O ensino dos Jogos Tradicionais

31/08/2021

Os Jogos Tradicionais são uma disciplina oferecida na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra. Faz parte de um grupo de unidades curriculares denominadas “Estudos Práticos”, que tem como característica fundamental reunir em seu conteúdo as disciplinas da área do esporte e da atividade física voltadas para a Educação Física escolar. A disciplina aparece na grade curricular como Jogos Tradicionais Portugueses (JTP), e a sua inclusão no currículo de formação de professores aconteceu no ano letivo 2004/2005, com o propósito da promoção do jogo étnico enquanto modalidade de ensino que abarcasse, em modo do ideário do movimento Jogos Para Todos, toda a população de todas as idades que pudesse ser clientela dos futuros profissionais de Educação Física.

Os objetivos desta disciplina são: divulgar o patrimônio multicultural dos jogos tradicionais; revitalizar a  prática lúdica tradicional no ambiente intra e extra escolar; identificar a lógica interna dos jogos tradicionais abordados e os seus potenciais formativos e educativos; implementar a sua prática como meio educativo escolar através do desenvolvimento e aplicação prática de exercícios de progressão pedagógica os quais conduzam à aquisição das habilidades específicas do jogo; implementar a sua prática como meio recreativo e para a ocupação dos tempos livres; implementar o jogo pelo jogo, o jogo tradicional pré-desportivo, e o jogo como elemento introdutório de desportos de base motora e de comunicação interpessoal equivalentes. 

A partir da experiência com a disciplina dos JTP na FCDEFUC surgiu  o “LUDUS: Laboratório de  Jogos, Recreação,  Lutas  Tradicionais  e Capoeira”, que se mantém em rede com distintas entidades nacionais e internacionais, e realiza diversas investigações, publicações científicas e eventos. Os professores-pesquisadores responsáveis por essa disciplina e área de pesquisa na Universidade de Coimbra são Ana Rosa Jaqueira e Paulo Coelho Araújo, ambos do LUDUS. Ao longo dos anos, eles identificaram alguns desafios para a implementação da disciplina: o preconceito sobre a utilidade do jogo lúdico mediante o impacto do esporte organizado; o fenômeno da desportivização na Escola; o fenômeno da biologização dos cursos de Educação Física e Desporto; a interrupção no ciclo da transmissão oral tradicional intergeracional; o avanço das tecnologias digitais; o caráter de “não seriedade” atribuído ao lúdico; a ignorância sobre o jogo e suas vertentes cooperativas, competitivas, e cooperativas-competitivas e as relações sociais daí derivadas. Todavia, a valorização do jogo é um resultado observável ao longo desse período de implementação desta disciplina, como um meio para o desenvolvimento da atividade física, do condicionamento físico e da saúde, de habilidades básicas e de habilidades específicas; como elemento inovador e motivador para as aulas de Educação Física; como meio de aprendizagem lúdica e de aquisição e transmissão de valores fundamentais (moral; social, cultural; físico); de relação, integração e comunicação entre os intervenientes na ação motora; de ocupação ativa dos tempos livres; para o desenvolvimento cultural; de aquisição de conhecimentos gerais (história, cultura, geografia); para o desenvolvimento de inteligências motora e cognitiva.

A introdução da disciplina JTP no currículo do curso de educação física vai ao encontro da recomendação feita na Declaração de Verona (onde ocorre o festival anual TOCATI), de 20 de setembro de 2015, em que se sugere a introdução de jogos tradicionais e indígenas no currículo escolar. Esta recomendação faz parte de um percurso da UNESCO que, desde 2003, reconhece a importância da herança cultural intangível e vê nos jogos tradicionais um importante pilar.

A UNESCO tem se dedicado ao tema, vendo a salvaguarda e promoção dos Jogos e Esportes Tradicionais como um desafio fundamental para o desenvolvimento futuro do esporte e das sociedades. Para a UNESCO, os jogos e esportes tradicionais também melhoram o diálogo intercultural e a paz, reforça o empoderamento dos jovens e promove práticas esportivas éticas. Em sua página dedicada ao tema, a UNESCO apresenta uma listagem de práticas e de textos de referência.

Por fim, os jogos tradicionais são uma alternativa para práticas esportivas antiéticas. Não sujeito aos desafios econômicos e da globalização dos esportes modernos, nem a uma busca equivalente por desempenho e resultados levando a práticas perigosas e ilegais, que a Convenção Internacional contra o Doping no Esporte tenta regulamentar, os jogos tradicionais oferecem aos governos, movimentos esportivos e cidadãos a oportunidade de construir práticas esportivas e culturais sustentáveis e éticas.


Em memória de Moniz Pereira e a memória nos museus de clube

12/04/2021

O ano de 2021 marco o centenário de nascimento de Mário Moniz Pereira. Em Portugal, ele é conhecido como Sr. Atletismo pela sua vida de dedicação à esta modalidade, embora também pudesse ser chamado de Sr. Ecletismo já que desempenhou muitas funções no mundo do exporte: foi atleta e treinador de outras modalidades, tais como, Voleibol, Ginástica, Atletismo ou Tênis de Mesa, preparador físico da equipa de Futebol do Sporting, bem como dirigente desportivo do mesmo clube.

Moniz Pereira é uma figura central na história do exporte português. A sua disciplina, as suas ambições, o método de treino, as vitórias alcançadas e os recordes batidos pelos seus atletas, fazem dele um exemplo de perseverança, de garra e sucesso em vários dos seus campos de ação. Além de seu legado educacional e imaterial, um de seus maiores sucessos foi como treinador de Carlos Lopes, vencedor da maratona nos Jogos Olímpicos de 1984, a primeira medalha de ouro portuguesa nas história das olimpíadas.

Carlos Lopes, vencedor da Maratona nos JO 1984

Após falecer aos 95 anos, foram criadas duas exposições e várias atividades em parceria com outras instituições, como é o caso do Museu Nacional do Desporto, Museu Sporting, Centro Desportivo Nacional do Jamor, Comitê Olímpico de Portugal, Museu do Fado, Faculdade de Motricidade Humana e Federação Portuguesa de Atletismo. O leque de instituições mostra o tamanho de Moniz Pereira e a sua importância para Portugal. Na altura de sua morte, Moniz Pereira era o sócio nº2 do Sporting Clube de Portugal, isto é, era o segundo sócio mais antigo do clube, com 93 anos de ligação ao clube.

Cada instituição ficou responsável de assegurar a sua parte expositiva. O Museu Nacional do Desporto reconstituiu a sala de trabalho de casa do professor Moniz Pereira, o Museu do Fado ficou encarregue de uma mesa-redonda que aborda a veia fadista, compositor, e letrista de Moniz Pereira. O Museu Sporting representou o percurso enquanto sportinguista, atleta, treinador e dirigente.

O Centro de Memórias do museu do Sporting teve um papel fundamental na montagem da exposição, através da recolha de testemunhos de algumas das pessoas que tiveram contato com Moniz Pereira, não apenas a nível esportivo, mas também a nível pessoal e familiar. Depois de definido o formato geral da exposição, ficou decidido que 6 testemunhos de maior relevo recolhidos pelo Centro de Memórias seriam dispostos em 6 televisores. Cada atleta teve “o seu espaço” para falar sobre o professor Moniz Pereira, com direito a uma televisão para se expressar e também com um objeto que remetia ao relacionamento. Os testemunhos escolhidos foram o de Armando Aldegalega, Carlos Lopes, Cristina Coelho, Domingos Castro, Fernando Mamede e Leonor Moniz Pereira.

Os testemunhos criam um ambiente intimista para a exposição, sentida na primeira, pessoa por aqueles que fazem parte desta, e por todos os visitantes. Esta abordagem escolhida pelo Museu do Sporting está assente numa museologia dos “afetos”, tal como Mário Chagas caracteriza a sociomuseologia. Uma museologia com enfoque nas comunidades, que não se preocupa em exclusivo com a preservação de objetos museológicos, mas principalmente com a dignidade humana, reforçando que a cidadania pode e deve ser trabalhada dentro dos museus. Para isso, Mário Chagas acredita que é preciso ter uma museologia onde a sociedade participa em conjunto do processo e não onde o museu conta linearmente algo à sociedade.

Isabel Victor, diretora do Museu do Sporting, refere que a principal função do museu é interagir e servir para nos pôr a pensar, para nos levantar inquietações e questionamentos. Se o museu não cumpre essa função fundamental, então esse museu não serve para a vida, é apenas algo decorativo e formatado.

Essa experiência do Museu do Sporting mostra que ao contrário do que se possa pensar, os museus de clubes podem ser mais do que meras salas de troféus. Tal como o Museu do Futebol em São Paulo parece ser um grande exemplo, existe um cuidado museológico e social que visam garantir boas acessibilidades para pessoas com deficiência, preocupação de inclusão social, preocupação de interação entre os seus próprios serviços – serviço educativo, Centro de Documentação, Centro de Memórias, conservação e restauro, serviço de exposição, inventário e divulgação.

Isto prova que estes museus estão atentos às necessidades não só do clube, mas também da sociedade e podem não só, ser um reflexo do seu símbolo ou da sua causa, mas também das suas gentes e do local em que se inserem. A compreensão do que um museu pode contribuir para um clube pode representar uma importante aposta destas instituições. Num campo, como o exporte, tão cheio de valores sociais, afetivos e onde a identidade dos clubes é algo essencial, uma organização museológica afetiva que tenha em conta os aspectos sociais e identitários é fundamental.

Referência

Este texto teve por base as minhas experiências pessoais e de trabalho com o Museu do Sporting, mas foi fundamental a consulta do Relatório de Estágio do Mestrado em Antropologia – Culturas Visuais do David Felgueira. Neste relatório, o David conta a sua experiência no Centro de Memórias do Museu Sporting Clube de Portugal, focando-se na construção da exposição temporária “A sorte dá muito trabalho sobre o professor Mário Moniz Pereira”. O relatório de estágio está disponível na base de dados da Universidade Nova de Lisboa. As fotos que ilustram esse post foram retiradas do trabalho mencionado.


Memória, Cinema e Esporte

30/11/2020

Para este texto, vou tomar a liberdade de ser um pouco mais pessoal e reflexivo na abordagem. Pretendo refletir um pouco sobre uma possibilidade de relação entre a Universidade e alguns setores da sociedade, tal como também é o pretendido por esse blog. Sair da nossa torre de marfim pode ser por vezes difícil por obrigar novas rotinas, mas a possibilidade de trabalho colaborativo permite novos resultados.

Uma dessas possibilidades é através das relações entre cinema, museus e universidade. São temas muito ligados à História e ao mesmo tempo que me toca especialmente, mas que também sei que é importante para outros membros dessa nossa comunidade. Assim, aproveito para partilhar algumas experiências recentes, não por motivos de autopromoção ou por ser necessariamente uma coisa única, mas por acreditar que algumas boas práticas precisam ser compartilhadas e multiplicadas, para que sejam a norma e não a exceção.

Estou envolvido na organização do Festival de Cinema de Desporto, em Portugal. No momento, estamos preparando a sua 3ª edição. Em seu primeiro ano, o festival estava limitado ao futebol, nomeado como CineFoot 2019, e em 2020 alargaram-se para várias modalidades. Nessas duas edições foram feitas parcerias com algumas organizações sociais, mas destacarei a relação com os museus dos clubes de futebol.

UESPT Portugal - Posts | Facebook

Em 2019, os clubes de Lisboa – Belenenses, Benfica e Sporting – organizaram uma pequena exposição. Os Belenenses aproveitaram para tratar do Centenário do clube enquanto Benfica e Sporting promoveram o futebol feminino. Embora tenha havido alguma colaboração, dado que um dos temas do festival era a promoção da igualdade de gênero, ela se limitou a uma partilha de espaço, pois eram duas ofertas culturais – exposição e filmes – mas sem ser um trabalho verdadeiramente coletivo.

SL Benfica no CINEFOOT Portugal São Jorge - SL Benfica
Centenário d’ Os Belenenses esteve presente no Cinema São Jorge

Na edição de 2020, Benfica e Belenenses ficaram de fora, mas a parceria pode ser mais próxima com o Museu Sporting e a Fundação do clube. Dessa colaboração surgiu a oportunidade de jovens dos projetos da fundação irem ver algumas das sessões no Cinema São Jorge, mas em especial foram feitos dois filmes por pessoas do clube que foram exibidos no festival. Em ambos os casos, o tema da memória foi abordado como tema central dos filmes.

Um dos filmes, “Cuidar da memória” é um curta-metragem associado a um programa com objetivo de apelar a importância da gestão das carreiras desportivas. Dirigido por um técnico do Museu, David Felgueira, do Centro de Memória do Museu do Sporting, o filme tem a seguinte sinopse: A recolha de histórias de vida cria um caderno de notas que permite a preservação da memória, a construção de narrativas, acesso e participação, como ferramenta de mudança, inclusão, responsabilidade social e confiança. Esta estratégia de preservação da memória e do património emocional, com vista ao diálogo inter-geracional e ao empoderamento de atletas e ex-atletas.

O segundo filme foi resultado de uma provocação da diretora do Museu a uma cineasta que trabalha no clube. Maria Joana Figueiredo apresentou o seu filme “Somos”: No desporto tudo é movimento; as imagens são produzidas para registar instantes que depressa deixarão de ser actuais. SOMOS é um filme que nasce a partir do material filmado durante um ano no Sporting Clube de Portugal. Justapões imagens de momentos vividos, entre Janeiro de 2019 a Janeiro de 2020, neste eclético clube que é o Sporting. Se rapidamente as imagens passam a ser memória, a memória elevar-se-á a identidade?

Os filmes concorreram na mostra CineFoot Portugal, e embora não tenham sido escolhidos pelo voto do público, o filme “Somos” foi agraciado com uma menção honrosa do festival pela expressiva construção da memória e identidade aliadas aos valores do desporto. Com felicidade, o filme também foi selecionado para ser exibido no CineFoot do Brasil.

Essa ligação com museus e cinema não é inédita. O CineFoot, o Museu do Futebol e setores da academia. Para mim, o que essa experiência mostra é que pesquisadores e professores podem fazer parcerias muito interessantes fora do espaço acadêmico. Pessoas com vontade de saber e que valorizem o conhecimento estão muito interessados em se unir a pesquisadores. Da mesma forma, encontrar pessoas com capacidades técnicas e práticas pode ser muito útil para dar novos formatos aos trabalhos de pesquisa, permitindo que novos produtos tragam outros impactos, assim como mais alargados públicos sejam alcançados.


Desporto adaptado em Portugal

29/06/2020

Desporto Adaptado | O Primeiro de Janeiro

Apesar do reconhecido sucesso e relativa atenção dada aos Jogos Paralímpicos a cada quatro anos, o estudo e dos desportos adaptados ainda apresentam muitas lacunas, apesar de uma rica história. Os primeiros relatos sobre o Desporto Adaptado praticado por pessoas com deficiência auditiva, mencionam a introdução da modalidade de beisebol em 1870 (Araújo, 1998). Em 1885, na Escola Estadual de Illinois, Estados Unidos, teve início a prática do futebol americano, e em Berlim, Alemanha, em 1888, surgem os primeiros clubes destinados às pessoas com deficiência auditiva (IPC, 2012; Marques & Gutierrez, 2014).

Em 1924, foi assim possível a criação da Organização Mundial de Desportos para Surdos, com a realização de uma competição internacional, em Paris, nomeada “Jogos Internacionais para Surdos”, onde participaram 148 atletas (147 atletas masculinos e 1 atleta feminina), provenientes de nove países europeus. Originalmente, de 1924 a 1965, os jogos foram chamados de “Jogos Internacionais para Surdos”. Posteriormente, de 1966 a 1999, foram chamados de “Jogos Mundiais para Surdos” e, por vezes, referidos como os “Jogos Mundiais Silenciosos “. A partir de 2000, os jogos passaram a ser conhecidos pela designação atual “Deaflympics” ou Surdolímpicos. Realizam-se de 4 em 4 anos, constituindo o segundo evento multidesportivo mais antigo, e o primeiro evento desportivo internacional para atletas com deficiência auditiva (CPP, 2015).

O grande marco para a evolução do desporto adaptado surge com as Grandes Guerras Mundiais e as suas consequências nos soldados, no número muito elevado de feridos, cujo tratamento e reabilitação se fez através do desporto. O desporto como acelerador de reabilitação, aumentou a possibilidade de interação e motivação para os soldados que regressavam aos seus países com distúrbios motores, visuais e auditivos, e que consequentemente tinham dificuldades no seu restabelecimento social e emocional. Na Europa e nos Estados Unidos, a preocupação com a qualidade de vida e a reabilitação de um grande número de soldados e civis com deficiência, fez com que os seus governos tomassem medidas, e com isso muitos começassem a ter acesso a práticas desportivas e atividades físicas adaptadas como forma de minimizar as adversidades causadas pela guerra.

Em 1948, foram fundados os Jogos Stoke Mandeville e as primeiras competições para atletas com lesões da medula espinhal que ocorreram no Hospital de Stoke Mandeville, onde duas equipas britânicas com 16 participantes em cadeira de rodas competiram em tiro com arco. O primeiro regulamento formalizado dos Jogos de Stoke Mandeville data de 1949, ano em que Guttmann, seu criador, anunciou sua intenção em transformá-los nos Jogos Olímpicos para pessoas com deficiência. A celebração dos primeiros Jogos Paralímpicos coincidiu, no mesmo ano, país e cidade com a realização dos Jogos Olímpicos de Roma, Itália, em 1960. Este evento contou com 400 atletas de 23 países e desde então, os Jogos Paralímpicos têm-se realizado de quatro em quatro anos. Assim, mais de meio século após o relançamento dos Jogos da Era Moderna, estrearam-se os Jogos Paralímpicos, criados pelo neurocirurgião Sir Ludwig Guttmann que procurou sempre a convergência com os Jogos Olímpicos, primeiro fazendo coincidir as competições em 1948 com a 14ª Olimpíada de Londres, em 1952 com a de Helsínquia, e em 1960 com a de Roma. “Guttmann, à semelhança de Coubertin foi um Homem, de Sonho, de um Ideal, veiculado através do Desporto, materializado, num acontecimento universal que são os Jogos e sustentados por uma Organização” (Carvalho, 2004, p. 193).

Desde os anos 70, do século XX, foram criadas várias organizações desportivas a nível internacional para pessoas com deficiência, como por exemplo: 1977 a Internacional Committee of Sport for the Deaf (CISS); 1978 a Associação Internacional de Desporto e Recreação para a Paralisia Cerebral (CP-ISRA – Cerebral Palsy International Sports and Recreation Association); 1981 a Internacional Blind Sports Association (IBSA); 1986 a Internacional Association Sport for Person With Intellectual Handicap (INAS-FID); em 1989, o Comité Paralímpico Internacional (IPC), entidade sem fins lucrativos, com sede na Alemanha (Bona), reconhecido como o responsável máximo do desporto paralímpico mundial; e em 1997, o Comité Paralímpico Europeu (EPC). Haverá ainda a assinalar, que em 1976, surgiu outra vertente do movimento paralímpico, os primeiros Jogos Paraolímpicos de Inverno, realizados na Suécia e, como acontece com os Jogos de Verão, ocorrem de quatro em quatro anos no mesmo lugar que as Olimpíadas de Inverno.

Em Portugal, foi a partir dos anos 1950, com o surgimento de médicos especializados em medicina física e reabilitação, que originou uma nova era na recuperação e treino de incapacidades. Simultaneamente, afirmaram-se profissões como a educação física, a terapia ocupacional e a ortoprotesia (Rodrigues et al., 2013). Ângelo Vieira Araújo foi um dos impulsionadores do desporto adaptado em Portugal. Crente de que estas ideias sobre jogos e desportos não eram vazias de sentido, e incentivado pelas palavras de Guttmann de que isso seria “a tremendous inspiration, not only to them concerned but to all your other patients”, liderou a participação portuguesa nos jogos de Stoke Mandeville no Nacional Spinal Injuris Centre, em Inglaterra, atletas nacionais. Assim, em 1957, Araújo acompanhou uma equipa do sexo masculino enviada pelo Hospital Ortopédico de Acidentes onde era diretor do serviço de Medicina Física e Recuperação na altura, e em 1962 voltou aos jogos com uma nova equipa, desta vez feminina, constituída por três atletas em cadeira de rodas do Hospital Ortopédico de Sant’Ana. Esta equipa competiu nas modalidades de tiro com arco e no lançamento de peso, tendo neste último conseguido o 2.º lugar.

A primeira participação portuguesa nos Jogos Paralímpicos verificou-se na quarta edição dos Jogos, em 1972, em Heidelberg na Alemanha, com a presença de uma equipa de Basquetebol em cadeira de rodas constituída por atletas com lesões vertebro-medulares e amputados do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Na época não existia nenhuma estrutura de enquadramento orgânico do desporto para deficientes, muito menos se verificava uma prática desportiva regular que estivesse dotada de um quadro competitivo próprio, e nem o desporto regular oferecia essa possibilidade aos atletas deficientes.

Em 1984, após uma interrupção de duas edições (1976, no Japão e 1980, na Holanda), efeito do pós-25 de Abril, Portugal retomou a participação nos Jogos Paralímpicos de Nova Iorque, nos Estados Unidos, seguindo-se-lhe Seul em 1988, na Coreia do Sul. Estas duas participações foram da responsabilidade da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral (APPC).

O desporto adaptado tem vindo a crescer a nível nacional, surgindo em 1988, a Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes, como uma Federação Multidesportiva que promove e desenvolve a prática de diversas modalidades desportivas, tendo como associados cinco Associações Nacionais de Desporto por Deficiência: a Associação Nacional de Desporto para Deficientes Visuais (ANDDVIS), a Associação Nacional de Desporto para a Deficiência Intelectual (ANDDI-Portugal), a Liga Portuguesa de Desporto para Surdos (LPDS), a Paralisia Cerebral Associação Nacional de Desporto (PC-AND), e a Associação Nacional de Desporto para a Deficiência Motora (ANDDEMOT). Assim, nas edições de Barcelona 92’ (Espanha), Atlanta 96’ (Estados Unidos da América), Sydney 00’ (Austrália), Atenas 04’ (Grécia) e Pequim 08’ (China), a participação portuguesa passou para a responsabilidade da Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência (FPDD).

Só em 2008, nasceu o Comité Paralímpico de Portugal (CPP), organização tutelada pelo International Paralympic Comitee (IPC) e International Committee for Sport for Deaf (ICSD), tendo por objetivo promover o desporto adaptado de competição e alto rendimento, e representar o Movimento Paralímpico Português dentro e fora do território nacional. Desde os Jogos Paralímpicos de Londres 2012, a equipa portuguesa é tutelada pelo CPP.

A nível nacional, o movimento associativo desportivo encontra-se estruturado através do Comité Olímpico de Portugal, do Comité Paralímpico de Portugal, da Confederação do Desporto de Portugal, das Federações de Modalidade e da Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência. A nível local, com os clubes e as associações/agrupamentos de clubes, e estruturas intermédias nos distritos e/ou regiões.

A falta de uma organização unificada em conjunto com o estigma social levou a uma quase invisibilidade dos meios de comunicação aos atletas e aos jogos paralímpicos. Como resultado, é um desafio constante ter acesso a fontes de pesquisa, sendo necessário uma reflexão a partir da própria construção do objeto de estudo. Se por um lado é uma dificuldade suplementar, é ao mesmo tempo um desafio interessante e uma oportunidade rica para o desenvolvimento de mais estudos.

*Este texto foi escrito em parceria com Luísa Paula Anacleto, estudante de doutorado em Educação Física pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

Referências

Araújo, P. F. (1998). Desporto adaptado no Brasil: origem institucionalização e atualidade. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, Indesp.

International Paralympic Committee (2012). History of the Paralympic Movement. Disponível em https://www.paralympic.org/sites/default/files/document/120209103536284_2012_02_History%2Bof%2BParalympic%2BMovement.pdf

Marques, R. F. R. & Gutierrez, G. L. (2014). O Esporte Paralímpico no Brasil: profissionalismo, administração e classificação de atletas. São Paulo: Phorte.

Comité Paralímpico de Portugal (2015). Disponível em https://www.paralimpicos.eu/Documentos/Plano%20e%20Relat%C3%B3rios/PAO_2016_Versao_Aprovada_AP%2024%2011%2015.pdf

Carvalho, J. V. (2004). A Missão Paralímpica Atenas 2004. Revista Cultura e Desporto, 9.

Rodrigues, M. A., Pita, J. R. & Pereira, A. L. (2013). O Deficiente e o Desporto: A primeira participação feminina portuguesa nos Jogos Anuais de Stoke Mandeville (1962). Livro de Resumos do Congresso Desporto no Feminino: As Mulheres e o Desporto nos séculos XIX e XX (pp.46-48). Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

 

 


“O primeiro a gente nunca esquece” – Primeiro dérbi de futebol feminino em Lisboa

27/01/2020

O Sport Lisboa e Benfica e o Sporting Clube de Portugal são dois dos mais tradicionais clubes de Portugal, e os maiores rivais de Lisboa. Uma vez que os clubes são multidesportivos, a rivalidade não se limita ao futebol masculino, estando presente em outras modalidades onde os clubes são fortes e se enfrentam, como por exemplo, o futsal, o hóquei patins, o handebol e, mais recentemente, o futebol feminino. Contudo, essa rivalidade e a visibilidade de outros encontros e modalidades não se reflete da mesma forma no futebol feminino.

A rivalidade surge nos anos 30. Grande parte do motivo é fruto das disputas entre Benfica e Sporting na Volta a Portugal, de ciclismo, onde os jornais alimentavam a narrativa da disputa clubística representada por dois dos maiores ciclistas portugueses, José Maria Nicolau, que ganhou a Volta a Portugal em 1931 e 1934 pelo Benfica e Alfredo Trindade, que ganhou a Volta a Portugal em 1933 pelo Sporting.

Associado ao fato de que o futebol masculino tem um papel de completo domínio da agenda midiática desportiva, em Portugal, hoje em dia, um jogo entre Benfica e Sporting recebe uma cobertura massiva em todos os veículos e suportes de comunicação. Nos dias que antecedem os jogos, os mínimos detalhes são analisados e noticiados, assim como depois dos jogos há uma exaustiva análise da repercussão dos resultados. Reconhecendo que a rivalidade é um elemento basilar do desporto, a disputa entre Sporting e Benfica – também conhecido como dérbi éterno – recebe atenção internacional, com uma abordagem que pode transcender as rotinas imediatas dos resultados.

O mesmo não ocorre com o futebol feminino. Primeiramente, porque a rivalidade entre Sporting e Benfica ainda é muito recente. Formada em dezembro de 2017, o Benfica começou a sua trajetória no futebol feminino na temporada 2018/19, na 2ª divisão (Campeonato Nacional de Promoção), conseguindo a subida no primeiro ano e sendo campeãs da Taça de Portugal da mesma temporada. A equipe feminina do Sporting conta com um pouco mais de tradição: fundada em 1991, o clube foi pioneiro ao colocar em funcionamento as primeiras escolas de formação de futebol feminino, mas interrompeu as suas atividades após 4 temporadas, em 1995, voltando ao funcionamento em 2016, e a partir daí foi campeão de todos os torneios nacionais. Assim, o primeiro jogo oficial entre ambas as equipes só aconteceu a 19 de outubro de 2019, no Estádio da Luz, pelo campeonato de 2019/20.

Contudo, antes disso, na temporada anterior, as duas equipes se enfrentaram num jogo amistoso, a 30 de março de 2019. A partida realizada no Estádio do Restelo e denominada Troféu Vicente Lucas, jogador moçambicano do Belenenses e um dos ‘magriços’ da seleção portuguesa de 1966, tinha como objetivo angariar fundos para Moçambique, após a tragédia causada pela passagem do Ciclone Idai, no início do ano.

A realização da partida contou com a colaboração de ambos os clubes, do Belenenses, que cedeu o estádio e o nome do troféu, a Federação de Futebol Portuguesa (FPF), o canal de televisão TVI, que transmitiu a partida, o sindicado de jogadores e a Associação de Futebol de Lisboa. O primeiro dérbi lisboeta da história do futebol feminino era a principal forma de atrair o mundo do futebol, dentro de um universo onde as agendas dos clubes profissionais masculinos já se encontram sobrecarregadas.

O jogo foi um sucesso, tendo batido o recorde de público, em Portugal, para um jogo de futebol feminino, com 15 204 pessoas, no estádio do Restelo. O jornal A Bola deu algum destaque ao jogo em sua capa (no dia do jogo e no dia seguinte), mais do que o dado ao primeiro jogo oficial, em outubro, quando apenas deu destaque no dia seguinte, mais do que o seu concorrente de Lisboa, o jornal Record que não mencionou em sua capa o 1º jogo oficial.

Jogos com mais público:

12.812 espectadores, no Estádio da Luz | Benfica x Sporting (4.ª rodada da Liga BPI)

12.632 espectadores, no Estádio do Jamor | Benfica x Valadares Gaia (final da Taça de Portugal de futebol feminino 2019)

12.213 espectadores, no Estádio do Jamor | Sporting x Sp. Braga (final da Taça de Portugal de futebol feminino 2017)

Embora a rivalidade seja um pilar do esporte e uma importante ferramenta de promoção da mídia desportiva, o dérbi de outubro de 2019, mesmo sendo o primeiro jogo oficial, valendo 3 pontos, foi promovido com ênfase no entendimento entre as partes. A FPF, organizadora do campeonato, através de seu canal de televisão, reuniu as capitães para promover o jogo, com base naquilo que une ambas, mais do que o que as separa.

Entre holofotes e sombra, o futebol feminino vai construindo a sua história. A narrativa em torno do futebol feminino apresenta um discurso alternativo, embora recheado de elementos comerciais. Por um lado, há a tentativa de promover um discurso de igualdade de oportunidades para homens e mulheres na modalidade, junto com um apelo à união e paz nos estádios. Por outro, há o objetivo de fazer crescer a modalidade, profissionalizar as suas estruturas, atrair público e patrocinadores para o espetáculo.

 


Futebol e Estudantes contra o Estado Novo

26/08/2019

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O Documentário “Futebol de Causas” (2009) (https://www.youtube.com/watch?v=by6AqacVw9I), do diretor Ricardo Antunes Martins, mostra um importante panorama sobre a relação entre Política e Esporte, com uma passagem bastante emblemática da história de Portugal. O filme mostra a contribuição decisiva dos jogadores de futebol da Académica de Coimbra nas contestações estudantis e o seu impacto e influência na revolução dos cravos.

À época, Coimbra apresentava condições únicas na realidade do país. Sob o julgo do Estado Novo, num país marcado pela censura e pelo analfabetismo, a voz dos estudantes universitários ecoavam mais alto. Os estudantes beneficiavam-se de terem acesso à informação, ao ensino e à cultura, mas acima de tudo por partilharem experiências que contribuíram para o seu processo de crescimento e formação.

Tendo em vista que os próprios jogadores da Académica , eles também tinham acesso a todo o processo de enriquecimento pessoal e colectivo que a Universidade proporcionava. Como consequência, essa formação contribuiu para um posicionamento social e político ativo por parte dos atletas, culminando no envolvimento nas disputas e reivindicações nos mais diversos episódios da luta estudantil.

A “Crise Acadêmica de Coimbra de 1969” (http://ensina.rtp.pt/artigo/a-crise-academica-de-1969-17-de-abril/ e https://arquivos.rtp.pt/conteudos/40o-aniversario-da-crise-academica/) foi como ficou conhecida a onda de luta estudantil na Universidade de Coimbra durante a primavera e o verão de 1969. Este é um dos marcos da luta contra o regime fascista e que é o apíce de lutas estudantis em contexto internacional (Maio de 1968) e nacional (Crise Académica de 1962 – https://arquivos.rtp.pt/conteudos/crise-academica-de-1962-2/).

Em abril, começou a Crise Acadêmica de 1969, quando o presidente da Direção Geral da Associação Académica foi impedido de falar na inauguração de um prédio na Universidade. As manifestações desenvolveram-se até ao final de julho, com uma greve a exames de dimensão maciça, e com a presença da Académica na final da Taça de Portugal, contra o Benfica. Os jogadores, que também eram estudantes, eram parte ativa da militância e o time era um dos dos principais meios de divulgação e propaganda dos estudantes e dos ideais revolucionários e reivindicativos. Assim, os jogadores aderiram às manifestações fazendo da final da Taça, no Estádio Nacional, um dos maires comícios contra o regime do Estado Novo.

Mais do que um marco na história da Académica de Coimbra, o filme preenche uma lacuna na história do país, como o próprio diretor do filme reconhece eu um texto de sua autoria:

“Inocentemente, quando me propus desenvolver este projecto, estava longe de adivinhar e de imaginar o impacto que iria ter. Admito que parti para o projecto com a sensação que seria um marco simbólico e de espólio importante para a Académica, mas apenas isso. Longe de mim imaginar que estaria a trilhar por campos virgens, muito menos que estava a preencher lacunas históricas no que toca à antecâmara do 25 de Abril. Inicialmente, pretendia fazer apenas uma certa justiça histórica aos jogadores e divulgar as acções, atitudes e carácter destes homens e a forma como se posicionaram, pessoal e politicamente, nas crises académicas e, no fundo, procurar comprovar de certa forma a minha teoria do seu contributo, mais directo ou indirecto, para o abrir de mentalidades do povo português para a realidade social, económica e política do nosso país então pastoreado a chicote por um regime inflexível”. (Fonte: https://www.uc.pt/rualarga/anteriores/27/27_12).

Estendendo-se ao longo de 70 minutos, o filme conta com entrevistas dos principais personagens históricos, sendo ilustrada por imagens de época e de arquivo. Destacam-se as contribuições de alguns dos atores históricos, como Alberto Martins e Celso Cruzeiro, da análise e interpretação de Laborinho Lúcio, ou o testemunho dos jogadores Mário Wilson, José Belo, Mário e Vítor Campos, Mário Torres, Rui Rodrigues, Jorge Humberto e, também, Manuel António, o melhor marcador do Campeonato Nacional em 1969, tendo superando Eusébio.

O seu DVD conta com alguns extras que enriquecem o filme, sobretudo por seu caráter desportivo. Esses complementos podem ser encontrados online: https://vimeo.com/233948411 e https://www.youtube.com/watch?v=okUgEQ6hACY.

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Só há um Belenenses

25/03/2019

O recente caso do Clube de Futebol Os Belenenses tem gerado um interessante debate sobre a propriedade dos clubes, a relação entre o clube e seu caráter social e o lado empresarial e econômico do futebol. Recentemente, iniciei um projeto de pesquisa para avaliar o papel dos elementos culturais e simbólicos do futebol dentro da organização industrial do futebol moderno e o caso do CF Os Belenenses oferece algumas pistas para entender a situação.

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Após uma série de mudanças na legislação portuguesa, a partir de meados dos anos 1990, os clubes de futebol do país foram obrigados a assumir um novo formato jurídico para poder disputar os campeonatos profissionais de futebol. Dentre as duas opções – Sociedade Anônima Desportiva (SAD) e Sociedade Desportiva Unipessoal por Quotas (SDUQ) -, a maior parte dos clubes optou pelas SADs. Como Sociedades Anônimas, cotadas em bolsa, a legislação portuguesa obriga que o clube fundador mantenha no mínimo 10% do capital da SAD, ou seja, é possível que investidores passem a ter o controle do futebol de um clube.

A venda do capital da SAD d’Os Belenenses foi o ponto de partida para uma relação que tem sido conturbada desde o início. Em 2012, em um momento financeiro complicado, a Assembleia Geral do clube decidiu vender a maioria da SAD para um grupo de investimento, Codecity Sports Management. Na altura, fazia parte do acordo a possibilidade de recompra do capital por parte do clube.

Contudo, a relação entre investidor e clube nunca foi positiva. Desde o início, a Codecity rasgou o acordo fechando as portas para a recompra do capital da SAD pelo clube. Dentre as várias queixas do clube em relação ao comportamento da SAD estão: a falta de investimento (a grande maioria dos jogadores que foram contratados vieram a custo zero ou foram emprestados); os custos de manutenção do estádio eram suportados integralmente pelo clube, entidade sem fins lucrativos, sem compensação pela SAD; a não utilização de jogadores que vinham das escolas de formação do clube (pois implicava o pagamento da SAD ao clube que detém o futebol de formação); e o desagrado pelo envolvimento do nome do clube, através do Presidente da SAD, Rui Pedro Soares, em investigações de corrupção.

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Depois que um tribunal de justiça deu ganho de causa à SAD, na questão da recompra das ações, o clube proôs que fosse criado uma equipe de futebol d’Os Belenenses a disputar os escalões amadores do futebol português e que a SAD passasse a pagar um aluguel pelo uso do estádio do Restelo. Porém, a SAD manteve a sua postura de incompatibilidade com a direção do clube e negou o acordo. Houve aí uma cisão entre ambos, o CF Os Belenenses criou uma equipe para jogar a 2ª divisão dos distritais de Lisboa (algo como a sexta divisão) que joga no Estádio do Restelo, enquanto a Belenenses SAD disputa a 1ª divisão do futebol profissional e aluga o Estádio do Jamor.

No âmbito jurídico tem havido disputas entre as partes e destaco aqui a luta pelo nome e uso dos símbolos do clube. Para o clube e grande maioria de seus sócios, só “há um Belenenses, que joga no Restelo” e tentam impedir que a SAD use os símbolos do clube. No passado 8 de março, o clube teve uma vitória jurídica, fazendo com que a equipe da SAD entrasse em campo com um novo emblema no jogo contra o Benfica.

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Novo emblema do Belenenses SAD

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Emblema do CF Os Belenenses

Aparentemente, a maior parte dos torcedores tem dado razão ao clube, fazendo com que a média de público no Restelo, para o campeonato amador, seja bastante superior ao Belenenses SAD, apesar de estarem conseguindo uma de suas melhores temporadas em campo, estando a disputar uma vaga na próxima Liga Europa. Um dos exemplos de que a ligação com o clube supera a relação comercial e profissional do “futebol moderno” foi o jogo entre Belenenses e Estrela – formado após a falência do tradicional Estrela da Amadora – que lotou o estádio reunindo 5 mil pessoas.

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É ainda mais interessante que essa disputa aconteça tão próximo ao centenário do clube, criado em setembro de 1919. A direção do clube organizou uma exposição itinerante para celebrar a data e tem circulado por Lisboa, tendo funcionado como importante ferramenta para criar uma maior ligação com a sua história, com seus sócios e seus torcedores. Do ponto de vista patrimonial, o clube detém o seu estádio e a sua galeria de troféus, além de manter a relação com todas as outras modalidades que são praticadas no clube, enquanto a SAD é dona “apenas” do futebol profissional e toda atenção e dinheiro que cirucula em torno disso. O caso do Clube de Futebol Os Belenses vem mostrando que as ligações humanas, a relação com o local e a história são elementos fundamentais para o futebol, mesmo que seja profissional, moderno e comercial.

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Eusébio – História de uma Lenda

09/04/2018

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Eusébio da Silva Ferreira é uma figura mítica do Futebol Português e esse seu estatuto é refletido no filme “Eusébio – História de uma Lenda”, do diretor Felipe Ascensão, lançado no ano passado. O documentário conta a vida do jogador de forma cronológica, desde a sua origem em Moçambique, a viagem para Portugal e o sucesso alcançado na carreira. O fio condutor da narrativa gira em torno dos depoimentos do próprio personagem, um dos grandes méritos do filme.

Desde o início, Eusébio declara o seu amor por sua terra natal, pela sua terra de acolhimento e pelo Benfica. Seria fácil enquadrar o filme em relação ao seu papel na história do país ou na história do clube, mas o filme se mantém fiel ao propósito de mostrar o lado humano de Eusébio, dando voz ao homem, suas emoções e a forma como ele encarou cada um dos momentos marcantes da sua trajetória. No meio de tantos marcos, que poderiam ser considerados históricos, sobressai o prazer que Eusébio tinha em jogar Futebol.

O sentimento pelo jogo e a admiração pela capacidade de Eusébio fica evidente nos depoimentos dados. Companheiros de Benfica, contemporâneos de seleção, adversários ou jogadores mais novos que só o viram em filmes de arquivo mostram um tremendo respeito pelo que Eusébio apresentou dentro de campo e pelo que ele representou para o futebol do país.

Outro mérito do filme é valorizar o lado estético dos seus feitos futebolísticos. Usando poucas legendas com informações sobre datas, jogos e estatísticas, o filme usa muitas imagens de arquivo nas quais apresenta as proezas de Eusébio. Desse modo, não apenas ilustra com imagens aquilo que vem sendo narrado nos depoimentos dados, como oferece aos espectadores uma visão que prioriza o lado estético do futebol, e não uma abordagem de almanaques.

Por fim, parece-me que noção de lenda é extremamente apropriada. Saindo na esfera cinematográfica, essa imagem é confirmada pela transladação de Eusébio ao Panteão Nacional e pelo respeito de todos por Eusébio. Hoje, pode-se considerar Portugal um país importante no contexto do Futebol, mas mesmo tendo vencido 5 bolas de ouro e batido praticamente todos os recordes da seleção nacional, o estatuto de Eusébio em quase momento algum é questionado em oposição a Cristiano Ronaldo. O talento do madeirense é inegável, da mesma forma que a posição de Eusébio é intocável na história.


Meios de Comunicação e Esporte: Grandes Amigos

23/10/2017

A relação entre as empresas de mídia e o esporte é longa e mutuamente proveitosa. Meios de comunicação oferecem visibilidade aos atores do mundo desportivo, permitindo mais fluxo de bilheterias e melhores contratos de publicidade, enquanto os meios de comunicação aumentam a sua circulação, devido à atratividade do conteúdo esportivo junto às audiências. A imprensa teve um papel fundamental para a independência do esporte e o seu processo de profissionalização. Mas as fronteiras entre ambos universos são fluídas e muito próxima foi a relação de empresas de mídia com o universo desportivo.

Em França, o caso mais relevante de empresas de mídia que passaram a exercer funções que seriam de organizações esportivas é o que envolve o jornal L’Équipe e o Tour de France. A prova ciclística mais famosa do mundo em sua origem foi criada e organizada pelo jornal L’Auto, em 1903. A rivalidade entre os jornais L’Auto e Le Vélo foi além da produção jornalística, chegando a organização de atividades esportivas. Limitadas a provas de dimensões menores, como Paris-Roubaix, Bordeaux-Paris, Paris-Brest, a criação do Tour de France – a primeira prova por etapas no território francês – foi pensada para assegurar um espetáculo esportivo único e aumentar a venda de jornais: desde o verão de 1903, durante o período da competição o L’Auto teve sucesso, triplicando a venda dos jornais e diminuindo os números da concorrência.

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Suspenso durante a segunda guerra mundial, o Tour de France passou a ser desejado pela imprensa de esquerda por conta do seu poder como vetor publicitário. Assim, três jornais (Sports, o semanário Miroir Sprint e diário generalista Ce Soir) criaram conjuntamente, a partir de um modelo semelhante, a « Ronde de France », em 1946. Contudo, em 1947, o Estado atribuiu ao Parisien Libéré e ao L’Équipe a responsabilidade de retomar o Tour de France. As condições da nomeação foram eminentemente políticas: Emilien Amaury, proprietário do Parisien Libéré, era muito próximo ao partido gaulista. Em 1965, ele aumenta o seu património comprando oficialmente o jornal L’Équipe, de modo que o grupo Amaury detém o quotidiano esportivo e o Tour de France.

A retomada da competição em 1947 foi fundamental para estruturação interna e a perenidade do jornal. Ela permitiu que fossem reestabelecidas e reforçadas as ligações com os setores da indústria ciclística e patrocinadores. Os retornos publicitários sobem, tal como as vendas que têm no mês de julho, quando se realiza a prova, o seu maior volume. O modelo económico de organização dos eventos tinha um objetivo claro: aumentar a venda dos jornais. O grupo Amaury também é hoje responsável pelo Rally Dakar.

A competição de clubes mais importante no universo do futebol também foi criada a partir do jornal L’Équipe. O primeiro congresso da UEFA só aconteceu em 2 de Março de 1955 e a maior parte dos membros fundadores estavam preocupados em criar um torneio continental de seleções, deixando espaço para a iniciativa do jornal francês. A competição idealizada pelo L’Équipe não obrigava a que os participantes fossem campeões nacionais, funcionava sim por convites aos clubes que geravam maior interesse junto dos adeptos. Representantes de 16 clubes foram convidados para uma reunião que teve lugar a 2 e 3 de Abril de 1955 e as regras do L’Équipe foram aprovadas por unanimidade. A UEFA reagiu ao contactar a FIFA, e o Comité Executivo desta, numa reunião em Londres a 8 de Maio de 1955, autorizou a realização da nova competição de clubes com a condição de ser organizada pela UEFA e que as federações nacionais dessem o consentimento à participação dos respectivos clubes. O Comité Executivo da UEFA aceitou estas premissas exigidas pela FIFA e concordou em levar a cabo a prova num encontro realizado a 21 de Junho de 1955.

A iniciativa do L’Équipe era primordialmente comercial. Tradicionalmente, o calendário esportivo concentra os seus eventos no final de semana, por isso as edições dos jornais desses dias, com as informações e prognósticos para os jogos apresentam sucesso, assim como a de segunda-feira, pois trás os resultados. Contudo, os jornais esportivos diários sofrem de um mal: a distorção de vendas – hipertrofia no final de semana e segundas, e um vazio no meio da semana. Assim, para combater esse desequilíbrio, em 1955, os responsáveis do jornal L’Équipe pensaram numa competição que preencheria a agenda esportiva no meio da semana, a Taça da Europa, que posteriormente se tornaria a Liga dos Campeões. Dois anos mais tarde, a mesma lógica foi aplicada para a criação da Taça da Europa de Basquete e, em 1967, lançaram a Copa do Mundo de Ski, para compensar a falta de informações esportivas no inverno.

Essas estratégias válidas para os impressos também é colocada em prática por canais de televisão. Ao longo dos anos, algumas empresas criaram competições esportivas, das quais se destacam os Good Will Games, lançados pela CNN, em 1986 e os X Games de verão e inverno, criados pela ESPN (ABC-Disney), em 1995. No Brasil também encontramos exemplos: a Rede Globo criou os Jogos de Verão para alavancar as audiências do domingo de manhã durante o verão, principalmente quando não havia torneios de futebol a serem disputados.

Contudo, hoje em dia, a criação de novas competições se dá mais facilmente em modalidades menos populares ou tradicionais, como os esportes radicais por exemplo. No caso do futebol, existem dois grandes obstáculos: a tutela e aprovação de organizações como a FIFA e a UEFA; e a necessidade de um investimento emocional e simbólico que tem ligação com a tradição e a história das competições que acabam por ser determinantes para a sua popularidade – haja vista o caso da Liga dos Campeões e a dificuldade em criar uma superliga europeia de futebol.

Isso não impediu que os conglomerados de mídia incluíssem organizações esportivas a sua lista de aquisições. Dentre as suas motivações estavam a tentativa de conhecer mais a fundo o espetáculo esportivo, conseguir melhores condições na hora de negociar os crescentes valores dos contratos de direitos de transmissão e tentar alguma forma de sinergia e verticalização da produção dado que o esporte foi se tornando mais próximo dos espetáculos televisivos.

As particularidades da economia do esporte acabaram por se mostrar um grande desafio para esses conglomerados, que aos poucos foram abandonando as suas participações na propriedade de organizações desportivas. Por um lado, a necessidade de conseguir vitórias – e, portanto, as receitas de equipes é revertida na aquisição de talentos – diminui a margem de lucro dessas organizações e, consequentemente, afasta o interesse de conglomerados; e por outro lado, a aquisição dos direitos de transmissão e o poder da televisão sobre a organização dos eventos desportivos já se mostraram suficiente para gerir o espetáculo da maneira que for mais conveniente para as empresas de mídia.

 


Futebol e Migração entre Portugal e França

03/07/2017

 

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Pelo alcance global, muito se pode estudar sobre a migração das pessoas e o reflexo disso no Futebol. Aproveitando a minha relação com os dois países, aproveito para refletir um pouco sobre a relação entre Portugal e França. Os portugueses que moram na França e franceses de origem portuguesa são consumidores ávidos de informação desportiva. O dia-a-dia do campeonato português é mais acompanhado que a atualidade política e cultural. Para se ter uma idéia da importância do futebol na cultura lusitana na França, estima-se que existem 1000 clubes portugueses no país, sendo que, atualmente, cerca de 200 possuem uma referência a Portugal nos seus nomes.

Ambos os países partilham uma grande história de migração. A vida dos portugueses no território francês foi muito bem retratada (dada as concepções necessárias para um filme de ficção) e bem-recebida por crítica e público  no filme “A Gaiola Dourada”. O filme conta a história de um casal de emigrantes portugueses em Paris, o seu relacionamento com os filhos e o sonho de voltar ao país de origem em contraste com as realidades atuais. Somado ao contexto de uma nova onda de saída do país, o filme trouxe, novamente, ao debate o tema da emigração e do sentimento de integração nacional.

No caso do esporte, podemos traçar um paralelo com a vitória da seleção portuguesa no Euro 2016 e o título do Mônaco, liderado pelo madeirense Leonardo Jardim. A emigração de jogadores e treinadores formados no país tem sido um dado corrente desde o fim dos anos 90, com a livre circulação de mão-de-obra dentro do Espaço Europeu, mas que vem ganhando especial destaque no futebol graças ao sucesso alcançado por lusitanos, tal como Cristiano Ronaldo e José Mourinho – para ficar com os mais emblemáticos apenas.

Mesmo sabendo que atletas e treinadores de alto rendimento não são os melhores representantes dos trabalhadores “normais”, Leonardo Jardim, treinador do Mônaco, talvez tenha sido quem mais sentiu a experiência de um imigrante português, na França. Mesmo tendo conseguido bons resultados, ele continuava a ser estigmatizado pela forma como falava francês e era alvo de sátiras na televisão. O ápice foi quando, questionado por jornalistas, disse que como português poderia ganhar o prêmio de espátula dourada (em alusão aos muitos trabalhadores nas obras de origem portuguesa), mas não o de melhor treinador.

Se é possível traçar um paralelo entre Leonardo Jardim e o personagem do Pai no filme, os filhos são representativos das novas gerações, que tendo origem portuguesa, já nasceram na França e residiram toda a vida no país. Isso provoca uma identidade híbrida e um sentimento de pertença mais complicado de gerir. Os emigrantes que foram para França nos anos 1960 e 1970 apoiaram mais a seleção portuguesa durante o Euro 2016, enquanto a escolha é mais difícil para as novas gerações, pois há uma divisão entre ser fiel ao país dos seus pais e onde passam férias constantemente ou apoiar o país que os acolheu e onde vivem. Em linhas gerais, o que se nota é que os jovens, que estão mais inseridos na sociedade e na economia, têm uma maior simpatia pela seleção francesa, enquanto aqueles que se encontram numa posição mais marginal, terão uma proximidade maior com sua pátria de origem – por mais mistificada que seja essa relação.

No cenário europeu, há ainda mais um fator que torna a análise mais complexa (ou interessante). O campeonato de seleções, o Euro, acaba servindo como reflexo de uma Europa mais tradicional, nacionalista e, por vezes, xenófoba. Por outro lado, a Liga dos Campeões oferece uma visão da Europa capitalista liberal, que ultrapassa fronteiras nacionais, circulando capital e trabalhadores em nome do sucesso transnacional.