Periódicos militares em defesa do esporte: os casos da “Revista Marítima Brasileira” e “Revista Militar” no início do século XX

19/10/2020

por Karina Cancella

A prática esportiva nas Forças Armadas brasileiras (FA) foi intensificada na virada do século XIX para o XX sob o entendimento de que seria uma atividade favorável ao desenvolvimento físico do pessoal militar. Desde meados do século XIX, atividades físicas haviam sido introduzidas no cotidiano das FA por meio de medidas normativas que incluíram essas práticas no currículo das escolas de formação militar tanto no Exército Brasileiro (EB) como na Marinha do Brasil (MB). Atividades como aulas de tiro, ginástica, equitação militar e “hipiátrica”, natação e esgrima passaram a fazer parte do currículo dessas instituições de ensino.[1] Percebe-se a aproximação dos militares não somente das atividades ginásticas mas também de práticas que possibilitassem o desenvolvimento de habilidades fundamentais para o exercício militar no período, como tiro, natação, esgrima e equitação. Essas práticas, posteriormente, passariam a ser também realizadas em caráter esportivo.

A defesa pela ampliação dessas atividades para todos os militares era reforçada pelas observações das atenções que Forças Armadas estrangeiras dedicavam aos processos de preparação do corpo dos combatentes, considerando os exercícios físicos como importantes instrumentos para a manutenção da forma e da disciplina das tropas. (SILVA; MELO, 2011)

Essas preocupações com o preparo técnico e físico dos militares brasileiros ganharam maior projeção com o advento da República e seus projetos de modernização para as Forças Armadas. Esses projetos envolviam renovações materiais e também ações ligadas à formação dos militares brasileiros. Os problemas estruturais das instituições eram constantemente destacados em relatórios dos Ministérios da Guerra e da Marinha submetidos ao governo federal naquele período enfatizando as dificuldades de materiais e as defasagens na preparação de soldados e marinheiros. (CANCELLA, 2012)

O relatório do Ministério da Marinha do ano de 1892 defendia, por exemplo, que a má organização das escolas de aprendizes e a falta de navios para as instruções práticas dificultava aos jovens a aprendizagem da “arte do marinheiro e [de] adquirirem as qualidades physicas e moraes indispensáveis ao homem do mar”.[2] Como solução para o problema, defendia-se a reforma das escolas e estabelecimento de viagens de instrução.

Para divulgar essas novas formas de treinamento e os projetos de modernização em pauta naquele momento, Exército e Marinha utilizaram seus principais veículos de comunicação institucional: os periódicos Revista Militar (RM) e Revista Marítima Brasileira (RMB).[3]

O Exército também defendia a necessidade de viagens para a melhor preparação de seus militares. Em edição da Revista Militar do ano de 1900, foram publicadas informações sobre a primeira viagem de instrução do Estado-Maior do Exército em serviço de campanha. O artigo “Uma viagem do Estado-Maior no Chile” apontava como necessidades do EB naquele momento:

1o.) Habituar officiais ao serviço de guerra, collocando-os em situações idênticas as que se apresentam em campanha e fazendo-os applicar sobre o terreno os methodos e soluções dos problemas tácticos, que aprenderam teoricamente; […]

3o.) Nestas expedições o estado-maior experimenta a robustez physica e o preparo intellectual dos officiaes. [4]

Acompanhando as preocupações com os conhecimentos táticos e técnicos da guerra, destacava-se também a busca por métodos para o aprimoramento físico dos militares. As observações sobre como os exércitos estrangeiros realizavam seus processos de preparação e organização eram temas recorrentes nas edições da Revista Militar. Por meio dos estudos da estrutura dessas instituições, projetava-se a renovação das FA brasileiras. Como exemplo, em artigo publicação na Revista Militar em 1901, o Major Engenheiro Dias de Oliveira tratou sobre as ações do Exército Alemão, destacando as principais vantagens deste exército:

o official d’estado-maior não deve somente desenvolver o espírito, completar a instrucção, já pelo útil jogo da guerra, a resolução de themas tácticos, conferencias, já pelos trabalhos d’ inverno ou de viagens d’ estado-maior. É-lhe igualmente necessário desenvolver as qualidades physicas, tonificar e robustecer o organismo, para supportar com vantagem a inclemência da vida em campanha, como convem a um homem de guerra. Por isso o official alemão, alem das grandes manobras do outomno, dedica-se com paixão aos diversos gêneros de exercícios physicos, como a gymnastica, o cyclismo, a equitação, as marchas de guerra e as demais úteis e atraentes diversões creadas pelo sport moderno.[5]

A defesa da utilização de práticas esportivas como instrumentos de preparação para a atividade militar também ganhou destaque na MB. Militares da Marinha do Brasil participaram ativamente do processo de organização de entidades esportivas de remo na sociedade carioca. Os interesses em destacar os benefícios desta prática, no entanto, não se restringiam aos argumentos em torno da saúde e da modernidade, característicos da época. O entusiasmo dos militares em divulgar as atividades pode ser ilustrado com as ideias apresentadas pelo Capitão-Tenente Santos Porto no artigo “O sport náutico no Brazil”, publicado na RMB em 1901. O artigo traz elementos que nos ajudam a compreender os interesses da Marinha em defender maior desenvolvimento do remo, associando esta prática aos seus ideais de “cidadão” para a República brasileira naquele momento inicial do século XX:

[…] Em boa hora, felizmente, sentiu a nossa mocidade que no sport náutico encontraria as melhores e mais salutares distracções e, impulsionada por admirável enthusiasmo começou a fundar ao longo do littoral novos clubs, centros de animação e actividade. […]

Diante dos crescentes dispêndios com a manutenção das forças de mar e terra permanentes, cujo objetivo é garantir a paz, espíritos bem intencionados teem inscripto na sua bandeira, que se deve educar o povo de modo a transformal-o em legiões de soldados na hora, em que possa perigar a integridade da nação.

A situação do Brazil não é, porem, a dos estados europeos. Lutas futuras, si infelizmente tivermos, terão que se liquidar sobre o mar ou ao longo de nossas costas, e para que os futuros voluntários, a nação em armas prompta a defender os seus lares, o possam fazer com segurança e vantagem, é preciso que o povo se eduque sob este ponto de vista, no amor das cousas do mar, seguros os nossos estadistas de que, todo o auxilio prestado é um elemento de trabalho da defesa nacional.

Não basta que <<cada cidadão seja um soldado>> é preciso que <<cada cidadão seja um marinheiro, na mais lata accepção d’essa palavra>>.[6]

Os militares da MB buscavam evidenciar suas perspectivas sobre a necessidade de maior preparação do cidadão, que deveria ser acima de tudo um soldado-cidadão ou, como defendeu o autor, um cidadão marinheiro. A necessidade de formação de indivíduos para a defesa da nação que estivessem habituados ao mar foi o principal argumento utilizado ao longo do artigo para destacar os benefícios que a prática do remo poderia trazer para o país como um todo. Esse argumento fica evidente na afirmação sobre as diferenças entre o Brasil e os países europeus no que se refere à possível ocorrência de conflitos. Ao evidenciar estes aspectos dos esportes náuticos, o artigo não somente buscou aproximar seus militares dessas atividades mas também a juventude em geral. Os argumentos foram elaborados com objetivo de enfatizar a necessidade do “amor das cousas do mar” na tentativa de atrair a juventude para as atividades militares, já que as FA enfrentavam sérios problemas quanto ao número de integrantes, estando seus efetivos sempre abaixo das necessidades expressas nos planejamentos anuais (ALMEIDA, 2010; NASCIMENTO, 2010). Atrair os jovens para suas fileiras era imperativo e inúmeras estratégias foram utilizadas, inclusive por meio da prática esportiva.

A RMB voltou a publicar um artigo sobre a necessidade da juventude brasileira se aproximar das práticas náuticas em 1902. A matéria sem autoria “Campeonato de 1902 – Clube de Natação e Regatas” trazia inúmeros argumentos sobre os grandes benefícios da prática do remo e a satisfação para os oficiais da Marinha ao perceber a ampliação da atividade entre os civis, destacando os clubes de remo como um “celeiro” de homens fortes, preparados para a defesa nacional e habituados ao mar, atendendo aos interesses militares navais. Esses clubes seriam, portanto, “viveiro abundante de moços fortes, habituados ao mar, e aos trabalhos, no dia em que a Pátria ameaçada chame a postos seus filhos para defenderem-na”.[7] O esporte, nessa interpretação, seria um importante instrumento preparatório para as funções militares em batalhas marítimas.

Revista Marítima Brazileira. Campeonato de 1902. 2o. Semestre de 1902, p. 383.

Revista Marítima Brazileira. Campeonato de 1902. 2o. Semestre de 1902, p. 387.

Os projetos de modernização para o EB espelhavam-se nos modelos de organização das Forças estrangeiras, como já destacado. Na edição de 1906 da Revista Militar, o Capitão do Estado-Maior de Artilharia Liberato Bittencourt destacou no artigo “Princípios geraes de organização dos exércitos” os 12 temas que deveriam ser levados em conta nesse processo de modernização. Entre os princípios elencados pelo autor, destaco o de número 10:

 […] Principio de educação physica, intellectual e moral: organisar os exércitos de modo a serem elles grandes escolas de educação physica, intellectual e moral da mocidade […].[8]

O destaque para a função de ser “grandes escolas de educação physica, intellectual e moral da mocidade”, atribuídos ao EB, enfatiza os ideais sobre a necessidade de uma sociedade envolvida com as atividades militares. Essa perspectiva do Capitão acompanhava, em grande parte, as discussões sobre a necessidade de um novo formato para o EB, mais operativo e menos teórico, seguindo os modelos adotados por potências militares como França, Alemanha e Estados Unidos. (CANCELLA, 2012)

A prática esportiva foi defendida entre os militares inicialmente como forma de treinamento do corpo para melhoria do desempenho em suas atividades funcionais. No entanto, ao longo do final do século XIX e início do século XX, essas práticas passaram a ser também indicadas para os jovens civis em publicações de revistas institucionais das FA com objetivo de aproximar a juventude de suas atividades e preparar, por meio do esporte, grupos de “soldados-cidadãos” ou “cidadãos-marinheiros”.

Referências:

ALMEIDA, S. A modernização do material e do pessoal da Marinha nas vésperas da revolta dos marujos de 1910: modelos e contradições. Estudos Históricos, v. 23, n. 45, p. 147-169, jan. – jun. 2010.

CANCELLA, K. A defesa da prática esportiva como elemento de preparação dos militares por meio das publicações institucionais “Revista Marítima Brasileira” e “Revista Militar”. In: Encontro Regional de História da ANPUH-Rio, 2012, São Gonçalo. Anais do XV Encontro Regional de História da ANPUH-Rio. São Gonçalo: ANPUH-Rio, 2012.

NASCIMENTO, F. Militarização e Nação: o serviço militar obrigatório na Argentina e no Brasil em uma perspectiva comparada (1900-1916). Revista Brasileira de História Militar, ano I, n. 1, p. 1-18, abr. 2010.

SILVA, C.; MELO, V. Fabricando o soldado, forjando o cidadão: o doutor Eduardo Augusto Pereira de Abreu, a Guerra do Paraguai e a educação física no Brasil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 18, n. 2, p. 337-353, jun. 2011.


[1] BRASIL. Decreto n° 2.116, de 01 de março de 1858. Aprova o Regulamento reformando os da Escola de aplicação do Exército e do curso de infantaria e cavalaria da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, e os estatutos da Escola Militar da Corte. Coleção de Leis do Império de 1858; BRASIL. Decreto n° 2.163, de 01 de maio de 1858. Reorganiza a Academia de Marinha em virtude da autorização concedida no parágrafo 3º. Do artigo 5º. da Lei n. 862 de 30 de julho de 1856. Coleção de Leis do Império de 1858.

[2] BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha, 1892, p. 40.

[3] Essas publicações eram utilizadas como instrumento de divulgação de informações e propostas sobre as mais diversas temáticas de interesse das instituições militares, inclusive assuntos esportivos. A RMB é uma publicação oficial da MB, editada desde 1851 com periodicidade trimestral com artigos de autores nacionais e estrangeiros sobre assuntos históricos, técnicos e estratégicos, sendo publicada até os dias atuais. A Revista Militar é a sucessora do primeiro periódico científico oficial do EB, criado em 1882 com o nome de Revista do Exército Brasileiro e circulou entre 1882-1888, sendo interrompida a publicação e reiniciada em 1899 com o título de Revista Militar entre 1899-1908. Em 1911, a publicação foi retomada com o nome de Boletim Mensal do Estado Maior do Exército, circulando até 1923. (CANCELLA, 2012)

[4] Revista Militar, Uma viagem do Estado-Maior no Chile, ano II, 1900, p. 48.

[5] OLIVEIRA, Dias de. O Exercito Alemão. Revista Militar, ano III, 1901, p. 188-189.

[6] PORTO, Santos. O sport náutico no Brazil. Revista Marítima Brazileira. 2º. Semestre de 1901, p. 11.

[7] Revista Marítima Brazileira. Campeonato de 1902. 2o. Semestre de 1902, p. 381-388.

[8] BITTENCOURT, Liberato. Princípios geraes de organização dos exércitos. Revista Militar, ano VIII, p. 341-348.


Atletas em combate: experiências estadunidenses na Primeira Grande Guerra.

18/05/2020

por Karina Cancella

Nos últimos anos, temos observado um movimento de incorporação de atletas nas Forças Armadas (FA) de todo o mundo tanto para a prestação do serviço militar como para participação em competições militares e civis representando tais instituições. No entanto, esse processo de entrada de atletas nas FA não é um fenômeno novo. Ao longo da história, por diferentes razões e demandas dos contextos específicos, atletas passaram a fazer parte das fileiras militares. Nesta postagem, serão apresentados alguns exemplos de atletas que ingressaram nas Forças Armadas dos Estados Unidos da América (EUA) durante a preparação para a participação na Primeira Grande Guerra e que receberam destaque na imprensa da época.

Como já tratado em algumas outras postagens deste blog, o esporte foi elemento importante no processo de preparação dos militares estadunidenses para a atuação na Primeira Guerra. Os campos de treinamento, tanto do Exército quanto da Marinha, utilizaram as práticas esportivas como instrumento de treinamento funcional e também para ações de recreação e celebração (CANCELLA, 2017). O Camp Lewis, primeiro quartel para formação de recrutas estabelecido pelo Exército e fundado em 1917 em Tacoma (Washington),[1] realizou inúmeros eventos e atividades esportivas com os militares ali aquartelados. (DPTMS, 2013).

Diversas modalidades passaram a fazer parte do cotidiano das FA estadunidenses durante a mobilização militar, principalmente por conta do ingresso de atletas de importantes times como reservistas. Essa grande mobilização e o estabelecimento dos campos de treinamento influenciaram a dinâmica da sociedade estadunidense. Foi realizada uma intensa propaganda de convocação para ingresso nas FA e muitos atletas atenderam ao apelo. Esse aspecto foi divulgado de forma ampla pelos jornais e era comumente enfatizada de forma elogiosa a opção de atletas buscarem o alistamento na Marinha e no Exército (CANCELLA, 2017).

O jornal “The Tacoma Times” publicou em 29 de novembro de 1917 uma fotografia de um boxeador acompanhado da seguinte legenda “Frankie Sullivan, inteligente boxeador português-mexicano, se reunirá a Bert Forbes, novo soldado do acampamento Lewis, em um dos principais eventos do Eagles Smoker de hoje à noite”.[2]

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The Tacoma times, 29 de novembro de 1917, p. 6.

O mesmo jornal ainda deu destaque nessa edição aos eventos esportivos que seriam realizados em comemoração ao Dia de Ação de Graças:

Eventos esportivos do dia de Ação de Graças terão seu grande clímax esta noite, quando a loja Eagles encena um card com estrelas de boxe no salão Tahoma, na 13a com avenida Fawcett.

Vendas antecipadas de ingressos indicam que o grande salão estará cheio até o teto. Porque esta é a primeira vez desde que Camp Lewis foi estabelecido que um espetáculo de boxe é encenado em Tacoma num dia em que os soldados estão de folga […] soldados têm visto muitos boxeadores amadores em seus quartéis, eles estão ansiosos para ver alguns dos bons meninos da costa em um show de boxe real […].[3]

 

A presença de atletas nos campos de treinamento na condição de reservistas foi bastante enfatizada pela imprensa ao longo dos anos de 1917 e 1918. Nomes importantes do esporte estadunidense, tanto atletas como técnicos, passaram a integrar os quadros das FA naquele momento e esse fato foi utilizado para fazer campanhas de convocação por meio de notícias nos jornais:

Muitos atletas famosos nas escolas de treinamento

Annapolis. Maryland. 30 de março. Oficiais do Corpo de Reserva da Marinha passam agora por um curso de treinamento intensivo na Academia Naval que irá prepará-los para o serviço ativo no mar ou ao longo das linhas. As classes, que serão aumentadas para mais de 1.000 dentro das próximas semanas, começaram o trabalho ativo nos principais ramos de beisebol, remo e atletismo.

Aliás, uma série de reservistas são ex-estrelas do universo atlético das diferentes universidades e faculdades. Os planos são colocar os jovens oficiais para competir com os aspirantes em todos estes esportes.[4]

 

Até mesmo atletas estadunidenses que estavam fora do país solicitaram autorização para ingresso nas FA, como o caso de Jack Johnson, primeiro negro campeão mundial dos pesos pesados no boxe, que era considerado um fugitivo da justiça nos Estados Unidos e estava em Madrid. Johnson foi condenado em 1913 por tráfico interestadual de uma mulher branca por estar apenas viajando com sua esposa.[5] O boxeador escreveu carta ao capitão E. H. La Guardia, congressista de Nova York, dizendo que estava disposto a lutar e morrer pela América e “[…] pediu ao capitão La Guardia para fazer o que puder para que ele possa se alistar no exército dos EUA, dizendo que nenhum trabalho será muito difícil para ele. A carta foi encaminhada para o ajudante geral […]”.[6] O Jornal “The Kansas City sun” publicou na capa em 29 de junho de 1918 a seguinte notícia: “Jack Johnson é proibido de entrar no exército”. O texto da notícia explica a decisão:

O deputado La Guardia falou sobre o pugilista de cor e ex-campeão do mundo para o gabinete do ajudante geral aqui. O Ajudante Geral é um sulista, agradável às velhas ideias preconceituosas do Sul com respeito à raça e para o qual o casamento ou a associação de um homem de cor com uma mulher branca é um pecado imperdoável e o mais negro dos crimes. Afirma-se que, quando as autoridades daqui ouviram falar dele, prontamente declararam que uma solicitação de Jack para entrar no exército não seria aprovada, por isso o desejo patriótico de Jack para servir ao seu país não deve se realizar. Se Jack fizer o caminho para a França e se alistar, desconhecido, sob um nome falso, como milhares fizeram na guerra civil e que, sem dúvida, centenas fizeram nesta guerra, e ganhar a Cruz de Guerra, como fizeram Johnson e Roberts, por algum arrojado feito heroico, seria possível que suas “indiscrições da juventude” fossem esquecidas e os Estados Unidos poderiam estender o exílio a uma recepção de volta para casa.[7]

A questão racial não é um ponto de discussão nesta postagem, mas é importante destacar a persistência de decisões e posicionamentos políticos estadunidenses definidos com base na raça (ou nas relações inter-raciais) naquele momento.

O ingresso de outro boxeador no quadro das FA também recebeu destaque da imprensa. Johnny Kilbane, campeão mundial dos pesos pena, ingressou como tenente no Exército em outubro de 1917 e foi designado para o Camp Sherman como instrutor de boxe e baioneta. (JK, 2013). Em abril de 1918, foi publicada notícia sobre as pretensões de Kilbane de estabelecer um sistema de treinamento padronizado para todos os campos do Exército. O atleta buscava com as autoridades militares a autorização para a definição de assistentes em todos os campos para aplicarem seu sistema de treinamento. Kilbane defendia que o boxe era “um agente vital na disciplina de um grande exército”.[8] Na notícia, ainda foi dedicado espaço para enaltecer a virilidade do boxeador e seu patriotismo ao abrir mão de uma vida cercada pelo luxo para servir à nação, como é possível verificar nos trechos a seguir:

Cento e vinte e seis libras de perfeita masculinidade, cujo corte de roupa […] da guarnição esconde o poder inquieto que comanda respeito e admiração de todos os oficiais e do pessoal que usa o cáqui militar no Camp Sherman, Chillicothe.

[…]

Aqueles que passaram a ver o seu sorriso simpático e sua verdadeira sagacidade reconheceram Johnny Kilbane, campeão mundial dos pesos pena. Mas todo o glamour que se passa com tal distinção não desempenha nenhum papel na vida diária presente do campeão. Sacrificando a ambição de uma vida com promessas de ainda maiores riquezas, ele está entre os soldados de Camp Sherman como John Patrick Kilbane, patriota. Quando a guerra estourou Kilbane era um campeão de boxe cujo toque parecia rivalizar com o de Midas e cuja vida limpa, bons costumes e personalidade vencedora sempre mantiveram o bom nome do esporte. Ele era dotado de inteligência […] e instintos de luta de um verdadeiro filho da Irlanda que fizeram dele um favorito nacional. Com os Estados Unidos na guerra, tornou-se determinação de todos os americanos ganhar o mesmo impulso patriótico que moveu John Kilbane a abandonar seu modo de vida. E seja o primeiro entre os campeões de boxe para voluntariar seu serviço em direção à vitória.[9]

 

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The evening world, 22 de abril de 1918, p. 11.

O destaque na imprensa, enaltecendo as supostas características do atleta que poderiam também contribuir para a vida militar, foi acompanhado de duras críticas de Kilbane aos seus colegas de esporte:

[Fala direta de Kilbane na reportagem] “A ideia de alguns instrutores de boxe em participar de lutas enquanto deveriam estar dando o seu serviço ao país é muito além de mim”, disse. “Eu tenho tudo e o que posso fazer é dar todo o meu tempo para os soldados. Eu mal tenho todo o tempo que o trabalho exige e quando o meu dia de trabalho está feito, acredite em mim, estou pronto para ir para a cama”.

Johnny Kilbane é todo homem. Ele é um cidadão do qual a grande cidade de Cleveland está orgulhosa. Ele se faz por si mesmo, é limpo e o que o mundo do desporto classifica como cavalheiresco agressivo. […].[10]

Essa concepção sobre a vida do esportista como pura, limpa, viril, marcada pelo esforço e sacrifício individual requer maiores considerações e análises futuras, que serão compartilhadas em outro momento.

O ingresso de atletas na vida militar foi um movimento presente em diferentes regiões do mundo durante períodos de grandes conflitos armados e também em tempos de paz. Nesta postagem, foram apresentadas brevemente algumas curiosidades sobre a entrada de atletas nas Forças Armadas dos EUA durante a Primeira Guerra. Naquele mesmo período, nações como França, Inglaterra e Irlanda passaram também por movimentos semelhantes. Atletas marcaram suas participações no cotidiano militar tanto nos campos esportivos como nos campos de batalha.

Referências:

CANCELLA, Karina. Para reforço do moral e desenvolvimento físico do pessoal: a prática do esporte nas Forças Armadas estadunidenses e brasileiras em perspectiva comparada (1914-1922). Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em História Comparada) – Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

DPTMS – Directorate of Plans, Training, Mobilization and Security. Camp Lewis, 1917-1919. Disponível em: <http://www.lewis-mcchord.army.mil/dptms/museum/camp.htm&gt;. Acesso em: 05 dez. 2013.

ESTADAO. Estados Unidos perdoam Jack Johnson 105 anos depois. Publicado em 24 mai. 2018. Disponível em: https://esportes.estadao.com.br/blogs/blog-do-baldini/estados-unidos-perdoam-jack-johnson-105-anos-depois/. Acesso em: 16 mai. 2020.

JK – Johnny Kilbane. Biography. Disponível em: <http://johnnykilbane.com/page2.html&gt;. Acesso em: 10 dez. 2013.

UOL. Sem perdão de Obama, família de boxeador condenado recorre ao Youtube. Publicado em 03 de abril de 2013. Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/boxe/ultimas-noticias/2013/04/03/sem-perdao-de-obama-familia-de-boxeador-condenado-recorre-ao-youtube.htm&gt;. Acesso em: 03 dez. 2013.

[1] Segundo o site do Directorate of Plans, Training, Mobilization and Security, o Camp Lewis foi o maior posto militar nos EUA na época. (DPTMS, 2013).

[2] The Tacoma times, 29 de novembro de 1917, p. 6.

[3] The Tacoma times, 29 de novembro de 1917, p. 6.

[4] The Washington herald, 31 de março de 1918, p. 12.

[5] “[…] a família do boxeador recorreu a uma campanha no Youtube para mobilizar as autoridades e restaurar o orgulho. No vídeo divulgado pela internet, a sobrinha-neta de Johnson, Linda Haywood, aparece discursando para a comunidade de Galveston, no Texas, cidade natal do pugilista. ‘Por muitos anos, minha família se envergonhou com o fato de meu tio ter ido para a prisão por essas razões’, argumentou, lembrando que o pugilista foi condenado por um júri composto apenas por brancos. A família de Johnson também tentou convencer o ex-presidente George W. Bush a conceder o perdão póstumo, sem sucesso. Diante do primeiro presidente afro-americano da história, eles acharam que a missão seria cumprida. No entanto, nem a campanha feita no Senado pelo republicano John McCain sensibilizou Obama a atendê-los. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos, órgão responsável por esse tipo de solicitação, alegou que há prioridade aos pedidos de clemência a pessoas vivas e que possam usufruir do perdão, já que o processo é demorado”. (UOL, 2013).

Somente em 2018, 105 anos depois, o presidente dos EUA, Donald Trump, outorgou o perdão presidencial póstumo a Jack Johnson. (ESTADÃO, 2018).

[6] New-York tribune, 13 de junho de 1918, p. 12.

[7] The Kansas City sun, 29 de junho de 1918, p. 1.

[8] COPELAND, B. Kilbane Has Plan to Standardize System of Boxing in Army Camps. The evening world, 22 de abril de 1918, p. 11.

[9] COPELAND, B. Kilbane Has Plan to Standardize System of Boxing in Army Camps. The evening world, 22 de abril de 1918, p. 11.

[10] COPELAND, B. Kilbane Has Plan to Standardize System of Boxing in Army Camps. The evening world, 22 de abril de 1918, p. 11.

 


Esporte para pessoa com deficiência física: relações entre guerra, reabilitação e competição

16/12/2019

Por Karina Cancella

     Segundo o pesquisador britânico Ian Brittain (2012), antes da Segunda Guerra Mundial, a maior parte das pessoas com lesões medulares morriam em um período de três anos após a lesão em decorrência de quadros de sepse, falhas renais e também depressão. Esta última por conta dos estigmas sociais envolvendo as pessoas com deficiência. O surgimento de novos medicamentos e maiores investimentos no tratamento dos lesionados medulares após a guerra fizeram com que as taxas de sobrevivência aumentassem consideravelmente.

         Um dos trabalhos compreendido como de grande contribuição para esse movimento foi a atuação do médico alemão Ludwig Guttmann. Proveniente de família judia, o médico neurologista fugiu da Alemanha nazista e se estabeleceu na Inglaterra, em 1939, e passou a trabalhar na Universidade de Oxford. Quatro anos depois de sua chegada, o governo britânico nomeou Guttmann diretor da “Unidade Nacional de Lesões na Coluna Vertebral”, ligado ao “Hospital do Ministério das Pensões”, situado em Stoke Mandeville, Aylesbury. Sua principal atribuição seria tratar o grande número de soldados e civis que sofreram lesões na coluna vertebral durante a guerra. O médico aceitou o cargo sob a condição de ter liberdade para aplicar a abordagem de tratamento que considerasse mais interessante para aqueles pacientes. (BRITTAIN, 2012)

        É neste cenário que o esporte surgiu como referência para o trabalho de reabilitação de Ludwig Guttmann. O médico iniciou um programa de tratamento para lesionados medulares a partir de atividades físicas e esportivas. Esse programa tinha como objetivo tratar as limitações que os pacientes apresentavam em decorrência das lesões e também atuar em questões relacionadas à autoestima e ao olhar da sociedade para as pessoas com deficiência. (BRITTAIN, 2012).

        Diversas modalidades esportivas passaram a fazer parte do programa de tratamento do Hospital de Stoke Mandeville: dardos, sinuca, ginástica, “punch ball”, boliche, polo em cadeira de rodas (que mais tarde foi substituído pelo basquete em cadeira de rodas) e tiro com arco. (BRITTAIN, 2012).

            Em 29 de julho de 1948, mesmo dia da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, foi organizada a primeira edição do evento que ficou conhecido como Jogos de Stoke Mandeville. Esse evento foi uma demonstração de tiro com arco com a participação de duas equipes esportivas representando o Ministério de Pensões: uma pelo “Hospital de Stoke Mandeville“ e outra pela “Casa Star and Garter para veteranos de guerra feridos em Richmond”. (BRITTAIN, 2012).

           A competição ocorreu com a participação de 16 arqueiros cadeirantes e esse evento é considerado pelo Comitê Paralímpico Internacional como um dos “berços” do movimento paralímpico.[1] O vídeo a seguir está disponível na página do Comitê Paralímpico Internacional no item “Histórico” e apresenta imagens originais dos Jogos de Stoke Mandeville, do hospital e depoimentos de atletas sobre todo o processo de tratamento e inserção no esporte competitivo para pessoas com deficiência.

 

            O trabalho iniciado ainda na década de 1940 continua sendo desenvolvido atualmente no “Stoke Mandeville Stadium”, um centro esportivo e complexo de lazer com todas as instalações acessíveis que recebe o programa “WheelPower – British Wheelchair Sport” e se autodeclara a “casa do esporte em cadeira de rodas”. O complexo recebe anualmente equipes britânicas e de outras partes do mundo para treinamentos e competições esportivas em diferentes modalidades para pessoas com deficiência.[2]

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Stoke Mandeville Stadium (Arquivo pessoal, 2014)

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Competição de tiro com arco integrante do programa do 10º Campeonato Mundial Junior da IWAS – International Wheelchair and Amputee Sports Federation (Arquivo Pessoal, 2014)

            Na esteira do crescimento do movimento paralímpico ao longo dos séculos XX e XXI, começaram também a surgir alguns investimentos para o desenvolvimento de programas esportivos para pessoas com deficiência dentro das Forças Armadas de diversos países, como o “Military Adaptive Sports Program” (MASP)[3], desenvolvido pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos (EUA), e também eventos específicos como o “Warrior Games”[4] e o “Invictus Games”[5], organizados respectivamente por EUA e Inglaterra com foco em competições esportivas de alto rendimento para lesionados em guerras.

            No Brasil, esse tipo de iniciativa é recente. Somente em 2015 foi criado um programa esportivo com foco no atendimento a militares com deficiência. O “Projeto para Valorização Pessoal e Integração Social através do Esporte”, lançado em maio de 2015, era coordenado em parceria pelo então Ministério do Esporte e pelo Ministério da Defesa e apresentava como objetivo “reunir militares reformados por terem sofrido algum tipo de acidente ou enfermidade que limitou suas condições físicas, mas que ainda estão aptos para praticar esportes” (FAB, 2015). Posteriormente, passou a se chamar “Projeto João do Pulo” e apresenta novo formato, estando “direcionado ao atendimento de pessoas com deficiência, priorizando as crianças a partir dos 6 (seis) anos de idade, jovens e adolescentes em estado de vulnerabilidade social” e passou a ter parceria de outros ministérios e entidades esportivas e da sociedade civil. (DEFESA, 2019).

            Os atletas com deficiência apenas recentemente passaram a ser contemplados no quadro oficial de modalidades da maior competição esportiva exclusiva para militares em todo mundo: os Jogos Mundiais Militares. Na 6ª edição do evento, realizada em 2015, em Mungyeong (Coreia do Sul), foram inseridas as provas de Tiro com Arco e Atletismo como modalidades teste. Quatro anos depois, na edição de Wuhan (China), as provas passaram a fazer parte do quadro como modalidades oficiais.[6] O Brasil esteve representado na competição deste ano por quatro atletas com deficiência e conquistou três medalhas.

            O aspecto que chama a atenção é o fato de o esporte já fazer parte do cotidiano dos militares com deficiência desde a década de 40 do século passado, mesmo que inicialmente tenha sido compreendido como possibilidade de tratamento para reabilitação física e reintegração social, e somente nas duas últimas décadas ter começado a ocupar espaço no cenário competitivo de alto rendimento dentro das Forças Armadas. Sabe-se que muitos atletas de alto rendimento do esporte paralímpico de nações com longa tradição de participação em guerras, como é o caso dos EUA, são oriundos das fileiras militares, uma vez que após a ocorrência de lesões e o processo de reabilitação física por meio do esporte, muitos se envolvem com a prática competitiva de alto rendimento. Os motivos que fizeram as Forças Armadas e o próprio Conselho Internacional do Esporte Militar terem voltado suas atenções para o esporte competitivo para a pessoa com deficiência somente há tão pouco tempo ainda exigem maiores investimentos de pesquisa para que possamos compreender com maior clareza essa mudança de posicionamento institucional.

[1] Vale destacar que o movimento de esportes para pessoas com deficiência já existia em algumas partes do mundo, como no caso dos clubes esportivos para surdos fundados na Alemanha ainda em fins do século XIX (IPC, 2019).

[2] Disponível em: https://www.stokemandevillestadium.co.uk/. Acesso em: 14 dez. 2019.

[3] Mais informações em: https://warriorcare.dodlive.mil/carecoordination/masp/.

[4] Mais informações em: https://dodwarriorgames.com/about/history/.

[5] Mais informações em: https://invictusgamesfoundation.org/foundation/story/.

[6] Mais informações em: https://www.milsport.one/.

 

Referências:

BRITTAIN, Ian. From Stoke Mandeville to Stratford: A History of the Summer Paralympic Games. Champaign, Illinois: Common Ground Publishing, 2012.

DEFESA – MINISTERIO DA DEFESA. Projeto João do Pulo. Disponível em: https://defesa.gov.br/programas-sociais/programa-forcas-no-esporte/59-programas-sociais/57666-projeto-joao-do-pulo. Acesso em: 14 dez. 2019.

FAB – FORÇA AEREA BRASILEIRA. Forças Armadas iniciam projeto de inclusão para militares reformados. Disponível em: http://www.fab.mil.br/noticias/mostra/22044/. Acesso em: 14 dez. 2019.

IPC – INTERNATIONAL PARALYMPIC COMMITTEE. History. Disponível em: https://www.paralympic.org/ipc/history. Acesso em: 14 dez. 2019.

 


Esporte na guerra: elemento para preservação da (o) moral das tropas

11/02/2019

por Karina Cancella

Durante momentos de mobilização para conflitos, uma das preocupações das lideranças das Forças Armadas (FA) é a manutenção do moral das tropas. Os longos períodos distantes da família e da terra natal e as próprias tensões impostas pelo conflito podem ser extremamente desgastantes para os militares. Essa questão é bastante presente em documentos oficiais das FA estadunidenses ao longo dos anos finais do século XIX e anos iniciais do século XX, por exemplo. Naquele momento, os comandos iniciaram um processo de planejamento de atividades que auxiliassem nos aspectos morais de suas tropas e o esporte ganhou espaço de destaque.

O termo moral, naquele contexto, poderia estar se referindo a dois aspectos distintos: “o moral”, no sentido de ânimo, disposição e “a moral”, como sinônimo de bons costumes. Nas documentações, foi possível perceber a mobilização do esporte como elemento reforçador do moral e da moral dos militares estadunidenses nos contextos de mobilização e atuação em guerras.

Wanda Wakefield, em sua obra “Playing to win: sports and the American Military 1898-1945”, afirma que o esporte foi defendido fortemente pelos comandantes das FA estadunidenses como oportunidade de distração saudável para os militares em campanha, sendo sempre enfatizada a necessidade de afastamento de práticas consideradas ilícitas pelos comandos, como ingestão de bebidas alcoólicas, envolvimento com prostituição e jogos de azar. (WAKEFIELD, 1997).

Utilizando também esse argumento “moralizante” para explicar a introdução do esporte de forma sistemática entre os militares estadunidenses, Joseph Mennell no artigo “The Service Football Program of World War I: Its Impact on the Popularity of the Game” trata especificamente da formação dos programas de esporte para tropas. Mennell afirma que as origens de um programa de competições esportivas como parte do treinamento dos militares estadunidenses se originou por uma situação que chamou de “escândalo sexual”, ocorrida em 1916. Naquele ano, parte do território estadunidense foi invadido por Pancho Villa e coube ao General John Pershing a proteção das terras e a captura de Villa. Para isso, foram enviados grupos de jovens da Guarda Nacional para concentração em Fort San Houston, no Texas, para atuar no policiamento de fronteira. O problema real se iniciou quando os jovens, por não terem atividades para ocupação de seus tempos livres, passaram a visitar as cidades no entorno dos acampamentos em busca de opções de divertimento. No entanto, encontraram de fato “doenças venéreas e álcool barato”. (MENNELL, 1989, p. 251).

Após as notícias sobre esses problemas chegarem a Washington, foram enviados representantes para realizar uma inspeção nos acampamentos e foi confirmado que os jovens militares estariam realmente se envolvendo em diversas formas de vício, hábitos mal vistos pelos comandos, por uma ausência de atividades recreativas controladas no interior dos acampamentos. Para iniciar a solução dos problemas, segundo os informes do relator, foram introduzidos equipamentos esportivos doados por uma Young Men’s Christian Association (YMCA) local. (MENNELL, 1989).

A entrada dos EUA na Primeira Guerra reforçou as preocupações com os momentos de tempo livre das tropas em serviço, uma vez que teriam grandes somas de homens jovens mobilizados para o conflito. Caso não fosse efetivada alguma providência no sentido de elaborar atividades de tempo livre dentro dos acampamentos, poderia ser repetido o escândalo de 1916, fator que causaria grandes prejuízos à imagem do então presidente Woodrow Wilson. (MENNELL, 1989, p. 251).

Após análises dos comandos, identificou-se que a melhor forma de prevenir os vícios dos jovens militares seria com a promoção de atividades recreativas organizadas e controladas. Foi então criada a “Commission on Training Camp Activities” no Exército para supervisionar atividades de lazer, com o esporte integrando seu quadro, sob a direção de Raymond Fosdick. A Marinha dos EUA, pouco depois, criou uma comissão nos mesmos moldes. Para a organização das atividades, foram nomeados diretores esportivos para cada um dos campos. Eles teriam atribuições de localizar treinadores para as modalidades que eles considerassem adequadas para seus militares. (MENNELL, 1989, p. 251).

Reafirmando esse ponto apresentado por Mennell, Wanda Wakefield (1997) lembra a importância da presença também de entidades civis, como a YMCA, no desenvolvimento de atividades nos campos.

Os aspectos da preservação da moralidade defendidos pelos militares foram ainda divulgados entre a sociedade estadunidense como forma de “tranquilizar” as mães que enviaram seus filhos para a guerra. O jornal “The Sun” de 1 de setembro de 1918 publicou uma matéria intitulada “Seu menino está totalmente seguro moralmente na Guerra”, em que apontava o empenho das FA em estabelecer condições para que os jovens tivessem suas concepções morais preservadas durante a atuação no conflito:

Seu menino está totalmente seguro moralmente na Guerra – A disciplina do Exército e o aumento do número de outras salvaguardas tornam sua vida melhor até do que quando está em casa

“Nenhuma mãe precisa ter medo secreto de seu filho ser moralmente contaminado na guerra de hoje. Não há lugar mais seguro para um menino do que o exército ou a marinha. Noventa e cinco por cento dos homens sairão da guerra maiores, melhores e mais limpos mental, moral, e fisicamente do que entraram, e dos 5 por cento, isso não, eu arrisco a dizer que 4 por cento levaram a deterioração da vida civil com eles para a guerra”.

O orador não era um pregador. Ele era um homem da medicina, e ele também era um diretor de esportes para a Divisão da YMCA no Exército, que tem desde o início da guerra vivido, comido, dormido, sonhado e trabalhado com os “meninos” da época em que foram registrados com roupas civis até que eles fossem para as trincheiras na linha de fogo. […].[1]

 

Novamente, é possível perceber no trecho a mobilização de argumentos sobre a importância da manutenção da moralidade no ambiente militar estadunidense. Nesse cenário, como já colocado, o esporte serviu como um instrumento de grande utilidade para os comandos das FA.

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Competição de cabo de guerra realizada nos Jogos Interaliados em 1919, ao final da Primeira Grande Guerra. Fonte: https://interalliedgames.org/category/tug-of-war/

 

Realizando uma rápida pesquisa em buscadores de informações nos dias de hoje, podemos perceber o grande destaque que as práticas esportivas ainda recebem no cotidiano militar nos Estados Unidos, tanto nos períodos de treinamento e preparação quanto nos momentos de atuação efetiva em conflitos ao redor do mundo. Os programas esportivos das Forças Armadas estadunidenses iniciados há mais de 100 anos seguem trabalhando intensamente em diversas regiões ao redor do planeta.

2

As Forças Armadas dos Estados Unidos mantêm um setor específico dentro do Departamento de Defesa responsável por toda a gestão e organização esportiva envolvendo militares estadunidenses. Maiores informações, ver site: https://armedforcessports.defense.gov/

 

Fontes:

[1] LAUT, Agnes C. Your Boy Is Wholly Safe Morally in War. The Sun, 1 de setembro de 1918, p. 5.

Referências:

WAKEFIELD, W. Playing to win: sports and the American Military, 1898-1945. Albany: State University of New York Press, 1997.

MENNELL, J. The Service Football Program of World War I: Its Impact on the Popularity of the Game. Journal of Sport History, v. 16, n. 3, p. 248-260, 1989.


“Taça Flamengo”: primeira competição esportiva periódica entre militares da Marinha do Brasil e do Exército Brasileiro

22/10/2018

por Karina Cancella

Nas primeiras décadas do século XX, militares da Marinha do Brasil (MB) e do Exército Brasileiro (EB) iniciaram o processo de institucionalização da prática esportiva com a criação da Liga de Sports da Marinha (LSM) e a Liga Militar de Football (LMF), ambas no ano de 1915. Inicialmente, as duas ligas organizavam competições apenas entre seus quartéis, batalhões e navios, promoviam treinamentos e mediavam a participação de seus militares em competições organizadas por instituições civis na condição de convidados. Eventos esportivos envolvendo as duas forças ainda não eram um ponto de interesse nos primeiros anos de atividade das ligas.

A primeira competição planejada exclusivamente para envolver militares da MB e do EB foi patrocinada pelo Clube de Regatas Flamengo. No mês de junho de 1917, a LSM e a LMF receberam a doação de uma taça que iniciou a disputa de uma competição específica entre Marinha e Exército que se prolongou até a década de 1920. Na sessão da Diretoria de 27 de junho de 1916, registrou-se “officio de 19 do corrente, recebido a 24, do Clube de Regatas Flamengo (C.R. Flamengo), declarando oferecer uma taça para ser disputada annualmente entre Exercito e Marinha, e pedindo o comparecimento de um representante da Liga no dia 21, para fixar as fases da disputa”.[1]

A disputa da chamada “Taça Flamengo” é a primeira competição organizada pelas LSM e LMF, em parceria com o C.R. Flamengo, onde há referência direta à cobrança de ingressos para espectadores:

Com relação ao jogo contra o Exercito, em disputa da taça offerecida pelo C.R. Flamengo, com consta a acta da sessão de 27 de junho do anno passado, o Director Secretario communica que fixou com o 1o Secretario da Liga Militar de Football, ao referendum das respectivas directorias, as seguintes bases para a disputa deste anno: 1o. Os teams serão de praças; 2o. O arbitro será indicado pelo Club do Flamengo e aceito por ambas as Ligas; 3o. Si o jogo terminar em empate o desempate será feito em outro dia segundo o modo que se combinará; 4o. A renda liquida dos portões será dividida assim: 50% do Club offertante; 25% a cada uma das Ligas; 5o. Os secretários das duas Ligas ficaram com poderes plenos das duas Directorias para combinarem os detalhes de encontro e as fixarem com o C.R. Flamengo. Foram unanimente approvadas estas bases. Resolveo-se mais com relação ao mesmo assumpto: convocar o Conselho Director para o dia 22, as 4 ½ pm, com o fim de solicitar autorisação de organisar um scratch team para jogar contra o Exercito, visto que de tal não cogitar os Estatutos; e, apos a autorisação referida, convidar o Cap. Tenente Soares de Pinna para organisar o scratch team, e dar os mais passos necessários com relação ao caso.[2]

A primeira disputa da Taça Flamengo foi realizada em 29 de abril de 1917 e seu resultado divulgado na sessão da Diretoria da LSM de 02 de maio do mesmo ano.

Venceo o team da Liga de Sports da Marinha, que bateo o do Exercito por 4×1. No torneio de cabo de guerra, que se fez no mesmo dia entre teams de Exercito e Marinha, tomaram parte, pela Marinha, Batalhão Naval, Bahia, Benjamin Constant e Flotilha de Submersíveis. Nas eliminatórias da Marinha venceo o C. Bahia, que jogou a final contra o team do 2o. Reg. de Infantaria, vencedor nas finaes, alias, eliminatórias do Exercito. Foram na mesma occasião executados exercício de gymnastica sueca, pela C. Minas Geraes e um de esgryma de bayoneta, pelo Batalhão Naval. Compareceram a festa os Srs. Presidente da Republica, Ministro da Marinha e varias pessoas de posição official convidadas. Todas as demais pessoas pagaram entrada.[3]

Este evento gerou uma discussão intensa entre Exército e Marinha na organização da segunda edição, no ano de 1918. Nas sessões de Diretoria da LSM dos dias 12 de março, 22 de março e 25 de março de 1918 registraram-se os debates sobre a disputa. Em 12 de março, foi recebida autorização para a realização da Taça Flamengo, contra o Exército, nos mesmos termos da competição do ano anterior, a ser realizado no campo do Flamengo. Na ata de 22 de março, foi registrado que a Diretoria, em comunicação telefônica com o Capitão Castelo Branco, 1o. Secretario da Liga Militar de Football, soubera que a LMF tinha a intenção de não enviar seu time para o campo do Flamengo no dia combinado para realizar a disputa da Taça. As justificativas eram as más condições do campo e que a LMF não conseguiu reunir um bom time para a competição. Havia, por parte da liga do EB, a pretensão de adiar o jogo e publicar notícias nos jornais informando o cancelamento da partida. A Diretoria da LSM, na mesma comunicação, disse ao representante da LMF que seria melhor não noticiar nos jornais, por achar que seria o caso de uma comunicação direta entre as Ligas e porque o jogo deveria sim ser realizado, já que as combinações e convites oficiais já haviam sido feitos, inclusive ao Presidente da República. No entanto, mesmo sendo solicitada a não comunicação na imprensa sobre o cancelamento do jogo, em 21 de março de 1918, na página 9 do jornal “O Imparcial”, foi divulgada uma nota da LMF informando que não seria mais realizada a disputa da Taça Flamengo daquele ano.[4]

Após discussão com os diretores da LSM presentes na reunião, ficou aprovada a manutenção da realização do jogo e não aceitar o adiamento proposto pela LMF, mandando o time a campo na data combinada. O Diretor-Presidente da LSM ainda informou que iria tomar providências para desfazer os convites oficiais realizados e que, em comunicação com o C.R. Flamengo, foi confirmada a disponibilidade do campo para a realização do evento no dia 24. Em 25 de março, registrou-se que os diretores da LSM e seu time compareceram no dia anterior ao campo do Flamengo para o torneio agendado. O time da Liga Militar de Football não compareceu e foi registrado um atestado pelo C.R. Flamengo sobre o fato. Resolveram, então, enviar ofício para a liga do EB informando que a LSM enviou seu time no dia 24 para o torneio acompanhado de uma fatura de sua parte das despesas contraídas em comum pelas duas Ligas para a realização da disputa da Taça Flamengo.[5]

Nas atas seguintes não há retorno de debate sobre a competição não realizada, mas os episódios relatados demonstram certa animosidade entre as duas Ligas Militares no processo de organização da disputa de 1918. No entanto, um aspecto interessante foi a manutenção do evento, mesmo sabendo da intenção de não comparecimento declarada pela Liga do EB, em vista dos custos já contraídos para a preparação da competição. Além disso, mesmo com a não realização, a cobrança, ao menos em tese, da parcela que seria de obrigação do Exército pode ser compreendida como uma forma de penalidade financeira pelo não cumprimento de um compromisso esportivo (CANCELLA, 2014).

A Taça Flamengo foi disputada, segundo os registros localizados, até 1924. No ano de 1919, no entanto, não há registro de realização da competição por conta da ocorrência da Primeira Grande Guerra. A LSM paralisou a organização de atividades esportivas durante o período de mobilização e atuação da Divisão Naval de Operações de Guerra (DNOG).[6]

Em junho de 1919, a LSM retomou suas atividades com a organização de uma “festa sportiva militar” em homenagem à tripulação da DNOG que regressava ao Brasil. A proposta era a realização do evento no C.R. Flamengo e o programa envolvia “jogo de bola”; corrida da serpente; jogo de dado; cabo de guerra para marinheiros, navais e reserva; corrida de obstáculos; esgrima de baioneta; ginástica sueca; match de futebol entre marinheiros e navais e a execução do hino nacional.[7]

A revista Careta publicou, nas edições de 14 de junho, 21 de junho e 28 de junho de 1919, fotografias de diferentes aspectos da recepção da Divisão Naval. Uma das imagens retratava os militares que a integraram, fazendo referência na legenda ao Capitão-Tenente Lemos Basto, que se afastou da diretoria da LSM pela convocação para esta comissão; imagens das crianças das escolas municipais que estiveram presentes no evento; fotografias da festa sportiva promovida pela LSM aos marinheiros que regressaram da guerra com as partidas de futebol realizadas entre os marinheiros nacionais e o Batalhão Naval e os diferentes grupos presentes na festa a bordo do Encouraçado Minas Gerais.[8]

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Fotografias publicadas na Revista Careta retratando as competições esportivas realizadas no festival em homenagem ao retorno da Divisão Naval de Guerra. Fonte: Revista Careta 21 de junho de 1919, p. 23.

 

A revista Careta também divulgou aspectos das competições da Taça Flamengo nos anos de 1920 e 1921.

2

Fotografias publicadas na revista Careta da Festa Esportiva Militar realizada entre Exército e Marinha no campo do Clube de Regatas Flamengo – Taça Flamengo 1920. Fonte: Revista Careta 30 de outubro de 1920, p. 20.

3

Fotografias publicadas na revista Careta da Festa Esportiva Militar realizada entre Exército e Marinha no campo do Clube de Regatas Flamengo – Taça Flamengo 1921. Fonte: Revista Careta 15 de outubro de 1921, p. 22.

 

A Taça Flamengo também fez parte do programa de competições dos Jogos do Centenário, realizados no Rio de Janeiro em 1922.[9] A imagem abaixo faz parte do acervo do Museu de Desporto do Exército e apresenta uma imagem do estádio durante a realização da disputa.

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A Taça Flamengo inaugurou esse sistema de competições esportivas periódicas entre membros das Forças Armadas brasileiras. Ao longo do século XX, inúmeras outras competições foram organizadas entre Marinha e Exército e, a partir de sua criação, também Força Aérea Brasileira. Os eventos envolviam times de quartéis, batalhões, navios e escolas de formação. Ano a ano, um intenso calendário de competições foi se construindo e se estende até os nossos dias, sendo atualmente gerenciado pelas Comissões Desportivas de Marinha, Exército e Aeronáutica (CDM, CDE e CDA) e pela Comissão Desportiva Militar do Brasil (CDMB).

 

Referências:

CANCELLA, Karina. O esporte e as Forças Armadas na Primeira República: das atividades gymnasticas às participações em eventos esportivos internacionais. Rio de Janeiro: BibliEx, 2014.

 

Notas:

[1] “Sessão da Diretoria de 27 de junho de 1916”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[2] “Sessão da Diretoria de 19 de janeiro de 1917”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[3] “Sessão da Diretoria de 02 de maio de 1917”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[4] O Imparcial 21 de março de 1918, p. 9.

[5] “Sessão da Diretoria de 12 de março de 1918”, “Sessão da Diretoria de 22 de março de 1918”, “Sessão da Diretoria de 25 de março de 1918”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[6] “Sessão da Diretoria de 23 de abril de 1918”, “Sessão da Diretoria de 25 de fevereiro de 1919”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[7] “Sessão da Diretoria de 02 de junho de 1919”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[8] Revista Careta 14 de junho de 1919, p. 16; Revista Careta 21 de junho de 1919, p. 23; Revista Careta 28 de junho de 1919, p. 16.

[9] Para saber mais sobre esse evento, veja o post “E o Rio de Janeiro já foi quase ‘olímpico’”. Link: https://historiadoesporte.wordpress.com/2016/08/15/e-o-rio-de-janeiro-ja-foi-quase-olimpico/


Relações entre esporte e guerra: algumas publicações

21/05/2018

por Karina Cancella

Desde a década de 1980, estudos sobre as relações estabelecidas entre militares e as práticas esportivas têm sido realizados em diferentes partes do mundo. Ao longo dos últimos anos, o número de publicações específicas sobre essa temática tem aumentado, especialmente aquelas envolvendo as relações entre esporte e guerra. Esse movimento, de acordo com Arnaud Waquet (2010), teria relação com o período de comemorações do centenário da Primeira Grande Guerra, que trouxe ao centro do debate outras facetas da guerra e das Forças Armadas deixando de lado o enfoque exclusivo em narrativas de “História Batalha” ou de estudos sobre tática e estratégia.[1] Nesta postagem, tenho como objetivo compartilhar breves informações sobre alguns trabalhos com os quais tomei contato durante pesquisas realizadas nos últimos anos e que podem ser de interesse para aqueles que buscam iniciar ou aprofundar estudos sobre esse tema.

Robert Baumann, no ano de 1988, publicou o artigo “The Central Army Sports Club (TsSKA) Forging a Military Tradition in Soviet Ice Hockey” no Journal of Sport History em que debate o processo de inserção dos esportes no Exército Soviético, culminando com as análises sobre o desempenho superior dos militares no ice hockey. No artigo, Baumann aborda o processo de introdução do esporte e da ginástica no cotidiano do Exército Soviético ainda no século XIX, quando passaram a integrar o Programa Oficial de formação dos Cadetes, e estende suas análises debatendo o processo de ampliação do movimento esportivo naquela instituição ao longo do XIX e anos iniciais do século XX. (BAUMANN, 1988).

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A obra “Sport and the Military: the British Armed Forces 1880-1960”, de autoria de Tony Mason e Eliza Riedi publicada em 2010, dedica-se a analisar o processo de estabelecimento das práticas esportivas entre os militares britânicos. Os autores iniciam a obra afirmando que, ainda nos dias de hoje, o esporte não é tema central de estudos de História Militar, sendo citado (quando citado) como parte de um pacote de reformas destinadas a melhorar a preparação do soldado comum, de estímulo para recrutamento nas últimas décadas do século XIX ou como um elemento de diversão que poderia ser desfrutado pelos soldados do serviço ativo nas pequenas guerras do período imperial. As análises dos autores apresentam a inserção do esporte entre os militares britânicos como um dos itens de um movimento que buscava o desenvolvimento de recreações racionais entre os soldados e marinheiros e aprofundam os debates abordando os diferentes usos do esporte em serviço ao longo da primeira metade do século XX. (MASON; RIEDI, 2010).

Para o caso francês, a tese de doutorado defendida na Universidade de Lion em 2010, de autoria de Arnaud Waquet intitulada “Football en guerre: l’acculturation sportive de la population française pendant La Grande Guerre (1914-1919)” dedica-se a discutir o processo de aculturação esportiva ocorrido durante a Primeira Guerra, identificando uma significativa redução na prática da ginástica e ampliação do que chama de “desporto inglês”, com especial atenção para o futebol. Partindo dessa premissa, analisa as relações entre o futebol e a guerra e seus impactos sobre a população da França (WAQUET, 2010).

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Também trabalhando com a realidade francesa, Thierry Terret, no livro “Les Jeux interalliés de 1919: sport, guerre et relations internationales”, discute o processo de organização dos Jogos Interaliados de 1919, primeiro evento esportivo internacional no pós-guerra[2] realizados em junho daquele ano, em Paris. O autor analisa todo o processo de planejamento do evento, as relações estabelecidas entre os países participantes e os impactos de sua realização para a sociedade francesa naquele momento de reestruturação após o conflito. (TERRET, 2003).

 

Recentemente, foram publicadas duas obras tratando especificamente das relações entre o esporte e a guerra. O livro “Sport, Militarism and the Great War: Martial Manliness and Armageddon”, publicado em 2012 e organizado pelos professores Thierry Terret e J. A. Mangan, dedica-se a discutir os aspectos da prática do esporte entre os militares e suas relações com o conflito armado no contexto da Primeira Grande Guerra. A obra é estruturada em duas partes: a primeira, composta por 7 artigos, destina-se a debater a realidade francesa; e a segunda parte do livro aborda a realidade inglesa naquele contexto em 8 artigos, sendo 6 deles de autoria individual ou em parceria com J. A. Mangan. Apesar de discutir exclusivamente os casos de França e Inglaterra, a obra aborda também questões mais gerais sobre o contexto de atuação em conflito e as relações com as práticas esportivas. (TERRET; MANGAN, 2012).

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51LBniVSENL._SX341_BO1,204,203,200_-1Já a obra “Le Sport et La guerre: XIXe et XXe siècles” foi publicada em 2013 e organizada pelo professor Luc Robène. Os textos que compõem o livro foram apresentados no “Colóquio Internacional O esporte e a guerra nos séculos XIX e XX” que ocorreu na Universidade de Rennes 2 entre 28 e 30 de outubro de 2010. A obra possui quase 600 páginas, dividida em 6 partes, com artigos de 52 autores sobre os mais diversos temas da relação entre esporte e guerra. Há artigos específicos, por exemplo, sobre Portugal, Estados Unidos da América, um item exclusivo sobre as guerras coloniais africanas e outro sobre os desdobramentos na área do esporte e da Educação Física no interior das Forças Armadas em diferentes países. (ROBÈNE, 2013).

Sobre o contexto estadunidense, destaco o livro “Playing to Win: sports and the American Military, 1898-1945”, de autoria de Wanda Wakefield e publicado em 1997. A obra analisa as relações estabelecidas pelas Forças Armadas dos Estados Unidos da América com as práticas esportivas desde fins do século XIX. As discussões analisam o processo de introdução e sistematização dessas atividades e a implementação de suas ligas e competições, sempre relacionando-as com os diversos conflitos com participação do país ao longo do século XX, seguindo até a Segunda Guerra. (WAKEFIELD, 1997).

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Por fim, desejo boas leituras e pesquisas para os interessados nessa temática e até a próxima postagem!

 

[1] Para mais informações sobre as abordagens da chamada Nova História Militar, ver: Parente, 2009.

[2] Por ocorrência dos conflitos, os Jogos Olímpicos de 1916, previstos para ocorrerem em Berlim, não foram realizados, interrompendo a sequência de edições a cada quatro anos desde os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, promovidos em 1896.

Referências:

BAUMANN, R. The Central Army Sports Club (TsSKA) Forging a Military Tradition in Soviet Ice Hockey. Journal of Sport History, v. 1.5, n. 2, p. 151-166, 1988.

MASON, T.; RIEDI, E. Sport and the military: the British Armed Forces 1880-1960. Cambridge: University Press, 2010.

PARENTE, P. A construção de uma nova História Militar. Revista Brasileira de História Militar. Edição especial de lançamento, p. 1-13, dez. 2009.

ROBÈNE, L. Le sport et la guerre: XIXe et XXe siècles. Rennes: PUR, 2013.

TERRET, T. Les Jeux Interalliés de 1919: sport, guerre et relations internationales. Paris: L’Harmattan, 2003.

TERRET, T.; MANGAN, J.A. Sport, Militarism and the Great War: Martial Manliness and Armageddon. New York: Routledge, 2012.

WAKEFIELD, W. Playing to win: sports and the American Military, 1898-1945. Albany: State University of New York Press, 1997.

WAQUET, A. Football en guerre: l’acculturation sportive de la population française pendant la Grande Guerre (1914-1919). 2010. 487 f. Thèse (Doctorat) – Ecole Doctorale Interdisciplinaire Sciences-Sante, Mention Sciences Et Techniques Des Activites Physiques Et Sportives, Université Claude Bernard – Lyon 1, Lyon, 2010.


O olhar para o estrangeiro: influências externas no processo de introdução de atividades físicas no cotidiano dos militares brasileiros

30/10/2017

Por Karina Cancella

As influências estrangeiras nas Forças Armadas (FA) brasileiras na primeira década do século XX eram identificadas em diferentes áreas. As aproximações com FA de outros países foram realizadas tanto pelo Exército como pela Marinha por meio de observações de suas atividades e processos de organização; de ações realizadas em visitas oficiais e também em recepções de forças amigas em território nacional.

Em meio às ações de reestruturação das FA brasileiras empreendidas nos primeiros anos do século XX, o “olhar” para o estrangeiro foi um movimento constante, uma vez que os modelos de organização e treinamentos dos militares da Europa, América e Ásia eram observados com vistas a elaborar um modelo adequado à realidade nacional. As questões relacionadas ao preparo do corpo também se fizeram presentes nesse contexto de buscas por modernização.

No caso do Exército Brasileiro (EB), no início do século passado, duas nações europeias “disputavam” a predominância nas influências. Alemanha e França buscavam, por meio de aproximações em missões militares e estágios internacionais, garantir um espaço de atuação no EB indicando novas formas de organização, de metodologias de trabalho e também assegurando novos mercados para seus materiais bélicos. (DOMINGOS, 2001; LUNA, 2007).

Diante desse quadro de disputa por influência militar nos primeiros anos do novecentos, grupos de militares brasileiros foram enviados para estagiar na Alemanha e a França intensificou suas aproximações com o envio de uma missão militar para atuar na Força Pública de São Paulo. As negociações se desenvolveram de forma rápida, mas o Exército Francês não apresentou grande entusiasmo em enviar uma missão para uma Força Policial. Segundo Manuel Domingos (2001), seus reais objetivos eram a entrada no Exército Brasileiro e estabelecimento de sua estrutura militar naquela instituição, mas como o EB estava em processos de aproximação com os militares alemães, a missão na Força Pública foi considerada uma alternativa interessante para marcar a presença francesa no Brasil. Em 1906, então, chegou a São Paulo a missão coordenada pelo Coronel Paul Balagny.[1]

Os franceses iniciaram suas atividades na Força Pública de São Paulo e passaram a buscar apoio junto ao General Luiz Mendes de Morais, provável substituto de Hermes da Fonseca na pasta do Ministério da Guerra, para alcançar seu objetivo maior: o Exército Brasileiro. As ações realizadas em São Paulo foram utilizadas como propaganda das possibilidades de atuação e das contribuições que uma missão francesa poderia estabelecer no EB (DOMINGOS, 2001).

A atuação dos militares franceses em São Paulo foi um marco importante para as relações entre esporte, educação física e militares no Brasil. Como desdobramento das renovações implementadas pela Missão Francesa, foi criada a primeira Escola de Educação Física do país com o objetivo de formar monitores para divulgar a prática de esporte e atividade física. Publio e Catalano (2005) transcreveram o documento que oficializou a criação da Escola de Educação Física da Força Pública de São Paulo, que inicialmente foi nomeada de “Curso de Esgrima e Ginástica” e esteve sob a direção do Capitão do Exército Francês Delphin Balancier. A sede da Escola foi estabelecida próxima ao rio Tietê, espaço tradicional de concentração dos clubes esportivos paulistas desde o final do século XIX. O documento de criação, Aviso da 3a. Seção nº 185 de 03 de março de 1910, foi publicado na Ordem do Dia nº. 52 do Comando do 1° Batalhão da Força Pública e tinha o seguinte teor:

Senhor Comandante Geral da Força Pública. Declaro-vos em referência ao Ofício nº 330 de 14 do mês passado que fica creado um Curso de Esgrima e Gymnastica, destinado aos officiais da Força Pública do Estado, devendo serem tomadas as providências para instalação do respectivo apparelho em sala adrede preparada. Saúde e fraternidade. (Assinado) W.Luiz (PUBLIO; CATALANO, 2005, p. 414).

As atividades e treinamentos desenvolvidos na Escola eram divulgados para a sociedade em geral por meio de notícias publicadas na imprensa enfatizando a importância das atividades físicas. No início do século XX, as preocupações com essas atividades ocupavam espaço nos periódicos, tal como os eventos sociais e as cerimônias das diferentes forças militares do país.

Essas influências estrangeiras tanto no Exército como na Força Pública de São Paulo auxiliaram na implantação de ações para um maior profissionalismo nessas instituições, envolvendo além de mudanças nas estruturas internas, reforma de regulamentos e inserção de novas práticas, a intensificação das preocupações com as atividades físicas. A criação da Escola de Educação Física em São Paulo é um exemplo desse novo movimento.

No caso da Marinha do Brasil (MB), uma das aproximações com influências estrangeiras na área da atividade física ocorreu de forma um tanto inusitada. No ano de 1908, o Navio-Escola Benjamin Constant realizou uma viagem de navegação ao redor do globo como parte da conclusão do curso de oficiais da MB. Ao chegar ao Oriente, no trajeto entre Honolulu e Yokohama, o navio resgatou 22 japoneses que haviam naufragado próximo à Ilha Wake, no Pacífico. Eles foram levados de volta ao país de origem pelo navio brasileiro. Esse evento fez com que a viagem do Benjamin Constant recebesse destaque da imprensa com publicações de diversas notas acompanhadas de fotografias sobre partes da viagem e sobre a recepção dos militares brasileiros no Japão, inclusive trajando os tradicionais kimonos em cerimônia do chá oferecida aos oficiais. Pelas ações de resgate dos náufragos japoneses, o comandante do navio Capitão-de-Fragata Antonio Coutinho Gomes Pereira recebeu a medalha de ouro do mérito naval japonês.[2], [3]

Essa visita ao Japão e as aproximações estabelecidas resultaram na vinda de alguns japoneses a bordo do Benjamin Constant em seu retorno ao Brasil. Os asiáticos aproveitaram a viagem para apresentar à tripulação brasileira a prática do jiu-jitsu, arte marcial de origem japonesa. O retorno do navio ao país com esses convidados foi noticiada na revista Careta do dia 19 de dezembro de 1908. Com imagens ocupando página inteira, a publicação destacava a vinda do professor Sada Miyako, seu ajudante M. Kakihara e Sensuke He, que se tornou criado de bordo do Benjamin Constant após ter sido resgatado na Ilha Wake. Além das fotografias dos japoneses, a revista ainda publicou duas fotos com os marinheiros brasileiros recebendo lições de jiu-jitsu a bordo do navio.[4]

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Fotografias em sequência com as imagens de Sada Miyako e seu ajudante M. Kakihara; Sensuke (o criado de bordo) e os marinheiros treinando os golpesFonte: Revista Careta, 19 de dezembro de 1908, p. 22.

Após sua chegada ao país, o professor Sada Miyako passou a dar lições de jiu-jitsu na Fortaleza de Villegagnon. Logo no ano seguinte à sua chegada, Miyako protagonizou um evento interessante para a história do esporte nacional. Em exibição da arte marcial japonesa no Pavilhão Paschoal Segreto, no Rio de Janeiro, o locutor anunciou que o lutador convocava um desafiante. O praticante de capoeira Francisco da Silva Ciríaco, conhecido na cidade como Macaco Velho, aceitou o convite e, em um movimento muito rápido, golpeou o japonês sendo declarado vencedor da luta (INOUE, 2009). A realização do combate foi noticiada na imprensa em diferentes periódicos, como o Jornal do Comércio de 02 de maio de 1909[5] e a Revista Careta de 29 de maio de 1909. No jornal, foram publicadas duas notas sobre o evento. A primeira informava que “sportman japonez do tão apreciado jogo jiu-jitsu foi hontem vencido pelo preto campista Cyriaco da Silva, que subjugou o seu contendor com um passo de capoeiragem”. No mesmo jornal, em um pequeno box no canto direito da página em meio aos anúncios de “vende-se” e “preciza-se” foi publicada uma nota divulgando os serviços prestados por Miyako como treinador de jiu-jitsu:

JIU-JITSU: Mr. Sada Miyako, professor contratado para leccionar jiu-jitsu na marinha brasileira, encarrega-se de dar licções particulares e a domicílio; cartas para a rua Gonçalves Dias n. 73, ou para a Fortaleza de Willegaignon. [6]

As aproximações dos militares brasileiros com técnicas e modelos de FA do exterior prosseguiram nos anos seguintes e as preocupações com as atividades físicas e esportivas se intensificaram. Esses movimentos iniciados ainda nos primeiros anos do século XIX se desdobraram na fundação de Ligas Esportivas na MB e no EB em 1915 e de suas Escolas de Educação Física na década de 1920. (CANCELLA, 2014).[7]

Referências:

CANCELLA, K. O Esporte e as Forças Armadas na Primeira República: das atividades gymnasticas às participações em eventos esportivos internacionais (1890-1922). 1. ed. Rio de Janeiro: BibliEx, 2014.

DOMINGOS, M. A disputa pela missão que mudou o Exército. Revista Estudos de História, v. 8, p. 197-215, 2001.

GRUNENNVALDT, José Tarcísio. Os militares e a construção das condições para criação das escolas para formação de profissionais de Educação Física: um caso de revolução passiva. In: IV Congresso Brasileiro de História da Educação, 2006. Anais do IV Congresso Brasileiro de História da Educação. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2006.

INOUE, Mariléia Franco Marinho. Histórias sobre Saku Miura. Imigração Japonesa no Estado do Rio de Janeiro: Acervos de Imagem e Fala da Imigração Japonesa no Estado do Rio de Janeiro – Escola de Serviço Social da UFRJ, 2009. Disponível em: http://www.ess.ufrj.br/memoriaimig/index.php/presjaponesa/54-municipioriodejaneir o/376-texto-historias-sobre-saku-miura.html. Acesso 12 jan. 2012.

LUNA, C. Os “jovens turcos” na disputa pela implementação da missão militar estrangeira no Brasil. In: I Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, 2007, São Carlos. Anais do I Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa. São Carlos: UFSCar, 2007.

PUBLIO, N.; CATALANO, I. Escola de Educação Física da Polícia Militar do estado de São Paulo. In: DACOSTA, L. P. (Org.) Atlas do Esporte do Brasil. Rio de Janeiro: Shape, 2005, p. 138-139.

 

[1] Neste mesmo período, as preocupações com o processo de formação em Educação Física entraram em pauta nos debates legislativos. Em 1905, o deputado amazonense Jorge de Morais apresentou projeto ao Congresso Nacional propondo a criação de duas escolas de Educação Física, sendo uma civil e a outra militar. Previa ainda o envio de oficiais de terra e mar para a Europa e América do Norte para se especializarem na área. Declarava a necessidade de se adquirir terrenos para a realização de jogos ao ar livre e a instituição da ginástica sueca e jogos ao ar livre no Ginásio Nacional, Colégio Militar e Escola de Aprendizes e Marinheiros. Entretanto, apesar de ter sido aprovado o projeto não foi concretizado (GRUNENNVALDT, 2006).

[2] Revista Careta 01 de agosto de 1908; Revista Careta 17 de outubro de 1908; Revista Careta 19 de dezembro de 1908; Revista Fon-Fon 01 de agosto de 1908; Revista Fon-Fon 29 de agosto de 1908; Revista Fon-Fon 10 de outubro de 1908

[3] BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha de 1908, p. 5.

[4] Revista Careta 19 de dezembro de 1908, p. 21-22.

[5] Jornal do Commercio, 02 de maio de 1909, p. 7; p. 19.

[6] Jornal do Commercio, 02 de maio de 1909, p. 19.

[7] Para saber mais, ver: CANCELLA, K. O Esporte e as Forças Armadas na Primeira República: das atividades gymnasticas às participações em eventos esportivos internacionais (1890-1922). 1. ed. Rio de Janeiro: BibliEx, 2014.


Os Jogos Interaliados de 1919: primeira competição multiesportiva internacional para militares

05/06/2017

por Karina Cancella

Em 1918, após o fim da Primeira Grande Guerra, o Comandante das Forças Expedicionárias Americanas (FEA) General John Pershing apresentou uma proposta aos comandantes das forças aliadas de realização de um evento esportivo para celebração do fim dos conflitos.

As negociações para a organização de tais Jogos foram estabelecidas entre a FEA e a Young Men’s Christian Association (YMCA), que atuou ao longo da guerra na promoção de atividades recreativas para militares no front europeu, já nos meses finais de 1918. As duas instituições debatiam as bases para a definição das atribuições de responsabilidades com relação aos eventos e também os programas e calendários de atividades. Foi estabelecido que a participação das delegações seria efetivada por meio de convites diretos do comandante-em-chefe da FEA aos comandantes-em-chefe dos exércitos aliados. Do ponto de vista organizacional, seria estabelecido um comitê geral da FEA para os Jogos que atuaria em conjunto com os Diretores Atléticos da YMCA. Esse comitê seria a entidade decisória e a autoridade final em todos os assuntos relativos ao evento. Para compor a comissão, seriam ainda convidados dois delegados de cada exército participante para a formação de um Conselho Consultivo com função de apresentar as propostas ao Comitê organizador e dar toda a assistência geral possível visando ao sucesso das competições. [1] (CANCELLA, 2016).

Uma problemática, no entanto, foi identificada quanto à liderança dos EUA na organização dos Jogos em Paris:

O comandante-em-chefe estava em forte simpatia com as propostas dos Jogos a partir do dia em que a ideia foi apresentada pela primeira vez. Mas ele foi confrontado com uma dificuldade. Se ele aceitar as sugestões da YMCA e convidar as nações aliadas a entrar com seus atletas militares nos Jogos como comandante-em-chefe de um exército americano na França, ele estaria na posição de uma pessoa que convida seus amigos a uma festa na casa de outro homem sem primeiro garantir que esse recebimento seria aceitável para o proprietário. Antes que qualquer um desses convites possa ser estendido, […] tornou-se necessário verificar se tal procedimento seria aceitável para o exército francês e para o Governo […][2]

Foram então realizados contatos com entidades e autoridades sobre o caso. A YMCA se comunicou com o Comite Nationale d’Education Physique, Sportive et de 1’Higiene Social solicitando que verificasse com o Marechal Pétain seu parecer sobre a realização do evento. Em carta enviada ao militar, a entidade defendeu que via com bons olhos a proposta uma vez que auxiliaria na “difusão da prática saudável da educação e da higiene física, que é a base do seu programa para a regeneração da raça francesa”. Destacaram, ainda, que favoreceria o desenvolvimento de “irmandade pelo desporto” com os demais países e uma rivalidade saudável entre as unidades militares, com atividades que manteriam a forma física e seriam “uma excelente influência moral para os soldados, a quem a cessação das hostilidades transferiu de repente da vida intensa da batalha para o período de espera da desmobilização”. [3] A entidade francesa ainda pontuou que seria vantajoso, já que todos os custos seriam cobertos pelos EUA e o estádio construído e utilizado durante os Jogos “ficaria sem custo à disposição da juventude francesa, como um testemunho permanente da amizade indelével unindo as duas democracias”. [4] Sobre essa questão, foi enviado ofício datado de 07 de janeiro do Comite Nationale ao Diretor do Departamento Atlético da YMCA informando o aceite por parte do governo francês e do comandante-em-chefe das tropas francesas, Marechal Pétain, para a organização do evento nos termos propostos pela YMCA e pela FEA. (CANCELLA, 2017).

Todo o processo de organização e realização do evento foi documentado e publicado em forma de relatório, composto por 554 páginas, com informes detalhados sobre os Jogos Interaliados. No documento, foram apresentadas as participações dos países aliados convidados nas provas e ações administrativas. O General Pershing, conforme os acordos, enviou convite às 29 nações, colônias e territórios integrantes das Forças Aliadas na Primeira Guerra para participação no evento. (CANCELLA, 2017).

Os critérios para participação no evento definiam que somente seriam elegíveis aqueles homens, integrantes das Forças Armadas Aliadas, que tivessem participado em qualquer momento da guerra entre 04 de agosto de 1914 e 11 de novembro de 1918. Não foi levada em consideração a discussão sobre esportistas amadores e profissionais. (CANCELLA, 2017).

Das nações convidadas, 16 delegações de países compareceram, além de indivíduos provenientes da Polônia e da Grã-Bretanha, uma vez que as autoridades militares não teriam atendido formalmente aos convites para participação. As recusas vieram, em grande parte, de países da América Central, da Ásia e da África, possivelmente pela distância geográfica e pela pouca presença de soldados na Europa no período de realização dos Jogos. (TERRET, 2006).

Nas propostas iniciais, os Jogos deveriam ocorrer no mês de abril ou maio, mas só se realizaram de fato entre junho e julho de 1919 devido ao tempo necessário para o preparo de toda a estrutura do evento. Foi também considerada a possibilidade de utilizar o estádio Colombes, palco principal dos Jogos Olímpicos de 1900 em Paris, como sede. No entanto, foi decidido pela construção de um novo estádio para os Jogos Interaliados. O espaço de Colombes foi utilizado como campo de treinamento e realização de competições internas da FEA e somente para as partidas de rúgbi durante os Jogos Interaliados. (CANCELLA, 2017).

Aguardava-se a participação de cerca de 1.500 esportistas militares nos eventos[5] e a capacidade do novo estádio, que recebeu o nome de “Pershing Stadium”, era de receber 27.500 pessoas que poderiam participar gratuitamente dos Jogos retirando ingressos em locais pré-definidos. Os militares tinham livre acesso caso estivessem fardados. [6] (CANCELLA, 2017).

Houve certa preocupação com o processo de escolha das modalidades a serem disputadas. No relatório sobre os Jogos, registrou-se que, sendo uma competição promovida pela FEA, seria sua prerrogativa, segundo os costumes estadunidenses, selecionar o programa para o evento. No entanto, havia o pensamento de que, por haver um conjunto de esportes muito bem conhecidos nos Estados Unidos e talvez não tanto em outros países, pudesse ocorrer certa injustiça. Levando esse aspecto em consideração, iniciaram-se as discussões sobre o programa para o evento. Chegou-se a levantar o ponto de que, se este era o primeiro encontro esportivo exclusivamente para militares, seria interessante organizar um programa somente com “esportes militares”. (CANCELLA, 2017). Sobre essa colocação, considerou-se o seguinte:

Mas o que são os esportes militares? Todo esporte conhecido pode ser facilmente rastreado de volta a um tempo em que era um exercício em que um guerreiro deveria primar e a excelência na maioria deles é tão útil a um soldado na guerra moderna como foi em qualquer momento no passado. Parecia não haver maneira de fazer do torneio um torneio militar distintamente. [7]

A compreensão, naquele momento, era de que todo esporte poderia ser benéfico para o desenvolvimento de habilidades militares, logo todos poderiam ser “esportes militares”. Posteriormente, Forças Armadas em diferentes partes do mundo foram responsáveis por criar modalidades específicas que envolvem técnicas exclusivas dos exércitos, marinhas e forças aéreas como pentatlo naval, pentatlo militar e pentatlo aeronáutico. Já nos Jogos de 1919, foi inserida no quadro de modalidades a competição de lançamento de granada, prática exclusivamente militar. Esse “evento esportivo mais jovem”, como foi categorizado pelos organizadores, garantiu seu espaço no programa, segundo os autores do relatório, pela grande importância atribuída pelos militares às granadas de mão no desenrolar da Primeira Guerra. (CANCELLA, 2017). Sobre esse ponto, argumentaram que:

Quando o lançamento de granada de mão começou a desempenhar um importante papel na Grande Guerra, as bombas eram arremessadas normalmente a partir dos limites estreitos de uma trincheira profunda. A forma ideal para tal lançamento foi pensada para ser um longo movimento de braço varrendo, com o cotovelo quase rígido, tanto para proteger o braço como para evitar o perigo de a granada não sair da trincheira. Quando os Estados Unidos entraram na guerra, os soldados americanos foram ensinados a jogar a granada desta forma, mas eles tinham suas próprias fortes opiniões sobre a matéria e, eventualmente, provaram que eles poderiam jogar com precisão de longa distância das profundezas de uma trincheira com o movimento do braço tão comumente associado com o beisebol. Tendo em conta esta controvérsia por parte dos soldados americanos, as regras que regiam o evento de lançamento de granada de mão permitiam a utilização do braço e qualquer forma preferida pelo concorrente. A granada utilizada foi a francesa F-1, pesando 600 grs. carregada. Os concorrentes foram autorizados a correr para a linha de lançamento se eles preferissem. O arremesso foi feito a partir do campo e a granada não foi lançada sobre qualquer obstáculo. [8]

Diante desses enunciados, pode-se considerar que a competição de lançamento de granada nos Jogos Interaliados de 1919 seria a primeira prova de esporte exclusivamente militar registrada. (CANCELLA, 2017).

Entre 22 de junho e 06 de julho, então, os Jogos Interaliados foram oficialmente realizados em Paris. O Estádio Pershing recebeu as cerimônias de abertura e de encerramento, exibições especiais e as provas de diversas modalidades, havendo ainda outros locais de prova, como o estádio de Colombes recebendo o rúgbi e a Lagoa de Saint James com as provas de natação e polo aquático. [9]

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Imagem publicada na revista “La vie Au Grand Air” em 15 de julho de 1919, página 35. Na imagem, no canto inferior direito, é possível ver o seguinte texto: “Em 22 de junho, foi inaugurado o Estádio Pershing. A sessão inclui apenas os desfiles dos atletas e tropas. Nossa foto representa a passagem da equipe americana, ganhadora dos Jogos, em frente à tribuna presidencial. No medalhão, o General Pershing, o Presidente da República e M. Leygues, Ministro da Marinha”. (Tradução da autora).

Referências:

CANCELLA, K. Os Jogos Interaliados de 1919: o papel das Forças Armadas estadunidenses na promoção do esporte no contexto da Primeira Grande Guerra. Navigator, v. 12, p. 33-48, 2016.

______. Para reforço do moral e desenvolvimento físico do pessoal: a prática do esporte nas Forças Armadas estadunidenses e brasileiras em perspectiva comparada (1914-1922). 2017. Tese (Doutorado em História Comparada) – Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.

TERRET, T. The Military “Olympics” of 1919: sport, diplomacy and sport politics in the aftermath of World War One. Journal of Olympic History, v. 14, n. 2, p. 22-31, ago. 2006.

[1] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 24-25.

[2] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 25-26. Tradução da autora.

[3] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 26. Tradução da autora.

[4] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 26. Tradução da autora.

[5] Les Jeux Interalliés. L’Auto, 19 de junho de 1919, p. 3.

[6] Une visite au Stade Pershing. L’Auto, 15 de junho de 1919, p. 3.

[7] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 77. Tradução da autora.

[8] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 83. Tradução da autora.

[9] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, Program June 22 – July 6, 1919.


A prática de esporte entre “officiaes graduados” e “as simples praças”: instrumento para “desenvolvimento physico do pessoal” ou prática “em promiscuidade completa”?

09/01/2017

Por Karina Cancella [1]

As instituições militares brasileiras são organizadas em torno de dois conceitos basilares: hierarquia e disciplina. Segundo o Estatuto dos Militares, a “[…] hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas” e a disciplina é a “[…] rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar”,  devendo ser respeitadas em todos os níveis e instâncias da vida dos militares, dentro e fora dos quartéis.[2] Apesar de o Estatuto datar da década de 1980, suas definições sobre hierarquia e disciplina remetem-se a aspectos de organização interna já presentes nos códigos disciplinares que estruturavam as Forças Armadas (FA) brasileiras ainda no século XIX.

Esses aspectos definem os processos de interação pessoal e profissional nas instituições militares e são aplicados em todas as atividades realizadas, caracterizando as estruturas de distinção a partir dos “círculos hierárquicos” organizados, atualmente, em dois níveis principais: oficiais (oficiais generais, oficiais superiores, oficiais intermediários e oficiais subalternos) e praças (englobando nos dias atuais suboficiais/subtenentes, sargentos, cabos, marinheiros e soldados). O convívio social e as atividades profissionais dos militares devem respeitar essa hierarquização, estando os subordinados sempre em obrigação de cumprimento disciplinar para com seus superiores.

A rigorosa observância desses critérios de organização perpassou toda a história das instituições militares brasileiras desde suas formações. Em todas as atividades desenvolvidas, desde suas funções institucionais até as interações sociais corriqueiras, os critérios de hierarquia e disciplina precisavam ser seguidos com a máxima atenção.

As FA brasileiras, em fins do século XIX e início do século XX, acompanharam o processo de introdução das atividades físicas e esportivas na sociedade brasileira. A aproximação dos militares com o esporte iniciou-se ainda em meados do século XIX com a inserção dessas atividades no cotidiano das instituições por meio de mudanças no currículo das escolas de formação. Entre meados do século XIX e as décadas iniciais do século XX, os militares passaram a não somente praticar as ginásticas e os esportes no interior dos quartéis mas também desempenharam importante papel de fomentadores no meio civil por meio da atuação na função de instrutores de ginástica em escolas, na participação como esportistas em competições de diferentes modalidades e também no papel de liderança em entidades reguladoras esportivas (GARRIDO; LAGE, 2005; SILVA; MELO, 2011).

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Professor de esgrima em escola de formação da Marinha do Brasil. (Acervo Histórico do CEFAN).

No ano de 1915, o Exército Brasileiro criou sua primeira forma de regulamentação dos esportes com a fundação da Liga Militar de Football. [3] A criação de uma liga específica de futebol justificava-se por vários de seus membros participarem de equipes dos principais clubes de futebol do Rio de Janeiro. Esses militares promoviam competições amistosas entre os regimentos do Exército onde serviam. (RIBEIRO, 2009).

Em 25 de novembro do mesmo ano de 1915, um grupo de oficiais fundou a Liga de Sports da Marinha (LSM). A entidade teve seu reconhecimento em janeiro de 1916 com as seguintes declarações do Ministro da Marinha Almirante Alexandrino Faria de Alencar:

Sr. Chefe de Estado Maior da Armada, declaro-vos, para fins convenientes, que, approvados os intuitos da Liga de Sports da Marinha, fundada por officiais com o fim de concorrer para o desenvolvimento physico do pessoal da Armada, por meio dos jogos e exercícios, com campeonatos annuaes, resolvi permittir que a citada Liga se corresponda com as autoridades da Marinha, em relação ao que for necessário a seus fins, e que as autoridades lhe facilitem os meios de acção, sem prejuízo para o serviço, fazendo-se os jogos sob direção da referida Liga e seus representantes nos navios, corpos, estabelecimentos, ficando a acção destes últimos sujeita a approvação dos respectivos comandantes. Saúde e fraternidade. Assignado Alexandrino Faria de Alencar.[4]

Como pontuado no documento, o objetivo de autorização de funcionamento da LSM era o “desenvolvimento physico do pessoal da Armada, por meio de jogos e exercícios” e, para tal, as autoridades navais deveriam facilitar seus meios de ação para a organização das atividades esportivas. Nesse documento ainda podemos observar o destaque sobre a necessidade de autorização dos comandantes (oficiais superiores) para que seus subordinados participassem das atividades da Liga e que a instituição deveria se corresponder com as autoridades navais para a comunicação de suas propostas, fato somente possível por se configurar como uma iniciativa de oficiais da Armada (envolvendo também oficiais superiores), já que os processos de comunicação e correspondência também deveriam respeitar a cadeia hierárquica.

As primeiras competições organizadas pela LSM envolviam diferentes modalidades: futebol e os esportes aquáticos remo, vela, polo aquático e natação, tradicionalmente praticados por militares da Marinha do Brasil desde fins do século XIX. Entre os anos de 1915, o ano de fundação da Liga, e 1940, quando foi extinta para a criação do Departamento de Educação Física da Marinha, foram realizadas competições em diferentes modalidades esportivas.

Entre 1915 e 1920, o Exército contou com uma liga esportiva que atuava na organização do futebol, como já mencionado. Somente a partir de 1920 seu quadro de modalidades foi oficialmente ampliado e a nomenclatura da liga alterada para Liga de Sports do Exército (LSE).[5]

As ligas esportivas militares, além da organização de competições, tinham como função regulamentar a prática esportiva estabelecendo os critérios para participação e composição das equipes representantes tanto nas competições internas quanto nas disputas com equipes civis para as quais eram convidadas. Esse processo envolveu a criação de diretorias com responsabilidade de atuar nas diferentes áreas da estrutura das ligas. Tanto no Exército quanto na Marinha, essas diretorias eram compostas apenas por membros do oficialato, deixando de fora do processo de organização esportiva e definição de regras e prioridades todos os demais integrantes das forças (soldados, marinheiros, cabos, sargentos e suboficiais). A esses grupos era permitida somente a participação nas competições desde que devidamente autorizados por seus comandantes.

Ao estabelecerem os regulamentos para os eventos, eram criadas categorias distintas para oficiais, suboficiais e praças, mantendo a estrutura hierárquica como definição da participação esportiva. Com essa organização, evitava-se não somente que oficiais e praças, por exemplo, competissem uns contra os outros mas também que competissem lado a lado nos esportes coletivos.

Nas duas forças, foram emitidas declarações reforçando a necessidade de manter na prática esportiva a distinção entre os círculos hierárquicos. Na Marinha, essa temática foi discutida já em suas primeiras reuniões, ainda no ano de 1915, nas ações de organização de suas primeiras competições. Para as provas de natação, remo e vela, foi determinada a criação de categorias distintas para oficiais, suboficiais e praças. Para as competições de polo aquático e futebol, foi colocada a possibilidade de composição mista das equipes com grupos a favor e contra. Sobre isso, informou-se que:

[…] a intenção da Directoria é estabelecer logo que possa os campeonatos de foot ball e water polo e que, para permitir que todos os navios tomem parte nestes jogos se estabelecer campeonatos separados para officiaes, sub officiaes e praças o que, ao menos ao principio, não e possível, pensa propor que o campeonato de foot ball seja desde já estabelecido para as praças […][6]

A questão da composição mista de equipes foi tema de debate em alguns momentos ao longo da vida da LSM, mas observando os registros de organização e de resultados com a manutenção das provas distintas ao longo da década de 1920, percebe-se a sustentação das ideias de separação baseadas nos círculos hierárquicos.

No caso da Liga de Sports do Exército, a primeira normativa textual sobre a composição mista de equipes foi publicada em Aviso do Ministério da Guerra nº. 23 de 14 de outubro de 1922, assinado pelo então Ministro João Pandiá Calógeras. Esse aviso tratava sobre uma consulta do Comando da 9ª. Companhia de Metralhadoras Pesadas para saber se seria lícita a participação de um oficial junto com praças em uma festa pública náutica de remo. Em resposta, determinou-se:

a) que o regulamento interno dos serviços geraes, sem cogitar propriamente de casos relativos aos jogos sportivos, manda que “o superior deve tratar seu subordinado com estima, consideração e bondade, sem nunca descer a familiaridade”; b) que a observância de circulos, fóra do serviço onde estejam separados os officiaes graduados, e as simples praças, mostra a inconveniencia de qualquer promiscuidade; c) que não devem ser usados entre indivíduos que fazem parte dos circulos differentes os jogos de dependem sobretudo de agilidade e do emprego de força physica, taes como foot-ball, o Box, a luta romana e outros; d) que será de inteira vantagem que os homens, uma vez incorporados ao exercito, se tornem ageis e fortes, pelo cultivo dos jogos sportivos mais aconselhados; entretanto, a pratica delles, em promiscuidade completa, traz sério prejuízo á disciplina, não podendo guardar compostura que devem ter officiaes e praças em quaesquer situações em que se encontrem; e, e) que, em taes condições, não é permittido aos officiaes tomar parte em torneios sportivos, ao lado de praças, a fim de disputarem em commum quaesquer provas. Saude e Fraternidade – Calogeras. [7]

A proibição de participação nas competições com equipes mistas e em confrontos entre superiores e subordinados foi reforçada em Aviso do Ministério da Guerra de 03 de junho de 1930 determinando que:

III — É inconveniente, conforme preceitua o art. 292 do R. I. S. G. a possibilidade de militares de círculos differentes, em torneios sportivos. Essa disposição, aliás, não é nova, pois o actual regulamento interno dos serviços geraes apenas consolidou ordens vigentes reguladas pelos avisos ns 23, de 14 de outubro de 1922 (ministro Calogeras) e nº. 13 de 18 de fevereiro de 1926 (Ministro Setembrino).[8]

Tratadas como “promiscuidade” e “inconvenientes”, as participações de oficiais e praças lado a lado em competições esportivas eram reprimidas no Exército desde os anos iniciais da LSE, estendendo-se até a década de 1930. O mesmo se verifica na LSM a partir da manutenção das competições distintas ao longo de toda a sua trajetória como entidade regulamentadora dos esportes navais.

Mesmo a prática esportiva tendo sido introduzida sob os argumentos de “desenvolvimento físico” nas Forças Armadas brasileiras, a participação nessas atividades mostrava-se inteiramente enquadrada e definida pelos critérios hierárquicos estruturadores das instituições militares, aplicando-se à participação nas competições as mesmas prerrogativas e obrigações presentes nas demais áreas de atuação dos militares brasileiros.

 

Referências:

CANCELLA, K. A prática de esporte entre “officiais graduados” e “as simples praças”: instrumento para “desenvolvimento physico do pessoal” ou prática “em promiscuidade completa”? Revista Brasileira de História Militar, ano III, n. 9, p. 50-62, dez. 2012.

GARRIDO, F.; LAGE, Â. O Esporte na Marinha do Brasil. In: DACOSTA, L. P. Atlas do Esporte do Brasil. Rio de Janeiro: Shape, 2005, p. 131-133.

RIBEIRO, A. Contribuições da Missão Militar Francesa para o desenvolvimento do desporto no Exército Brasileiro: Comemoração aos 100 anos do início da orientação daquela Missão. Revista de Educação Física, p. 9-15, 2009.

SILVA, C.; MELO, V. Fabricando o soldado, forjando o cidadão: o doutor Eduardo Augusto Pereira de Abreu, a Guerra do Paraguai e a educação física no Brasil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 18, n. 2, p. 337-353, jun. 2011.

[1] Versão adaptada do artigo original publicado na Revista Brasileira de História Militar no ano de 2012. (CANCELLA, 2012). Para maiores informações, ver: http://historiamilitar.com.br/wp-content/uploads/RBHM-III-09.pdf.

[2] BRASIL. Lei nº 6.880, de 09 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm&gt;. Acesso 12 jun. 2011.

[3] BRASIL. Diário Oficial da União de 29 de junho de 1915, Seção 1, p. 05.

[4] Relatório do Ministério de Negócios da Marinha de 1916. Anexo A, p. 01.

[5] BRASIL. Diário Oficial da União de 06 de agosto de 1920, Seção 1, p. 10.

[6] “2ª. Assembleia de Representantes, de 27 de dezembro de 1915”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I, p. 04. Comissão de Desportos da Marinha.

[7] Relatório do Ministério da Guerra de 1922, Anexo AB, p. 136-137.

[8] BRASIL. Diário Oficial da União de 07 de junho de 1930, Seção 1, p. 12.


E o Rio de Janeiro já foi quase “olímpico”…

15/08/2016

Por Karina Cancella

Em 1922, o Brasil comemoraria o centenário de sua independência política de Portugal. Para celebrar esse momento, foi planejado um programa de festividades compreendendo uma Exposição Internacional do Centenário da Independência, que contaria com a presença de autoridades nacionais e internacionais e pavilhões monumentais para receber as 14 nações estrangeiras que aceitaram os convites (ARQUIVO NACIONAL, 2016), e Jogos Esportivos Internacionais. Focando nesse segundo evento, foram organizados os “Jogos Olímpicos Latino-Americanos” ou “Jogos Atléticos Sul Americanos” ou “Jogos do Centenário” (as três nomenclaturas foram utilizadas para designar o mesmo evento). As negociações e organizações em torno da realização do evento iniciaram-se com dois anos de antecedência, em 1920, antes mesmo da primeira participação do Brasil em Jogos Olímpicos, que ocorreria na edição daquele ano na Antuérpia.

Em 12 de maio de 1920, foi publicada no jornal carioca “O Imparcial” uma notícia sobre a chegada ao Brasil do enviado extraordinário do Comitê Olímpico Internacional (COI) e Diretor Atlético da Young Men’s Christian Association (YMCA) Sr. Elwood Brown, que foi responsável pela organização dos Jogos Interaliados de 1919 no Pershing Stadium em Paris, e seguia em viagem de divulgação do movimento olímpico pela América do Sul.[1]

Nessa visita, Brown realizou estudos sobre a possibilidade de se estabelecer no continente um comitê organizador dos “Jogos Atléticos Sul Americanos”, composto por um representante de cada país, e com função de realizar jogos continentais a cada dois anos. Esse comitê deveria ter a estrutura baseada na do COI. Propôs-se, então, que o primeiro evento nesse formato fossem os jogos previstos para serem realizados em 1922 no Rio de Janeiro, capital do Brasil naquele momento, como parte das comemorações do centenário da independência do País. A proposta era de que, com esse modelo organizacional, o esporte mundial passasse a ter o calendário estruturado da seguinte forma: campeonatos nacionais anuais, eventos continentais a cada dois anos e Jogos Olímpicos de quatro em quatro anos.[2] Às vésperas da participação do País nos Jogos da Antuérpia, a delegação brasileira recebeu a aprovação olímpica para a realização dos Jogos Latino-Americanos de 1922: “a comissão dos Jogos Olímpicos em reunião desta noite aprovou uma moção reconhecendo os Jogos Latino-americanos de 1922 como parte integrante do movimento olímpico… (Jornal do Brasil, 24 ago. 1920, p. 6)” (NETO-WACKER; WACKER, 2010, p. 153).

O evento, no entanto:

[…] embora obedecendo as condições dos Jogos Olímpicos, não terão absolutamente o caráter oficial de olimpíada. Esses jogos continentais efetuados de dois em dois anos, tomarão o caráter de preparatórios para as olimpíadas internacionais, levadas a efeito de quatro em quatro anos.[3]

A organização dos Jogos Esportivos ficou sob responsabilidade da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e conforme os acordos estabelecidos, a CBD receberia do governo federal um crédito de 300 contos de réis, em duas parcelas, para custear o processo de organização dos jogos. (SARMENTO, 2006). Para a realização das provas das competições previstas, era necessária a preparação de um espaço apropriado, um estádio com padrões internacionais. Sobre essa necessidade, o jornal “O Imparcial” informou, em abril de 1921, que seria concedido um terreno na Praia Vermelha ao Clube de Regatas Flamengo para construção de um espaço esportivo completamente novo para o recebimento das competições do centenário.[4] Dois meses depois, o mesmo periódico noticiou que, além do terreno, seria também concedido um empréstimo de mil contos de réis para as obras.[5]

Ao longo do ano de 1921, a imprensa carioca cobriu todo o processo de preparação do evento, e especificamente o jornal “O Imparcial” publicou diversas notícias sobre os “Jogos Atléticos Sul-Americanos de 1922”, destacando as formas de aquisição de materiais, as discussões sobre a construção dos novos espaços para realização das competições, ações realizadas pelos clubes esportivos em todo o país e seletivas para escolha dos representantes brasileiros no evento.[6]

No entanto, do ponto de vista dos observadores do Comitê Olímpico Internacional, as ações efetivas para a organização do evento estavam demorando mais do que eles esperavam. Por conta desse cenário, o COI enviou um representante ao Brasil para verificar a real viabilidade de realização dos Jogos em 1922. Após analisar a situação em que se encontrava o país, o Sr. Hopkins telegrafou ao COI informando ao Barão Pierre de Coubertin que o Brasil nada havia feito até aquele momento. Após o relato, foi dado um mês de prazo para que as ações de organização fossem efetivamente iniciadas ou o evento poderia ser transferido ou até mesmo cancelado (TORRES, 2012). Os jornais destacavam que:

[…] a incapacidade do Brasil em realizar os jogos se justificava primeiramente pelo fato de que o país atravessava uma grave crise econômica provocada por uma “crise do café, uma inflação em alta e, especialmente, uma crise fiscal” iniciada “na segunda metade de 1920” ainda durante o governo de Epitácio Pessoa, chegando “ao auge em 1922”. Apesar desse cenário econômico, o governo federal já direcionava parte de suas verbas para a Exposição do Centenário de 1922 no Rio de Janeiro. (MORAES, 2009, p. 27).

Além da problemática da crise financeira pela qual o país atravessava, um ponto em específico fez com que as ações não avançassem conforme os planejamentos iniciais. O empréstimo de 300 contos de réis feito pelo Governo Federal à CBD para cobrir as despesas do evento não estavam mais disponíveis no caixa da entidade. No início de 1922, uma nova diretoria assumiu a Confederação e identificou a ausência do valor para dar seguimento aos procedimentos de organização dos Jogos. (MORAES, 2009).

Essas polêmicas e problemas no processo de organização do evento fizeram com que o COI considerasse a retirada do reconhecimento ao evento. Por intervenção de Elwood Brown, que via o fracasso desse projeto como um possível problema nas relações com o COI, o Comitê reconsiderou e decidiu dar mais tempo ao Brasil para que as questões fossem resolvidas. A YMCA no país acompanhou de perto todo o processo de organização e chegou a elaborar um plano de contingência que previa a realização dos Jogos Latino-Americanos em Montevidéu, Uruguai, em 1923, caso o Brasil não conseguisse cumprir os prazos. (TORRES, 2012).

Para a resolução dessa complexa situação, algumas sugestões foram apresentadas para que não se perdesse a oportunidade de realização do evento com chancela do COI. Levantou-se incialmente a possibilidade de transferência do evento para a cidade de São Paulo. Como segunda opção, foi considerado entregar a organização nas mãos do Fluminense Football Club, que assumiria a responsabilidade de gerir as verbas públicas destinadas à organização dos Jogos. Como terceira opção, um empréstimo poderia ser contraído pela CBD junto ao Banco do Brasil para ampliação das arquibancadas da Rua da Guanabara e modificações no campo do Flamengo a fim de receber as provas de atletismo e futebol. Após meses e:

[…] uma longa série de acusações entre CBD e o governo federal, os jornais noticiavam o resultado das conversações que se seguiram durante todo o primeiro trimestre de 1922. O governo abriria um crédito de 1.3000:000$ para serem aplicados nos jogos, transporte e hospedagem dos atletas, sendo essa quantia restituída com as rendas provenientes dos jogos e “[…] o saldo que porventura for apurado, pertencerá a Confederação, a qual também ficará de posse dos materiaes adquiridos para a execução dos festejos sportivos”. O governo se responsabilizaria também pela impressão dos programas e regulamentos, e pela cunhagem das medalhas. Com as verbas, o projeto do Centenário foi posto em prática. (MORAES, 2009, p. 28-29).

Com o novo empréstimo contraído, finalmente a organização do evento seria iniciada. Para evitar novos problemas dessa natureza, os representantes da YMCA no país passaram a dialogar diretamente com o governo da cidade por considerar a nova direção da CBD inexperiente e desorganizada. O então prefeito do Rio de Janeiro, Carlos Sampaio, garantiu o apoio do governo federal e assegurou aos membros da YMCA e do COI que todos os esforços seriam empreendidos para que os Jogos fossem realizados com sucesso e também manter o reconhecimento do COI ao evento. Para isso, foi então designada uma nova comissão organizadora, sob presidência do Coronel do Exército Estellita Werner, e dando ao Fluminense maiores poderes na organização das competições. (TORRES, 2012).

A ideia de construção de um novo estádio foi então abandonada e optou-se pela realização de melhorias no estádio que já havia construído na cidade, o do Fluminense Football Club, que havia recebido os jogos do Campeonato Sul-Americano de Futebol em 1919. (CANCELLA, 2014).

As bases de organização dos Jogos do Centenário foram definidas pela CBD e publicadas na revista “Ilustração Brasileira” em março de 1922.[7] Os critérios para participação nos jogos determinavam que os esportistas deveriam ser “súditos” de países da América Latina e destacava a obrigatoriedade de serem considerados amadores de acordo com os regulamentos internacionais de cada esporte. A condição deveria ser reconhecida pela federação nacional do Brasil e pelas federações de cada país que enviasse concorrentes e os participantes poderiam ser latino-americanos por nascimento ou naturalizados.

O programa foi composto por um amplo quadro de modalidades atléticas e aquáticas, com locais de competição em diferentes regiões da cidade, envolvendo espaços públicos, privados (clubes) e das Forças Armadas. (CANCELLA, 2014).

Os Jogos foram abertos em 13 de setembro de 1922, com uma grande “parada desportiva”, aos moldes da parada militar realizada no dia 07 de setembro.[8] No evento de abertura, esportistas civis e militares desfilaram lado a lado nas delegações dos países participantes: Argentina, Chile, México, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Estados Unidos da América, Grã-Bretanha, Japão, Portugal e Brasil. (TORRES, 2012). Estiveram também presentes nos Jogos três representantes do COI: Sr. Elwood Brown, Sr. Jess Hopkins e o Conde Baillet-Latour, representando o Barão de Coubertin que não pode comparecer.[9]

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Fotografias da parada desportiva do Centenário ocupando página inteira da Revista da Semana. Fonte: Revista da Semana 23 de setembro de 1922, p. 28.

A presença de países de fora da América Latina desfilando na abertura do evento pode causar certa estranheza. No entanto, esse episódio ocorreu porque as Forças Armadas atuaram em conjunto com a CBD no processo de organização do eventos por meio de suas ligas esportivas e com representantes em cargos de gestão na comissão organizadora. Por conta dessa aproximação, foram idealizadas competições especificamente para as delegações militares que estariam presentes nas comemorações para serem realizadas em paralelo aos eventos esportivos principais, sendo elas da América Latina ou não. As provas passaram a ser divulgadas na imprensa como “latino-americanas”, “militares” ou “navais”, mas muitas vezes a divulgação dos resultados se confundia e a distinção entre os eventos se tornava complexa.

Além das competições militares, fazia também parte do programa dos Jogos do Centenário o VI Campeonato Sul-Americano de Futebol, com participação de Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Brasil. A competição enfrentou graves problemas com relação à organização e arbitragem, o que levou o Uruguai a abandonar o campeonato. Ao final, o Brasil sagrou-se campeão, vencendo o Paraguai. (MALAIA, 2011; MORAES, 2009).

O processo de organização dos Jogos de uma maneira geral foi bastante conturbado. A realização das competições também enfrentou alguns problemas sérios, especialmente com relação à organização e arbitragem não somente no futebol mas em diversas modalidades, como remo, atletismo e esgrima. Delegações inteiras e atletas individualmente se recusaram a competir ou se retiraram das competições por conta desses problemas. Como exemplo, todos os resultados das provas de atletismo não obtiveram reconhecimento oficial da Confederação Sul-Americana de Atletismo por conta de problemas na realização das provas e erros de arbitragem. A decisão foi tomada na reunião de 1924 da entidade e os resultados e recordes não foram homologados. (TORRES, 2012). Essa decisão resultou na desfiliação da CBD, que somente retornaria a fazer parte da Confederação sul-americana na década de 30. Os resultados de 1922 somente foram revalidados pela Confederação Sul-Americana de Atletismo no ano de 2012, 90 anos após a realização do evento. (IG ESPORTE, 2012).

Os Jogos do Centenário, de acordo com os relatos recolhidos na imprensa da época, conseguiu uma importante mobilização da população carioca. Além dos eventos esportivos, os pavilhões da Exposição Internacional também apresentavam grande atrativo, com público expressivo durante toda a sua realização. No “Atlas do Esporte no Brasil”, há o seguinte dado sobre o evento:

O número de espectadores dos Jogos, ainda segundo a ACM, chegou a 162.000 pessoas, quantitativo expressivo para a época, pois a assistência representou cerca de 15% da população da cidade, montante jamais atingido posteriormente. Em suma, os Jogos de 1922 no Rio de Janeiro consistiram num megaevento esportivo considerando os meios mobilizados e a participação da população local, embora não tenham sido reconhecidos até recentemente como tal. (SILVA, 2006, p. 17).

Cerca de um ano após a realização dos Jogos de 1922, o Conde de Baillet-Latour, membro do COI, relatou o seguinte:

Os Jogos do Rio, como um todo, não foram perfeitos, mas as críticas das quais têm sido objeto foram muito exageradas… Eles foram um espelho que reflete exatamente a situação dos esportes dos países que participaram, e as causas de sua imperfeição são originárias de defeitos que afligiram as autoridades e atletas em geral na América Latina… (NETO-WACKER; WACKER, 2010, p. 158-159).

A realização desses eventos tinha como um dos objetivos a afirmação de uma imagem internacional do Brasil como país organizado e moderno. No entanto, devido aos grandes problemas envolvendo desvios de verbas, atrasos nas obras, arbitragens parciais e falta de organização esse projeto inicial de projeção de uma imagem internacional positiva não se manifestou como esperado. Já a mobilização da população em torno de um sentimento nacional teve seu relativo sucesso. A grande participação de espectadores na Exposição Nacional e nos Jogos Esportivos é um dado a ser observado nesse sentido.

O Brasil e o Rio de Janeiro, então, receberam um evento “quase” olímpico em 1922. Sem ser considerado um evento olímpico em si pelas exigências do COI, os Jogos do Centenário foram reconhecidos como parte integrante do movimento olímpico e um instrumento importante na divulgação dos ideais do COI na América Latina em um período de expansão da influência do Comitê pelo mundo.

Referências:

ARQUIVO NACIONAL. A Exposição de 1922: Memória e Civilização. Exposições Virtuais do Arquivo Nacional. Disponível em: <http://www.exposicoesvirtuais.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=257&gt;. Acesso em: 05 mai. 2016.

CANCELLA, K. O esporte e as Forças Armadas na Primeira República: das atividades gymnasticas às participações em eventos esportivos internacionais. Rio de Janeiro: BibliEx, 2014.

IG ESPORTE. Confederação revalida Jogos Olímpicos Latino-americanos de 1922. Publicada em 22 set. 2012. Disponível em: <http://esporte.ig.com.br/maisesportes/2012-09-22/confederacao-revalida-jogos-olimpicos-latino-americanos-de-1922.html&gt;. Acesso em: 10 mai. 2016.

MALAIA, J. A Diplomacia do pé: o Brasil e as competições esportivas sul-americanas de 1919 e 1922. Tempo e Argumento, v. 3, n. 2, p. 43-76, jul. – dez. 2011.

MORAES, H. Jogadas Insólitas: Amadorismo e Processo de Profissionalização no Futebol Carioca (1922-1924). 2009. 163 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

NETO-WACKER, M.; WACKER, C. Brazil goes Olympic: Historical Fragments from Brazil and the Olympic Movement until 1936. Kassel: Agon-Sportverlag, 2010.

SARMENTO, C. A regra do jogo: uma história institucional da CBF. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006.

SILVA, J. Gestão da Segurança em Megaeventos Esportivos. In: DaCosta, Lamartine (Org.). Atlas do Esporte no Brasil. Rio de Janeiro: CONFEF, 2006, p. 17-20.

TORRES, C. Jogos Olímpicos Latino-Americanos – Rio de Janeiro 1922. Manaus: CBAt, 2012.

[1] O Imparcial, 12 de maio de 1920, p. 8.

[2] O Imparcial, 26 de maio de 1920, p. 7.

[3] O Imparcial, 26 de maio de 1920, p. 7.

[4] O Imparcial, 06 de abril de 1921, p. 12.

[5] O Imparcial, 30 de junho de 1921, p. 8.

[6] O Imparcial 30 de março de 1921, p. 9; O Imparcial 31 de março de 1921, p. 9-11; O Imparcial 06 de abril de 1921, p. 9, 12; O Imparcial 07 de abril de 1921, p. 9; O Imparcial 09 de abril de 1921, p. 9; O Imparcial 12 de abril de 1921, p. 9; O Imparcial 15 de abril de 1921, p. 9; O Imparcial 20 de abril de 1921, p. 8; O Imparcial 22 de abril de 1921, p. 8; O Imparcial 23 de abril de 1921, p. 11; O Imparcial 24 de abril de 1921, p. 10; O Imparcial 26 de abril de 1921, p. 9; O Imparcial 27 de abril de 1921, p. 9; O Imparcial 30 de abril de 1921, p. 7; O Imparcial 01 de maio de 1921, p. 8; O Imparcial 05 de maio de 1921, p. 9; O Imparcial 07 de maio de 1921, p. 11; O Imparcial 14 de maio de 1921, p. 9; O Imparcial 20 de maio de 1921, p. 9; O Imparcial 22 de maio de 1921, p. 11; O Imparcial 02 de junho de 1921, p. 9; O Imparcial 03 de junho de 1921, p. 9; O Imparcial 06 de junho de 1921, p. 9; O Imparcial 11 de junho de 1921, p. 9; O Imparcial 13 de junho de 1921, p. 10; O Imparcial 16 de junho de 1921, p. 10; O Imparcial 17 de junho de 1921, p. 9; O Imparcial 18 de junho de 1921, p. 9; O Imparcial 25 de junho de 1921, p. 9; O Imparcial 30 de junho de 1921, p. 8; O Imparcial 05 de julho de 1921, p. 10; O Imparcial 06 de julho de 1921, p. 9; O Imparcial 08 de julho de 1921, p. 9; O Imparcial 20 de julho de 1921, p. 9; O Imparcial 11 de setembro de 1921, p. 8-9.

[7] Ilustração Brasileira, março de 1922, p. 72-74.

[8] Revista Fon Fon 23 de setembro de 1922; Revista da Semana 23 de setembro de 1922.

[9] O Imparcial, 03 de setembro de 1922, p. 8.