Os leitores de uma revista e a repressão ao skate de rua na década de 1980

22/08/2022

Por Rafael Fortes (rafael.soares@unirio.br)

A prática do skate cresceu muito no Brasil durante os anos 1980. A ampla maioria dos adeptos eram crianças, adolescentes e jovens adultos – que podem ser reunidos na categoria genérica jovem/juventude – e boa parte residia em cidades grandes e médias. Eles andavam de skate em áreas abertas revestidas por asfalto e cimento: ruas, calçadas, praças, estacionamentos, pátios, áreas de entrada de grandes edificações e de órgãos públicos, entre outros. Em muitos casos, tal afluxo de jovens e uso destas áreas foi objeto de controvérsias, gerando distintas reações, entre as quais coibições e proibições. Centenas (possivelmente milhares) destes jovens escreveram cartas para publicações como Overall. Nelas, relatavam seu envolvimento com o skate e, muitas vezes, os conflitos dele decorrentes. Também demandavam apoio do poder público municipal, por meio da construção de equipamentos urbanos (pistas) para andarem de skate.

O assunto é explorado no artigo “Dilemas de um esporte em construção: uma análise da seção de cartas na revista Overall (1985-1990)“, escrito por Leonardo Brandão, da Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) e por mim e publicado recentemente na revista Pro-Posições (Unicamp).

Nele apontamos e exploramos a ambivalência que marcou o skate no Brasil naquela década – “por um lado, crescimento e esportivização; por outro, marginalização” – utilizando como fonte todas as cartas de leitores publicadas durante a existência do periódico Overall, sediado em São Paulo capital e de circulação nacional. As cartas – 107, no total – foram publicadas em todos os dezenove números produzidos entre 1985 e 1990.

A existência de mídias de nicho como a revista Overall é um indicativo dos processos de disseminação, esportivização e comercialização pelos quais passava o skate – em sua vertente vertical – e, ao mesmo tempo, de elementos que o diferenciavam de esportes de massa à época como futebol, vôlei e basquete. Uma das características das mídias de nicho é o estabelecimento de certa relação de proximidade com o leitor, motivada não apenas pelo assunto que abordam, mas por serem feitas de adepto para adepto (ou de entusiasta/fã/conhecedor para entusiasta/fã/conhecedor).

Isso em parte explica o perfil dos missivistas: pessoas comuns (e não skatistas famosos, campeões e/ou profissionais). Ou seja, os adeptos que assinavam as cartas não eram os mesmos que apareciam com mais frequência nas páginas da revista. Aproximadamente metade deles residia no estado de São Paulo. A outra metade se distribuiu por catorze estados e o Distrito Federal e incluiu municípios com população pequena.

Foram diversos os assuntos tratados nas cartas. Destaco um: as queixas sobre a repressão à prática do skate nas ruas (street skate). Xingamentos dirigidos aos skatistas, decretos municipais proibindo a prática (como em São Paulo capital), preconceito e punições por parte dos pais, atitudes intimidatórias por parte das “autoridades” são relatados nas cartas, que muitas vezes apontam a inexistência de equipamentos públicos (pistas, rampas, bowls, half-pipe, banks) e consideram isto um agravante. Em outras palavras, salvo raras exceções, as prefeituras não ofereciam espaços para a prática, restando aos jovens utilizarem as ruas. Ao fazerem isto, eram reprimidos pelo mesmíssimo poder público municipal (com a notável ajuda e participação das polícias, subordinadas aos governos estaduais) que lhes impedia de andar de skate em locais adequados, uma vez que estes inexistiam. As cartas expressam as vozes de sujeitos que querem se expressar publicamente e apresentar suas reivindicações – o que em alguns casos significou não apenas escrever cartas individualmente, mas a organização coletiva para apresentar a demanda ao prefeito ou a um vereador.

De acordo com Brandão e Machado (2019), poucos trabalhos exploraram a história do skate no Brasil. Ainda estão por se fazer histórias das proibições do skate, principalmente nos anos 1980, em municípios, micro e mesorregiões e estados, as quais, por sua vez, permitiriam comparações e/ou a elaboração de sínteses nacionais. Desde o meu ponto de vista, estes embates nos anos 1980 são uma das questões mais instigantes e férteis a se explorar na história do skate, sobretudo para os pesquisadores interessados em política e/ou políticas públicas. São o tipo de pesquisa cujo texto com os resultados eu adoraria ler. Contudo, ela permanece praticamente intocada, sendo exceção a pesquisa de Brandão (2016) sobre São Paulo (SP).

Para saber mais

BRANDÃO, Leonardo.”Andar de skate não é crime!”: Jânio Quadros e a proibição do skate na cidade de São Paulo. In: Enrico Spaggiari; Giancarlo Marques Carraro Machado. (Org.). Entre Jogos e Copas: reflexões de uma década esportiva. São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2016, v. 1, p. 139-158.

BRANDÃO, Leonardo; FORTES, Rafael. Dilemas de um esporte em construção: uma análise da seção de cartas na revista Overall (1985 – 1990). Pro-Posições, Campinas, v. 32, n. 1, p. 1-26, 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1980-6248-2020-0102>. Acesso em 26 jun. 2022.

BRANDÃO, Leonardo; MACHADO, Giancarlo. A Pesquisa sobre Skate nos Programas de Pós-Graduação do Brasil: Panorama e Perspectivas. Recorde – Revista de História do Esporte, v. 12, p. 01-21, 2019.

[Texto publicado originalmente em 19/7/22 no BELA – Blog Estudos do Lazer]


Presença feminina nos primórdios do esporte em São Paulo

11/07/2022

Por Flávia da Cruz Santos

A presença feminina se faz sentir, nos momentos iniciais do esporte na capital paulista, pela ausência, pelos silêncios das fontes. O corpo feminino era algo quase que proibido, em que não se podia tocar e cujas formas não era permitido conhecer. As vestimentas não apenas adornavam, mas escondiam e deformavam o corpo feminino. Elegância era a palavra de ordem, era o que orientava a participação das mulheres na cena pública. Ao menos era esse, o desejo das elites paulistanas, que estruturavam a sociedade partir da ideologia patriarcal.  

A participação das mulheres, apesar de ser desejada e incentivada, se restringia às arquibancadas. O embelezamento do espetáculo, por vezes, se limitava à sua presença, às suas vestes e adornos. Depois de afirmar, que as corridas do Grande Prêmio, no Hipódromo da Mooca, haviam sido “uma verdadeira decepção”, o colunista, que assina como “Jack, Entraineur” avalia:

Apesar de tudo isso porém, Jack está satisfeito, porque as senhoras apresentaram-se como deviam, vestidas com luxo e esmero. Ocuparam as arquibancadas, enquanto nós outros vínhamos para o encilhamento ou para as imediações da pista.
Lá em cima, viam-se os reflexos das sedas, ao lado das cores embasadas dos vestidos de lã ou de linho, flutuavam rendas, e agitavam-se leques de infinitas formas, uns de plumas, outros de gaze e entre eles um muito chique formado de folhas de begônias. (O Estado de S. Paulo, 21 out. 1890, p. 1)

Todos se sentiam autorizados a avaliar as mulheres, até mesmo alguém cuja especialidade era o treinamento. Tentava-se reduzi-las a isso, à aparência, às vestimentas, penteados e adereços. Essa é a representação das mulheres, dominante nos periódicos. Contudo, tanto as mulheres das classes dominantes, quanto as mulheres das camadas populares, estavam longe de restringir seu papel social ao embelezamento.

As mulheres pobres (brancas, forras, escravas) desempenhavam diferentes funções (costureiras, bordadeiras, quitandeiras, lavadeiras), e também, quando necessário, ocupavam papéis tipicamente masculinos (tropeiras, roceiras) (DIAS, 1995). As mulheres das camadas dominantes, eram empresárias ativas, formadoras dos filhos, socializadoras e treinadoras dos escravizados, administradoras de suas propriedades e lavouras (CANDIDO, 1951).

Mas, se a elegância, entendida nos termos de nosso interlocutor, era uma exigência, não é difícil concluir que as mulheres que estiveram presentes nesses momentos iniciais da conformação do esporte em São Paulo, pertenciam exclusivamente às elites. Pois, a impossibilidade da exibição de luxos pelas camadas populares nos momentos de diversão, era apontada pelos próprios paulistanos daquele tempo:

Ora, todos nós sabemos quanto custa frequentar sociedades hoje em S. Paulo, principalmente quem tem mulher e filhos. Como porém me asseveraram que na Concórdia Familiar eram expressamente proibidas as sedas, as joias e as luvas, verbas todas estas elevadíssimas para os pais de família, acedi a entrar para esta nova sociedade.
 
Qual não foi, porém, Sr. redator, o meu desapontamento quando entrando noite de sábado na casa onde se dava a partida da Concórdia, vi algumas senhoras cobertas de seda e brilhantes, com finíssimas luvas Jouvin! Fiquei furioso assim como minha Eva, e mais prole, que todas tinham ido com seus vestidinhos de 6$rs., sem luvas nem adereços. Ora, uma sociedade familiar não é lugar para se ostentar riqueza, porque ofende e faz pouco nos outros, que não tem a felicidade de agarrarem boas empresas, que não tem lucros fabulosos, podendo por essa razão gastarem a grande. (Correio Paulistano, 22 out. 1872, p. 2)

O investimento nas roupas e adornos era um imperativo para aqueles que frequentavam espaços de sociabilidade, o que acabava por deles excluir uma parcela nada pequena da população da capital. Pois, a sociedade paulistana era “muito desigual, hierarquizada ao extremo e com elevado índice de concentração de riqueza” (DIAS, 1995, p. 192).


Referências

DIAS, Maria Odila Leite da Sila. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995.

CANDIDO, A. The Brazilian family. In: LYNN SMITH, T. e MARCHANT, A. Brazil: portrait of half a continent. New York: Dryden, 1951, p. 291-312.


PESQUISA DE MESTRADO NA UFRJ IRÁ COMPARAR PICOS CLÁSSICOS EM SÃO PAULO/SP E RIO DE JANEIRO/RJ[1]

10/05/2021

Entrevista realizada por: Prof. Dr. Leonardo Brandão (FURB)

Instagram: leobrandao77


As pesquisas universitárias sobre skate no Brasil vem crescendo tanto em quantidade quanto em qualidade. Já são vários os Trabalhos de Conclusão de Curso (os famosos TCC’s) que abordam, sob diferentes ângulos, a prática e a cultura do skateboard. Algumas pesquisas avançam também na Pós-Graduação, com dissertações de Mestrado   e Teses de Doutorado. Neste âmbito, a mais recente pesquisa aprovada para se tornar uma dissertação de Mestrado vem do Rio de Janeiro/RJ, na pessoa do geógrafo e skatista Luciano Hermes (43 anos), que recentemente foi aprovado no Mestrado em História Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com um projeto que visa comparar os processos de reivindicação da prática do skate em dois picos clássicos, o Vale do Anhangabaú em São Paulo (que agora é o Memorial) e a famosa Praça XV no Rio de Janeiro/RJ

Conversei um pouco com Luciano para conhecê-lo melhor e saber um pouco mais de seu projeto de pesquisa, seus objetivos e como ele pretende realizá-lo. A seguir, nosso bate-papo:

1 – Olá Luciano! Gostaria que você se apresentasse, contando um pouco sobre você, em especial sua trajetória na cena do skate e acadêmica.

Olá! Meu nome é Luciano Hermes da Silva. Tenho 43 anos e sou skatista desde 1989. Comecei a andar de skate no breve período de existência da Associação de Skate de São Gonçalo (ASSG). A primeira coisa que se reparava era que os próprios skatistas, em regime de mutirão, montavam rampas e trilhos para andarem de skate em uma rua de asfalto liso. A família de um dos skatistas não se incomodava com a sessão em frente de casa, como também deixava guardar na garagem os obstáculos. A ASSG organizou alguns campeonatos de skate entre 1988 e 1989 que foram muito importantes para a História do skate no RJ.

Bom que se diga, que na virada da década de 1980 até meados da década de 1990, muita coisa mudou no skate e na sua própria prática. Daí que a cada nova fase, um certo tipo de pico se tornava mais frequentado por nós. De início as rampas de madeira da ASSG, e depois, o ringue de patinação do Campo de São Bento, as mini-ramps (Lauro Müller, Urca, Piratininga e Mutuá), a pista de São Francisco, além dos precários picos de rua.

A prática de skate intensa até 1997 foi interrompida por causa de trabalho e estudos, até que só foi ‘resgatada’ junto com a liberação do skate na Praça XV, em 2011.

Atuo como professor de Geografia desde 2001 e, de 2012 até os dias de hoje, trabalho como professor de Geografia na rede municipal do Rio de Janeiro.

A partir de 2013, juntamente com Nelson Diniz, que é também skatista, professor e pesquisador em Planejamento Urbano e Regional, iniciou-se um esforço analítico sobre a prática do skate. Em coautoria, publicamos e apresentamos ao debate acadêmico algumas elaborações nossas a respeito dos conflitos relativos à prática do skate em espaços públicos no Rio de Janeiro.

Fui recentemente aprovado no mestrado no Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ (PPGHC-UFRJ), na turma de 2021, com o projeto cujo título é: “O skate conquista o centro da cidade: Praça XV-RJ e Vale do Anhangabaú-SP em perspectiva comparada”.

2 – Explique como você teve a ideia de escrever este projeto de mestrado que foi aprovado na UFRJ e qual o seu objetivo?

A pesquisa sobre a prática do skate em espaços públicos nos permitiu identificar padrões de ação dos skatistas e dos gestores urbanos no caso da Praça XV, no Rio de Janeiro. De modo que, ao observar o que se passou no Vale do Anhangabaú, já se dispunha de alguns conceitos.

A ideia decorreu do interesse em identificar semelhanças e diferenças nos dois casos. O objetivo central do projeto é estabelecer uma perspectiva comparada dos padrões de ação dos skatistas organizados no Coletivo XV e no Salve o Vale nos processos de reivindicação de uso dos espaços públicos da Praça XV e do Vale do Anhangabaú.

Entre os objetivos específicos da pesquisa, um merece destaque: a discussão sobre a centralidade da categoria espaço público nos discursos dos dois casos considerados.

3 – Como você fará esta pesquisa? Fale um pouco sobre a questão do método.

O projeto está sob orientação do Professor Dr. Fernando Luiz Vale Castro e sob co-orientação da Professora Drª Andréa Casa Nova Maia, o que significa algumas mudanças de estratégia no decorrer do curso. De toda forma, o plano inclui os seguintes procedimentos: revisão da literatura, realização de entrevistas, trabalhos de campo de observação participante, pesquisa iconográfica e audiovisual.

A análise dos Decretos e dos Planos Diretores subsidiará o estabelecimento dos marcos temporais, bem como a elaboração dos questionários das entrevistas.

Como se trata de um processo recente e de pouca sistematização a respeito, o recurso das entrevistas é de grande relevância. Pretende-se realizar entrevistas com os skatistas responsáveis pela organização do Coletivo XV e do Salve o Vale, com representantes das instituições da administração públicas envolvidas nos processos de negociação (Secretaria de Parques e Jardins e Instituo Nacional do Patrimônio Histórico, no Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras, em São Paulo), bem como com representantes das empresas responsáveis pela construção dos mobiliários urbanos adicionados à Praça XV.

A observação participante é o recurso ao qual se recorrer para o registro da dinâmica da normalidade dos espaços públicos considerados. Pretende-se adotar a prática do registro em diário de campo para a tomada de notas a respeito, por exemplo, do convívio entre skatistas e demais frequentadores e transeuntes tanto da Praça XV, quanto do Vale do Anhangabaú.

Através dos registros fotográficos e audiovisuais, tanto das mídias especializadas, quanto dos acervos particulares, pretende-se reconstituir a trajetória da ocupação dos skatistas na Praça XV e no Vale do Anhangabaú.

4 – O espaço final é seu. Deixe algum recado para quem está lendo essa entrevista e pretende pesquisar skate na Universidade.

Muito obrigado pela recepção e pela consideração à pesquisa.

Diria que o mais importante é definir qual aspecto do skate se vai investigar. Com o objeto bem definido é que se elabora uma questão para ser pesquisada. Um exemplo banal, no caso da História do skate: “Quais manobras já mandaram subindo o corrimão tal?” Nenhuma das manobras descendo o corrimão responde à questão.

No mais, diria que a recepção é sempre muito boa quando se apresenta a ideia a outros pesquisadores.

O caminho está minimamente pavimentado, na medida em que há, tanto no Brasil quanto em outros países, uma produção considerada válida para se tomar por referência.

SAIBA MAIS

“O que o skate pode dizer sobre o ensino de geografia?”

Luciano Hermes da Silva e Nelson Diniz (2014)

https://www.cp2.g12.br/ojs/index.php/GIRAMUNDO/article/view/50

“Contra-uso skatista de espaços públicos no Rio de Janeiro”

Nelson Diniz e Luciano Hermes da Silva

http://emetropolis.net/artigo/202?name=contra-uso-skatista-de-espacos-publicos-no-rio-de-janeiro


[1] Publicado originalmente, com pequenas alterações, no site da revista CemporcentoSKATE.