Um encontro entre futebol e surfe na Copa do Mundo de 2010 (África do Sul)

23/11/2020

Por Rafael Fortes

Este texto sintetiza uma parte das discussões presentes em trabalho apresentado no grupo de pesquisa Comunicação e Esporte e publicado nos anais do 42o. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, organizado pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) em Belém (PA).

Afrika (2011) é um filme dirigido por Thomas Mulcaire e Ricardo de Oliveira e está disponível na íntegra no link abaixo:

O filme contou com patrocínio de empresas e fundos voltados para o fomento às artes.

Rodado ao longo de 2010 em Moçambique e na África do Sul, narra uma viagem de quatro surfistas brasileiros pelos dois países. O primeiro aparece rapidamente, sendo a maior parte do tempo dedicado ao último. Identifiquei onze cenas ou sequências com alguma referência ao futebol. A maioria delas é bastante fugaz: uma bola de futebol ao lado de uma prancha sobre a areia da praia ou um take mostrando uma roda de homens brincando  de altinha. Esta atividade, que consiste em duas ou mais pessoas trocarem passes com uma bola de futebol sem deixá-la tocar o chão, é bastante comum em praias do litoral brasileiro – no Rio de Janeiro e noutros estados -, inclusive naquelas muito frequentadas por surfistas. Cenas semelhantes – e de partidas de golzinho – aparecem esporadicamente em filmes brasileiros dedicados ao surfe, tendo, como participantes, os próprios surfistas do país.

Isto sugere algo que pode parecer óbvio, mas que considero válido mencionar: durante o processo de crescimento, enquanto ainda são crianças e adolescentes, a maioria daqueles que serão atletas futuros de uma modalidade (específica) se dedicam a várias delas, seja do ponto de vista do treinamento e competição, seja do ponto de vista da diversão. Tendo em vista a forte presença do futebol no Brasil, não é de surpreender que muitos surfistas tenham crescido batendo uma bolinha e sigam gostando de fazê-lo.

A principal distinção de Afrika em relação à filmografia de surfe, no que diz respeito à presença futebolística, encontra-se na sequência de aproximadamente três minutos em que os surfistas comparecem ao estádio Soccer City, em Joanesburgo, para assistir à partida entre Brasil e Costa do Marfim pela Copa do Mundo de futebol de homens realizada em 2010. O trecho evidencia a pouca familiaridade dos surfistas com o ambiente do estádio de futebol – no caso, particularmente impressionante por se tratar de uma partida de Copa do Mundo envolvendo a seleção brasileira. O barulho das torcidas – evidentes pelo volume do áudio do próprio filme – é um dos elementos que impressionam os protagonistas do filme.

A vitória da seleção brasileira pelo placar de três a um permitiu-lhes experimentar tanto a comemoração de gols, assistir em uma ocasião à celebração entre aqueles que torciam para a seleção marfinesa. Na mesma sequência, aparecem ainda comemorações, batucadas, gritos e cânticos em português, que prosseguem no pós-jogo pela parte externa do estádio e no interior de um ônibus.

Conforme afirmei no artigo:

As sequências no estádio e as comemorações pós-jogo reproduzem elementos do senso comum a respeito de megaeventos esportivos como a Copa do Mundo – por exemplo, a ideia de que são (exclusivamente) ocasião para congraçamento dos povos.[1] Tal visão se expressa também em um item dos “agradecimentos especiais” nos créditos finais: à “Fifa pela Copa do Mundo de 2010”.

Esporte e cinema vêm sendo estimulados por sucessivos governos da África do Sul pós-apartheid como instrumentos para divulgar uma imagem positiva do país no exterior e para incrementar o afluxo de turistas (Fortes, 2014). A realização das Copas do Mundo de rugby em 1995 e de futebol em 2010, bem como a candidatura da Cidade do Cabo para sediar os Jogos Olímpicos de verão de 2004, integram este conjunto de políticas – também observáveis noutros países dos BRICS (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Este contexto é importante para se compreender a realização de um filme como Afrika e, também, a inserção particular dele na filmografia brasileira de surfe.

Referências bibliográficas

FORTES, Rafael. Entre o surfe feminino, a indústria de surfwear e a promoção da África do Sul: uma análise de A Onda dos Sonhos 2. In: FORTES, Rafael; MELO, Victor Andrade de (org.). Comunicação e esporte: reflexões a partir do cinema. Rio de Janeiro: 7 Letras/Faperj, 2014. p. 49-70.

FORTES, Rafael. O futebol num filme de surfe: Afrika, Copa do Mundo e a filmografia sobre esporte. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 42, 2019, Belém. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/nacional2019/resumos/R14-0019-1.pdf . Acesso em 23 nov. 2020.

Notas

[1] Ignorando-se, por exemplo, os impactos sociais e coletivos sobre setores mais vulneráveis da população devido às políticas públicas de remoções forçadas, conforme discutido e denunciado no documentário Tin Town.


“Um arco-íris multicultural de sotaques e cores de pele”: a diversão no Campeonato Mundial de Surfe Amador de 1988

19/01/2020

Por Rafael Fortes (rafael.soares@unirio.br)

O Campeonato Mundial de Surfe Amador realizado em 1988 em Porto Rico é frequentemente apontado por jornalistas, surfistas e memorialistas como um marco na trajetória brasileira no âmbito competitivo internacional. Isto porque o brasileiro Fabio Gouveia sagrou-se campeão da categoria Open, a de maior destaque (o mundial amador é uma competição por equipes e este aspecto costumava receber pouco destaque na imprensa brasileira, mas esta é outra história). Um título inédito, tanto entre os campeonatos da primeira era (1964 até 1972, sendo o de 68 também em Porto Rico) quanto aqueles realizados a partir de 1978, organizados pela International Surfing Association (ISA), fundada em 1976.

Enquanto nas revistas de surfe brasileiras a cobertura enfatizou a vitória do atleta conterrâneo, em publicações internacionais a ênfase foi – como era de se esperar – distinta (ainda que Surfing tenha mencionado mais de uma vez o título do brasileiro, inclusive dedicando a ele uma coluna de um terço de página assinada por Sam George). Neste texto, trato de uma reportagem específica, assinada por Mitch Varnes em Surfing, publicação com sede em San Clemente (Califórnia) e circulação nos EUA e em diversos países, inclusive o Brasil. A edição de 1988 do Campeonato Mundial de Surfe Amador recebeu um grande destaque. A matéria de Varnes ocupou nove páginas. Entre os possíveis motivos, penso na condição de Porto Rico (até certo ponto parte dos Estados Unidos), a proximidade (menor gasto com passagens) e a grandiosidade do evento, que contou com patrocínio de diversas empresas dos EUA.

No geral, as matérias com cobertura dos campeonatos de fato destacavam mais a disputa por equipes (fruto do total de pontos obtidos nas categorias disputadas por indivíduos). Isto também ocorreu com a reportagem em questão. Interessa-me, aqui, destacar a grandiosidade e o caráter festivo atribuídos ao evento. A começar pelo título: “O Maior Espetáculo da Terra”. A reportagem destacou que o campeonato foi realizado em três locais do “Havaí do Atlântico”, ocupou duas semanas do mês de fevereiro e atraiu um público porto-riquenho grande e entusiasmado. Vinte e seis países foram representados por quase 400 surfistas – dois recordes. Entre eles “inscrições supreendentes vieram de países como Israel, Itália, Noruega e Alemanha Ocidental”. Houve numerosos elogios aos esforços e competência dos porto-riquenhos na organização – um contraste nítido com as críticas ao campeonato de 1984, na Califórnia.

A ampla maioria dos participantes não tinha possibilidades de título (algo muito frequente em competições esportivas, mas raramente abordado na cobertura midiática), então importou-se mais em jogar sinuca e se divertir no “Ala Mar, um popular point noturno frequentado por competidores menos preocupados ou por aqueles já eliminados. Dançando noite afora no clima tropical, as multidões de surfistas formavam um arco-íris multicultural de sotaques e cores de pele”.

As festas parecem ter sido ótimas. Uma foto mostra jovens à noite num bar/casa noturna, com a legenda: “a equipe venezuelana experimenta um pouco da hospitalidade local”. Vários na imagem seguram latas de Budweiser, cerveja patrocinadora do campeonato. Os competidores ficaram hospedados numa base militar desativada dos EUA – em uma das noites, os Ramones fizeram um show exclusivo para os participantes.

Já o chefe da delegação dos Estados Unidos estabeleceu um toque de recolher para seus subordinados. Por ocasião do “show de talentos especial” das delegações, “a ausência” dos atletas daquele país foi “mais notável”. Para completar, o chefe da delegação apresentou uma reclamação formal à organização, argumentando, segundo a reportagem, que tal evento noturno “mantinha seus surfistas acordados até muito tarde, comprometendo desnecessariamente a seriedade da competição”. Em contraste, na referida noite,

“O resto do mundo se divertiu à beça. Sob a luz das estrelas e o conjunto de bandeiras nacionais esvoaçantes, os japoneses lutaram sumô; (…) os anfitriões porto-riquenhos e os visitantes taitianos compararam provocativos flamencos com vigorosas hulas. Foi uma noite rara e especial, e somente uma corajosa iniciativa de Bill McMillen, da Flórida, que subiu ao palco com sua solitária gaita e tocou algumas canções de blue-grass, salvou o tristemente desinteressado time dos Estados Unidos de um distanciamento cultural total.”

Após estes e outros parágrafos sobre o espírito de alegria e congraçamento que estes encontros de jovens proporcionam, a matéria se encerra citando o caso do representante da Noruega, praticante solitário nas águas geladas de seu país, mas “talvez o surfista mais satisfeito de todo o evento” por nele ter encontrado camaradagem e, durante “duas semanas loucas e ensolaradas (…), uma família” na comunidade do surfe.

Para saber mais

FORTES, Rafael. A cobertura do Campeonato Mundial Amador em Surfing (1978-1990). Contracampo, Niterói, v. 36, n. 2, p. 179-199, ago.-nov. 2017. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.22409/contracampo.v36i2.955>. (A version in English is available.)

Sobre o esporte em Porto Rico, ver os trabalhos do pesquisador Antonio Sotomayor, em especial o livro The Sovereign Colony: Olympic Sport, National Identity, and International Politics in Puerto Rico. Lincoln: University of Nebraska Press, 2016.


“Pintou o verão!”: surfe, skate e juventude na revista Pop (1972-1979)

23/09/2019

Por Leonardo Brandão (brandaoleonardo@uol.com.br)

No Brasil, durante a década de 1970, os esportes praticados à maneira californiana, principalmente o surfe e o skate, encontraram na revista Geração Pop – chamada somente como Pop a partir de sua edição de número 32 – um dos seus principais meios de comunicação. Colorida e publicada com periodicidade mensal pela editora Abril entre novembro de 1972 e agosto de 1979, essa revista chegou a contar com 82 edições em seus quase sete anos de existência e atingir um considerável público leitor para a época, pois, de acordo com a declaração de sua editora, ela “vendia pelo menos 100 mil exemplares mensais” (MIRA, 2000, p. 154).

A Pop não foi uma revista específica sobre esporte, mas sim uma publicação que aliava a divulgação da música Pop (sobretudo o rock) com diversos temas considerados por ela como de interesse juvenil. Focada em rapazes e moças entre 14 e 20 anos, ela utilizava-se de inúmeras gírias existentes na época para elaborar um clima de maior proximidade com seus leitores e, com isso, gerar certa intimidade no momento da leitura.

A revista Pop teve uma influência muito grande em determinados segmentos juvenis; pois por viverem numa época onde não havia Internet e, segundo entrevistas, num “clima de ditadura”, eles acabavam por ter pouco material disponível em termos de informação cultural. Além disso, foi através da Pop que muitos jovens, durante a metade da década de 1970, conheceram algumas das tendências esportivas da juventude norte-americana, como o surfe, o skate, o bodyboard, entre outros (BRANDÃO, 2014).

Segundo a historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, embora a revista Pop tivesse na música sua ancoragem central, ela também passou a “atrair milhares de jovens da classe média e aproximá-los do mercado especializado na venda de novos acessórios e roupas para as atividades esportivas em expansão” (2005, p. 8). Na década de 1970, dentre essas “atividades esportivas em expansão”, encontravam-se de forma reticente nas páginas da revista Pop os esportes praticados à maneira californiana, sobretudo o surfe e o skate. De acordo com o pesquisador Luís Fernando Borges, o propósito dessa revista foi justamente o de buscar um contato com o público jovem, e para isso ela veiculava as últimas novidades surgidas no acelerado mundo da cultura juvenil, recheando suas páginas de artistas como “Elton John, Secos & Molhados, os últimos campeonatos de surf e skate” (2003, p. 07).

Podemos observar um bom exemplo neste sentido ao analisarmos a capa da edição de novembro de 1977 da revista Pop, a qual comemorava, em letras garrafais, que “PINTOU O VERÃO!”, estampando um jogo de imagens fotográficas que, composta tal como um mosaico, objetivava tanto traçar um painel do que se encontrava em seu interior  quanto capturar os olhares de quem passasse por uma banca de revistas: garotas de biquíni, jovens surfistas “entubando” uma onda, astros do rock descontraídos e sem camisa, manobras “de arrepiar” de skatistas em grandes tubos de concreto.

Figura 1: Revista Pop, editora Abril, nº 61, 1977.

A revista Pop se valia dos corpos magros e bronzeados como espetáculo aos olhos e desejos dos leitores. Como nos lembrou o historiador Georges Vigarello (2006, p. 171), trata-se de uma época em que já é possível percebermos um maior ritmo dado às expressões e aos movimentos, com sorrisos mais expansivos e corpos mais desnudos, aspectos esses acentuados pelos espaços de férias, praias e divertimentos. Nesta mesma direção, Sant’Anna (2010, p. 190) sugere que essas manifestações reforçavam “a voga da alegria juvenil”, exaltando a “libertação” do corpo.

O pesquisador ou a pesquisadora que se interessa pela história dos esportes praticados à maneira californiana, sobretudo a história do surfe e a do skate, encontrará nessa revista uma série de elementos convidativos à reflexão. Pelo fato de Pop ter sido a primeira publicação impressa no Brasil dedicada exclusivamente à juventude e pela quantidade considerável de edições publicadas durante a década de 1970, ela é, sem dúvida, uma fonte imprescindível para a compreensão dos esportes californianos e da condição juvenil na história recente.

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Leonardo. Para além do esporte: uma história do skate no Brasil. Blumenau: Edifurb, 2014.

BORGES, Luís Fernando Rabello. Mídia impressa brasileira e cultura juvenil: relações temporais entre presente, passado e futuro nas páginas da revista Pop. In: Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Minas Gerais, 2003, p. 1 – 14.

MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olho d’Água/Fapesp, 2000.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Uma história da construção do direito à felicidade no Brasil. In: FREIRE FILHO, João (org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 181 – 193.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Representações sociais da liberdade e do controle de si. In Revista Histórica, São Paulo, v. 5, 2005, p. 1 – 17.

VIGARELLO, Georges. História da beleza: o corpo e a arte de se embelezar, do Renascimento aos dias de hoje. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.


Alfândega, noitadas e mercadorias de presente: uma breve passagem de surfistas sul-africanos pelo Rio de Janeiro

19/08/2019

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

A África do Sul tinha papel importante no cenário internacional do surfe na segunda metade dos anos 1970, tanto pela qualidade das ondas de seu território quanto pela participação de surfistas, dirigentes, juízes, empresários e/ou profissionais de mídia, entre outros, oriundos daquele país. Isto se dava concomitantemente ao crescente isolamento internacional do país, que incluía boicotes como forma de pressão contra os sucessivos governos devido à política de segregação racial conhecida como apartheid. Nos últimos anos, tenho me dedicado tanto a investigar o lugar peculiar do surfe em meio ao boicote esportivo internacional, como também às representações do Brasil e do Rio de Janeiro em revistas internacionais.

Um dos indícios de uma cultura e economia do surfe fortes em um determinado país nos anos 1970 e 1980 é a existência de publicações especializadas, sobretudo revistas. Criada em 1976 na cidade de Durban e ainda em circulação, Zigzag é a mais longeva e provavelmente a mais importante revista de surfe da África do Sul. A edição de junho-agosto (a periodicidade era então trimestral) de 1979 trouxe matéria a respeito de uma viagem realizada por três surfistas às Américas. Os sul-africanos – um deles, autor do texto – viajaram para Brasil, Peru e Canadá. Eis dois trechos:

“(…) passar pela alfândega no Rio de Janeiro (…) Medo de possivelmente passar horas tentando convencer um funcionário olhudo de que só tenho mercadorias para os pobres ratos de surfe brasileiros. Para minha surpresa, sou liberado após dar ao cavalheiro um exemplar de ZigZag – ele ficou amarradão. A animação de Rico ao ver um funcionário da alfândega de fato sorrindo foi contagiante. Os dias que se seguiram são selvagens com noites loucas e gente amigável vivendo apenas o agora. Rico e sua bela mulher Bia quase me convencem a ficar para o Carnaval, mas o chamado da minha próxima parada é grande demais. 1980 será meu ano de carnaval! (…)

Em verdadeiro estilo sul-americano, um voo de seis horas leva 12 para chegar a Lima após o piloto decidir que precisa de algumas horas de pausa para um lanche e faz uma escala imprevista em São Paulo.” (LARMONT, Mike. The Snow Boogie. Zigzag, jun.-ago. 1979. Tradução minha. Abaixo, a primeira página do texto.)

Gostaria de abordar brevemente quatro pontos no trecho citado. Primeiro, as referências à passagem pelo controle alfandegário na entrada em território brasileiro, ocorrida no aeroporto internacional do Galeão, no Rio de Janeiro. Larmont afirma que estava receoso quanto ao trato que receberia por parte dos funcionários responsáveis pela revista de bagagens e a como classificariam os objetos que trazia – segundo ele, agrados para presentear surfistas brasileiros. Relata ainda ter sido um exemplar da própria Zigzag o argumento final que permitiu o desenrolo (como se diria na linguagem corrente das quebradas cariocas) com o trabalhador da alfândega. Seria este um servidor público da Receita Federal? Acredito que sim, embora não seja possível afirmar ao certo. Seria ele um adepto do surfe ou, ao menos, um interessado na modalidade? Também é difícil dizer, mas parece que o exemplar da publicação despertou interesse no servidor, talvez por gosto pessoal, talvez por configurar um item raro a ser dado de presente a uma pessoa querida. Haveria, além dos números de Zigzag, outros itens/mercadorias trazidos como presente na bagagem? A partir do próprio texto não é possível responder.

Segundo, a recepção por parte de Rico de Souza, surfista com grande circulação e contatos internacionais no período. Acredito que as relações de amizade, acolhimento e/ou reciprocidade estabelecidas entre adeptos de diferentes países foram importantes, tanto para reduzir os altos custos envolvidos nas viagens (ficar na casa de conhecidos eliminava os custos de hospedagem e, em alguma medida, de traslados e alimentação), ajudando a viabilizá-las, quanto por facilitarem o acesso a informações (como condições do mar em diferentes praias) e os trâmites do dia-a-dia (facilita muito a vida do viajante, especialmente o monoglota, estar acompanhado de alguém com conhecimento de hábitos e idioma locais). Esta questão, que tem aparecido em diferentes fontes em minhas pesquisas, ainda não foi explorada pelos estudos históricos sobre o surfe – ao menos aqueles publicados em inglês, espanhol ou português.

Terceiro, algumas das menções ao Brasil e aos brasileiros. O autor destaca a beleza de uma mulher (a anfitriã), usa a palavra selvagem para adjetivar as noitadas (o termo também aparece com frequência nas caracterizações da África do Sul feitas por estrangeiros – brasileiros, inclusive) acompanhadas de “gente amigável” que vivia apenas o presente. As intensas atividades de lazer e o estímulo dos anfitriões quase levam o viajante mudar os planos e esticar a estada para incluir o período do Carnaval.

Por fim, a decisão do piloto de realizar uma escala imprevista durante o voo Rio de Janeiro-Lima é classificada como parte de um “verdadeiro estilo sul-americano” – a ver se tal categorização aparecerá em outras edições quando se menciona o Brasil e demais países do continente. Os sul-africanos seguiram viagem rumo a terras peruanas e, posteriormente, da América do Norte, onde os meses iniciais do ano correspondem ao inverno. No Canadá, como se pode notar nas fotos que ilustram a página, os sul-africanos praticaram esqui e snowboard. Era muito comum, na época, que os adeptos de uma modalidade dedicassem parte relevante do seu tempo a outras. No caso do surfe, aqueles com acesso a áreas com neve (como alguns estadunidenses e franceses, por exemplo), costumavam praticar esportes de inverno durante férias, feriados e períodos com pouca oferta de boas ondas. Esse intercâmbio de modalidades é um aspecto ainda pouco explorado nas pesquisas sobre a história do esporte que situam seu recorte na segunda metade do século XX – talvez nos levando a acreditar numa excessiva especialização que não correspondia à experiência concreta do adepto comum, e quiçá tampouco de vários atletas de ponta no âmbito competitivo mais comercial/profissional.

Para saber mais

Conferir os trabalhos do historiador Glen Thompson, incluindo sua tese de doutorado Surfing, Gender and Politics: Identity and Society in the History of South African Surfing Culture in the Twentieth-Century, defendida em 2015 na Stellenbosch University. Agradeço a ele por me facilitar a consulta de seu acervo pessoal de revistas sul-africanas, entre as quais a edição mencionada neste texto.

Uma coleção de capas escaneadas de Zigzag está disponível no site de Al Hunt.

A pesquisa que deu origem a este post tem apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), por meio do edital Jovem Cientista do Nosso Estado (2017).


Aventuras juvenis, ficção e a cultura do surfe

11/11/2018

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

The Grommets: The Secret of Turtle Cave é um livro ficcional ilustrado voltado para o público infanto-juvenil. Foi escrito por Mark-Robert Bluemel e publicado de forma independente/amadora em 2007. Teve uma sequência em 2014, com o título The Grommets: Big Island Justice. O autor é um advogado e surfista que vive em San Diego (Califórnia, EUA). Trata-se da estreia do autor no universo ficcional. Embora eu tenha classificado a produção como independente/amadora (em função de características do projeto gráfico, erros de revisão etc.), o exemplar que li integra a segunda edição, o que sugere que a primeira foi vendida até se esgotar.

A obra conta uma história envolvendo três adolescentes: Buzz (o narrador), Oz e Jimbo. A história não menciona uma cidade ou ano em que se situe, mas uma série de elementos sugerem o Sul da Califórnia e o início dos anos 1990 como espaço e tempo da trama. No caso do litoral Sul da Califórnia: a diferença de temperatura do mar entre o verão e o inverno; a existência de encostas com pedras e cavernas no litoral; a descrição das origens étnico-raciais dos adolescentes (algo muito relevante na sociedade estadunidense como um todo, não apenas no estado em questão): um descendente de peruanos, outro de “nórdicos”; o fundo de areia sobre o qual quebram as ondas; a casa “amarela com telhado em estilo espanhol” em que o protagonista Buzz vive com os pais (p. 13); o crowd de surfistas no mar; a ideia de recorrer aos livros disponíveis na biblioteca pública local quando precisam buscar informações sobre um assunto (a presença de cavernas no litoral).

Quanto à época em que se passa a trama, ainda não existiam telefones celulares: boa parte dos contatos entre as pessoas se dão com ligações entre telefones fixos. Frequentemente, com interferências indesejadas (para os adolescentes) por parte dos pais, que atendem as ligações e controlam o acesso aos aparelhos, quase sempre localizados na sala das residências. Tampouco há computadores para uso pessoal nas casas, nem menção à existência de internet. Mas há um aparelho de TV que, acoplado a um videocassete, permite aos adolescentes “assistir ao boletim das ondas e vídeos de surfe” (p. 49).

Dois deles residem próximo ao litoral (levam 10 minutos de bicicleta, enquanto o terceiro leva 45) e um deles pretende passar o verão auxiliando o pai em tarefas em troca de pagamento de forma a juntar dinheiro para comprar uma prancha nova. A vitrine da surf shop local é uma referência importante de consumo e de desejo para os adolescentes, que sonham em especial com as pranchas novas expostas. No quarto do protagonista, que narra o livro em primeira pessoa, há “nas paredes pôsteres de revistas de surfe” (p. 13).

Lendo a obra, especialmente as passagens relativas a sensações experimentadas ao surfar, lembrei-me de artigos em que o historiador Douglas Booth argumenta que a história do esporte dedica escasso tempo e atenção a essa questão (como este). Em The Grommets há descrição de várias sensações envolvidas no ato de surfar: ao descer ondas, realizar manobras, furar ondas. Refiro-me não apenas a uma descrição dos movimentos corpóreos realizados, mas daquilo que o surfista sente: prazer, alegria, êxtase, hesitação, medo. Ou cansaço: ao voltar para casa de bicicleta, com a prancha debaixo do braço, após horas de esforço físico surfando. Logo no início, o narrador afirma: “você realmente tem que amar o esporte para acordar de madrugada e pular na água gelada” (p. 1).

Na tentativa de transmitir ao leitor tais sensações, o autor lança mão de expressões comuns no universo do surfe: a comparação com uma “boneca de pano dentro de uma máquina de lavar” para emular as sensações que um surfista tem ao levar um caldo violento; a afirmação de que o tempo parece parar quando se está dentro do tubo; a sensação de voar ao descer a onda e ao realizar certas manobras (mesmo sem dar aéreos, manobra restrita ao repertório de poucos surfistas amadores naquela época). Ainda nesse âmbito, há características que remetem à experiência pessoal vivenciada no esporte. Por exemplo, a noção de que há dias bons e dias ruins. Nos primeiros, têm-se a sensação de que tudo dá certo e a confiança adquirida ajuda a acertar ainda mais. Nos últimos, acontece o contrário, e a perda de confiança em geral estimula a piora de desempenho.

Há também descrições/explicações mais técnicas: movimentos e manobras e de como muitos destes têm nomes específicos (dentro de um vocabulário corrente da modalidade, como acontece com outras práticas corporais); da formação das ondas. Algumas passagens misturam uma descrição de características do esporte com um tom de advertência em relação a possíveis riscos, como no caso das correntes/correntezas (um potencial risco à vida de nadadores e surfistas que não as percebam e nadem na direção contrária). As recomendações e conselhos sobre o que fazer e que não fazer, noções de certo e errado e afins, na maioria das vezes, aparecem em falas do pai de Buzz. Mas, às vezes, nas do protagonista, como quando diz que um surfista nunca deve rabear outro (p. 17). Em três ou quatro momentos, recomenda-se que surfistas novatos devem evitar os dias em que o mar está muito forte, com ondas grandes. Isso os faz evitar riscos desnecessários para si próprios e para os demais surfistas. Em The Grommets é possível encontrar recomendações como não mentir para os país, não desapontá-los etc., o que me parece ser comum neste tipo de literatura. No caso, os riscos e problemas decorrentes da desobediência às vezes têm a ver diretamente com o surfe – como Buzz desrespeitar a proibição de pegar onda próximo a pedras e falésias.

A narrativa se desenvolve praticamente toda em torno de um verão. As férias escolares, o sol e o calor permitem ao protagonista aproveitar o tempo livre com uma série de atividades com seus melhores amigos – e, imagino, ao autor elaborar uma narrativa que também seja uma leitura atraente para adolescentes (de férias ou não, californianos ou não). Segundo May (2002), desde meados dos anos 1950, houve na sociedade estadunidense – sobretudo na indústria cultural, mas não só – um intenso processo de construção da Califórnia como o destino de sonho nos Estados Unidos. Tal imagem de lugar onde se deseja viver e/ou passar as férias permanece muito forte no imaginário do país. Particularmente o Sul daquele estado – cidades como San Diego – é um dos lugares mais procurados no turismo interno do país. Trata-se de uma obra divertida e leve. Talvez possa também ser usado como livro livro paradidático, pois conta com passagens e elementos que podem ser facilmente apropriados para aulas de matérias como Biologia, Geografia, Física e História. No caso da última, por exemplo, há referências ao enriquecimento de contrabandistas (traficantes) durante o período da Lei Seca. O que me interessa aqui, na linha de outros textos que venho escrevendo neste blogue, é traçar alguns apontamentos que permitam observar essa obra e esse tipo de obra – obras literárias para o público infanto-juvenil – como uma fonte histórica para a história do esporte.

O foco da trama são peripécias na exploração de uma caverna. Secundariamente, a relação de amizade que os três estabelecem com Nana, a idosa que vive à beira-mar e que é salva por eles de se afogar. Nana fazia exercícios matinais de natação e teve cãimbras em ambas as pernas. O episódio diz respeito a um aspecto comum do universo do surfe, mas pouco presente em suas representações artísticas e midiáticas: tanto a presença física dos surfistas no mar ajuda a perceber situações de afogamento (às vezes difíceis de enxergar desde a praia) como o fato de usarem pranchas facilita o salvamento (a prancha é um objeto flutuante ao qual a pessoa que está se afogando pode se agarrar, evitando colocar em risco a vida de quem tenta resgatá-la).

O enredo não tem propriamente vilões, apenas um antagonista com escassa presença. Também é surfista, mas, na situação em que é apresentado, usa uma camisa de um time de futebol americano. Tampouco há conflitos entre surfistas de diferentes grupos (geracionais, longboarders x shortboarders, exímios x iniciantes, etc.).

O surfe ocupa papel central na vida do trio de adolescentes (e não só porque estão de férias) e o consumo midiático é parte importante do processo. Buzz fica excitadíssimo quando recebe pelo correio, a cada mês, a edição da revista Surfer’s World, da qual tem uma assinatura. A principal punição recebida dos pais quando faz algo errado é ficar impedido de surfar por uma certa quantidade de dias (em se tratando de algo grave, geralmente é combinada com proibição de ver TV, falar no telefone e encontrar os amigos). O protagonista adora passar tempo com amigos no próprio quarto, lendo “revistas de surfe” e assistindo vídeos sobre surfe.

Quando não há ondas, uma das atividades favoritas de Buzz, Oz e Jimmy é andar de skate. Eles consideram que o skate permite emular os movimentos corporais e manobras do surfe – e, em alguma medida, as sensações proporcionadas. “Temos alguns amigos que amam o skate e só surfam ocasionalmente, por brincadeira. Somos exatamente o contrário. Meus amigos e eu preferimos surfar todo dia!” (p. 53) A comparação ressalta a diferença quando se cai: no skate, geralmente o corpo atinge o asfalto. Por isso, “é sempre necessário para qualquer um usar equipamentos de segurança e um capacete quando você anda no cimento”. Natação (no mar), skate (shortboard e longboard), mergulho, pesca submarina, remo, andar de bicicleta e escalar cordas também são mencionados na trama, embora quase sempre como exercícios, atividades de lazer ou parte da rotina, mas não propriamente como esportes.

Perto do fim da trama, evidentemente, a aproximação do fim das férias de verão – e do retorno das aulas escolares – apavora os adolescentes. No entanto, como esperado, há um final feliz – surfisticamente falando, inclusive. Graças a uma recompensa recebida, realizam o desejo de comprar uma prancha nova e uma nova roupa de neoprene – mas os pais os obrigam a depositar a maior parte do valor numa poupança com o objetivo de juntarem dinheiro para pagar a universidade. Coisas de um país que não conta com ensino superior público e integralmente financiado pelo estado, como (ainda) é o caso do Brasil.

Referências bibliográficas

BOOTH, Douglas. História, cultura e surfe: explorando relações historiográficas. Recorde, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 1-24, jan./jun. 2015. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Recorde/article/view/2307/1951 .

MAY, Kirse Granat. Golden State, Golden Youth: The California Image in Popular Culture, 1955-1966. Chapel Hill, London: The University of North Carolina Press, 2002.

Para saber mais

  • Um exemplo de livro infanto-juvenil brasileiro abordando temática dos esportes radicais: Nas ondas do surf, de Edith Modesto. Apesar do título, a trama é sobre bodyboard, e não surfe.
  • Victor Melo tem publicado artigos e livros abordando livros de ficção como objeto e fonte histórica. Ver, por exemplo, este artigo a respeito de Os Maias.
  • Douglas Booth tem publicado artigos com diversas provocações a respeito da necessidade de o historiador lançar mão de sensações, sentimentos, emoções e afetos na escrita da história do esporte.

Deslizar, escorregar, equilibrar: o corpo e o lúdico nos esportes californianos

17/06/2018

Por Leonardo Brandão

Segundo o historiador Roy Porter (1992) a fotografia pode ser uma grande fonte (embora ainda permaneça “estranhamente subexplorada”) de compreensão do corpo. O registro fotográfico já documenta quase um século e meio dos aspectos físicos e, embora ela não seja um instantâneo da realidade, é um registro da linguagem corporal e do espaço social tão ou mais informativo que o texto impresso. Acreditamos, nesse sentido, que o arquivo fotográfico pode nos revelar e confirmar variados aspectos das transformações físicas na contemporaneidade, apresentando também dados sobre a linguagem corporal, os gestos e seus modos de utilização e investimento.

Observemos a fotografia a seguir:

Figura 1: Jovem praticando o “surfe na rua” na cidade do Rio de Janeiro em 1975. Fonte: Revista Pop, nº 38, 1975, p. 61.

Vemos nessa imagem – originalmente publicada nas páginas de uma revista chamada Pop, existente entre 1972 e 1979 – um jovem praticando skate numa rua levemente em declive. Pela descrição da matéria, sabemos que se trata de um espaço localizado no Rio de Janeiro e que essa imagem data de 1975. Não há dúvidas que se trata de uma fotografia sobre o equilíbrio. Pois o que esse jovem faz é um jogo de equilíbrio corporal. A ausência dos calçados e equipamentos de proteção revela o uso do skate como um “surfinho”, isto é, apenas como divertimento espontâneo e sem vínculos com campeonatos, juízes, tabelas etc. Além disso, o próprio movimento corporal realizado era muito próximo daqueles utilizados pelos surfistas nas ondas do mar.

Essa imagem (figura 1) é ilustrativa de uma característica central dessas atividades oriundas da Califórnia e que estavam se introduzindo no cotidiano das práticas juvenis no Brasil, pois tais atividades investiam mais numa flexibilidade física atenta aos gestos de equilíbrio do que no acúmulo de forças para o levantamento de algum peso, o que fazia do corpo menos um suporte do gesto do que sua expressão.

Ao reduzirem o esforço muscular em prol de outros elementos para praticá-lo, o skate – assim como o surfe ou outras atividades praticadas à maneira californiana – abria novas possibilidades de euforia, êxtase e vertigem. Não tanto a força dos músculos, mas sim a flexibilidade e a busca pelo equilíbrio estariam no cerne performático em questão. De acordo com as palavras da historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna,

Os esportes californianos, por exemplo, que se expandem em várias partes do mundo a partir dos anos 70, tem por objetivo menos o cansaço salutar – característica dos antigos esportes comprometidos com os ideais higienistas de salvação de uma raça – do que a vivência de sensações de prazer, físicas e mentais, imediatas e inovadoras. O surfe, a asa delta, o windsurf, por exemplo, conduzem o olhar do esportista menos em direção à força realizada por seus músculos do que às flexibilidades motoras que ele é capaz de manter sob controle. De onde se explica, nessas atividades, o emprego de verbos que evocam o prolongamento de sensações de prazer e de controle do conjunto dos movimentos, tais como voar, escorregar, equilibrar (2000, p. 3).

Iniciar-se em tais atividades, portanto, significava dar menos evidência às questões corporais que envolviam força muscular e uma maior atenção ao equilíbrio corporal, controlado sob tênues movimentos de braços e pernas.  Esse investimento lúdico do corpo, para além de suas possibilidades de força, potência muscular e virilidade – aspectos tão bem explorados pelos esportes tradicionais –, favoreceu sua interpretação como um possível objeto de comunicação através de uma série inusitada de gestos e movimentos (os quais passariam a ser chamados, posteriormente, como “manobras” ou “truques”). A construção dessa nova relação com o corpo, ou desta nova corporalidade, também passou a expressar um desejo por aventuras e deslizamentos os mais variados, sendo o aprendizado de tais técnicas uma questão de conquistar, através do corpo – ou “in-corporar” – essas novas possibilidades de movimento, equilíbrio e frenesi estético.

Ao observar o que chama de “práticas emergentes contemporâneas”, o professor Deibar René Herrera (2009) também afirmou ser possível percebermos nessas atividades outras formas de construção do corpo já diferentes daquelas apontadas pelo filósofo Michel Foucault através de seus estudos sobre as instituições disciplinares, as quais evidenciavam a formação de corpos dóceis. Para Herrera, faz-se importante admitirmos que o mundo contemporâneo também vem configurando outros usos do corpo que já não estão de acordo somente com a sociedade disciplinar e nem necessitam da obediência de outros tempos. Usos do corpo, em sua visão, que se formaram a partir dessas novas práticas culturais juvenis e que se constituíram enquanto práticas de subjetivação.

Assim, algumas das análises de Foucault propõem-se a descrever e analisar um mundo no qual estamos deixando de conhecer, um presente que está se transformando em passado, cujas marcas ainda moldam muitas experiências, mas não todas. As atividades do surfe e do skate, entre outras, se constituíram num momento histórico onde os poderes disciplinares já eram menores e menos expressivos.

Para muitos jovens, os chamados “esportes californianos” representaram, nesses anos iniciais, uma espécie de liberdade e fonte de criação para novos movimentos corporais. Além disso, essas atividades também incentivaram outras formas de sociabilidade, que se fizeram como agregações tribais pautadas na diversão, na ludicidade e na vivência festiva do cotidiano.

 

Referências

BRANDÃO, Leonardo. Para além do esporte: uma história do skate no Brasil. Blumenau: Edifurb, 2014.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2009.

HERRERA, Deibar René Hurtado Herrera. “In-corporar en la sociedad moderna y en las prácticas emergentes contemporaneas” In Recorde: Revista de História do Esporte. Volume 2, número 2, dezembro de 2009, p. 1- 19.

PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992, p. 291 – 326.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Entre o corpo e a técnica: antigas e novas concepções. In Motrivivência, ano XI, n. 15, agosto de 2000, p. 1 – 6.


O surfe e a diplomacia cultural dos EUA

11/06/2018

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

The Endless Summer (no Brasil, Alegria de Verão), dirigido e produzido por Bruce Brown, é, provavelmente, o filme de surfe mais famoso já feito. A película narra a trajetória de surfistas dos EUA que viajam ao redor do mundo em busca de ondas desconhecidas e do verão sem fim do título. Segundo o historiador Scott Laderman (2014), “gravado em 1963, The Endless Summer percorreu o circuito tradicional dos filmes de surfe em centros culturais públicos e auditórios de escolas secundárias na Califórnia, Havaí, Austrália e África do Sul ao longo dos dois anos subsequentes” (p. 48). Laderman e outros pesquisadores da história do surfe afirmam que o documentário foi fundamental para disseminar a ideia de viajar como um valor positivo dentro da subcultura do surfe. O autor afirma ainda que o filme foi “um dos documentários de maior sucesso em todos os tempos” e que “seu impacto cultural foi profundo”, tendo sido decisivo para dar visibilidade ao surfe ao redor do mundo (p. 49).

Contudo, este texto não é uma resenha de Alegria de Verão ou do livro de Laderman (o que já fiz). Meu objetivo é apresentar a descrição e análise de Lazerman a respeito do seguinte: “(…) de formas que ainda não foram exploradas pelos pesquisadores, The Endless Summer também ilustra como, durante o auge da Guerra Fria, os Estados Unidos vieram a enxergar o surfe como uma arma ideológica em sua cruzada anticomunista, pois, em maio de 1967, anunciou-se que o documentário apareceria, sob patrocínio do Departamento de Estado, no bienal Festival de Cinema de Moscou” (p. 49).

De acordo com o autor, algumas características da trama motivaram a escolha. A elas se aliava a liberdade de viajar demonstrada pelos protagonistas – “diferentemente da maioria daqueles vivendo no bloco soviético” -, o que serviria para evidenciar a superioridade do capitalismo. Havia ainda as tentativas simpáticas de contato face-a-face com populações locais de diferentes continentes, “pintando um retrato dos Estados Unidos como uma potência benevolente e simpática” (p. 50). O filme acabaria sendo cortado do festival por iniciativa de uma entidade representativa dos estúdios de Hollywood (MPAA – Motion Picture Association of America). Após a organização decidir que um único documentário dos EUA seria exibido, a entidade escolheu o documentário indicado pelo estúdio Columbia Pictures, que o produzira, em detrimento do filme independente de Bruce Brown.

Mas “aqueles que estavam a cargo da diplomacia cultural americana deram outra chance ao surfe algum tempo depois. O ano era 1970, o local era o Japão, e o cenário era a primeira exposição universal realizada na Ásia: a Exposição Universal do Japão, ou Expo’70, em Osaka” (p. 51). Documentos oficiais do governo dos EUA consultados pelo autor atestam que a participação na exposição converteu-se em mais um campo de disputas com a União Soviética. A organização ficou a cargo da United States Information Agency (USIA). A exposição do Pavilhão dos EUA foi dividida em sete temas – um deles, “esportes”. “Foi lá, no interior da exibição de esportes, que, até onde tenho conhecimento, o surfe tornou-se, pela primeira vez, assunto oficial da diplomacia cultural dos EUA” (p. 52).

Segundo Laderman, “os organizadores deram ao surfe papel de destaque na exibição” de esportes (p. 53). Havia uma instalação com 13 pranchas produzidas por shapers dos EUA (Dewey Weber, Rick Stoner e Bob White), reprodução de imagens cinematográficas de surfe feitas por Bruce Brown e fotografias de surfistas no Havaí. Segundo Laderman, o surfe moderno fora introduzido no Japão após a Segunda Grande Guerra, a partir da presença de militares estadunidenses. Ressalto que isto não ocorreu apenas no arquipélago japonês. Tal foi o caso, por exemplo, da Andaluzia, na Espanha (Esparza, 2015).

Naquele momento (1970), o surfe já era bastante conhecido no Japão e tinha praticantes em diversas partes do litoral. Tamio Katori, um surfista japonês, visitou mais de uma vez a exposição e “escreveu para as autoridades dos EUA perguntando se ele poderia adquirir as pranchas para seu clube de surfe após o término da exposição” (p. 54). Segundo ele, as pranchas poderiam contribuir para a “amizade entre ambos os países”. Eis como termina o episódio: “Três das 13 pranchas haviam sido emprestadas por Bob White e tinham que ser devolvidas ao shaper de Virginia Beach, mas as outras dez tinham sido adquiridas pela USIA. Para os Estados Unidos, atender à solicitação de Katori seria uma maneira eficiente de descartar objetos volumosos e, ao mesmo tempo, contribuir para a globalização daquele que era, agora, o mais americano dos passatempos prazerosos, além de estimular a amizade transpacífica. Não havia o que pensar. As pranchas foram vendidas” (p. 55).

Laderman destaca dois aspectos neste episódio. Primeiro, as ligações cada vez mais comuns entre o surfe e o “poder norte-americano global” (p. 55), como ficaria evidenciado na circulação de surfistas estadunidenses ao redor do globo, na presença de surfistas militares (ou militares surfistas) em praias de dezenas de países (aproveitando a existência de bases militares, especialmente as numerosas unidades da Marinha no Oceano Pacífico), na circulação de produtos de mídia (surf music, cinema, revistas) e no estabelecimento do inglês como língua-padrão da modalidade. Segundo, a exposição de 70 “ilumina o quanto o surfe, tal qual o Havaí, haviam se tornado naturalizados como, de alguma forma, americanos” (p. 55).

Acrescento um terceiro: a questão da nacionalidade, da identidade nacional e das distintas apropriações (culturais e de outras naturezas) do surfe ao redor do mundo são um tema bastante atual. Em março último, foram divulgados os critérios para classificação dos 40 atletas que disputarão, pela primeira vez, medalhas olímpicas na modalidade. Este ano, os atletas que disputam a divisão principal do Circuito Mundial passaram a competir com bandeiras dos países desenhadas no ombro de seus uniformes (acentuando-se a construção, no âmbito da principal liga de surfe profissional, da associação entre competição individual e nacionalidade) – e pelo menos dois deles (Kanoa Igarashi e Tatiana Weston-Webb) trocaram de nacionalidade, de olho em maiores probabilidades de se qualificarem para competir em Tóquio. Ambos criados e residentes em território estadunidense (ele, na Califórnia; ela, no Havaí) e filhos de pais estrangeiros. Ele passou a competir pelo Japão; ela, pelo Brasil. Com isso, ambos evitam participar da dificílima briga por vaga entre americanos e havaianos.

Bibliografia

ESPARZA, Daniel. Hacia una historia del surf en Andalucía: génesis y consolidación del surf en Cádiz y Málaga. Materiales para la Historia del Deporte, n. 13, p. 47-62, 2015. Disponível em: <http://upo.es/revistas/index.php/materiales_historia_deporte/article/view/1327/1210>. Acesso em 10 jul. 2015.

FORTES, Rafael. Surfe, política e relações internacionais. [Resenha de Empire in Waves]. Topoi, v. 18, n. 35, p. 453-456, abr.-ago. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/topoi/v18n35/2237-101X-topoi-18-35-00453.pdf . Acesso em 10/6/2018.

LADERMAN, Scott. Empire In Waves: A Political History of Surfing. Berkeley: University of California Press, 2014.


Tom Carroll no Pipe Masters de 1987, ou sobre a “superação” no esporte

01/01/2018

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

Superação é uma palavra comumente associada ao esporte. Aparece com frequência nas representações midiáticas do fenômeno esportivo, em geral relacionada ao desempenho de atletas de alto rendimento. No pouco espaço dedicado aos atletas paralímpicos, o enquadramento de “superação” me parece predominante e onipresente. Muitas narrativas midiáticas construídas a respeito do surfe, de certos surfistas e competições se inserem nesta lógica.

Neste primeiro texto de 2018, abordo brevemente uma delas: a vitória de Tom Carroll no Pipe Masters de 1987. Uso como fonte o filme Pipeline Masters, de 2006 (não encontrei em lugar algum os créditos de direção), disponível na íntegra abaixo (tampouco achei uma versão com legendas em português):

O filme aborda o campeonato disputado em Pipeline/Backdoor, no litoral norte da ilha de Oahu, no arquipélago havaiano. Trata-se, possivelmente, da onda mais famosa do mundo – e uma das mais perigosas. Realizado desde o início dos anos 1970 – antes de haver um circuito mundial de surfe profissional masculino -, o Pipe Masters é o campeonato de maior prestígio na modalidade, além de um dos mais tradicionais. A mídia do surfe em língua inglesa volta e meia usa a expressão “he’s a Pipe Master” (algo como “ele é um mestre de Pipe”) para se referir a algum ex-campeão. Desde que o circuito foi estabelecido, na maioria dos anos ele termina lá. Com isso, o certame decide não apenas quem será o Pipe Master, mas também o campeão da Tríplice Coroa Havaiana (composta pelos campeonatos realizados em Haleiwa, Sunset e Pipeline) e, frequentemente – como em 2017 – o título de campeão mundial masculino.

Por esses e outros motivos, o campeonato é um prato cheio para tais construções narrativas, como se pode perceber ao longo do documentário, tanto em edições anteriores quanto posteriores (por exemplo, na performance de Sunny Garcia em 1992, quase se sagrando campeão apesar de uma contusão séria que limitava-lhe os movimentos de um dos braços – as imagens são impressionantes).

Por volta de 47′, a narração do documentário classifica o que aconteceu em 1987 como “um dos momentos mais dramáticos da história das competições de surfe”. A partir daí, estabelece uma narrativa sobre a trajetória do australiano Tom Carroll. Bicampeão mundial, ele é apresentado como corajoso e até certo ponto irresponsável (até passar a ser um dos poucos a usar capacete por lá), características consideradas importantes para conseguir surfar bem uma onda veloz, poderosa e perigosa como Pipeline. Sua trajetória inclui uma final já na primeira participação, em 1979. Fez outras finais, mas, até então, nunca fora campeão. Novamente ia bem no campeonato de 1987, até que…

…recebe a notícia da morte de sua irmã, na Austrália, num acidente de carro. Em meio ao campeonato mais importante da temporada, Carroll é obrigado a lidar com a tragédia pessoal e familiar e pensar nas providências para retornar à Austrália para o funeral. Numa conversa ao telefone, o pai lhe diz para ficar no Havaí, “porque ela [a irmã] quer que você ganhe”.

Num depoimento emocionado (52′ em diante), o surfista diz: “senti que ela estava lá”. “Eu não surfei para ela. Eu surfei com ela”, afirma. Carroll venceu a final e tornou-se um Pipe Master – depois ganhou duas edições, em 1990 e 1991. Ajuda sobrenatural? Desempenho potencializado por um estado emocional alterado? Coincidência? Rumo natural dos acontecimentos – ou seja, um excelente surfista, em grande forma, finalmente vencendo um campeonato disputado na onda onde era, há anos, um dos melhores? Todas as alternativas anteriores?

Questões boas para a psicologia do esporte, e que considero interessantes para pensarmos o fenômeno esportivo e suas representações midiáticas. E, por que não, também as representações históricas e historiográficas que construímos.

Além disso, frequentemente, nós historiadores somos também admiradores, torcedores, espectadores e/ou praticantes: é possível termos envolvimentos de diversas ordens com os times, atletas, modalidades etc. que pesquisamos.

Para saber mais

Textos com a palavra superação publicados neste blogue.

*  *  *

Este post é uma homenagem a minha avó Dirce, que se foi em agosto de 2016, aos 91 anos. Devo a ela muito do que sou (sobretudo do que tenho de bom). Na tarde em que recebi a notícia da morte dela, faltava menos de uma semana para eu retornar ao Brasil. Tinha uma partida de tênis marcada com Steve, um coroa com quem vinha jogando duas ou três vezes por mês, invariavelmente perdendo por 2×0 (às vezes, em uma hora dava tempo de perder dois sets inteiros). Steve joga muito melhor do que eu – estava uns dois ou três níveis acima, tinha um excelente saque e o forehand mais demolidor que já enfrentei. Pensei em desmarcar a partida. Não o fiz, nem contei a ele o que tinha acontecido. Naquele dia, jogamos apenas um set, que durou cerca de uma hora. Embora arrasado por dentro, senti uma calma e consegui um grau de concentração e foco que nunca experimentara. Pela primeira e única vez, ganhei um set de Steve. Ele me parabenizou, ao mesmo tempo em que não escondia estar bastante irritado consigo mesmo e com o resultado (como acontece com todo tenista fominha). Nos despedimos e ele foi embora. Por um tempo que não sei precisar, fiquei ali, sozinho, sentado no banco à beira da quadra, olhando as árvores e o céu azul de fim de tarde do Balboa Park.


Bra Boys

01/06/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

No Cineclube Sport de maio, vimos Bra Boys, dirigido por Sunny Aberton e Macario de Souza e lançado em 2007. O que segue abaixo é um conjunto de anotações de minha lavra, em parte estimuladas pelo filme, em parte pelo debate que se seguiu. Agradeço a todos(as) que participaram pelas estimulantes contribuições e questões.

O tema é um grupo de surfistas conhecidos como Bra Boys, residentes do bairro e locais da praia de Maroubra, em Sydney (Austrália).

Do ponto de vista estético, trata-se inegavelmente de um filme de surfe. Feito por e para surfistas, com cenas de surfe. Reifica determinadas visões sobre o esporte (quase todas positivas, muitas idealizadas), que permeiam um certo senso comum da modalidade. Por exemplo, a ideia de que o mar e o surfe fornecem um escape da sociedade. Em parte, evidentemente, isto é verdade. Mas é retratada como se o surfista, antes, durante e depois de surfar, não falasse ou convivesse com outros surfistas.

Do ponto de vista da circulação, me parece que não foi exibido em circuito no Brasil e na maioria dos países (exceto a Austrália e partes dos EUA), tendo circulado em festivais de documentários e festivais de filmes de surfe (obtendo prêmios em alguns destes).

Classe social e enquadramentos midiáticos

Bra Boys permite discutir a questão de classe social, bem como uma frase que escuto com frequência em âmbito acadêmico: “surfe é esporte de elite”. Na mesma linha, é um bom filme para debater estas perguntas: o que é o surfe? Há possibilidades de respostas universais para esta pergunta? Acredito que não. É preciso investigar as realidades locais. Buscar respostas locais para perguntas universais, como disse Giovanni Levi em texto que li recentemente (agradeço ao também escriba deste blogue, Victor Melo, pela indicação). Em outras palavras, à pergunta geral o que é o surfe?, é possível elaborar outras, específicas, para as quais Bra Boys dá algumas respostas e subsídios: o que é o surfe na Austrália? O que é o surfe para os australianos? O que é o surfe para aqueles garotos de Maroubra? O que é o surfe para os que ficam impedidos de surfar (por servirem nas forças armadas e terem sido transferidos para lugares sem onda; por estarem na prisão ou longe do litoral)?

(Pequena digressão: uma das coisas que mais me impressionaram e impactaram quando pesquisei revistas de surfe californianas publicadas entre os anos 1970 e 1990 foram as cartas de leitores enviadas desde a prisão. Fiquei impressionado por dois motivos: o teor das cartas; e também por, depois de um tempo, perceber que algumas prisões da Califórnia contavam com bibliotecas, que, por sua vez, tinham assinaturas de revistas de surfe – uma das leituras que mais atraíam jovens presos, muitos dos quais por crimes relacionados a drogas.)

Outro assunto a discutir é o enquadramento realizado pela mídia, que tende a tratar como banditismo as atividades desenvolvidas por grupos juvenis de camadas populares. Caminhando na direção oposta, o filme é uma construção realizada pelos próprios jovens: direção, produção, edição etc., exceto a narração, feita pelo ator Russel Crowe. Um dos motivos para fazê-lo, como afirmam logo no início, é estarem cansados de apanhar, sofrer abusos, ser tratados como bandidos ou invisíveis pela mídia, pelo governo e pela polícia (o tratamento da polícia para com esses jovens, guardadas as devidas proporções, parece muito mais civilizado do que o padrão vigente nas quebradas do Rio de Janeiro – o padrão do que é aceitável, é claro, pode mudar bastante de uma sociedade para outra). A cor da pele da maioria também é diferente daquela hegemônica entre os pobres do Rio, mas são, de fatos, jovens de uma área degradada. O alto número de mortos (sempre um indício de problemas) é um dado importante.

 

Território e localismo

Um dos principais assuntos/questões que o filme permite discutir é o vínculo com o território e o localismo. O localismo, em suas diferentes manifestações, é um fenômeno presente em praias de vários países, ainda que pouco apareça nas representações midiáticas do esporte. Pelo que observei até hoje, a postura mais comum é silenciar sobre o tema. E, na maioria das ocasiões em que é tratado, isto se dá sob a forma de crítica: o localismo é classificado como um comportamento atrasado, violento e de ignorantes. Contudo, algum grau de relativismo, contextualização e até glamourização pode ocorrer (às vezes combinado com criminalização e acusações) quando se trata do North Shore da ilha de Oahu, no Havaí. (Para uma interessante – embora a meu ver exageradamente engajada e maniqueísta – análise e crítica da criminalização promovida pela mídia hegemônica a respeito dos locais e do localimo no North Shore, ver o último capítulo de Walker, 2011).

Por outro lado, o bairro é pouquíssimo explorado na trama. Fiquei curioso para saber e entender mais, já que argumenta-se que o vínculo com ele é um dos aspectos que definem o caráter, a identidade e os valores desses jovens (como, por exemplo, a alegada rejeição do racismo e da xenofobia). Bra Boys argumenta que o localismo não necessariamente significa recusa e intolerância com relação ao outro. Quando se trata de uma comunidade “multicultural” como Maroubra, não é a etnia, religião ou país de origem que decidirá quem cabe no grupo: todos podem fazer parte do que é o nós.

Gênero e masculinidades

A partir tanto do comportamento dos personagens e do fato de serem praticamente todos masculinos, quanto da quase ausência de personagens femininas, é possível discutir questões relativas a gênero e masculinidade. Há ainda, o contraponto da avó Ma (possivelmente uma corruptela de “avó”, em inglês). É impressionante a força desta mulher, cuja casa é uma espécie de abrigo seguro (safe heaven, se diria em inglês) para crianças e adolescentes de famílias destrambelhadas e destruídas pela pobreza, desemprego, violência e drogas. Isso inclui os próprios netos de Ma, o trio de irmãos que protagoniza o filme (um deles co-diretor da obra).

Um tema que aparece rapidamente no filme são as diferentes medidas restritivas impostas pelo poder público aos banhistas australianos ao longo do século XX. Segundo Douglas Booth (2001), em seu fascinante livro sobre as culturas de praia australianas, houve momentos em que cercas de arame farpado dividiam as praias, de forma a separar homens de mulheres.

Por sinal, as restrições, perseguições e criminalização do surfe e dos surfistas são um dos muitos assuntos por investigar na história desta prática no país. Em alguns dos poucos trabalhos sobre a modalidade (Cunha, 2000; Fortes, 2011), há indícios de uma série de problemas, controvérsias e até notícias de mortes em vários municípios do litoral catarinense, Arraial do Cabo (RJ) e Recife (PE). Há tanto repressão e conflitos com o Estado quanto com determinados grupos ou setores da sociedade, como pescadores e banhistas. Também no caso da história do skate no Brasil, este é um caminho tão promissor quanto pouco explorado, exceto, até onde sei, por iniciativas pontuais do pesquisador Leonardo Brandão (como este e este artigos).

Bibliografia

BOOTH, Douglas. Australian Beach Cultures: The History of Sun, Sand and Surf. London: Frank Cass, 2001.

CUNHA, Delgado Goulart da. Pescadores e surfistas: uma disputa pelo uso do espaço da Praia Grande. 2000. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2000.

FORTES, Rafael. O surfe nas ondas da mídia: esporte, juventude e cultura. Rio de Janeiro: Apicuri/Faperj, 2011.

WALKER, Isaiah Helekunihi. Waves of Resistance: Surfing and History in Twentieth-Century Hawai’i. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2011.

 

 

 

 

 

 

 


Os museus de surfe da Califórnia

06/02/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

Como prometi, hoje trato dos cinco museus de surfe localizados na Califórnia. Neste texto, estou usando a categoria nativa, ou seja, considero museus de surfe as cinco instituições que se classificam como tais. Eles se estendem desde Oceanside, no sul do estado, até Santa Cruz. Seguirei este trajeto sul-norte na ordem de apresentação. Todas as fotos sem crédito de autor foram feitas por mim. Informações específicas sobre itens dos acervos estão nas legendas das fotos.

California Surf Museum (CSM, Oceanside)

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Foi o museu em que estive mais vezes. Fica perto da estação de trem e do píer onde surfam e treinam locais e/ou profissionais – o píer aparece constamentemente em séries do canal Off.

Tem uma excelente coleção de revistas, que ficam numa sala confortável e exclusiva para pesquisadores. A pesquisa neste museu fez parte de uma experiência maior, daquelas que não têm preço nessa vida: durante o ano em que vivi na Califórnia, fui respeitado como pesquisador de história do surfe e da mídia do surfe de uma forma como raramente aconteceu noutros lugares – incluindo o Rio de Janeiro e o Brasil – em mais de dez anos dedicados ao tema.

Comandada pela historiadora Jane Schmauss, a equipe é prestativa e simpática – quando solicitadas por mim, as pessoas sorriam e se interessavam pelo meu trabalho, em vez de rosnarem, como acontece noutros lugares e cidades por aí. Conta com voluntários e trabalhadores assalariados. Segundo me explicou Jane, o museu recebe cerca de 25 mil visitantes anuais. O imóvel onde está há alguns anos pertence à Prefeitura de Oceanside – cuja sede fica próxima -, que o alugado a preço subsidiado. Ali pertinho também está a biblioteca municipal (a visita à biblioteca da cidade é um programa bacana, assim como em várias cidades e bairros californianos).

O forte do acervo, como em três outros museus, são as pranchas. Entre doações, empréstimos, exposição permanente e temporária, é possível ter contato com boa parte da produção de pranchas do sul da Califórnia desde os anos 1950. Há também exemplares mais antigos: paipos havaianos, pranchas para salvamento no mar etc. Mas o foco está nos shapers da própria região – vários dos quais são sócios contribuintes do próprio museu e doaram e/ou emprestaram pranchas de sua lavra. Algumas estão autografadas pelos shapers, outras, pelos que as surfaram. Há doações de Kelly Slater e de outros atletas famosos do esporte profissional e/ou das ondas grandes (nas ocasiões em que estive lá, a exposição temporária era sobre surfe em ondas grandes; preparava-se uma exposição sobre surfe durante a Guerra entre os EUA e o Vietnã). Há também seções dedicadas a outros aspectos, como bodyboard e surfe de peito. Tem uma vitrine muito interessante com jogos e brinquedos que têm o surfe como tema – de Barbie a Banco Imobiliário – e outra com dezenas de parafinas.

Sou suspeito para falar, pois nesse museu fiz parte de minha pesquisa de pós-doutorado. Além disso, tive uma experiência bacana como usuário (e não como pesquisador) em todas as ocasiões em que estive lá. Isso porque está em exibição a prancha de Bethany Hamilton – de quem eu nunca ouvira falar até recentemente. Trata-se de uma havaiana, de uma família de surfistas, que teve um braço arrancado por um tubarão enquanto pegava onda com uma amiga, aos 12 anos de idade. A história está contada em dois filmes (um documentário e um de ficção) e um livro. Bethany tornou-se ícone dos e das adolescentes e tem sua própria linha de produtos de beleza. Além disso, o que mais me impressionou: continuou surfando. E bem: embora não corra o circuito mundial, volta e meia participa de um etapa como convidada. Em 2016, chegou à semifinal da de Fiji – é bom lembrar, Bethany surfa com a desvantagem de não ter um braço para remar, se equilibrar e, dependendo do lado para o qual a onda quebra, adequar a velocidade colocando a mão na parede da onda e/ou segurando a borda da prancha.

Enfim, a experiência definitiva de visitante é ficar sentado num pufe, perto da prancha de Bethany, e esperar para ver alguma criança se aproximar (a Califórnia é cheia de crianças, tanto locais quanto turistas). A cara de surpresa que as crianças fazem é indescritível. Cobrem a boca com a mão, mordem os dedos, andam para trás, correm para chamar a atenção de alguém. Ao que parece, todas conhecem a história de Bethany (e por isso a reação). Fica a dica: se você, leitor(a) um dia for ao CSM, e a prancha de Bethany ainda estiver lá, fique uns minutos na área central, como quem não quer nada, até que chegue uma criança ou grupo de crianças à parte dedicada à surfista. A reação delas valerá a visita.

Surfing Heritage and Culture Center (SHACC, San Clemente)

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Para quem vem do sul, San Clemente é a primeira cidade litorânea do Condado de Orange (vulgo OC). Nesta importante cidade de surfe está o SHACC. A entrada para a exposição, que consiste basicamente de pranchas (ver informações no álbum de fotos), custa US$ 5. Para fazer pesquisa no acervo, que conta com revistas, livros e outros documentos, como cartas, é preciso ser membro da associação, o que custa US$ 50 por ano. A reprodução de materiais (uso de scanner etc.) é paga à parte.

Assim como o congênere de Oceanside, o museu é obra do esforço de um conjunto de surfistas, boa parte deles sócios que doam tempo e/ou dinheiro para a manutenção e desenvolvimento do local. Servem também como espaço para a realização de lançamentos de livros e filmes, homenagens, leilões (nos quais se leiloam pranchas e outros objetos para arrecadar recursos para o próprio museu), jantares de homenagem e/ou de arrecadação de fundos para as próprias entidades e para outros fins. Quando estive lá, fui atendido de forma muito simpática por Barry Haun, que, de bermuda e chinelo, me deu informações, forneceu contatos que poderiam ser úteis à minha pesquisa e, enquanto eu fazia a visita, fez a gentileza de telefonar para uma das pessoas para avisar que eu entraria em contato.

International Surfing Museum (Huntington Beach)

Este é o museu em que fui recebido com menos simpatia. Talvez as condições fossem desfavoráveis: era um domingo, ali pela hora do almoço, e havia dezenas de torcedores ruidosos do San Francisco 49ers tocando o terror assistindo ao jogo num pub em frente. (Tocando o terror nos padrões dos EUA, evidentemente; brincadeira de criança, quando se compara com as torcidas de futebol no Brasil.) O que me pareceu mais interessante do acervo foram itens específicos do surfe na própria cidade, sede de importantes campeonatos ao longo de décadas.

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Santa Cruz Surf Museum (Santa Cruz)

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O Santa Cruz Surf Museum é tão pequeno que não daria para o acervo focar em pranchas – elas não caberiam no local. Contudo, tem seus atrativos. O primeiro deles é ficar dentro de um farol. Segundo, fica num lugar belíssimo, à beira-mar, em cima da ponta onde, logo abaixo, está Steamer Lane, uma das ondas mais famosas da Califórnia. Ou seja, a visita ao museu pode ser combinada com uma sessão nas gélidas águas locais – ou, em casos como o meu, com a assistência. O mesmo estacionamento é usado pelos visitantes do museu e pelos surfistas. Terceiro, tem entrada gratuita. Quarto, o acervo tem algumas fotos interessantes, assim como informações sobre aspectos do surfe local, como… ataques de tubarão.

Além de importante cidade de surfe californiana, conhecida pelas boas ondas e pelo mar frio, Santa Cruz é o lugar de origem de um dos principais fabricantes de roupas térmicas para surfe do mundo: O’Neill.

Santa Barbara Surf Museum (Santa Barbara)

Deste, não sei por que, não consegui encontrar as fotos. Assim como o de Santa Cruz, o forte são as pranchas. Há também muitas capas de discos e cartazes de filmes. De todos, foi o que me pareceu mais amador: na verdade, parece uma iniciativa pessoal de um apaixonado pelo surfe. O inacreditável: no domingo em que estive lá, não vi ninguém no museu. Isso mesmo: desde o momento que cheguei até a hora em que saí, não havia absolutamente ninguém lá dentro. O museu não cobra entrada, e é possível levar um adesivo deixando numa caixinha, em troca, uma doação de US$ 1. A casa onde funciona é meio difícil de achar, pois fica numa daquelas ruas meio estranhas: termina do nada numa linha de trem e recomeça do outro lado, só que você olha e não sabe por onde atravessar (pois há grades e muros). E uma vantagem, sem dúvida, é ficar na linda Santa Barbara.