Enquanto Lionel Messi chorou de emoção, o futebol mundial sorriu.

26/12/2022

A Copa do Mundo do Catar terminou consagrando em uma épica final um dos maiores jogadores de todos os tempos, Lionel Messi. O tricampeonato mundial  argentino conquistado após uma boa campanha marcada por fortes emoções acabou coroando o cerebral atleta que já tinha recebido todos os títulos possíveis na sua brilhante carreira futebolística.

A odisseia do herói argentino desde sua primeira participação no longínquo torneio disputado na Alemanha em 2006  passou por diversas provações e dúvidas até a celebrada conquista do último dia 18 de dezembro. Gols, decepções, a frustração de ser derrotado em uma final no Maracanã, a idade chegando, muto suor, sangue e finalmente lágrimas de um campeão mundial. O choro e a intensa comoção de um atleta que sempre se caracterizou pela frieza representaram simbolicamente a conclusão da trajetória de um herói esportivo que para muitos críticos tinha apenas uma face mas que revelou durante esse torneio ter talvez mais que as mil apontadas na clássica obra de Joseph Campbell.

Sobre a questão da idolatria esportiva rapidamente veículos da imprensa e as novas mídias passaram a propagar o eternamente estúpido debate comparativo entre grandes craques do futebol Messi x Maradona x Pelé x Mbappé, provavelmente seu sucessor nos próximos anos como a maior estrela internacional do futebol. Os memorialistas e estatísticos que amam se debruçar nessas comparações não percebem o quanto elas são anacrônicas, insolúveis e robotizadas. Muitas vezes o ser humano é esquecido com todas as suas complexidades e idiossincrasias e quando os grandes craques não conquistam um torneio mundial os “especialistas” tendem a diminuir a importância de suas incríveis carreiras como foi por exemplo com Zico, Sócrates, Platini, Cruyf, Di Stéfano e tantos outros.

Felizmente para Messi, a Argentina e o futebol aquela defesa incrível do goleiro Emiliano Martinez no último minuto da prorrogação estabeleceu na minha opinião algo justo no mundo futebolístico que frequentemente é marcado por profundas injustiças. Tudo bem que segundo o filósofo alemão Immanuel  Kant a ideia de justiça não passa necessariamente pela razão, mas sim pela emoção, pelos sentidos. Sentimos o que é junto ou injusto assim como sentimos o que é bonito ou feio, certo ou errado.

 Mesmo os que torceram contra a Argentina, e aqui no Brasil foram muitos em função principalmente do acirramento recente das rivalidades futebolísticas entre brasileiros e argentinos, e também de alguns argumentos generalistas e profundamente marcados por estereótipos culturais e políticos extremamente equivocados tendem a concordar que o atleta Lionel Messi merecia ser campeão mundial.

Acredito que futuramente o enquadramento de Memória sobre essa Copa para os argentinos, mas também para grande parte dos apaixonados por essa tradição inventada chamada de Copa do Mundo de futebol, independentemente das boas atuações dos atacantes Di Maria e Juan Alvarez, das defesas de Martinez, da marcação incansável do De Paul e da ótima participação do novato técnico Scalone, também Lionel, estará centrada na figura eterna de Messi.

Enquanto a primeira conquista argentina, apesar da boa equipe que jogava coletivamente com destaques como Mario Kempes, Ardiles, Passarela, Tarantini, Filol, ficou maculada pela conjuntura histórica da ditadura do “Processo” e as polêmicas durante a realização do evento no país, o título de 1986 e agora a redenção do futebol argentino e também sul-americano que não vencia uma Copa desde 2002 com o Brasil, ficarão marcados na memória coletiva argentina pelas trajetórias marcantes desses geniais jogadores de futebol.

E nesse caso, na minha opinião ambos já estavam e permanecerão eternamente no panteão dos deuses do futebol, sendo  igualmente geniais, memoráveis e pelo bem da bola também campeões do mundo de seleções.

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Polo Master – Um espaço “aquático” de Memória, sociabilidade e lazer. 

06/09/2022

O presente post tem como principal objetivo abordar uma modalidade esportiva pouco estudada no campo acadêmico que é o Polo Aquático, apresentando relações de sociabilidade criadas por ex-atletas e veteranos que continuam praticando o esporte como atividade de lazer e disputando competições das categorias Master.

            Utilizando como referência um grupo de praticantes que se reunem todos finais de semana no Clube de Regatas do Flamengo para perpetuar a principal prática esportiva de suas vidas, compartilhar memórias afetivas e organizar torneios de confraternização, com alto grau de competitividade em alguns casos, esse projeto embrionário que foi primeiramente apresentado na ANPUH 2021 no meio da Pandemia da COVID, pretende a partir de um estudo de campo dialogar com estudos de Memória esportiva e História do Lazer.

           Participando esporadicamente e sendo muito acolhido pelo grupo FLAMASTER, as principais fontes serão entrevistas com o auxílio de referências da metodologia da História Oral, além de documentos pessoais e objetos de cultura material dos ex-atletas como: fotografias, medalhas, reportagens, cartazes, toucas, bolas, etc.

            A hipótese central é que a prática regular dessa modalidade de esporte coletivo com os intensos treinamentos diários, diversas competições disputadas durante anos, rivalidades individuais e coletivas, estabeleceu vínculos de sociabilidade e coletividade que  viabilizaram  o surgimento de uma forma de lazer semanal entre ex-atletas que possibilita o acionamento e o enquadramento da Memória esportiva da modalidade.

A partir dos depoimentos de indivíduos que construíram a história desse tradicional esporte nas últimas décadas , pelo menos no Rio de Janeiro, e continuam praticando intensamente a modalidade como forma de lazer e de experiência de vida, acredito que com a realização do estudo proposto seja possível contribuir na discussão sobre a importância do esporte para a formação de grupos de sociabilidade e de lazer que transcendem determinadas temporalidades e especificidades e refletir como o fenômeno esportivo é relevante para discutirmos as situações sociais e a própria relação do indivíduo com a sociedade.

Assim sendo, ouvir, analisar e compartilhar academicamente a experiência de ex-atletas e veteranos de um esporte que geralmente é apenas associado a questões de masculinidades ou a uma natureza elitista sem considerar suas características socializantes, coletivas e apaixonantes pode contribuir também para a reflexão sobre o papel dos esportes amadores na construção das memórias coletivas e individuais e na formação de espaços alternativos de lazer.               


A “Revelação” do futebol sul-americano com o ouro olímpico uruguaio em 1924.

20/09/2021

EXÓRDIO

Apenas para situar e contextualizar, o presente post possui uma natureza nostálgica de acionamento da Memória porém que talvez sirva de estimulo para novos pesquisadores e mesmo para que mais experientes como eu busquem novos caminhos e perspectivas nos estudos sobre o futebol na América do Sul. Em função de diversos motivos, amizades, alguns convites recentes para falar do futebol uruguaio, mas principalmente devido a novas leituras decidi reler minha dissertação que defendi faz mais de uma década e que resultaram em diversos artigos acadêmicos individuais ou em parceria com meu orientador na época, Ronaldo Helal.

Obviamente que muita coisa precisa ser atualizada, que a leitura com um olhar mais apurado e com mais vivência acadêmica aponta para lacunas teóricas e metodológicas, momentos de naturalização excessiva nas fontes, exageros na adjetivação. Mas apesar dos problemas que hoje me fariam mudar muitas coisas e também ser rígido e atento como foi minha cordial banca compostas por Victor Melo que posteriormente foi meu orientador no doutorado, o uruguaio Guillermo Giucci que desde a graduação me incentivou e ajudou tanto a estudar o Uruguai, quanto a seguir carreira acadêmica, e meu orientador, relendo minha antiga tese percebi que alguns temas e perspectivas ainda podem e devem ser exploradas academicamente tanto aqui, quanto em outros países.

O contato com os colegas pesquisadores uruguaios do GREFU (Grupo de Estudios de Fútbol en Uruguay) que está completando 10 anos como Andres Morales que escreveu uma obra fundamental , Fútbol, identidad y poder (1916-1930)., Gastón Laborido que participa conosco desse blog e Juan Carlos Luzuriaga me inspiram a reler e começar a rever hipóteses, afirmações, perspectivas além de me deixar ainda mais impressionado com a importância das campanhas olímpicas uruguaias em 1924 e 1928, tanto para o futebol uruguaio, quanto sul-americano.

Nesse sentido, decidi postar hoje uma referência muito pequena que fiz na dissertação sobre a campanha uruguaia em 1924. um assunto que não fazia parte diretamente do tema e objetivos da dissertação, mas que me fascina desde a adolescência. Talvez alguns de vocês devem ter lido, outros encontrarão alguns dos problemas mencionados acima, mas o objetivo talvez seja ressuscitar temas e talvez o próprio ânimo pessoal para novas investigações aprofundadas e atualizadas em um momento tão difícil e complexo que continuamos vivendo. Espero que curtam.

O surgimento uruguaio no cenário futebolístico internacional

Apesar dos torneios de futebol dos Jogos Olímpicos não terem sido reconhecidos pela FIFA como esfera de legitimação de campeões mundiais, as competições de 1924 em Colombes na França e 1928 em Amsterdam, além de terem sido muito disputadas, foram fundamentais para o surgimento no cenário internacional do futebol sul-americano, especialmente do bi-campeão olímpico Uruguai.

Pode-se afirmar que a campanha uruguaia no campeonato de 1924 causou espanto e deslumbramento nos europeus que até então desconheciam o potencial das seleções da América do Sul, e o título conquistado de forma invicta derrotando na final a esquadra suíça de maneira incontestável por 3×0 colocou o pequeno país “oriental” no universo futebolístico mundial.

A própria participação uruguaia já poderia ser considerada uma jornada épica. O “sonho” de um médico, político e pedagogo conhecido como Dr. Atilio Narancio, presidente da Associação Uruguaia em 1924 e 1925, e os esforços do diplomata Enrique Buero, teriam viabilizado a inscrição da delegação nos Jogos Olímpicos, pois segundo consta na obra oficial de Juan Capelán Carril (1990), “El padre de la Victoria” como era conhecido o médico, teria inclusive hipotecado um bem próprio para financiar a viagem e Buero, embaixador na Suíça teria sido o principal articulador da filiação do Uruguai a FIFA, tendo inclusive participado do Congresso realizado em Genebra em 1923. 

Antes do torneio, a equipe uruguaia, após a longa travessia marítima do Atlântico, teria se preparado enfrentando equipes de cidades espanholas como Vigo, Bilbao, San Sebastían, La Coruña e Madrid, partidas acordadas diplomaticamente com a intervenção do Sr. Enrique Buero, pelas quais receberam somas em dinheiro importantes para a estadia da delegação em Paris. A seleção venceu as nove partidas, além de marcar 25 gols e sofrer 8.

A estréia nos Jogos Olímpicos foi com uma goleada de 7 a 0 nos iugoslavos, fato que teria surpreendido a imprensa mundial, e a invicta campanha até a final contra a Suíça resultou no reconhecimento internacional do futebol praticado pelos “celestes” e posicionou a América do Sul na geografia futebolística mundial.

Ademais, os jogadores uruguaios teriam encantado os torcedores parisienses, sobretudo o negro Jose Leandro Andrade, que ficou conhecido na imprensa francesa como a “maravilha negra”, tendo participado também da campanha de 1928 e da Copa do Mundo de 1930.

            É importante destacar que antes mesmo do sucesso de Andrade, o Uruguai já tinha como principal jogador um atleta negro Isabelino Gradin, destaque da celeste na década de 1910 e início de 20, campeão do primeiro sul-americano de 1916, junto com outro negro Juan Delgado, fato que inclusive ensejou declarações racistas de um correspondente chileno na ocasião[1], além de ser um velocista campeão sul-americano diversas vezes em distintas categorias.

            Todavia, Gradin não chegou a participar da campanha olímpica de 1924, e a imprensa européia acabou exaltando o jogo elegante e as passadas esguias de José Leandro Andrade, que se tornou uma atração a parte no verão parisiense.

En apenas unos años el fútbol pasó de ser un deporte de elite y de extranjeros a ser un deporte nacional y popular, practicado y atendido por gente humilde. En el fútbol local se destacaron muchos afro-uruguayos, caso de Juan Delgado, Isabelino Gradín , Leandro Andrade, entre otros y también numerosos inmigrantes españoles e italianos recién llegados al país: José Pendibiene, Carlos Scarone, Petro Petrone, Angel Romám, Antonio Urdinarán, etc. ( BOURET e REMEDI : 2009, 291-292)

            A presença de jogadores negros nos selecionados uruguaios desde a década de 10 com Isabelino Gradin e Juan Delgado e a mítica figura de José Leandro Andrade, “a maravilha negra”, campeão olímpico em 1924 e 1928 e mundial em 1930, além do grande número de descendentes de imigrantes nas esquadras nacionais são indícios de que o futebol no Uruguai nas primeiras décadas já era um elemento agregador e popular, apesar de continuarem existindo conflitos dentro do campo esportivo.

            Um trecho do romance histórico “Gloria y Tormento. La novela de José Leandro Andrade”, apesar do seu caráter ficcional, espelha em alguns trechos metaforicamente o que foram aqueles dias na capital francesa para este mítico atleta:

Si …Yo José Leandro Andrade me paseé orondo por las calles de París con sombrero de copa, guantes de color patito, bastón con mango de plata y uno pañuelo de seda. Ay!, si mi hubiesen visto con esta pinta. Sepan, sepan todos, que hasta los árboles se inclinaban ante mí. Cada paso que daba hacía temblar la tierra como si avanzara un gigante. Un gigante que podía hacer  magia con la pelota en los pies. Un gigante del que todavía hablan en Paris. Paris dije …? No amigos! No! En toda Francia!

Qué digo? Francia? No amigos? Noooo! En el mundo entero.” (CHAGAS : 2007, 70)

      O sentimento de espanto e admiração com o futebol praticado pelos uruguaios na França é compartilhado pelo próprio presidente da FIFA, Jules Rimet, ao se referir ao torneio olímpico de 1924 e ao estilo jogo praticado pelos até então desconhecidos jogadores “celestes”:

Veinticuatro equipos participaron en aquéllos y los dos que disputaron la final fueron los representantes del Uruguay y Suiza. Este partido, que terminó con la victoria de la Republica Sudamericana, fué sensacional. Al juego rápido, enérgico y duro de los helvéticos, los uruguayos opusieran una hábil flexibilidad, un juego científico, conocedor de todas las sutilidades del fútbol, que conquistó la admiración de los espectadores europeos. Su virtuosismo y espectacularidad convirtió aquel partido en una revelación, en un match  histórico

(RIMET : 1955, 24)    

O termo “revelação” utilizado por Rimet é certamente esclarecedor deste sentimento europeu de descoberta em relação ao Uruguai e a toda América do Sul no que concerne o futebol. As exibições da “celeste” impressionaram a crônica internacional, deslumbraram os torcedores parisienses, criaram o primeiro grande mito internacional negro neste esporte, além de levar a glória olímpica para o outro lado do Oceano Atlântico colocando no mapa esportivo mundial a pequena República Oriental do Uruguai.


[1] O correspondente chileno escreveu que a seleção do seu país havia sido derrotada pela equipe uruguaia por 4×0 que tinha na sua esquadra “dois africanos” , fato que  gerou inclusive um  incidente diplomático.

BOURET  Daniela e REMEDI Gustavo. El nacimiento de la sociedad de masas (1910 -1930). Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2009.

CARRIL, Juan A. Capelán.  Nueve décadas de gloria. Montevideo: Estampas SRL  Realizaciones, 1990.

CHAGAS, Jorge. Gloria y Tormento. La novela de Leandro Andrade. Montevidéu: Rumbo Editorial, 2007.

MORALES, Andrés. Fútbol, identidad y poder (1916-1930). Montevideo: Fin de Siglo, 2013.

RIMET, Jules. Futbol, La Copa del Mundo: Barcelona; Editorial Juventud, 1955.

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Pandemia, atores do espetáculo esportivo e engajamento político.

03/05/2021

Uma discussão importante que vem crescendo nos últimos anos e também durante essa Pandemia tem a ver com o papel político do Esporte e especialmente das declarações e posicionamentos de atores do espetáculo esportivo no Brasil e no mundo

A continuidade das práticas esportivas profissionais mesmo após um período de suspensão temporária no início da primeira onda da COVID, demonstrou que apesar das polêmicas, riscos de contágio e diversas situações específicas inacreditáveis na realização dos torneios, o esporte tanto nas suas modalidades profissionais, quanto na prática cotidiana dos amadores, seja talvez uma das atividades mais presentes na vida pandêmica, mesmo com os estádios, arenas e quadras praticamente vazias.

Apesar da insegurança e dos desvios de conduta cometidos em muitas ocasiões por dirigentes e políticos para o retorno de um “novo calendário” minha impressão é que a atividade esportiva se tornou ainda mais onipresente durante esse difícil período, gerando até uma certa naturalização do perigo quando novas ondas da doença surgem no país e no mundo. Sinto que existe um “novo normal” para as competições de todas as modalidades internacionais e nacionais nem sempre justificadas pela Ciência, mas regularmente aceita pelos amantes do esporte.

O objetivo desse especulativo post não é condenar a realização dos diversos campeonatos   nas diferentes modalidades que servem também de ocupação do tempo de lazer e do psicológico de muitas pessoas, pois eu mesmo já me vejo como um daqueles que naturalizaram a situação para ter o prazer de assistir esporte enquanto estou isolado e de praticar em espaços abertos quando está liberado, mas apontar questões polêmicas que surgiram ao longo desse triste período que na minha visão ajudam a pensar o local de fala do esporte na própria sociedade brasileira e a necessidade de engajamento político e liberdade de expressão dos atletas em todos os sentidos.

Isto posto pretendo mencionar algumas situações específicas que na minha opinião foram emblemáticas nesse momento pandêmico e que podem gerar polêmicas mas também boas reflexões.

A primeira delas foi o retorno dos campeonatos estaduais em um contexto de grande incerteza, de pouquíssimo conhecimento da doença e seus protocolos e de divergência entre autoridades esportivas e sanitárias, ainda no primeiro semestre do ano passado. A triste aliança de alguns dirigentes esportivos de importantes clubes como o Flamengo com o negacionismo explícito do presidente da República para acelerar o retorno  das partidas, chegando a cogitar naquele momento a presença de torcedores nos estádios (fato que é inconcebível praticamente um ano depois) foi ignóbil porém naturalizada aos poucos por torcedores, profissionais da mídia e mesmo apaixonados pelo futebol mesmo sendo ou se considerando de setores progressistas.

Um exemplo recente foi a reação à declaração do técnico Lisca  no início de março contra a retomada da competição da Copa do Brasil. Apesar de usar argumentos racionais como a distância e risco nos translados de equipes por exemplo do Sudeste para o Norte e também emotivos como a referência a colegas que morreram,diversos técnicos, jogadores, torcedores o criticaram veementemente o chamando de hipócrita.

O próprio Lisca afirmou que não foi uma declaração política e que estava apenas dando sua opinião em função do triste momento da Pandemia mas acabou sendo execrado por muitas pessoas, sendo importante lembrar como o número de mortes e casos aumentou  de forma avassaladora nos meses de março e abril. Para maiores informações sobre o caso ver  https://www.terra.com.br/esportes/futebol/lisca-diz-que-desabafo-sobre-pandemia-nao-foi-politico,bd2f10fb799109907cb966face9a2a43vkegyxd4.html

Esse caso também é emblemático em função da temática do engajamento político no esporte. O fato do treinador ter se justificado que o desabafo não teria sido político pode ser visto pela ótica das dificuldades que treinadores e atletas, ainda podem ter para se manifestarem no nosso país. Infelizmente não temos uma cultura política muito engajada na nossa sociedade e obviamente isso se reverbera no meio esportivo.

Entretanto acredito que existem duas faces de uma mesma moeda. Se por um lado os atores do espetáculo esportivo no país se envolvem pouco com política e raramente se manifestam por falta de interesse ou consciência como alguns intelectuais as vezes cobram, por outro, a pressão institucional das Confederações, dos interesses políticos dos clubes podem estabelecer uma espécie de censura invisível muitas vezes difícil de ser rompida.

O recente caso da jogadora de vôlei de praia Carol Solberg ocorrido durante a Pandemia é representativo nesse tema. A tentativa de uma punição exagerada  à  atleta por ter se manifestado contra o atual Presidente da república  foi resultado de uma “cláusula leonina” de impedimento de manifestação dos atletas  imposta no regulamento da competição e  de um Tribunal Desportivo que no Brasil é uma jurisdição anômala e despreparada. A denúncia com um valor muito alto de multa e suspensão por várias partidas entra em choque com o histórico princípio iluminista da “liberdade de expressão” acolhido constitucionalmente e serviria caso se concretizasse para estimular ainda mais a conduta passiva dos atletas no campo político.

A própria advertência aplicada à jogadora apesar de ser factível no âmbito jurídico me parece equivocada a partir de uma perspectiva sociológica e inibe novas manifestações dos atletas, já se configurando como um cerceamento desnecessário. Entendo que a polêmica gerada em torno da situação foi muito importante para refletirmos sobre o local de fala do Esporte e dos esportistas. Para maiores informações sobre o caso ver

https://globoesporte.globo.com/volei/noticia/carol-solberg-e-advertida-por-manifestacao-politica.ghtml

No âmbito da crônica esportiva e também em alguns estudos de História do Esporte recentes, muitos atletas de ponta brasileiros como Pelé, Zico, Nelson Piquet, Oscar Schmidt são criticados por não terem se manifestado politicamente de forma contundente ou pelo teor de suas opiniões, enquanto outros são representados como símbolos de resistência ou de ruptura revolucionária como Afonsinho, Reinaldo, Sócrates, Paulo César Caju, etc. Acredito que possa existir exageros retóricos nos dois lados, sendo que obviamente cada caso específico tem suas peculiaridades, mas a importância é que o debate tanto jornalístico quanto acadêmico pode estimular a participação cada vez maior dos atletas dando a sua opinião.

O engajamento político dos atletas, jogadores, dirigentes esportivos independentemente de que ideias defendam deve ser estimulado em todos os esportes e não deve ser cerceado por cláusulas de comportamentos, argumentos de que as praças esportivas sejam campos neutros, regulamentos internos dos clubes ou oligárquicas Federações e Confederações.  

    Assim como o Esporte mesmo em tempos de Pandemia do Coronavírus se perpetua como Fato Social onipresente nos termos de Émile Durkheim a participação política dos atores do espetáculo esportivo deve ser estimulada, estar cada vez mais presente no nosso cotidiano e nunca cerceada por regulamentos abusivos, jornalistas supostamente neutros, ou lunáticos internéticos valentões digitais.

O local de fala do esportista tem que ser respeitado. Para mim Lisca “Doido”, Carol Solberg ou até mesmo Felipe Melo, também execrado em muitas redes sociais pelas suas convicções políticas que obviamente não compartilho têm que ter o direito  assegurado de se manifestar e fazer política dentro dos gramados, quadras e demais espaços esportivos para que os atores também atuem na defesa da Democracia e não apenas alguns setores de torcidas Antifascistas.


Os Desaparecidos do Racing Club. Um registro histórico de paixão e resistência

21/12/2020

A questão da memória dos desaparecidos políticos durante os regimes militares no Cone Sul é muito mais investigada e registrada por pesquisadores argentinos do que brasileiros independentemente da gravidade do tema em ambos os países.

Desde o final do famigerado regime do “Processo” (1976-1983), as Comissões de Direitos Humanos no país lutam por Justiça e a condenação dos envolvidos nos crimes contra os militantes políticos,  apoiados por movimentos da sociedade civil como as Madres de Mayo que surgiu de forma corajosa no auge da repressão do regime e cuja notoriedade e representação simbólica transcendem a esfera política argentina. O drama de  mães, avós, irmãs, filhas vem comovendo as pessoas minimamente sensíveis desde o final dos anos setenta apesar de terem sido chamadas de “Loucas” pelos defensores da ditadura no país.

No campo futebolístico é possível verificar também essa presença/resistência. Pude perceber na maioria dos estádios argentinos que conheci, grafites nos muros, bandeiras e   homenagens com faixas à desaparecidos políticos em diversas situações. Destaco belas pinturas no Estádio Ilhas Malvinas do All Boys que exaltam os sócios torcedores que sumiram pela barbaridade do regime militar no país. Em um post aqui do nosso blog o amigo André Couto que junto com Rafael Fortes me acompanharam em uma interessante partida nesta “cancha” relata a esperiência. Ver https://historiadoesporte.wordpress.com/2018/12/03/uma-partida-para-la-de-quente-na-argentina/

Outra homenagem muito bacana foi realizada recentemente pelo Club Banfield que criou a modalidade de título para sócio detido-desaparecido resgatando a história de onze sócios do clube que sumiram durante o nebuloso período. Sobre o tema ver https://notasperiodismopopular.com.ar/2019/10/04/banfield-11-memoria/

            Uma importante obra que acabei de ler e que resolvi apresentar como tema do presente post foi o livro “Los Desaparecidos de Racing” muito bem escrito pelo sociólogo, cientista político e torcedor do tradicional Racing Club de Avellaneda, Julián Scher.

            O autor descreve a vida de 11 torcedores da “Academia” que se envolveram com distintos grupos de resistência (FREJULI, JUP, GOR, PRT, etc) em diferentes períodos ditatoriais no país, apresentando minibiografias que tem como eixos principais: trajetória familiar, envolvimento pessoal com a militância e a paixão pelo Racing Club.

Acá lo que hay es simple: 11 textos de 11 hinchas de Racing construídos a partir de los testimonios de quienes fueron testigos de sus andanzas dentro y fuera de las canchas de fútbol y militância. ( SCHER:2017, P.13)

            Alejandro Almeida, Diego Beigbear, Jorge Cafatti, Álvaro Cárdenas, Jacobo Chester, Dante Guede, Gustavo Juárez, Alberto Krug, Osvaldo Maciel, Roberto Santoro e Miguel Scarpato formam uma equipe de corajosos militantes de distintos movimentos de resistência, com diferentes origens sociais apesar de muitos serem de famílias operárias alinhadas com o Peronismo, e que exerciam diferentes profissões: jornalista, advogado, bancário, poeta, etc.

ROBERTO SANTORO – EL POETA DE LA POPULAR

         

Todas as histórias pessoais são relatadas com uma riqueza de detalhes biográficos (ethos), com uma seriedade acadêmica ao descrever as diferentes conjunturas históricas políticas (logos) e com uma paixão cativante de torcedor (Pathos). A importância do Racing Club para a vida de cada um dos membros do escrete é demonstrada com habilidade e emoção pelo autor, bem como o envolvimento dos desaparecidos com a luta pela liberdade e os direitos civis na Argentina.

            O mitológico Estádio Presidente Perón mais conhecido como “El Cilindro” é um local de Memória fundamental e simbólico nas trajetórias de vida dos onze torcedores/militantes. Alberto Krugger por exemplo, mesmo sendo perseguido politicamente continuava frequentando o estádio para poder também rever companheiros queridos.   

Ni siquiera la comprobación cotidiana del apetito asesino del enemigo logró que Alberto dejara de pensar en Racing. Tan certo es que el andar de Academia distaba mucho del passado de gloria como que Alberto encontraba en las idas ao Cilindro um atajo a la felicidade. La forma para acordar la cita con los suyos era infalible. Un llamado a Rosa para saludar y um aviso entre líneas para que Carlos y Frederico supieran que el domingo él iba estar en la popular, en el logar de siempre aguardando por ellos. Como las oportunidades para encontrarse escaseaban, la cancha funcionaba como um segundo hogar, como un espacio proprio que quedaba fuera de la orbita del poder genocida. (SCHER:2017, P.226)

            Além do estádio, ao longo do livro também é feito um acionamento da memória de partidas emblemáticas, dos títulos conquistados como o primeiro Intercontinental de Clubes de uma equipe argentina diante do Celtic da Escócia em 1967 em uma terceira partida no Estádio Centenárioem Montevidéu e de importantes jogadores que marcaram tanto a História do clube, quanto dos torcedores desaparecidos. Um jogador brasileiro que faleceu recentemente aparece como grande artilheiro e ídolo de um dos “hinchas” em um dos relatos:

Todo hincha reconoce que hay partidos que no se olvidan. El 4 de mayo de 1969,Álvaro fue a la cancha como de costumbre, com su papá, com su hermano más chico y com sus amigos. El equipo de José ya integraba el pasado memorable pero em Racing jugaba un tipo que no necesitó ganar campeonato para ser un emblema. Walter Machado da Silva, nacido en 2 de Enero de 1940 en Ribeirão Preto, cerca de São Paulo, había llegado desde Flamengo con la promesa de hacer goles. Y cumplío. De  hecho, en el Metropolitano de 1969 convirtío 14 tantos y fue el máximo goleador del torneo. Fue el primer y único brasileiro en la história del fútbol argentino en conseguirlo. Y al Alvaro lo cautivó de entrada la elegancia de ese delantero infernal que lograba suspenderse en el aire como si la gravedad no o empujara a bajar (SCHER:2017,112)        

ÁLVARO CÁRDENAS – EL QUE SABÍA CANTAR EN LA TRIBUNA

            A reverência ao atacante Silva, o Batuta um goleador nato, um nômade do futebol brasileiro e sul-americano, uma grande figura humana que trabalhava como funcionário do clube do Flamengo foi confirmada recentemente por ocasião do falecimento do atleta com homenagem prestada pelas redes sociais do Racing ao ex-jogador brasileiro.

            A história dos desaparecidos do Racing comprova que àqueles que ainda acreditam que a paixão pelo futebol e o engajamento político não podem se misturar, que o  Esporte deve ser um campo neutro, isento de posicionamentos políticos e ideológicos estão completamente equivocados.

            Os Desaparecidos do Racing conta as trajetórias pessoais de 11 torcedores/ militantes, apaixonados por um clube de futebol: cores, estádio, ídolos, hino e todos os símbolos clubísticos. Essa equipe que se envolve também emocionalmente com a causa de lutar contra regimes autoritários e uma sociedade mais justa quebra paradigmas preconceituosos que ainda existem tanto nos meios acadêmicos, quanto entre jornalistas e torcedores de que Esporte e Política tem que estar separados. A paixão por um clube ou um esporte não cega um cidadão consciente com relação a sua postura enquanto animal político.

            Um belo livro, muito bem escrito que emociona torcedores/cidadãos e que ajuda a compreender tanto a história de períodos nebulosos da política argentina, quanto a paixão por uma equipe de futebol. Um registro sério de um acadêmico apaixonado pela “Academia” do futebol argentino e consciente dos tempos sombrios que foram  enfrentados por tantos militantes no país.

REFERÊNCIA: SCHER, Julián. Los Desaparecidos de Racing. 2.a Ed. Cidade Autônoma de Buenos Aires: Grupo Editorial Sur, 2017.


Adílson “Maguila” Rodrigues: Farsa ou realidade para o boxe brasileiro?

20/07/2020

No presente post pretendo apresentar reflexões sobre a representação simbólica de um boxer brasileiro que atingiu repercussão midiática principalmente nos anos oitenta em um esporte que o Brasil não apresenta grande tradição histórica internacional, salvo algumas exceções como Eder Jofre, Miguel de Oliveira, Servílio de Oliveira, Acelino “Popó” Freitas,Valdemir “Sertão” de Almeida e mais recentemente os irmãos Falcão e Róbson Conceição entre outros.

Minha relação com o boxe enquanto fenômeno esportivo oscilou ao longo da vida. Quando jovem adorava películas sobre um espore que talvez seja o mais plástico para a linguagem cinematográfica como “O Campeão”, “Touro Indomável” e mesmo a pasteurizada, porém emocionante, série de filmes de “Rocky Balboa”. Admirava lutadores como Teófilo Stevenson, Mike Tyson, Evander Holyfield, Júlo César Chavez e também fui um fã de José Adílson Rodrigues dos Santos, apelidado de “Maguila”.

Em um determinado momento da minha existência me desinteressei completamente do boxe não sei bem precisar quando e por quais razões. Passei inclusive a achar de forma um tanto quanto pedante ou preconceituosa, que era um esporte brutal e que os lutadores seriam alienados manipulados em um espetáculo sangrento e boçal. Não acompanhava as lutas de “Popó” e abominava principalmente a nova modalidade inspirada nos antigos “vale-tudo”  de “MMA” que surgiam com muita popularidade.

Havia me distanciado da prática de esportes que pratiquei associados a masculinidades no século XX , sobretudo, na adolescência como Pólo Aquático ou Jiu-Jitsu. Nessa época acredito que corroborava com uma visão superficial sobre o boxeador Adílson Rodrigues de que ele tinha sido apenas uma construção midiática e era uma figura caricata utilizada muitas vezes em programas televisivos de formas constrangedora.

O retorno ao interesse com a modalidade aconteceu paradoxalmente através de um convite para participar de um evento acadêmico na Colômbia, mas especificamente na incrível cidade de Cartagena de las  Índias em uma das universidades mais antigas da América Latina junto com Victor Melo e outros pesquisadores latino-americanos em 2014. Em um papo de bar fui convencido pelo querido amigo e pesquisador David Quitían a aceitar o desafio de falar sobre o “Boxe no país do futebol” tema sugerido por ele próprio.

Preparei uma fala que buscava estabelecer reflexões comparativas sobre a popularidade, origem social e espaço na mídia do Boxe em relação ao Futebol que terminava fazendo um breve histórico dos principais pugilistas brasileiros da História na minha opinião.  Acabei não incluindo Adílson Rodrigues, fato que foi questionado por um jornalista especializado colombiano, país que possui imensa tradição no esporte com diversos campeões olímpicos e mundiais.

A partir de então passei a acompanhar novamente o boxe assistindo principalmente atletas como Floyd Mayweather Jr, Vasyl Lomachenko e os brasileiros Róbson Conceição além dos irmãos Falcão, filhos do lendário “Touro Moreno”.

No final de 2017 com o objetivo de praticar um novo esporte e emagrecer fui estimulado por amigos a fazer aulas de boxe na Associação Brasileira de Pugilismo localizada em Copacabana na tradicional Academia Radar. No início não acreditava que conseguiria acompanhar os treinamentos, mas aos poucos fui realmente me apaixonando pela prática da “nobre arte”, recuperando o condicionamento físico, apesar da relativa idade, e descobrindo um espaço de sociabilidade incrível no qual convivem pugilistas, ex-atletas, médicos, veterinários, militares, biólogas, etc em uma atividade prazerosa que ajuda a fortalecer não só o corpo quanto a mente, dissipando assim qualquer preconceito que eventualmente eu ainda poderia ter com relação à  modalidade e seus praticantes.

Mas voltando ao objetivo central do post e aproveitando a questão estrutural do preconceito: Adílson Rodrigues da Silva nasceu em uma família extremamente pobre em Aracaju: é negro, nordestino, semianalfabeto, trabalhou como pedreiro e lutou ao longo da sua vida não só nos ringues, mas contra a fome e também contra o preconceito estigmatizado na própria alcunha “Maguila, apelido que o compara a um gorila truculento, porém simpático, personagem de Hanna Barbera. Segundo Roberto Cabrini:

 “Não se fazem nordestinos de 1.85 de altura todos os dias numa região do país onde o homem médio é estatisticamente um homem baixo. Seu pai, um estivador de Aracaju, Sergipe nunca imaginou que um de seus 20 filhos iria se tornar campeão de boxe, menos ainda da categoria peso-pesado. Os Rodrigues de Sergipe que migraram para o sul seguiram caminhos variados. Há quem tenha sido morto pela polícia, pacato cobrador de ônibus e pedreiro até chegarmos ao campeão de boxe” Revista Show do Esporte. N.1. P.51 

Pode não ter sido um pugilista tecnicamente brilhante, mas era extremamente forte e possui um cartel com 85 lutas, sendo 77  vitórias e 61 por nocautes. Lutou com alguns dos maiores pugilistas dos pesos pesados da sua época como Evander Holyfield e James “Quebra Ossos” Smith e na América dos Sul não teve adversários. Segundo Alessandro Leite, ex-pugilista e presidente da Associação Brasileira de Pugilismo foi o maior peso-pesado que o país já teve apesar de termos muitos grandes lutadores que nunca chegaram a ter o devido reconhecimento no cenário internacional.

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Revista Placar  N.845. P.58, 1986. Acervo pessoal

Entretanto, somente o preconceito explicaria uma espécie de desvalorização da carreira do pugilista? Quantos lutadores no Brasil e no mundo são oriundos de classes sociais menos favorecidas? Acredito que só o preconceito não explica um acionamento de memória negativo com relação à carreira de Adílson Rodrigues apesar de ser um fator muito importante.

Existe um argumento que é a suposta construção midiática do atleta através ,sobretudo, do locutor e empresário Luciano do Valle alavancada pela Rede Bandeirantes  que teria “produzido” o lutador inclusive “arranjando” algumas lutas.

É verdade que o Consórcio Luqui-Bandeirantes investiu pesado na carreira do atleta e que o espaço midiático dedicado ao pugilista era desproporcional com a própria popularidade da modalidade, todavia um lutador consegue tantas vitórias e nocautes ao longo de tantos anos sendo somente um “produto da mídia”? E com relação a lutas “arranjadas” isso não é algo que acontece com certa regularidade tanto na modalidade, quanto em diversos outros esportes em função de interesses econômicos, bolsas de apostas ou mesmo necessidades individuais?

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REVISTA SHOW DO ESPORTE. N. 1. CAPA, 1988. – Acervo pessoal.

Neste sentido, acredito que uma costumeira desvalorização da carreira de um dos maiores atletas da modalidade no Brasil passa tanto pelo preconceito estrutural da sociedade brasileira que naturaliza desde o apelido de um gorila truculento até piadas explícitas sobre a ausência de instrução do esportista, quanto a superficial hipótese de que a mídia tem o poder de construir campeões que não tenham qualidade e capacidade esportiva para tanto.

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Placar N. 994. p. 38.1989. Acervo pessoal.

Adílson Rodrigues podia não estar no nível de dois dos maiores pesos-pesados da História que para sua infelicidade eram da sua geração: Mike Tyson e Evander Holyfield, mas com certeza era acima  do padrão da categoria de forma geral e com relação ao boxe brasileiro o humilde lutador foi uma realidade gigantesca que continua lutando pela vida com muita raça e determinação. Sobre a atual batalha do lutador ver: https://globoesporte.globo.com/sp/tem-esporte/noticia/a-luta-da-vida-maguila-trata-doenca-incuravel-em-refugio-no-interior-de-sp.ghtml.

Desculpe Adílson dos Santos Rodrigues por não ter incluído você no rol dos grandes lutadores brasileiros de todos os tempos em distante palestra em solo colombiano. Você com certeza é um grande campeão brasileiro tanto no Boxe quanto na luta pela vida.


Duas vezes junho: duas Copas do Mundo, dois momentos de uma Ditadura brutal

03/03/2020

O presente post tem como tema a obra de ficção do escritor argentino Martín Kohan “Dos vecess Junio”, aonde a memória de duas copas do mundo se relaciona com uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, o “Processo” argentino (1976-1983) em momentos distintos.

A maior parte do enredo acontece em junho de 1978, quando o personagem  principal e narrador da história, um jovem recruta das Forças Armadas argentinas procura se adaptar a função mesmo sem demonstrar muito entusiasmo pela instituição.

O rapaz acaba se envolvendo profissionalmente, mas também afetivamente com um importante médico militar, o Doutor Messiano, estabelecendo um certo vínculo de amizade com seu superior,  pois acaba sendo escalado para ser o motorista  dele e passa a conviver regularmente com o senhor e sua família.

A história começa com uma simples frase escrita em um caderno de notas em cima de uma mesa de uma caserna: “A partir de que idade pode-se começar a torturar um menino”. A partir daí a trama se desenvolve nos porões da ditadura argentina abordando de forma bem contundente, apesar da frieza do discurso do narrador ao relatar os fatos, um dos temas mais trágicos do período do terror que foi o sequestro de bebês das prisioneiras consideradas subversivas.

O caráter macabro da pergunta provoca uma imersão em um universo militar sombrio e irracional no qual a violência e a burocracia predominam no processo de tomada de decisões.

Paralelamente a descrição das diligências de soldados, prisioneiros e celas que remetem ao horror dos centros de detenção semelhantes à famosa ESMA (Escola Superior de Mecânica  da Armada), o ambiente da realização da Copa do mundo aparece como pano de fundo de uma história surreal onde a catarse da paixão pelo futebol me parece um elemento acessório à trama que acentua a brutalidade da cegueira coletiva com relação às atrocidades cometidas com os prisioneiros. Dentre elas uma das mais torpes que é a negação da maternidade para satisfazer desejos de famílias abastadas e protegidas pelo regime.

Um dos capítulos mais interessantes nessa perspectiva é quando o jovem soldado/motorista tem que procurar seu superior no estádio Monumental de Nuñez durante a terceira partida da seleção argentina no torneio contra a Itália, justamente quando sofreu sua única derrota no torneio. Acredito que a escolha do autor não foi por acaso, pois a descrição da saída dos torcedores do estádio para mim espelha simbolicamente o triste momento histórico vivido pelo país por tantos se calarem contra os milhares de presos, torturados e desaparecidos. A metáfora do silêncio dos torcedores argentinos após uma derrota do selecionado nacional parece se estender para toda Nação como uma crítica a passividade de muita gente diante do autoritarismo de um regime que promovia uma festa esportiva.

“ En filas desparejas se desconcentró la multitud callada. Era una larga procesión de cabizbajos, que no mostraban llanto por no ceder el gesto del que es bien hombre, pero que tampoco hablaban ni levantaban la vista. Se oía tan sólo el rasgado del andar sobre el pavimento o sobre las baldosas de las veredas, porque los pies tampoco los levantaba nadie, y al arrastrarlos se arrastraban los papeles rotos, la mugre general de los dias de partido, los pedazos de cualquier cosa.

No había semblante en que faltara la pesadumbre, En el desfile contínuo de las caras sin sosiego se veia la tristeza multiplicarse por milles, Yo iba viendo, también Callado,la manera em que pasavan incessantes los desconsolados: tanta gente, tantos milles y nadie tenía palabra alguna que decír. (PG 74)

No segundo junho quando ocorre o desfecho da obra, a narrativa é passada em  outra conjuntura da vida pessoal do narrador, e da própria ditadura argentina e o paralelo é feito com outra Copa do mundo de futebol.

O jovem não era mais militar e havia ingressado na faculdade de Medicina de certa forma como um desdobramento da sua relação pessoal com o Doutor Messiano, com quem se encontra depois de muitos anos para fazer uma visita de pêsames no dia em que está acontecendo uma nova partida da seleção contra a Itália.

A ditadura argentina do Processo caminhava para seu fim. Estava claudicante. Leopoldo Galtiéri havia renunciado após a trágica derrota nas Guerras das Malvinas que deixou centenas de jovens argentinos mortos e o sentimento patriótico destroçado.

Na Copa da Espanha, a então campeã do mundo com a grande estrela que havia se transferido para o Barcelona “El Pibe Maradona” não consegue demonstrar um bom futebol e acaba eliminada na segunda fase justamente após ser derrotada pela campeã Itália e o Brasil.

“En la radio emplean la palabra milagro. Los analista coinciden en juzgar a Brasil como el candidato por excelencia a obtener el campeonato. Consideran por tanto, que las chances de que la Argentina pueda derrotarlo en el próximo partido son muy pocas, para no decir nulas”. PG 184.

Neste sentido o futebol argentino não aparece também como esperança, mas sim como símbolo de derrota de um país que está esfacelado por uma guerra absurda ocorrida pelo destempero e desespero de uma ditadura falida.

Assim sendo, “Dos veces Junio” é um livro muito interessante que aborda através de uma complexa construção literária, intercalando passagens sombrias de uma história de roubo de bebê pelo Estado com uma genuína paixão pelo futebol do povo argentino um triste período da história do país que esperamos que não se repita nunca mais nem lá e nem aqui.

 


Malvinas, entre a guerra real e a estreia argentina no Mundial da Espanha

16/09/2019

As vésperas da Copa do Mundo de 1982 realizada na Espanha a cobertura da seleção argentina campeã do mundo que realizaria o jogo de abertura contra a Bélgica estava ofuscada por uma guerra real, batalhas militares e não metafóricas disputas futebolísticas, a defesa de uma nação com armas e não poeticamente com gols.

Diferentemente do que ocorreu durante o mundial anterior com o torneio realizado no país, o grande mecanismo operador de nacionalidade naquela conjuntura era a luta pela afirmação da soberania nas ilhas Malvinas.

Segundo a antropóloga Rosana Guber (2012), as mobilizações populares em torno da guerra contra os ingleses pelo domínio das ilhas se assemelharam as manifestações nacionalistas ocorridas durante a realização do torneio na Argentina em 1978.

“Obviamente diferia del cuadro del 30 de marzo y se asemejaba, más bien, a los festejos de la coronacíon argentina en el Mundial de Fútbol de 1978. Los asistentes se reunían espontaneamente o marchaban desde las cercanias asitios públicos, monumentos y demás lugares simbólicos, transeuntes, famílias, compañeros de trabajo, gruposs de amigos y estudiantes (Clarín, 3/4/82; La Nacíon, 8/05/82) blandían banderitas argentinas de plástico que vendían los “cuentrapropistas” sector que habia crescido en esos años. Los acompañaban automovilistas y tocando bocinas y cantando “Argentina! A diferencia de otros tiempos, a celebracíon promovida por el gobierno denotaba la falta de peligro, vigilância y confrontacíon. No había enemigos a la vista”entre nosotros”. (2012, p.47)

A guerra declarada pela ditadura militar comandada por Leopoldo Galtieri teria sido um elemento de unificação nacional durante os 74 dias sendo considerada em um primeiro momento segundo Guber uma “guerra justa” por grande parte da população. Entretanto com a humilhante derrota e a morte de cerca de 750 jovens soldados após o conflito a guerra passou a ser vista como absurda por boa parte dos argentinos.

No caso das reportagens sobre o conflito bélico teria ocorrido a manipulação constante de informações e estratégias de deturpação dos próprios fatos históricos a partir de duvidosas fontes. Segundo Urlanovsky (2011):

“El 2 de abril de 1982 los argentinos tuvieron la triste oportunidad de leer en sus diarios unos titulares increíbles: “ Tropas argentinas desembarcan en Malvinas” informaba, por ejemplo, Clarín. Lo que sucedío a partir de esa instancia – que no concluye con la finalizacíon de las acciones bélicas- se corresponde com uno de los momentos más horrorosos del país y del periodismo local durante el siglo”. (2011, p.130)

Pode-se perceber que mesmo na Revista El Gráfico, dedicada exclusivamente aos esportes e com uma cobertura direcionada para o Mundial da Espanha além de outras modalidades, a preocupação com a guerra das Malvinas está presente de forma implícita. O editorial do N.3270 por exemplo que possui o seguinte lema “Cada un en lo suyo defendiendo lo nuestro” apresenta a equipe de jornalistas da seguinte forma:

Algo más que un slogan.

Una tomada de conciencia. Un compromiso. La responsabilidad de dar lo mejor de nosotros mismo en el  trabajo cotidiano.Allí donde el deber lo imponga. Y con las armas de todos los dias. Porque una herramienta también es un fusil. Como lo puede llegar a ser la raqueta de Vilas debatiéndose en Roland Garros frente a la juventud de un fenómeno que surge o un volante girando a todo vértigo en el Grande Premio “Islas Malvinas” que supimos compartir con dez solidários pilotos de Latinoamérica. Un arma también es una máquina de escribir, una cámara fotográfica, un grabador, una línea de telex y la opinión comprometida de una revista deportiva. Por eso EL GRÁFICO asumió el compromiso de estar allí, donde la nota lo requiere y los lectores lo esperan. En la habitación de Miami donde Palma ve los guantes esperando su próxima pelea para defender su condición de monarca del mundo. En las canchas de Ferro y Quilmes, donde se jugaron las vibrantes alternativas de los primeros partidos por las semifinales del Campeonato Nacional. Y especialmente en España 82 con el 12 Campeonato Mundial de fútbol  para estar junto al selecionado argentino que espera el momento de inaugurarlo. Hasta allí llegamos con nuestro equipo dispuesto también a jugarse el Mundial. (EL GRÁFICO, N.3270 – 08/06/1982, P.3)

As diversas alusões à metáforas bélicas como “uma ferramenta também é um fuzil” ou “uma arma também é uma máquina de escrever, um gravador, uma câmara fotográfica, etc” denotam o a atmosfera pesada da guerra e o envolvimento que os jornalistas da revista e o próprio país estavam  com o conflito armado.

A ideia de defesa da pátria nos gramados desta vez se limita a esfera esportiva antes do início da Copa, visto que a realidade se materializava de forma concreta com os confrontos e as mortes de jovens argentinos no pacífico sul. As corriqueiras metáforas do futebol como guerra ou espelho da nação sucumbem à brutalidade da batalha real, mas continuam tendo certa ressonância no discurso apresentado pela revista.

Porém apesar do editorial da edição supracitada proliferar referências à luta armada, paradoxalmente a mensagem direcionada a seleção nacional “de todos los hinchas argentinos” contidos na últma página do mesmo número remete a honra, orgulho dos argentinos e a paz:

– Para que recuerden a cada instante, que ustedes son Argentina, a cada instante, siempre en la cancha y fuera de ella.

– Para que comprendan que el privilegio de vestir esta camisa exige responsabilidad, disciplina, respeto por los compañeros, por los rivales y por lo público.

– Para que el sentimiento de orgullo, amor  próprio y verguenza no desaparezca en ningún caso de sus almas.

– Para que sepan que miliones de niños están viendo en ustedes un modelo a seguir.

– Para que los ojos del mundo que los observan sepan que son hijos de un pueblo que ama la paz.

– Para que la habilidad y el talento sigan siendo los fundamentos del êxito.

– Para que mucho más allá del superprofesionalismo impere en ustedes la lealtad y el juego limpio.

–  Para que haya un solo perdedor: la violencia.

– Para que llegue hasta vuestros oídos aquel sonido incomparable dde aliento que llenó las inovidables jornadas de Rosário Central y River Plate.

– Para que ganen aun perdiendo.

– Para que sígan siendo campeones mundiales y en  regreso encuentren un cielo en paz  (EL GRÁFICO: N. 3270 -08/06/1982, P.9

A preocupação com a conduta da equipe, o comportamento civilizado e o “fair play” parecem remeter a imagem do país no exterior através da seleção de futebol. O fato do conflito nas Malvinas estar se encaminhando para o seu desfecho talvez tenha influenciado também o teor desta mensagem que termina clamando por um retorno vitorioso de uma equipe em uma Argentina que não esteja mais em guerra.

A ideia de que os argentinos não devem perder seu orgulho próprio em nenhuma circunstância, que são pacíficos e que a violência deve ser a grande perdedora, pode ser interpretada como uma mensagem pacífica, mas que também tem um conteúdo nacionalista dentro do contexto político em que se encontrava o país.

A seleção argentina estreou sendo derrotada no Estádio Camp Nou pela Bélgica no dia 13 de junho, porém a mais dolorosa derrota para o povo argentino que abalaria definitivamente as estruturas do Processo foi a rendição das tropas um dia depois que provocaria também a saída do ditador argentino com a população aos berros “ Leopoldo borracho, mataste los muchachos”.

Referências:

Guber, Rosana. Por qué Malvinas: de la causa nacional a la guerra absurda. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômoca, 2012.

Urlanovsky, Carlos. Paren las rotativas 1970-2000. 2.Ed. Buenos Aires: Emece,2011.

 


“The two Escobars”. Conexões de vidas antagônicas mediadas pelo futebol e a violência.

16/04/2019

The Two Escobars

O documentário “The two Escobars”(2010) de Jeff e Michael Zimbalist  , mescla depoimentos de pessoas próximas as duas personalidades com um grande acervo de imagens e reportagens da época , buscando reconstruir a trajetória pessoal de cada um deles a partir do seu vínculo com o futebol colombiano.

 

A película começa com uma referência à partida contra os Estados Unidos, a tensão que envolvia a equipe antes da disputa e a emblemática  imagem do gol contra de Andrés Escobar na partida disputada no Rose Bowl em Pasadena, explorando diversas tomadas que reforçam uma representação trágica do que a princípio seria uma mera fatalidade esportiva.

A representação do jogador a partir das declarações dos parentes, amigos, companheiros de equipe e seleção estabelecem a imagem de um homem extremamente correto, solidário, humilde que ajudava as crianças carentes e era extremamente nacionalista.

Andrés Escobar era o filho caçula de uma família tradicional de classe média católica de Medelín e desde muito jovem teria se destacado no futebol em função da sua disciplina, talento e paixão pelo futebol segundo alguns relatos como o da irmã Maria Ester Escobar. A construção heroica do seu caminho até virar atleta passa também pela superação das mortes do irmão Juan Fernando assassinado nos Estado Unidos, e da mãe Beatriz que falece de câncer em 1985 ainda quando ele buscava seu espaço no futebol profissional.[1]

Sua trajetória pessoal se cruza com a do poderoso Pablo Escobar em função da relação do futebol colombiano com o narcotráfico, situação que é abordada em depoimentos e imagens do próprio documentário.

Andrés Escobar era o capitão do clube Atlético Nacional de Medelín, equipe que junto como o Deportivo Independiente Medelín seria financiada por Pablo Escobar desde o final dos anos oitenta segundo a película, e foi o primeiro time colombiano a se tornar campeão do prestigiado torneio continental Libertadores da América, em 1989. Apesar de não ser amigo íntimo do chefe do cartel da cidade como notoriamente era o goleiro René Higuita, o defensor também tinha que se socializar com Pablo Escobar.

O futebol colombiano no período é representado como um espelho da própria sociedade do país no documentário: corrupção, controle das principais equipes por narcotraficantes, violência, assassinatos de juízes, além da onipresença da influência e do poder de Pablo Escobar.  Segundo Agostino[2]

O famoso narcotraficante é representado a partir dos depoimentos e das reportagens na película de forma ambígua. Enquanto seus parceiros como o primo Jaime Gavíria e o homem de confiança Juan Jairo, mas conhecido como “Popeye” e sua irmã  Luz Maria  argumentam um suposto caráter popular de Pablo Escobar em função da sua proximidade com as camadas mais pobres, exaltando suas obras sociais como por exemplo a construção de um bairro popular onde era um lixão no subúrbio de Medelín, declarações do agente norte-americano Tom Cash do D.E.A (Departamento Anti-drogas) e do próprio ex-presidente César Gavíria  associam a imagem do chefe do cartel de Medellin a brutalidade dos conflitos sociais que se proliferavam na sociedade colombiana. O ex-presidente chega a afirmar que Pablo Escobar era uma espécie de “Bin Laden” da sua época.

Paradoxalmente, o mandatário que busca implantar uma guerra contra o narcotráfico, em especial Pablo Escobar, com apoio dos Estados Unidos se utiliza do futebol, mas especificamente da ótima campanha da seleção nacional antes do mundial de 1994, para estimular uma ideia de integração em um país que se encontrava completamente esfacelado em diversos conflitos políticos e sociais. César Gavíria que acompanhava a seleção colombiana viajava com a equipe por todo o continente, distribuía prêmios aos jogadores e associava a imagem do seu governo a um grupo de jogadores que ainda representavam um futebol marcado pelo poder de Pablo Escobar e outros chefões da droga. O ex-presidente chega a afirmar que “tem que transmitir esperança ao povo” e que “o futebol seria um elemento de orgulho nacional”.

Uma declaração de um dos principais jogadores da equipe, Carlos Valderrama ajuda a fortalecer essa ideia de integração em uma sociedade muito dividida: “ O futebol une nações,une inimigos na guerra”. Essa frase teria sido dita no contexto de uma situação em que paramilitares e guerrilheiros teriam feito uma trégua para assistir uma partida da seleção colombiana. Segundo o historiador Gilberto Agostino[3]:

Nesse sentido essa equipe da “integração’ do país, continuou mantendo relações com Pablo Escobar mesmo depois dele conseguir anular a possibilidade de extradição para os Estados Unidos, e se entregar para ser preso em uma luxuosa “prisão” que ficou conhecida como a “Catedral”. No seu presídio o narcotraficante tinha um grande campo de futebol com espaço de lazer onde recebia amigos e compartilhava churrascos e festas animadas.

A divulgação da presença do amigo Higuita na Catedral pela imprensa gerou uma grande polêmica com o arqueiro da seleção colombiana, mas posteriormente foi descoberto que não apenas ele, mas toda a seleção tinha sido “convocada” para uma “pelada” e um churrasco com o poderoso Pablo Escobar, antes da sua  fuga do presídio para não ser preso por tropas do exército colombiano com apoio explícito norte-americano. Até Andrés Escobar teria ido, a contragosto, segundo depoimento da sua irmã Maria Ester.

Entretanto, mesmo com a perseguição das autoridades locais e internacionais na “guerra” contra o narcotráfico, Pablo Escobar acabaria assassinado pela pressão de outros adversários, outrora aliados que formam o grupo narcoparamilitar los Pepes[4] (Perseguidos por Pablo Escobar). Os irmãos Castaño que originaram também o grupo paramilitar AUC (Auto Defesas da Colômbia) teriam sido os grandes incentivadores à “caçada” aos familiares e colaboradores do Cartel de Medellin que acabou com a emboscada a “El Patrón”.

No documentário a comoção popular é registrada nas imagens do enterro do narcotraficante e nas manifestações nas ruas em Medelín, assim como é defendida a hipótese de que com a morte do chefe do cartel ocorreu um aumento muito grande na escalada da violência na cidade.

Violência que também seria emblemática no assassinato de Andrés Escobar na saída de uma boate sete meses depois. Após a eliminação da seleção colombiana e do fatídico gol contra do zagueiro, Andrés estaria se confraternizando com amigos quando acabou sendo provocado e baleado no estacionamento da casa noturna  pelos “hermanos Gallón”,  paramilitares, membros do grupo dos Pepes segundo o documentário. Eles teriam perdido dinheiro com apostas na seleção durante o mundial e a responsabilidade pelo crime acabou ficando totalmente nas costas do motorista Humberto Muñoz Castro dos irmãos que teria disparado os seis tiros[5].

O funeral de Andrés Escobar também foi marcado pela comoção popular, com a presença de familiares, milhares de fãs, jogadores, autoridades políticas e teve grande repercussão no país. O presidente César Gavíria discursou se utilizando de metáforas futebolísticas para exaltar Andrés e tentar responder à atmosfera de violência social: “Colômbia não pode perder a partida contra a violência. Colômbia não pode permitir que seus melhores filhos sejam expulso do campo da vida. Colômbia não pode tolerar mais faltas contra a paz”. O técnico Francisco Maturana afirma que quem matou o zagueiro foi a sociedade

O discurso no final do documentário tenta aproximar novamente os dois “Escobares”, sugerindo através de depoimentos do primo de Pablo, Jaime Gaviria, e do jogador Chincho Serna que se Pablo estivesse vivo, Andrés não teria sido executado. Obviamente trata-se de uma licença poética de uma obra cinematográfica que termina exaltando Andrés, o Escobar mocinho e vilanizando Pablo o sanguinário narcotraficante.

Todavia, a construção de um documentário cinematográfico onde a conexão de duas vidas de personalidades públicas colombianas populares, representadas como eticamente antagônicas, é feita através do futebol e cuja morte é marcada pela  proximidade, brutalidade e por comoções populares em uma sociedade latino-americana extremamente violenta, pode ajudar a compreender as representações coletivas geradas a partir da relação futebol e política na Colômbia.

[1] Para maiores informações sobre a vida pessoal e a carreira futebolística de Andrés Escobar ver https://trivela.com.br/o-cavalheiro-do-futebol-um-retrato-de-andres-escobar-o-jogador-e-o-homem-alem-da-tragedia/.

[2] O crescimento da influência do narcotráfico contribuiu para acirrar as rivalidades clubísticas, levando a uma onda de violência sem precedentes em torno do futebol do país. Em dezembro de 1989, no momento decisivo do campeonato nacional, o juiz que atuara na partida entre Deportivo Independiente Medelín e América de Cali, Alvaro Ortega, foi mortos a tiros nas ruas de Medelín. Ganhando grande repercussão, o assassinato foi encarado pelas autoridades do país como a gota d`água, levando a paralisação da competição. Além das suspeitas que recaíam sobre os homens de Pablo Escobar, surgiam boatos que a máfia da bolsa de apostas podia estar envolvida. Enquanto o mundo desfiava a teia que envolvia o futebol e o narcotráfico. A FIFA preferia acreditar que nada estava acontecendo. (AGOSTINO:2002, P.189-190)

 

[3] O crescimento da influência do narcotráfico contribuiu para acirrar as rivalidades clubísticas, levando a uma onda de violência sem precedentes em torno do futebol do país. Em dezembro de 1989, no momento decisivo do campeonato nacional, o juiz que atuara na partida entre Deportivo Independiente Medelín e América de Cali, Alvaro Ortega, foi mortos a tiros nas ruas de Medelín. Ganhando grande repercussão, o assassinato foi encarado pelas autoridades do país como a gota d`água, levando a paralisação da competição. Além das suspeitas que recaíam sobre os homens de Pablo Escobar, surgiam boatos que a máfia da bolsa de apostas podia estar envolvida. Enquanto o mundo desfiava a teia que envolvia o futebol e o narcotráfico. A FIFA preferia acreditar que nada estava acontecendo. (AGOSTINHO:2002, P.189-190)

[4] Sobre o grupo ver https://almanaquedosconflitos.wordpress.com/2015/08/09/los-pepes-os-perseguidos-por-pablo-escobar/  . Acessado em 01/04/1019.

[5] Para ver mais informações sobre a os Irmãos Gallón e sua relação com o crime ver https://pacifista.tv/notas/los-hermanos-gallon-y-el-crimen-que-derroto-a-la-seleccion-colombia/.


Autogol – Tragédias pessoais entre a ficção e a realidade

15/10/2018

O tema do presente post é uma obra literária inspirada em fatos reais que tem como cenário a eliminação da seleção colombiana de futebol do mundial realizado nos Estados Unidos e o assassinato em Medellín, do zagueiro Andrés Escobar Saldarriaga,  poucos dias após o retorno ao seu país.

Autogol é um romance do colombiano Ricardo Silva Romero, importante escritor, poeta e jornalista que atualmente possui colunas nos jornais El Tiempo colombiano e El País espanhol. Trata-se de uma narrativa densa onde futebol, política, cultura e sociedade na Colômbia são abordados a partir do drama pessoal de dois personagens, um fictício, o locutor esportivo Pepe Calderón Tovar que teria perdido a voz, todas as suas economias, seu emprego com a eliminação da seleção colombiana ainda na primeira fase e o zagueiro Escobar, capitão do Atlético de Medellín que ficou marcado por fazer um gol contra na segunda partida contra os Estados Unidos durante a Copa de 1994 e acabou sendo executado na saída de uma boate poucos dias depois de regressar para sua cidade natal.

Na primeira parte do romance ou o primeiro tempo como estabelece o autor, a narrativa é feita com diversas referências futebolísticas a partir da experiência profissional e da memória esportiva do personagem central, o narrador “El Gordo” Pepe que além de ser uma figura carismática era um apaixonado por futebol com grande conhecimento memorialístico e referência na locução esportiva do país.

Pepe estava acompanhando a seleção colombiana que tinha feito uma ótima campanha nas eliminatórias, tendo inclusive goleado a seleção argentina em Buenos Aires por 5×0, e descreve a passagem de um clima de euforia e festa para tristeza e indignação entre jornalistas, jogadores, dirigentes esportivos, apostadores, traficantes, torcedores que estavam nas partidas, hotéis, centros de imprensa e treinamento junto com a equipe dirgida por Francisco Maturana. Uma equipe cheia de estrelas como Carlos Valderrama, Faustino Asprilla, Fredy Rincón que teria chegado ao torneio como uma das favoritas, mas acabou decepcionando seus compatriotas.

O autor consegue contrapor muito bem a paixão pelo futebol com as críticas ao que seria o lado sujo do futebol: apostas, juízes comprados, vaidade entre os jogadores, exploração de atletas por empresários são alguns temas que aparecem bastante ao longo do romance como realidades veladas a partir do discurso de Pepe. Observem o trecho a seguir:

“ Colombia no era un equipo a esas alturas de la vida. Todo estaba en contra de nosotros como en una tragedia hecha por griegos. Se movían, que se supieran quatro mil milliones de pesos em apuestas. Y el equipo había entregado línea por línea, desde la notícia de las amenazas de muerte. Pero y si de pruento en un descuido del destino, el Pibe Valderrama le metía uno de esos pases a Freddy Rincón? Y si como había sucedido tantas veces, los jugadores habían superado la resaca de la noche pasada justo a tiempo de jugar la mejor partida de sus vidas?

Así es el fútbol. Yo no me lo inventé. Se puede conocer todo lo que pasa en los camerinos, que tal marcador de punta no sabe leer, ni escribir, que el puntero derecho le pelaba las naranjas a la hijita de Pablo Escoobar, que el técnico metió el volante peruano porque es el dueño de la mitad de su pase, que la nariz del goleador naufragaba en cocaína el sábado anterior al partida, bla, bla, bla, pero a la hora del partido como a la hora de uma obra de teatro no se anda pensando que eses tipos solo son actores que pagan cuentas en las tras escena, la realidad nos deja en paz, creemos ciegamente como en el cine, que lo que vemos es lo que está pasando”( ROMERO,pg 103)

Pepe apesar da inquestionável paixão pelo futebol simbolizada por coleções de autógrafos de jogadores, imortalizada na lembrança da escalação e dos resultados de diversas seleções da História, com uma vida inteira dedicada ao jornalismo esportivo no rádio e na televisão sofre uma decepção enorme com a eliminação precoce da seleção colombiana envolta em diversos boatos de ameaças dos cartéis de drogas a alguns jogadores, interesses de casas de apostas, brigas entre atletas e a culminância psicológica seria justamente o gol contra de um atleta que a princípio teria um comportamento como cidadão exemplar, Andrés Escobar.

“El Gordo” está revoltado com sua situação. Além de ser obeso e ter problemas de saúde, tinha sido abandonado pela esposa dois anos antes, é demitido da emissora GDL, acusado de assédio a uma camareira no hotel dos Estados Unidos, e está na miséria pois apostou suas economias na passagem da seleção colombiana para a segunda fase. Seu ódio acaba sendo canalizado para o gol contra. Sua fúria é muda mas serve de combustível para planejar um assassinato.

O segundo tempo do romance é passado na Colômbia. Enquanto na primeira parte o futebol era o eixo central do enredo, a narrativa neste ponto passa a focar em questões sociopolíticas e características culturais do país.

Pepe retorna para Bogotá onde encontra com os filhos antes de pegar um carro e sem avisar ninguém viaja para Medellín para executar seu plano. No retorno para o país junto com a delegação tinha conseguido marcar um encontro com Andrés Escobar em um bar em Medellín. A própria descrição da viagem de Bogotá para a capital da Antioquia e as memórias de Pepe que são narradas muitas vezes com diversos flashbacks são muito interessantes para compreendermos um pouco mais sobre esse país fascinante que tive a oportunidade de visitar três vezes.

Desde a influência dos cartéis de drogas tanto no futebol, quanto na política e na sociedade com a referência direta à corrupção dos políticos e a eleição do presidente Ernesto Samper em 1994 que teria recebido dinheiro do Cartel de Cali para sua campanha até a descrição das paisagens dessa importante região do país, de hábitos culinários e de vestimenta a segunda parte é um grande mergulho na História contemporânea colombiana a partir de dois dramas pessoais impostos pelo futebol o de Pepe e o de Escobar.

O encontro fictício se dá no dia 02 de julho de 1994 em que Andrés Escobar realmente foi assassinado em uma discoteca na periferia de Medellín por Humberto Muñoz  Castro que estava com um grupo de amigos e era guarda-costas e motorista de um cartel de drogas. Até hoje existem diversas teorias sobre a execução do zagueiro que já estava vendido para o Milan da Itália. A principal delas é de que sua morte teria sido encomendada por apostadores que perderam muito dinheiro com a eliminação da seleção colombiana assim como o personagem Pepe Calderón Tovar. Uma briga com torcedores bêbados também é uma hipótese apresentando, entretanto de qualquer forma a trágica morte de Escobar está associada a uma falha em uma partida de futebol, a um simples gol contra, a uma decisão errada em um milésimo de segundo.

Nesse sentido, o romance Autogol para mim é brilhante por se utilizar de uma tragédia real que abalou o futebol mundial para criar uma ótima ficção com um drama pessoal de um personagem apaixonado por futebol que assim como o zagueiro sofre  consequências trágicas na sua vida em função da paixão por esse esporte. E ainda tem uma empolgante prorrogação no relato dramático de “El Gordo Dom Pepe”.

ROMERO, Silva Ricardo. AUTOGOL. Madrid: La Navaja Suiza Editores, 2018.

PS: O livro foi lançado primeiro em 2009 pela Editora AlfaguaraFOTO AUTOGOL Continue lendo »