A Junta Central de Saúde Pública e a ginástica como questão sanitária do Império

Fabio Peres e Victor Melo[i]

No último post, comentamos sobre a complexa trama de concepções, interesses e discordâncias que envolveram a proposta inicial da Imperial Casa de Saúde e Instituto Ginástico Ortopédico. O caso era revelador de um “processo de consolidação da legitimidade do saber médico na administração estatal e, por conseguinte, do papel que tal saber teria — e deveria ter na autorrepresentação dos médicos — nas avaliações e decisões sobre políticas de saúde e no desenvolvimento de práticas médicas”.  

De fato, a burocratização do saber médico sobre a ginástica no século XIX não se restringiu aos debates internos da Academia Imperial de Medicina, mas também permeou diversas esferas administrativas do Estado, refletindo-se em relatórios e outros documentos institucionais.

Indícios desse processo podem ser observados nos relatórios anuais do Ministério dos Negócios do Império. Por exemplo, diversos relatórios da Inspetoria Geral de Instrução Primária e Secundária frequentemente aventavam as relações entre ginástica e saúde no cenário escolar[ii]. Alguns cargos da estrutura governamental, inclusive, foram ocupados por médicos que concebiam a ginástica enquanto prática pedagógica indispensável, como foi o caso do Dr. Abílio Cesar Borges que integrou o Conselho de Instrução Pública da Corte, entre 1871 e 1877[iii].

Do mesmo modo, desde as décadas de 1830 e 1840 começará a melhor se estruturar na burocracia imperial setores administrativos ligados diretamente à saúde. A própria formação da Junta Central de Saúde Pública, em 1850, se insere na intensificação desse processo, que também contou com outros órgãos públicos ligados à saúde. Nesse contexto, em diversas ocasiões a ginástica e a educação física foram temas abordados nos relatórios de tais entidades. Diferente dos periódicos, as opiniões e as deliberações expressas nos relatórios supostamente estavam mais próximos de serem convertidos em iniciativas concretas do Estado imperial na vida social monárquica.

Por exemplo, no relatório de 1851 da Junta Central de Saúde Pública, quando se discute o estado sanitário da capital, observa-se a necessidade de “estabelecer a mais vigilante inspeção na educação física da mocidade”, que se encontrava marcada pelo “maior desleixo” (Cândido, 1852, p. S2-17). Naquela ocasião, era destacada a necessidade de se considerar de forma ampliada a educação física, em particular nas escolas, como estratégia de melhorar as condições de saúde na sociedade da Corte.

Em momento posterior, a ginástica ganhará maior especificidade em tais relatórios. Em algumas situações, ela aparecerá associada ao tratamento da tuberculose e de moléstias pulmonares, um problema assolava o país e que, como vimos, foi frequentemente abordado nos periódicos médicos. O relatório da Junta de 1858, no qual é apresentado considerações sobre a tísica pulmonar e sua respectiva profilaxia, insere um outro ator no combate à moléstia: o engenheiro sanitário, que seria incumbido de criar, entre outras coisas, estabelecimentos de ginástica, natação e passeios baseados nos preceitos da higiene pública[iv].

A posição de Francisco Paula Candido, que também foi presidente da Academia Imperial de Medicina, demonstra que houve poucos avanços desde o relatório que ele próprio escreveu em 1851:

“[…] nada se tem feito no sentido de melhorar a educação física de nossa mocidade: os meios materiais, os passeios, a ginástica, a natação, os exercícios, a água, o ar puro…. tudo lhes faltaria” (1859, p. A-G-11).

Em 1862, Paula Candido abordou novamente o tema, ao descrever as medidas sanitárias para o controle de outra moléstia, que atingia a corte, as febres infecciosas (Candido, 1863). Assim, ginástica também estava associada a um contexto científico mais amplo da época, no qual a teoria miasmática ainda figurava como explicação etiológica — apesar da existência de teorias concorrentes.

Na década seguinte, em 1870, as propostas relacionadas a ginástica médica aparentemente estarão mais próximas de se converterem em ações concretas. Mas essa história ficará para um próximo post.


[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494;. ISSN 2236-3459.

[ii] MELO, V.A.; PERES, F.F. O corpo da nação: posicionamentos governamentais sobre a educação física no Brasil monárquico. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 21, n. 4, p. 1131–1149, out. 2014.

[iii] Maiores informações ver MELO, V.A.; PERES, F.F. Relações entre ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX: reflexões a partir do caso do Colégio Abílio, 1872-1888. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 23, n. 4, p. 1133–1151, out. 2016.

[iv] Merece destaque que naquela época, o governo já havia autorizado e aprovado a incorporação de uma companhia, denominada Architectonica, cujo fundador era Francisco José Fialho, que tinha por objetivo adquirir ou arrendar terrenos e prédios no município do Rio de Janeiro com fim de edificar “Jardins e parques publicos com restauradores, cafés, banhos, pavilhões, e salas com os respectivos accessorios para […] exercicios saudaveis e de agilidade, como sejão equitação, gymnastica, natação, meneio de armas, & c.” (Decreto nº 1.867, de 17 de Janeiro de 1857).

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