Um encontro entre futebol e surfe na Copa do Mundo de 2010 (África do Sul)

23/11/2020

Por Rafael Fortes

Este texto sintetiza uma parte das discussões presentes em trabalho apresentado no grupo de pesquisa Comunicação e Esporte e publicado nos anais do 42o. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, organizado pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) em Belém (PA).

Afrika (2011) é um filme dirigido por Thomas Mulcaire e Ricardo de Oliveira e está disponível na íntegra no link abaixo:

O filme contou com patrocínio de empresas e fundos voltados para o fomento às artes.

Rodado ao longo de 2010 em Moçambique e na África do Sul, narra uma viagem de quatro surfistas brasileiros pelos dois países. O primeiro aparece rapidamente, sendo a maior parte do tempo dedicado ao último. Identifiquei onze cenas ou sequências com alguma referência ao futebol. A maioria delas é bastante fugaz: uma bola de futebol ao lado de uma prancha sobre a areia da praia ou um take mostrando uma roda de homens brincando  de altinha. Esta atividade, que consiste em duas ou mais pessoas trocarem passes com uma bola de futebol sem deixá-la tocar o chão, é bastante comum em praias do litoral brasileiro – no Rio de Janeiro e noutros estados -, inclusive naquelas muito frequentadas por surfistas. Cenas semelhantes – e de partidas de golzinho – aparecem esporadicamente em filmes brasileiros dedicados ao surfe, tendo, como participantes, os próprios surfistas do país.

Isto sugere algo que pode parecer óbvio, mas que considero válido mencionar: durante o processo de crescimento, enquanto ainda são crianças e adolescentes, a maioria daqueles que serão atletas futuros de uma modalidade (específica) se dedicam a várias delas, seja do ponto de vista do treinamento e competição, seja do ponto de vista da diversão. Tendo em vista a forte presença do futebol no Brasil, não é de surpreender que muitos surfistas tenham crescido batendo uma bolinha e sigam gostando de fazê-lo.

A principal distinção de Afrika em relação à filmografia de surfe, no que diz respeito à presença futebolística, encontra-se na sequência de aproximadamente três minutos em que os surfistas comparecem ao estádio Soccer City, em Joanesburgo, para assistir à partida entre Brasil e Costa do Marfim pela Copa do Mundo de futebol de homens realizada em 2010. O trecho evidencia a pouca familiaridade dos surfistas com o ambiente do estádio de futebol – no caso, particularmente impressionante por se tratar de uma partida de Copa do Mundo envolvendo a seleção brasileira. O barulho das torcidas – evidentes pelo volume do áudio do próprio filme – é um dos elementos que impressionam os protagonistas do filme.

A vitória da seleção brasileira pelo placar de três a um permitiu-lhes experimentar tanto a comemoração de gols, assistir em uma ocasião à celebração entre aqueles que torciam para a seleção marfinesa. Na mesma sequência, aparecem ainda comemorações, batucadas, gritos e cânticos em português, que prosseguem no pós-jogo pela parte externa do estádio e no interior de um ônibus.

Conforme afirmei no artigo:

As sequências no estádio e as comemorações pós-jogo reproduzem elementos do senso comum a respeito de megaeventos esportivos como a Copa do Mundo – por exemplo, a ideia de que são (exclusivamente) ocasião para congraçamento dos povos.[1] Tal visão se expressa também em um item dos “agradecimentos especiais” nos créditos finais: à “Fifa pela Copa do Mundo de 2010”.

Esporte e cinema vêm sendo estimulados por sucessivos governos da África do Sul pós-apartheid como instrumentos para divulgar uma imagem positiva do país no exterior e para incrementar o afluxo de turistas (Fortes, 2014). A realização das Copas do Mundo de rugby em 1995 e de futebol em 2010, bem como a candidatura da Cidade do Cabo para sediar os Jogos Olímpicos de verão de 2004, integram este conjunto de políticas – também observáveis noutros países dos BRICS (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Este contexto é importante para se compreender a realização de um filme como Afrika e, também, a inserção particular dele na filmografia brasileira de surfe.

Referências bibliográficas

FORTES, Rafael. Entre o surfe feminino, a indústria de surfwear e a promoção da África do Sul: uma análise de A Onda dos Sonhos 2. In: FORTES, Rafael; MELO, Victor Andrade de (org.). Comunicação e esporte: reflexões a partir do cinema. Rio de Janeiro: 7 Letras/Faperj, 2014. p. 49-70.

FORTES, Rafael. O futebol num filme de surfe: Afrika, Copa do Mundo e a filmografia sobre esporte. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 42, 2019, Belém. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/nacional2019/resumos/R14-0019-1.pdf . Acesso em 23 nov. 2020.

Notas

[1] Ignorando-se, por exemplo, os impactos sociais e coletivos sobre setores mais vulneráveis da população devido às políticas públicas de remoções forçadas, conforme discutido e denunciado no documentário Tin Town.


Os Garotos da Praia de Waikiki: surfe, turismo, homens e mulheres

10/04/2016

Por Rafael Fortes

Num livro publicado em 2011, o historiador Isaiah Helekunihi Walker celebra o surfe como prática de resistência no Havaí durante o século XX. Entre os méritos da obra estão o uso de fontes que transcendem o inglês – sobretudo jornais em havaiano – e o destaque à articulação do surfe com movimentos políticos do arquipélago. Tem também problemas, comWalker - Waveso a grande facilidade para enxergar resistências e o esforço de corrigir textos de memória e jornalísticos – frequentemente, rechaçando os mitos apenas para colocar outros em seu lugar. Contudo, esse texto não é uma resenha do livro. Avisos aos navegantes: todas as citações do livro estão originalmente em inglês e foram traduzidas por mim; os vídeos, quando narrados, o são em inglês.

O que me interessa discutir é um trecho – intitulado “Garotos da Praia: Empurrando Mulheres e Fronteiras” (p. 70-77) – do capítulo três. O capítulo trata da rivalidade entre os frequentadores da praia de Waikiki, em Honolulu, que se agruparam em torno de dois clubes: o Outrigger Canoe Club, “formado em 1908 por (…) Alexander Hume Ford” e composto majoritariamente por haoles brancos nascidos no continente (p. 59); e o Hui Nalu, fundado e composto por membros de famílias históricas havaianas, entre os quais Duke Kahanamoku e o príncipe Jonah Kūhiō Kalanianaʻole, membro da família real deposta na última década do século XIX, antes da anexação pelos EUA, em 1898 (não confundir este clube com o Hui O He’e Nalu, formado nos anos 1970 e existente até hoje, cujos membros se tornaram conhecidos no Brasil como black trunks). O Hui Nalu, “embora existisse de forma pouco organizada desde 1905, (…) foi oficialmente formado (…) em 1911” (p. 62). Waikiki era e continua sendo a praia mais turística do arquipélago.

De acordo com Walker, “a partir de 1915, surfistas do Hui Nalu abriram lucrativos negócios sob concessão em Waikiki” e passaram a ser conhecidos como os “Garotos da Praia de Waikiki” (p. 70). Eles “eram salva-vidas, guarda-costas, instrutores, animadores e guias turísticos para os visitantes. Por um preço relativamente alto, levavam clientes para a arrebentação para descer ondas em canoas e pranchas.” Faziam e vendiam artesanato e davam aulas de ukelele.  À medida que os negócios se desenvolveram, alguns garotos passaram a atuar em tempo integral como funcionários particulares de famílias ou indivíduos de alta renda que visitavam Waikiki: levavam para passeios, atuavam como secretários particulares e desempenhavam funções diversas por períodos que variavam de “duas semanas até três meses” (p. 71).

As informações contidas e as histórias contadas nesta parte do capítulo se baseiam majoritariamente em entrevistas de história oral feitas com os próprios Garotos da Praia (a maioria, feitas em 1985 e disponíveis num banco de dados). Ao narrarem as relações com os e, principalmente, as turistas, a coisa fica mais animada.

Entre as graças que faziam para entreter os clientes, contavam histórias e piadas e surfavam sentados em cadeiras de praia ou na companhia de um cachorro. Este vídeo identifica um dos irmãos Kahanamoku como um surfista que descia ondas com seu cão Spot, o que pode ser visto em 3’19”. (Adendo: em outras ondas, a prancha em que está o cachorro não consegue ser captada pela câmera, o que provavelmente se deve à dificuldade de manejar o equipamento e à diferença de velocidade entre a prancha filmada e a canoa em que, suponho, encontrava-se a câmera.)

“À medida que ostentavam suas habilidades sociais e surfísticas, eles se tornaram celebridades locais capazes de atrair mais do que dinheiro. Garotas e mulheres brancas se aglomeravam na praia para aprender a surfar com os Garotos da Praia havaianos. ‘Naquela época’, recordou Louis Kahanamoku, ‘especialmente as wahine [mulheres] brancas iam todas nos Garotos da Praia. Os Garotos da Praia eram conhecidos por cortejar diversos tipos de mulheres de fora – divorciadas, ricas, vedetes e filhas de visitantes ricos” (p. 72).

Havia turistas que confiavam suas filhas aos cuidados dos Garotos da Praia. Houve histórias de amor entre os Garotos e vedetes que deram em casamento. E evidentemente, havia quem os considerasse “um bando de homens preguiçosos que se prostituem ganhando a vida em cima de desquitadas do continente” (p. 72).

Uma das principais formas de ensinar as damas a surfar, e também de “impressioná-las”, era descer as ondas junto com elas, na mesma prancha. Por exemplo, levantando-as sobre os ombros, o que, de acordo com um dos Garotos, “convidava a manobras excitantes e íntimas”. Na volta, “subiam em cima da parte de trás das garotas haoles” na remada para o outside (p. 72). O vídeo abaixo mostra, em 2’20”, uma sorridente mulher descendo uma onda em surfe duplo. (No último vídeo deste texto, há também um amplo sorriso captado em 5’07, em meio à excitação de descer uma onda numa canoa.)

(Breve comentário sobre o vídeo acima: como se pode ver, ele traz fartura de boas ondas surfadas com desenvoltura – e grande estilo – por um cachorro, que abre os trabalhos no sonrisal em 2’44” e depois manda ver no hang ten.)

Cenas com homens aproveitando a aproximação dos corpos para certos contatos e iniciativas, embora mantendo uma postura que cinicamente permita alegar que nada demais está acontecendo, também aparecem em Gidget, produção de 1959 com trama situada no litoral da Califórnia. Eis o trecho:

A partir de 0’16”, um dos personagens fala: “Aí está, querida! Reta como uma panqueca, hein?! Quase, né? (…) Posso te deixar mais à vontade?” Ao final, o mesmo personagem diz: “Muito bom para a primeira vez, né? Agora vou um levá-la um pouco mais fundo!” O filme, de acordo com vários pesquisadores, foi decisivo para espalhar a febre do surfe pelos EUA. A situação da personagem adolescente Gidget, que busca aceitação e tenta aprender a surfar em meio a vagabundos de praia mais velhos, é muito distinta daquela das turistas que buscavam e contratavam os serviços dos Garotos da Praia de Waikiki – elementos que podem permitir uma boa e complexa discussão sobre consentimento, abuso, vulnerabilidade etc.

Voltando a Waikiki… Quando na areia, a legítima preocupação de evitar queimaduras pela exposição ao sol levava os Garotos a realizar, “com frequência regular”, sessões de massagem para aplicação de óleos na pele de quem estava sob seus cuidados (p. 73).

À noite, vestindo smoking, os Garotos cantavam e tocavam instrumentos musicais, atraindo especial interesse do público feminino. As letras de algumas músicas tratam destas interações, do clima de romance e do duplo sentido em movimentos e gestos. Após o encerramento das atividades, os pares/casais se espalhavam em diversas direções – alguns, rumo ao mar, para novas sessões de surfe a dois.

O vídeo a seguir reitera esta narrativa da “boa vida” dos Garotos com diversas fotos, especialmente a partir de 3′ (e, diga-se de passagem, tem uma visão ainda mais positiva e idílica que Walker).

Como se pode imaginar, “por meio de tais interações, os Garotos da Praia de Waikiki violavam regras sociais de uma sociedade americana governada por leis antimiscigenação e ameaçavam a hegemonia haole por conquistarem propriedade que haviam construído e que era seu privilégio” (p. 75). Para Walker, isto evidencia que o mar – e, particularmente, a prática do surfe – constituía um espaço de exceção, de inversão de valores. Ali os homens havaianos eram poderosos, admirados e desejados. “Enquanto a indústria do turismo promovia as ilhas como uma ‘mulher’ a ser conquistada, os homens havaianos não eram propagandeados como objetos sexuais da maneira como ocorria com as mulheres dançarinas de hula-hula. Portanto, estes homens não estavam desempenhando ou se adequando a expectativas de conquista sexual de turistas; em vez disso, as desafiavam” (p. 75-6). Embora o argumento tenha valor, eu sugeriria que eles estavam também se adequando às expectativas das turistas.

No início dos anos 1930, num contexto de intensa crise econômica; acusações de estupro; e o transplante, para as ilhas, do discurso racista e histérico a respeito do negro como um predador sexual, o clamor social legitimou uma intensa reorganização do espaço social e econômico da praia de Waikiki, que passou a ser completamente controlada pelos brancos ligados ao Outrigger. Restou aos Garotos se sujeitarem a trabalhar em condições muito piores que as anteriores, tentarem ganhar a vida como frilas ou simplesmente abandonar a praia. A Segunda Grande Guerra fecharia as praias do arquipélago – de acordo com Walker, Waikiki foi cercada com arame farpado.

Bibliografia

WALKER, Isaiah Helekunihi. Waves of Resistance: Surfing and History in Twentieth-Century Hawai’i. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2011.

 

 

 

 


As antigas e as novas faces do Rio turístico

01/10/2011

Por Valéria Guimarães

O post desta semana é dedicado aos novos usos turísticos na cidade do Rio de Janeiro, que passa por transformações profundas para receber os balados jogos esportivos, criticadas de forma muito pertinente nos posts anteriores. Espera-se que um dos “legados” dos jogos na cidade remodelada seja fortalecer a sua imagem turística no exterior, tornando-se um importante destino internacionalmente competitivo. Embora seja a principal cidade do país procurada para o turismo de lazer, é inexpressiva a participação do Rio de Janeiro – e do Brasil – como destino turístico no cenário mundial. Isso se explica pelo mau aproveitamento do potencial turístico da cidade, mal planejada e mal gestada ao longo de toda a história do seu desenvolvimento turístico.

Os novos empreendimentos públicos associados ao capital privado para o setor turístico, embalados pelo reposicionamento e projeção da “marca Rio de Janeiro” na vitrine mundial, concentram-se na exploração do mix de cultura e lazer como produtos, transformando em espetáculo pago as novas opções de turismo e lazer projetadas para a cidade, especialmente aquelas intervenções burguesas, de elevadíssimo custo social, concentradas na área portuária ou na “nova” Lapa.

Como bem analisa Victor Melo , a cidade vivenciou na primeira metade do século XX uma experiência moderna de construção identitária que consagra o uso de espaços públicos, especialmente da praia, como lugar do sujeito carioca. Ficariam para trás os valores sociais e estéticos que elegiam os tipos magros, pálidos e engravatados, para dar lugar aos signos que associavam juventude e modernidade carioca: corpos expostos, atléticos, modelados pela prática esportiva ao ar livre e dourados pelo sol.

As representações historicamente construídas sobre o paraíso tropical, terra de sol e de mar, de gente hospitaleira e mulheres exuberantes, associadas às novas sociabilidades que se manifestavam na urbe, especialmente nos novos usos da praia como espaço de lazer e de uma nova relação com o corpo a ser ali exibido, assumiram por muitas décadas um lugar central no discurso turístico sobre o Rio de Janeiro.

A idéia de uma “vocação natural” do Rio de Janeiro para a prática de um turismo de sol, de mar, de apreciação da floresta urbana, do samba e da mulher bonita de biquíni mínimo foi plenamente incorporada no discurso oficial, nas políticas públicas e privadas para o turismo, e divulgada na folheteria turística, nos guias impressos, nos cartões postais, nos souvenires e nas atrações culturais voltadas para os turistas – particularmente os shows de mulatas.

Os cartões postais de mulheres de biquíni, os preferidos dos turistas internacionais, estão proibidos por uma polêmica lei desde 2005, sob o argumento de vinculação da imagem da mulher e da cidade a um paraíso do turismo sexual. Fonte: http://colees-e.blogspot.com/2009/06/sera-que-e-de-proibir.html

A esse repertório, que compunha a maior parte dos roteiros comercializados pelas agências de turismo, sugeridos pelos guias e espalhados pelo “boca a boca”, somaram-se o futebol e a bossa nova como elementos representativos da cultura de uma cidade para turista ver, coração e síntese da cultura do Brasil. Essa imagem turística do Rio de Janeiro (e por que não dizer do país?), que ganha força na segunda metade do século passado, sem dúvida, amplificada pelo cinema de Hollywood, que construiu e reforçou estereótipos e acentuou no olhar estrangeiro o quanto éramos “sensuais”, “exóticos” e “pitorescos”, imagem esta reproduzida pelo próprio discurso turístico nacional.

O turismo no Rio de Janeiro hoje vem sendo ressignificado não só pelos novos investimentos feitos a pretexto da realização dos megaeventos esportivos e seu “legado”, mas também por uma nova visão de mundo da sociedade a partir das demandas sociais por inclusão das minorias étnicas e culturais e ampliação de seus direitos civis, como o direito à propriedade da terra, por exemplo. Até então invisíveis ao turismo, os bens culturais produzidos por esses grupos socialmente excluídos passam a ser objeto de interesse turístico, alargando consideravalmente o repertório turístico da cidade.

Tamanha é a importância do turismo em favelas na cidade do Rio de Janeiro que o mercado turístico já o reconhece como um “nicho”; outras formas de viver relacionadas à presença histórica de grupos étnicos na cidade – e no estado – também passaram a ser objeto de interesse dos turistas. Você já ouviu falar em “turismo étnico”? É possível hoje hospedar-se em aldeias indígenas de Niterói ou de Angra do Reis, por exemplo. Na cidade, o Mercadão de Madureira, a “Pequena África no Rio de Janeiro”, localizada na região portuária, particularmente o Quilombo da Pedra do Sal, escolas de samba, centros de candomblé e festas religiosas negras passaram a integrar o roteiro de muitos turistas negros, especialmente provenientes dos Estados Unidos, à procura de uma origem comum (“afro-americana”) por eles imaginada. Os novos gringos na cidade já não são identificados apenas pela pele clara e pelos olhos azuis ou pelas coloridas roupas florais.

Fachada de uma das loja de tecidos e roupas de santo do Mercadão de Madureira. A concentração e o movimento nas lojas de artigos para a prática de religiões de matriz africana viraram atrativo turístico. Foto de João Xavi. Fonte: http://www.overmundo.com.br/guia/mercadao-de-madureira

 E quando o turista é o próprio morador, a descobrir a sua cidade? Quem anda pelas ruas do Centro do Rio já deve ter reparado um aumento significativo no número de pessoas que em pleno frenesi dos dias úteis, onde quase somos atropelados se voltarmos para olhar uma banca de jornal, por exemplo, procura apreciar as belezas e os detalhes que os mais apressados nunca tem tempo de notar. Nas redes sociais, grupos de aficcionados pela cidade se organizam para passeios a pé, inventando novos roteiros que fogem aos ícones Pão de Açúcar–Floresta da Tijuca–Praia de Copacabana–Cristo Redentor e gastam muito pouco ou nenhum dinheiro, dependendo do roteiro, se for operado por pequenos empreendedores ou oferecidos de graça.

 

Visitas noturnas ao centro do Rio, promovidas gratuitamente, por iniciativa do Projeto Roteiros Geográficos do Rio (IGEO/UERJ): uma forma original de apreciação estética do Rio de Janeiro e de ocupação da cidade como alternativa à violência. Fonte: youtube=http://www.youtube.com/watch?v=vuyWRIvSmCc

De dia ou de noite, da Pedra do Sal, aqui já citada, ao “território da Daspu” , tudo atrai a atenção dos curiosos, a maioria moradores da cidade, que raramente tem a oportunidade de apreciar um espaço onde nos acostumamos a percorrer marchando ou, literalmente, correndo. E cruzar as fronteiras simbólicas da cidade? Quantos moradores começam, embevecidos, a despertar para o interesse de atravessar o túnel, embarcar num trem em direção ao subúrbio, comer uma feijoada numa quadra de escola de samba, participar de eventos, conhecer territórios simbolicamente impenetráveis?

Vídeo Samba na Pedra, de David Obadia, registra um dia de festa na Pedra do Sal. Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=FdKMROSWkGM

O mochileiro, aquele “turista alternativo”, que se hospeda em hostels (os antigos albergues agora com nomes moderninhos) ou na casa de pessoas comuns, no estilo “cama e café”, que vem fazendo bastante sucesso por aqui, há muito tempo aprendeu – talvez até primeiro que muitos de nós – a descobrir e curtir lugares invisíveis à ótica do turismo tradicional. Para muitos deles, mais vale a experiência no contato com os nativos do que a quantidade de atrativos/clichês turísticos criados para serem consumidos pelos turistas.

Enquanto o poder público e o empresariado se unem nas parcerias público-privadas para formatar produtos turísticos com cara globalizada, desenvolvidos para um perfil de consumidor com poder aquisitivo elevado e onde muito poucos ganham muito, a cidade turística mais importante do país, que pleiteia junto à UNESCO o título de Paisagem Cultural da Humanidade , ainda bem, continua oferecendo opções de turismo e lazer alternativos que atraem moradores e turistas interessados em conhecer as outras faces de um Rio que, apesar dos pesares (vide o abandono de nossos bens culturais, como o triste caso dos bondes de Santa Teresa), insistem em sobreviver.