainda se pode fazer com ele: Bob Burnquist provou que o corpo pode dar um looping num tubo, Tony Hawk demonstrou que o 900º é possível numa rampa vertical, outros tantos já exploraram seus corpos de inúmeras maneiras, sempre tentando ultrapassar seus limites e provando que o corpo humano, com um skate sob os pés, pode se superar constantemente, encontrar novos desafios e lugares para andar.

A evolução permanente nas manobras de skate lança o desafio da superação infinita: criar novas manobras, executá-las em lugares inusitados, fazer diferente. O futuro no skate, ao contrário da grande maioria dos esportes, é uma caixa de surpresas a demonstrar que o novo pode ser inventado sempre.

(Texto publicado na edição impressa da revista 100% Skate, n. 74, maio de 2004, p. 96).

Atualizações: Realmente, Bob Burnquist foi o primeiro skatista a realizar um looping num tubo “natural”, isto é, não projetado para o skate. Ele realizou tal façanha no dia 23 de novembro de 2003 às 16h e 20 minutos, tal como consta no site da Transworld Skateboarding listado abaixo. Há relatos, todavia, de que o looping em rampas projetas para o skate havia sido concluído já em 1979 pelo skatista norte-americano Duane Peters. Importante registrar que no ano de 1998, Tony Hawk decidiu recuperar a ideia do looping e o realizou com perfeição, documentando o feito no filme “The End” da Birdhouse. Ainda sobre Bob, o skatista também teve os méritos de realizar o primeiro looping com gap, isto é, com uma abertura na parte superior do tubo. Acerca do giro de 900º, com o passar do tempo, mais rotações foram introduzidas. Em maio de 2020 o skatista curitibano Gui Khury foi o primeiro a realizar o 1080º (três giros completos) numa rampa vertical e entrou para o Guinness World Records (antes dele, em 2012, o skatista Tom Schaar havia conseguido os três giros, mas numa Mega rampa, o que permite maior velocidade e amplitude nas manobras).

 

Para saber mais:

1 – Site da Transworld Skateboarding que afirma o pioneirismo de Bob Burnquist no looping num tubo “natural”.

https://skateboarding.transworld.net/news/bob-burnquist-makes-skateboarding-history/

2 – Veja o próprio Bob Burnquist, em entrevista no Programa Podpah flow cast, recuperando a história dos skatistas que fizeram o looping e citando o nome de Duane Peters e Tony Hawk.

https://www.youtube.com/watch?v=1tTs9iGdThM

3 – Tony Hawk realizando o looping no ano de 1998 em imagens do filme “The End” da Birdhouse:

https://www.youtube.com/watch?v=gO07tMtmByg&t=5s

4 – Vídeo do skatista Gui Khury realizando o primeiro 1080º numa rampa vertical (half-pipe) no canal do youtube do Guinness World Records:

https://www.youtube.com/watch?v=TnwT7rBLKY0


Alfândega, noitadas e mercadorias de presente: uma breve passagem de surfistas sul-africanos pelo Rio de Janeiro

19/08/2019

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

A África do Sul tinha papel importante no cenário internacional do surfe na segunda metade dos anos 1970, tanto pela qualidade das ondas de seu território quanto pela participação de surfistas, dirigentes, juízes, empresários e/ou profissionais de mídia, entre outros, oriundos daquele país. Isto se dava concomitantemente ao crescente isolamento internacional do país, que incluía boicotes como forma de pressão contra os sucessivos governos devido à política de segregação racial conhecida como apartheid. Nos últimos anos, tenho me dedicado tanto a investigar o lugar peculiar do surfe em meio ao boicote esportivo internacional, como também às representações do Brasil e do Rio de Janeiro em revistas internacionais.

Um dos indícios de uma cultura e economia do surfe fortes em um determinado país nos anos 1970 e 1980 é a existência de publicações especializadas, sobretudo revistas. Criada em 1976 na cidade de Durban e ainda em circulação, Zigzag é a mais longeva e provavelmente a mais importante revista de surfe da África do Sul. A edição de junho-agosto (a periodicidade era então trimestral) de 1979 trouxe matéria a respeito de uma viagem realizada por três surfistas às Américas. Os sul-africanos – um deles, autor do texto – viajaram para Brasil, Peru e Canadá. Eis dois trechos:

“(…) passar pela alfândega no Rio de Janeiro (…) Medo de possivelmente passar horas tentando convencer um funcionário olhudo de que só tenho mercadorias para os pobres ratos de surfe brasileiros. Para minha surpresa, sou liberado após dar ao cavalheiro um exemplar de ZigZag – ele ficou amarradão. A animação de Rico ao ver um funcionário da alfândega de fato sorrindo foi contagiante. Os dias que se seguiram são selvagens com noites loucas e gente amigável vivendo apenas o agora. Rico e sua bela mulher Bia quase me convencem a ficar para o Carnaval, mas o chamado da minha próxima parada é grande demais. 1980 será meu ano de carnaval! (…)

Em verdadeiro estilo sul-americano, um voo de seis horas leva 12 para chegar a Lima após o piloto decidir que precisa de algumas horas de pausa para um lanche e faz uma escala imprevista em São Paulo.” (LARMONT, Mike. The Snow Boogie. Zigzag, jun.-ago. 1979. Tradução minha. Abaixo, a primeira página do texto.)

Gostaria de abordar brevemente quatro pontos no trecho citado. Primeiro, as referências à passagem pelo controle alfandegário na entrada em território brasileiro, ocorrida no aeroporto internacional do Galeão, no Rio de Janeiro. Larmont afirma que estava receoso quanto ao trato que receberia por parte dos funcionários responsáveis pela revista de bagagens e a como classificariam os objetos que trazia – segundo ele, agrados para presentear surfistas brasileiros. Relata ainda ter sido um exemplar da própria Zigzag o argumento final que permitiu o desenrolo (como se diria na linguagem corrente das quebradas cariocas) com o trabalhador da alfândega. Seria este um servidor público da Receita Federal? Acredito que sim, embora não seja possível afirmar ao certo. Seria ele um adepto do surfe ou, ao menos, um interessado na modalidade? Também é difícil dizer, mas parece que o exemplar da publicação despertou interesse no servidor, talvez por gosto pessoal, talvez por configurar um item raro a ser dado de presente a uma pessoa querida. Haveria, além dos números de Zigzag, outros itens/mercadorias trazidos como presente na bagagem? A partir do próprio texto não é possível responder.

Segundo, a recepção por parte de Rico de Souza, surfista com grande circulação e contatos internacionais no período. Acredito que as relações de amizade, acolhimento e/ou reciprocidade estabelecidas entre adeptos de diferentes países foram importantes, tanto para reduzir os altos custos envolvidos nas viagens (ficar na casa de conhecidos eliminava os custos de hospedagem e, em alguma medida, de traslados e alimentação), ajudando a viabilizá-las, quanto por facilitarem o acesso a informações (como condições do mar em diferentes praias) e os trâmites do dia-a-dia (facilita muito a vida do viajante, especialmente o monoglota, estar acompanhado de alguém com conhecimento de hábitos e idioma locais). Esta questão, que tem aparecido em diferentes fontes em minhas pesquisas, ainda não foi explorada pelos estudos históricos sobre o surfe – ao menos aqueles publicados em inglês, espanhol ou português.

Terceiro, algumas das menções ao Brasil e aos brasileiros. O autor destaca a beleza de uma mulher (a anfitriã), usa a palavra selvagem para adjetivar as noitadas (o termo também aparece com frequência nas caracterizações da África do Sul feitas por estrangeiros – brasileiros, inclusive) acompanhadas de “gente amigável” que vivia apenas o presente. As intensas atividades de lazer e o estímulo dos anfitriões quase levam o viajante mudar os planos e esticar a estada para incluir o período do Carnaval.

Por fim, a decisão do piloto de realizar uma escala imprevista durante o voo Rio de Janeiro-Lima é classificada como parte de um “verdadeiro estilo sul-americano” – a ver se tal categorização aparecerá em outras edições quando se menciona o Brasil e demais países do continente. Os sul-africanos seguiram viagem rumo a terras peruanas e, posteriormente, da América do Norte, onde os meses iniciais do ano correspondem ao inverno. No Canadá, como se pode notar nas fotos que ilustram a página, os sul-africanos praticaram esqui e snowboard. Era muito comum, na época, que os adeptos de uma modalidade dedicassem parte relevante do seu tempo a outras. No caso do surfe, aqueles com acesso a áreas com neve (como alguns estadunidenses e franceses, por exemplo), costumavam praticar esportes de inverno durante férias, feriados e períodos com pouca oferta de boas ondas. Esse intercâmbio de modalidades é um aspecto ainda pouco explorado nas pesquisas sobre a história do esporte que situam seu recorte na segunda metade do século XX – talvez nos levando a acreditar numa excessiva especialização que não correspondia à experiência concreta do adepto comum, e quiçá tampouco de vários atletas de ponta no âmbito competitivo mais comercial/profissional.

Para saber mais

Conferir os trabalhos do historiador Glen Thompson, incluindo sua tese de doutorado Surfing, Gender and Politics: Identity and Society in the History of South African Surfing Culture in the Twentieth-Century, defendida em 2015 na Stellenbosch University. Agradeço a ele por me facilitar a consulta de seu acervo pessoal de revistas sul-africanas, entre as quais a edição mencionada neste texto.

Uma coleção de capas escaneadas de Zigzag está disponível no site de Al Hunt.

A pesquisa que deu origem a este post tem apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), por meio do edital Jovem Cientista do Nosso Estado (2017).


Sea Club Overall Skate Show: tecnologia e espetáculo no Projeto SP (1988)

18/11/2018

Por Leonardo Brandão

A prática do skate vertical (realizada em grandes rampas no formato de “U”) passou, durante a segunda metade da década de 1980, por um grande desenvolvimento no país. Um marco desse período foi o “Sea Club Overall Skate Show”, um grande campeonato ocorrido no dia 09 de abril de 1988 na cidade de São Paulo, dentro de uma casa de show chamada “Projeto SP”. Esse evento, que chegou a ser exibido no programa “Esporte Espetacular” da Rede Globo, foi produzido numa parceria entre a empresa Sea Club e uma revista especializada em skate, chamada Overall.

Esse evento foi, segundo o editor dessa revista, algo tão bem organizado que até mesmo o obrigou a mudar o tempo verbal de seus editoriais, os quais sempre projetavam o skate como um esporte do futuro e/ou em crescimento. Agora, segundo ele, o skate já era um esporte do presente, um jovem tornado adulto. No editorial reproduzido abaixo, a presença do termo “atleta” como sinônimo de “skatista” demonstra bem a pretendida transição:

Dessa vez é no presente!

O tempo verbal empregado na construção das frases da maioria dos editoriais da Overall, ao longo desses mais de dois anos de trabalho, foi o futuro. Hoje, a realidade nos permite mudar o tempo dos verbos […]. Esta edição especial da Overall, com 84 páginas, sela definitivamente o início da fase adulta deste esporte no Brasil. O SEA CLUB OVERALL SKATE SHOW foi a prova final. O campeão mundial de skate vertical, e outro que está entre os dez melhores skatistas do mundo, desceram do Olimpo e vieram conferir e aplaudir o estágio de desenvolvimento que o esporte atingiu no Brasil. Não só eles, mas toda a imprensa nacional (mais a revista norte-americana Transworld) voltaram objetivas e máquinas de escrever para o maior evento de skate que o Brasil já teve (Revista Overall, n. 9, 1988, p. 08).

A presença de dois dos maiores ídolos do skate estadunidense, Tony Hawk e Lance Mountain, ambos pela primeira vez no país, ajudou a atrair a presença da grande imprensa e atiçar o júbilo público. Oferecido como espetáculo para as massas, o skate reinventava-se para além de seus nichos, seduzindo uma plateia ávida por movimentos arriscados, pirotecnias do corpo e da ação.

Para além do campeonato em si, é preciso notarmos que essa condução do skate vertical em direção ao esporte e, neste caso, ao espetáculo, ocorreu articulada ao que os sociólogos Norbert Elias e Eric Dunning chamaram de “o aparecimento do profissionalismo no desporto”, isto é, de um grupo de pessoas que, ao se tornarem profissionais em determinadas práticas, acabam por desenvolver “um nível de perfeição que dificilmente poderá ser alcançado por pessoas que se dedicam às atividades desportivas no seu tempo de lazer e apenas por prazer” (1992, p. 99). O fato é que os skatistas profissionais passaram a criar um conjunto de técnicas corporais diferenciadas e muito mais especializadas que os demais skatistas amadores ou somente praticantes de fim de semana; e isso acabou por conferir a esse grupo restrito as condições necessárias para protagonizarem um verdadeiro “espetáculo” para os admiradores dessa atividade.

Outro aspecto que merece destaque foi a comercialização do vídeo deste campeonato, tido como a “fita VHS do mais radical show de skate já visto no Brasil”. A presença do público (nove mil pessoas), dos dois skatistas convidados dos Estados Unidos e dos “24 melhores skatistas verticais do Brasil” eram os ingredientes oferecidos. O show de imagens, sem dúvida, transformava o skate – e, por conseguinte, o corpo desses skatistas – num espetáculo televisivo; uma vez que, como afirmou o sociólogo Pierre Bourdieu, “a constituição progressiva de um campo relativamente autônomo reservado a profissionais é acompanhada de uma despossessão dos leigos, pouco a pouco, reduzidos ao papel de espectadores” (BOURDIEU, 1990, p. 217).

Assim, a exibição das manobras de skate evidenciava um uso dessa atividade que implicava tecnologia e espetáculo – que uma vez adquiridos, poderiam ser vistos repetidas e repetidas vezes através da união do videocassete com a televisão. A transformação das competições em experiências midiáticas passou a refabricar a emoção do espectador, isto é, a criar novas formas e maneiras de vê-las. Diferentemente dos 9 mil espectadores que estavam presentes no Sea Club Overall Skate Show, e que por isso podiam ver a exibição in loco dos skatistas apenas do ângulo que estavam posicionados na plateia, a experiência do vídeo (filmado por diversas câmeras, sob vários ângulos e depois editado) ampliava as possibilidades de quem os comprasse de poder admirar melhor a performance de cada competidor, visualizando as muitas manobras efetuadas nos dois lados das rampas (“U”).

Figura 1: Capa do VHS “Sea Club Overall Skate Show”

Fonte: Revista Overall, n.9, 1988, p. 81.

A grandiosidade deste campeonato chamou à atenção da revista Veja, que publicou uma reportagem sobre ele, destacando o fato dos 24 participantes inscritos competirem com patrocínios; citando, como exemplo, o skatista Reginaldo dos Santos Neto, apelidado de “Pankeka” e patrocinado pela fábrica de skates H-Prol. Segundo a Veja, Pankeka recebia um salário de 50.000 cruzados por mês, além de equipamentos para os treinos e apoio também nas demais competições que participava.

Interessante notarmos que, embora a Veja se valesse desse campeonato para noticiar o skate em sua página dedicada aos “esportes”, a competição em si fora algo pouco abordado pela mesma. A revista não se preocupou em publicar os resultados (o ranking) e nem deu destaque aos melhores competidores. O interesse da reportagem era outro, anunciado claramente na seguinte manchete: “O skate entra na era do profissionalismo” (Revista Veja, 20/04/1988, p. 67).

Esse campeonato incentivou o aparecimento de outros eventos do mesmo porte no universo do skate vertical, todos elaborados para atrair um grande público, com estrutura de organização, cobertura midiática e ampla divulgação. No ano seguinte, por exemplo, um evento da mesma magnitude voltou a ocorrer, mas desta vez na cidade do Rio de Janeiro. Era a Copa Itaú de Skate, patrocinada pelo banco Itaú e realizada numa grande estrutura montada na praia de Ipanema. Era, enfim, a consolidação do profissionalismo no skate, dos grandes campeonatos e da elevação dessa prática realizada em grandes rampas ao patamar de um esporte espetacular.

Para saber mais:

BRANDÃO, Leonardo. A década de 1980 e o desenvolvimento do skate vertical. In: Recorde, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 1 – 28, jul/dez de 2017.

Referências

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.

ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992.


Aventuras juvenis, ficção e a cultura do surfe

11/11/2018

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

The Grommets: The Secret of Turtle Cave é um livro ficcional ilustrado voltado para o público infanto-juvenil. Foi escrito por Mark-Robert Bluemel e publicado de forma independente/amadora em 2007. Teve uma sequência em 2014, com o título The Grommets: Big Island Justice. O autor é um advogado e surfista que vive em San Diego (Califórnia, EUA). Trata-se da estreia do autor no universo ficcional. Embora eu tenha classificado a produção como independente/amadora (em função de características do projeto gráfico, erros de revisão etc.), o exemplar que li integra a segunda edição, o que sugere que a primeira foi vendida até se esgotar.

A obra conta uma história envolvendo três adolescentes: Buzz (o narrador), Oz e Jimbo. A história não menciona uma cidade ou ano em que se situe, mas uma série de elementos sugerem o Sul da Califórnia e o início dos anos 1990 como espaço e tempo da trama. No caso do litoral Sul da Califórnia: a diferença de temperatura do mar entre o verão e o inverno; a existência de encostas com pedras e cavernas no litoral; a descrição das origens étnico-raciais dos adolescentes (algo muito relevante na sociedade estadunidense como um todo, não apenas no estado em questão): um descendente de peruanos, outro de “nórdicos”; o fundo de areia sobre o qual quebram as ondas; a casa “amarela com telhado em estilo espanhol” em que o protagonista Buzz vive com os pais (p. 13); o crowd de surfistas no mar; a ideia de recorrer aos livros disponíveis na biblioteca pública local quando precisam buscar informações sobre um assunto (a presença de cavernas no litoral).

Quanto à época em que se passa a trama, ainda não existiam telefones celulares: boa parte dos contatos entre as pessoas se dão com ligações entre telefones fixos. Frequentemente, com interferências indesejadas (para os adolescentes) por parte dos pais, que atendem as ligações e controlam o acesso aos aparelhos, quase sempre localizados na sala das residências. Tampouco há computadores para uso pessoal nas casas, nem menção à existência de internet. Mas há um aparelho de TV que, acoplado a um videocassete, permite aos adolescentes “assistir ao boletim das ondas e vídeos de surfe” (p. 49).

Dois deles residem próximo ao litoral (levam 10 minutos de bicicleta, enquanto o terceiro leva 45) e um deles pretende passar o verão auxiliando o pai em tarefas em troca de pagamento de forma a juntar dinheiro para comprar uma prancha nova. A vitrine da surf shop local é uma referência importante de consumo e de desejo para os adolescentes, que sonham em especial com as pranchas novas expostas. No quarto do protagonista, que narra o livro em primeira pessoa, há “nas paredes pôsteres de revistas de surfe” (p. 13).

Lendo a obra, especialmente as passagens relativas a sensações experimentadas ao surfar, lembrei-me de artigos em que o historiador Douglas Booth argumenta que a história do esporte dedica escasso tempo e atenção a essa questão (como este). Em The Grommets há descrição de várias sensações envolvidas no ato de surfar: ao descer ondas, realizar manobras, furar ondas. Refiro-me não apenas a uma descrição dos movimentos corpóreos realizados, mas daquilo que o surfista sente: prazer, alegria, êxtase, hesitação, medo. Ou cansaço: ao voltar para casa de bicicleta, com a prancha debaixo do braço, após horas de esforço físico surfando. Logo no início, o narrador afirma: “você realmente tem que amar o esporte para acordar de madrugada e pular na água gelada” (p. 1).

Na tentativa de transmitir ao leitor tais sensações, o autor lança mão de expressões comuns no universo do surfe: a comparação com uma “boneca de pano dentro de uma máquina de lavar” para emular as sensações que um surfista tem ao levar um caldo violento; a afirmação de que o tempo parece parar quando se está dentro do tubo; a sensação de voar ao descer a onda e ao realizar certas manobras (mesmo sem dar aéreos, manobra restrita ao repertório de poucos surfistas amadores naquela época). Ainda nesse âmbito, há características que remetem à experiência pessoal vivenciada no esporte. Por exemplo, a noção de que há dias bons e dias ruins. Nos primeiros, têm-se a sensação de que tudo dá certo e a confiança adquirida ajuda a acertar ainda mais. Nos últimos, acontece o contrário, e a perda de confiança em geral estimula a piora de desempenho.

Há também descrições/explicações mais técnicas: movimentos e manobras e de como muitos destes têm nomes específicos (dentro de um vocabulário corrente da modalidade, como acontece com outras práticas corporais); da formação das ondas. Algumas passagens misturam uma descrição de características do esporte com um tom de advertência em relação a possíveis riscos, como no caso das correntes/correntezas (um potencial risco à vida de nadadores e surfistas que não as percebam e nadem na direção contrária). As recomendações e conselhos sobre o que fazer e que não fazer, noções de certo e errado e afins, na maioria das vezes, aparecem em falas do pai de Buzz. Mas, às vezes, nas do protagonista, como quando diz que um surfista nunca deve rabear outro (p. 17). Em três ou quatro momentos, recomenda-se que surfistas novatos devem evitar os dias em que o mar está muito forte, com ondas grandes. Isso os faz evitar riscos desnecessários para si próprios e para os demais surfistas. Em The Grommets é possível encontrar recomendações como não mentir para os país, não desapontá-los etc., o que me parece ser comum neste tipo de literatura. No caso, os riscos e problemas decorrentes da desobediência às vezes têm a ver diretamente com o surfe – como Buzz desrespeitar a proibição de pegar onda próximo a pedras e falésias.

A narrativa se desenvolve praticamente toda em torno de um verão. As férias escolares, o sol e o calor permitem ao protagonista aproveitar o tempo livre com uma série de atividades com seus melhores amigos – e, imagino, ao autor elaborar uma narrativa que também seja uma leitura atraente para adolescentes (de férias ou não, californianos ou não). Segundo May (2002), desde meados dos anos 1950, houve na sociedade estadunidense – sobretudo na indústria cultural, mas não só – um intenso processo de construção da Califórnia como o destino de sonho nos Estados Unidos. Tal imagem de lugar onde se deseja viver e/ou passar as férias permanece muito forte no imaginário do país. Particularmente o Sul daquele estado – cidades como San Diego – é um dos lugares mais procurados no turismo interno do país. Trata-se de uma obra divertida e leve. Talvez possa também ser usado como livro livro paradidático, pois conta com passagens e elementos que podem ser facilmente apropriados para aulas de matérias como Biologia, Geografia, Física e História. No caso da última, por exemplo, há referências ao enriquecimento de contrabandistas (traficantes) durante o período da Lei Seca. O que me interessa aqui, na linha de outros textos que venho escrevendo neste blogue, é traçar alguns apontamentos que permitam observar essa obra e esse tipo de obra – obras literárias para o público infanto-juvenil – como uma fonte histórica para a história do esporte.

O foco da trama são peripécias na exploração de uma caverna. Secundariamente, a relação de amizade que os três estabelecem com Nana, a idosa que vive à beira-mar e que é salva por eles de se afogar. Nana fazia exercícios matinais de natação e teve cãimbras em ambas as pernas. O episódio diz respeito a um aspecto comum do universo do surfe, mas pouco presente em suas representações artísticas e midiáticas: tanto a presença física dos surfistas no mar ajuda a perceber situações de afogamento (às vezes difíceis de enxergar desde a praia) como o fato de usarem pranchas facilita o salvamento (a prancha é um objeto flutuante ao qual a pessoa que está se afogando pode se agarrar, evitando colocar em risco a vida de quem tenta resgatá-la).

O enredo não tem propriamente vilões, apenas um antagonista com escassa presença. Também é surfista, mas, na situação em que é apresentado, usa uma camisa de um time de futebol americano. Tampouco há conflitos entre surfistas de diferentes grupos (geracionais, longboarders x shortboarders, exímios x iniciantes, etc.).

O surfe ocupa papel central na vida do trio de adolescentes (e não só porque estão de férias) e o consumo midiático é parte importante do processo. Buzz fica excitadíssimo quando recebe pelo correio, a cada mês, a edição da revista Surfer’s World, da qual tem uma assinatura. A principal punição recebida dos pais quando faz algo errado é ficar impedido de surfar por uma certa quantidade de dias (em se tratando de algo grave, geralmente é combinada com proibição de ver TV, falar no telefone e encontrar os amigos). O protagonista adora passar tempo com amigos no próprio quarto, lendo “revistas de surfe” e assistindo vídeos sobre surfe.

Quando não há ondas, uma das atividades favoritas de Buzz, Oz e Jimmy é andar de skate. Eles consideram que o skate permite emular os movimentos corporais e manobras do surfe – e, em alguma medida, as sensações proporcionadas. “Temos alguns amigos que amam o skate e só surfam ocasionalmente, por brincadeira. Somos exatamente o contrário. Meus amigos e eu preferimos surfar todo dia!” (p. 53) A comparação ressalta a diferença quando se cai: no skate, geralmente o corpo atinge o asfalto. Por isso, “é sempre necessário para qualquer um usar equipamentos de segurança e um capacete quando você anda no cimento”. Natação (no mar), skate (shortboard e longboard), mergulho, pesca submarina, remo, andar de bicicleta e escalar cordas também são mencionados na trama, embora quase sempre como exercícios, atividades de lazer ou parte da rotina, mas não propriamente como esportes.

Perto do fim da trama, evidentemente, a aproximação do fim das férias de verão – e do retorno das aulas escolares – apavora os adolescentes. No entanto, como esperado, há um final feliz – surfisticamente falando, inclusive. Graças a uma recompensa recebida, realizam o desejo de comprar uma prancha nova e uma nova roupa de neoprene – mas os pais os obrigam a depositar a maior parte do valor numa poupança com o objetivo de juntarem dinheiro para pagar a universidade. Coisas de um país que não conta com ensino superior público e integralmente financiado pelo estado, como (ainda) é o caso do Brasil.

Referências bibliográficas

BOOTH, Douglas. História, cultura e surfe: explorando relações historiográficas. Recorde, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 1-24, jan./jun. 2015. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Recorde/article/view/2307/1951 .

MAY, Kirse Granat. Golden State, Golden Youth: The California Image in Popular Culture, 1955-1966. Chapel Hill, London: The University of North Carolina Press, 2002.

Para saber mais

  • Um exemplo de livro infanto-juvenil brasileiro abordando temática dos esportes radicais: Nas ondas do surf, de Edith Modesto. Apesar do título, a trama é sobre bodyboard, e não surfe.
  • Victor Melo tem publicado artigos e livros abordando livros de ficção como objeto e fonte histórica. Ver, por exemplo, este artigo a respeito de Os Maias.
  • Douglas Booth tem publicado artigos com diversas provocações a respeito da necessidade de o historiador lançar mão de sensações, sentimentos, emoções e afetos na escrita da história do esporte.