O Passeio Público de Curitiba e as dinâmicas náuticas na capital paranaense da transição dos séculos XIX-XX[1]


Leonardo do Couto Gomes

Inaugurou-se com grande pompa o local destinado para passeio publico desta capital, e disso já devem ter ido os telegrammas para a corte.Appladudimos a ideia, e achamos menos má a escolha do terreno, por ser um brejal que se pretende deseccar, e tornal-o util de imprestavel que antes era (O Dezenove de Dezembro. 4 de mai. 1886, p.1)

A história das primeiras experiências náuticas da capital paranaense está intimamente entrelaçada com a construção do primeiro parque público da cidade em. Nas primeiras páginas do principal jornal paranaense do período, O Dezenove de Dezembro, estampava-se a notícia da inauguração do pioneiro Passeio Público de Curitiba. Com aplausos, a mídia local aparentava apreciar com bons olhos a formação deste espaço para recreio. Destaca-se ainda, no anúncio acima, a colocação de que o local onde o passeio foi construído era um terreno pantanoso e que nada de proveitoso se tirava dali. Tratava-se, portanto, de uma construção vantajosa ao desenvolvimento material da capital paranaense.

A respeito da área onde foi edificado o Passeio Público, de fato, era um vasto terreno lamacento de 48 mil metros quadrados situado, naquele momento, ao norte da cidade (atualmente região central), banhado pelas águas do Rio Belém, que rotineiramente alagavam a região, espavorecendo os habitantes devido o odor e os miasmas provocados pelas águas paradas. Portanto, o novo ambiente emergia como um símbolo útil para a transformação urbana e que as atividades ali difundidas também estariam imbuídas deste mesmo ideário.

Fonte: Casa da memória. Curitiba/PR.
A estrela amarela indica a área do Passeio Público de Curitiba.
O retângulo roxo identifica a Praça Tiradentes, marco central da cidade.
A linha laranja trata-se da Rua 15 de novembro, logradouro onde funcionou o Teatro Hauer, espaço utilizado para a promoção de diversas festividades entre 1891 e a década de 1930.
O traço azul claro representa a Rua Aquidaban (atual Emiliano Perneta). Ponto de variados empreendimentos ligados aos divertimentos. O Colyseu Curytibano um parque de diversões famoso da década de 1900 e o Frontão Curitybano, casa especializada no jogo da pelota basca, são bons exemplos.
A linha branca trata-se da estrada da graciosa, importante trajeto que liga Curitiba ao litoral – e ao principal porto comercial, o da cidade de Paranaguá.

À frente dos projetos arquitetônicos, estava o italiano João Lazzarini, nesse momento engenheiro da câmara municipal e encarregado pela edificação. Enquanto o responsável político pela empreitada era o então presidente da província, ligado ao partido liberal, o carioca Alfredo d’Escragnolle Taunay, que acelerou a construção para finalizá-la durante seu mandato (1885-1886) – com o propósito de colher as glórias da conclusão da obra.  Em discurso o governante evidencia sua visão sobre a construção do parque:

A cidade de Curitiba ressente-se de uma grande falta, que já deveria ter sido motivo de algumas medidas por parte dessa Municipalidade: a de um passeio ou Jardim Público, que servin-do à população de ameno e freqüentado logradouro, mostrasse a quantos procuram ou visitam esta localidade que ela com-preende devidamente a importância de certos melhoramentos cuja ligação com a saúde e higiene gerais são hoje indiscutí-veis e que nos centros de aglomeração de gente se tornam até indispensáveis( Boletim do Arquivo do Paraná. v. 13, 1886, p. 40).

Notemos que, na percepção do político, a obra era uma necessidade pública indispensável para a cidade. Esse ponto de vista observava a estrutura como uma importante possibilidade de melhorias para a saúde e higiene geral da população, e que só se efetivaria por meio de reformas em uma área que até então contava com características insalubres. Sobre esses pontos a construção do Passeio de fato apresentava avanços para a higiene pública, pois a estrutura remodelaria um espaço visto como foco de pestilências. Ainda, foi por meio dos avanços da engenharia que a empreitada promoveu a condensação da vegetação e regularizou o escoamento das águas, que era o foco de preocupação com doenças.

O primeiro parque de Curitiba foi inaugurado em 1886. Entre seu leque de possibilidades, destacavam-se diversas inovações, algumas marcadas pelo controle do homem perante a natureza, como a possibilidade de caminhar por cima de pontes e jardins em uma área que até então era pantanosa e insalubre. A imagem a seguir ilustra esse feito, ao retratar sujeitos em cima de uma passarela nos primórdios do funcionamento do Passeio.

Figura 2. Passarela no Passeio Público, 1886.
Fonte: Arquivo da Gazeta do Povo. Curitiba/PR

Mas destaque mesmo ganhou o carrossel elétrico colocado no parque. Se tratava de um instrumento da maquinaria que trazia ar de tecnologia e novidade ao ambiente que proporcionava experiências singulares ligadas as percepções de velocidade e vertigem. A iluminação por meio da energia elétrica – utilização ainda pouco comum na época –, era um importante componente e símbolo de modernização também presente no ambiente, mesmo que, não raro, detecte-se o uso de lampiões no local (O Dezenove de Dezembro. 14 jan. 1887, p. 3).

Figura 3. Primórdios do Passeio Público, destaque para o carrossel a direita (1886).
Fonte: Arquivo Público do Paraná. Curitiba/PR.

O propósito delineado para o Passeio, conforme aponta Molina (2020), era tornar o espaço um bem material para a cidade, reunindo ali diversos elementos tidos como benéficos para o avançar urbano. Nesse sentido, a realização de experiências com divertimentos náuticos eram um importante sustentáculo, pois além de evidenciar todo um domínio da engenharia ao controlar a natureza, possibilitando deslizar nas águas de um ambiente até então inóspito, também proporcionava aos habitantes o contato com práticas que estavam ganhando conotação de novos tempos, como é o caso das esportivas.

A respeito do funcionamento do parque e realização de algumas atividades, conseguimos detectar que este ficava aberto todos os dias. As entradas eram francas – cobrava-se apenas o que se consumisse no ambiente. Tratava-se de um sistema de concessão de licença, a Câmara Municipal cedia aos contratantes a possibilidade de explorar comercialmente a estrutura, em troca de uma taxa do lucro. Nesse sentido, é provável que os remos e canoas disponíveis para deslizar nas águas do Passeio, inclusive, fossem cedidos pelo próprio poder público, que provavelmente cobrava alguma taxa da manutenção dos materiais. Infelizmente devido à ausência de relatos, essa é uma questão que não conseguimos identificar com maiores detalhes. Por ventura até mesmo fossem embarcações similares as retratadas em uma imagem do parque anos mais tarde.

Figura 4.  Embarcações, Passeio Público, década de 1920.
Fonte: Casa da memória. Curitiba/PR.

 Existiam horários específicos para o inverno (das 10h às 17h) e para o verão (das 10h às 19h[1]).  Os ingressos para usufruir das atrações eram cobrados e vendidos nas próprias dependências da estrutura. Uma taxa de 100 reis era necessária para desfrutar de 10 minutos no carrossel, a idade máxima permitida era 15 anos. Contudo, se levarmos em consideração o ineditismo do instrumento, não é improvável que adultos também se arriscassem em experimentar dessa curiosidade.  

Já para praticar as atividades náuticas eram cobrados uma taxa de 1$000 reis[2]. Comidas e bebidas também eram comercializadas no local. O valor cobrado[3] para deslizar sobre as águas era similar a outras atrações que vinham se conformando na cidade. O bilhete geral para as peças no Teatro Hauer custava 1$000[4]. Via de regra, eram valores acessíveis para um amplo[5] extrato da população curitibana.

Com um espaço promissor e com um público aparentemente disposto a usufruir da dinâmica, deslizar sobre a água não demoraria para ganhar contornos competitivos, conforme evidência uma nota jornalística:

REGATAS

Informam-nos que brevemente serão installadas as regatas no grande lago do Passeio Público, para cujo fim o director desde logradouro está se occupando da organização de um club especial.

Será isso um novo e grande attractivo para aquelle centro, que desde já é o rendez-vous da nossa melhor sociedade (O Dezenove de Dezembro. 25 de jan. 1888, p. 2).

Na fonte é possível observar que o desejo era organizar um clube específico para regatas. O local das disputas era o único possível na cidade: o lago do Passeio. Contudo, de acordo com Bahls (1998), a falta de verba municipal – uma característica comum durante os tempos do império – freava a tentativa. Aliás, a falta de recurso foi uma constante nos primeiros anos do passeio, mas nem por isso o espaço deixou de ser usado pela população.

As regatas começavam a angariar interesse. O jornal A República anunciava: “Domingo as quatro horas da tarde, deu princípio, as regatas no Passeio Público que estiveram animadíssimas” (A República. 12 de jun. 1892, p. 2). Apesar desse dia de disputas ter se mostrado pela imprensa como animado, misteriosamente após esse evento os jornais locais só voltariam a relatar novas performances em 1895. Antes disso, somente na cidade litorânea de Paranaguá foram encontrados registros de eventos beneficentes e da fundação de um clube de regatas[1]. Há algumas possibilidades para explicarmos tal ocorrência. Uma delas são os próprios surtos epidêmicos do período, assim como a Revolução Federalista que estava por vir e o clima e a escassez hídrica ocorrida na época, além do mais elementar: um possível baixo interesse por parte da população em relação ao novo divertimento.

Em meados de 1895 é que os primeiros relatos mais detalhados de regatas nas dependências do Passeio foram abordados pela imprensa local. A República publicava o seguinte cartaz de divulgação:

GRANDES REGATAS NO PASSEIO PÚBLICO DE CURITYBA

De hoje 18 a 21  do corrente, até as 2 horas da tarde, recebe-se, no challet do dito Passeio, inscripções para as regatas que terão lugar domingo 22 do corrente á tarde, se o tempo permitir, e que constarão do seguinte:

1º PAREO – Premio – 35$000

Canôa de um só  remo contra um bóte de dous remos; inscripção – 20$000

2º PAREO – Premio – 25$000

Botes de dous remos – inscripção – 15$000

3º PAREO – Premio – 20$000

Botes de quatro remos – inscripção – 15$000

4º PAREO – (de honra) – Premio – 40$000

Botes de dous remos, movidos e dirigidos por moças, inscripção – 25$000.

Juiz de partida – Deputado Leoncio Correia.

Juiz de chegada – Cidadão José Brito

Juiz da luta – Engenheiro Costard.

Musica exllente, botequim onde se encontrará, á preços razoaveis as melhores e puras bebidas e doces dos mais deliciosos (A República. 19 de set. 1895, p. 3).

O folhetim A tribuna também anunciava a notícia com certo entusiasmo dizendo “Feliz ideia essa, que talvez vá levar áquelle logar, mais alguma animação”[1]. Observemos detalhes importantes a respeito da divulgação: a característica ligada ao clima era um alerta importante. O trecho “Se o tempo permitir” passaria a ser constante nas chamadas para disputas. Apesar dos avanços de canalização hídrica do Passeio, os canais nesse momento não eram tão avantajados como os da Baia de Guanabara na capital federal, ou vastos como o litoral paranaense já utilizado para regatas em Paranaguá.  Na verdade, eram sinuosos, característica pouco conveniente para a prática de atividades náuticas.

Ainda assim, as disputas ocorreram em Curitiba e seguiram certos parâmetros organizacionais similares aos tradicionais clubes de regatas da capital carioca. Um desses padrões é a presença de juízes (um sinal, inclusive, pela busca de assegurar o resultado e equidade, características, aliás, preconizadas pelo Esporte moderno) esses eram estipulados para cada momento das disputas.

Houveram novas tentativas da formação de um clube de regatas na cidade que tentaria promover eventos no lago do Passeio.

CLUB DE REGATAS CURITYBANO

Domingo – 23 – Domingo

Inauguração do Club ás 4 horas da tarde.

Grandes Regatas no Lago do Passeio Publico

1º Pareo Esperança. Botes á 4 remos.

2º Pareo, Juvenal. Botes a 2 remos para um remador.

3º Pareo, Bouque. Botes a 2 remos para dois remadores;

4º Pareo, Violetas, Botes á 4 remos.

Pede-se o comparecimento dos sr.s socios ás 2 horas da tarde de Domingo no Chalet do Passeio a fim de proceder-se á eleição da directoria e tratar-se de mais negocios concernentês ao publico. (A República. 23 de abr. 1899, p. 1).

A respeito de quem eram os sujeitos dispostos a gerir tal organização, nada foi constatado. O clube, na verdade, não teve vida longa. O motivo, ao que parece, era uma dificuldade que já era sentida antes mesmo da inauguração: a ausência de água. Essa adversidade é visualizada na publicação do jornal Diário da Tarde:. “Devido a não haver agua sufficiente no lago do Passeio Público, não se realizaram alli regatas, annunciadas para hontem, que devem agora ter logar em próximo domingo”[1]. Nem mesmo conseguimos localizar se a entidade promoveu algum evento.  O que sabemos é que o desejo existiu, e uma tentativa foi planejada.

No ano seguinte os jornais relatariam um episódio beneficente que seria promovido pelo “antigo” clube de regatas que haveria funcionado no Passeio, sinal de que a empreitada já estava em desuso. “Consta-nos que o antigo grupo de regatas que funcionou no Passeio Público, vai se reorganizar afim de beneficiar o Azylo de Orphãos” (Diário da Tarde. 27 e 28 de mar. 1900, p.1).

Aconteceram outras tentativas de eventos com características similares que, inclusive, lograram algum interesse[2], como um em benefício à sociedade protetora dos animais. Entretanto, os problemas de infraestrutura e naturais, notadamente devido aos canais não serem vastos e profundos suficientemente, além do clima chuvoso pouco propício, sempre ameaçaram as experiências com as atividades náuticas em Curitiba. Todavia, mesmo com as limitações à prática, a iniciativa contribuiu para o forjar de um discurso progressista que valorizava o desenvolvimento material da cidade e dos costumes da sociedade curitibana, principalmente por meio da construção de espaços modernos de divertimentos, aliados às ideias de benefícios para a modernização urbana e melhoramento da saúde através do fortalecimento do físico.

As experiências náuticas, sobretudo as de caráter competitivo, voltariam a ser organizadas em Curitiba, especialmente na administração do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916) já que este promoveria uma ampliação dos espaços hídricos do parque e de outros ambientes da cidade. Deslizar sobre as águas do Passeio Público por meio de remos e canoas ainda seria possível quando a água existisse e o tempo permitisse até meados dos anos 1960, quando os pedalinhos entrariam como novidade.

Figura 5. Parque Passeio Público, passeio de canoa década de 1920
Fonte: Arquivo Gazeta do Povo. Curitiba/PR.

Referências

BAHLS, Aparecida Vaz da Silva. O verde na metrópole: a evolução das praças e jardins em Curitiba (1885-1916). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1998.

GOMES, Leonardo do Couto; CAPRARO, André Mendes. As atividades náuticas em Curitiba (1886-1900). Revista de História Regional, v. 27, n. 02, 2022.

MOLINA, Ana Heloisa. “Temos um Passeio Público, digno desta adiantada capital”: espaços de sociabilidades em registros fotográficos do acervo do Museu Paranaense. Curitiba. 1913-1930. História (São Paulo), v. 39, 2020.


[1] Diário da Tarde. 24 de abr. 1899, p. 1

[2] A República. 9 de set. 1902, p. 2.


[1] A Tribuna. 19 de set. 1895, p. 2.


[1] Ver, A República. 13 de out. 1894, p. 1.


[1] Ver, relatório apresentado pelo Presidente da Província do Paraná Joaquim D’Almeida Faria Sobrinho. PARANÁ, relatórios de secretários de governo, 30 de out. 1886, p. 69.

[2]A República. 17 de out. 1897, p. 4.

[3] Uma vassoura, artefato do cotidiano, custava 1$200. Ver, A Tribuna. 21 nov. 1895, p. 3; já um regador e a menor lata de erva mate custavam ambos 2$500. Ver, A República. 7 de jan. 1896, p.3; Diário da Tarde. 3 de abr. 1899, p.2. Nesse sentido, basicamente quem pudesse usufruir de artefatos básicos do dia a dia, de certo modo, poderia pagar pelos valores do carrossel e regatas.

[4] A República. 8 jan. 1896, p. 3.

[5] A título de comparação, um porteiro da câmara municipal ganhava 1:000$000 reis e um arquivista da mesma estrutura 2:400$000. Ver, A República. 29 mar. 1896, p. 2.

[1] Uma parcela significativa desse material foi publicada na Revista de História Regional. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/rhr/article/view/20260/209209217059

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