COPA RIO: O PRIMEIRO CAMPEONATO INTERCONTINENTAL ENTRE CLUBES

09/04/2024

por Mauricio Drumond

No futebol, a legitimidade e a legalidade de um título são disputas de narrativas que muitas vezes ultrapassam o campo da razão e buscam argumentos no âmbito das paixões. O amor de torcedor e a rivalidade com clubes que marcam sua alteridade por vezes subjugam até mesmo o olhar de acadêmicos e estudiosos do tema, que acabam por manipular evidências e selecionar fatos e perspectivas que corroboram com o tema que buscam comprovar. Muitos dizem que o amor nos deixa cegos, e a paixão pelo esporte pode levar até o mais rankeano dos historiadores a se apoiar em Hayden White para defender seu time do coração. 

Em meio a recorrentes participações de equipes brasileiras nos campeonatos mundiais interclubes da Fifa, a mobilização por parte da imprensa e de estudiosos do futebol sobre os títulos de Palmeiras e Fluminense na Copa Rio de 1951 e 1952 certamente se encaixa nesse modelo. Defendido por uma parcela de estudiosos, que muitas vezes se denominam historiadores do futebol, o status de título mundial da competição será o tema da análise deste artigo. 

Copa Rio, um campeonato mundial?

Para iniciar o debate, é importante já deixar claro que não considero a Copa Rio um campeonato mundial de clubes. Não busco aqui o discurso da legalidade, do reconhecimento ou não da Fifa sobre o caráter de título mundial do campeão da competição. Os reconhecimentos oficiais da instituições que regem o futebol, tanto em nível local, como nacional ou internacional, são geralmente abusados em pressupostos políticos e econômicos, e não apenas nos esportivos. 

O Botafogo, por exemplo, é Campeão Carioca de 1907, juntamente com o Fluminense, desde a disputa da competição? Ou apenas a partir de 1996, quando a FERJ decidiu reconhecer o pleito de anos do Botafogo e reconhecer o título do clube? O mesmo pode ser dito do reconhecimento dos quatro primeiros títulos brasileiros do Palmeiras, ou o primeiro do Fluminense.  Pode-se perceber assim que mesmo que um título não seja reconhecido pela entidade gestora do futebol em um momento, ele pode vir a ser reconhecido posteriormente. Ou seja, no Caso da Copa Rio, seu não reconhecimento como campeonato mundial de clubes pela Fifa não deve ser o fator de nossa análise sobre seu real caráter de torneio mundial de clubes. A legitimidade de um título se dá principalmente por parte da produção de um discurso pela comunidade esportiva e da manifestação popular, que se relacionam de forma dialética.

No entanto, essa produção de discurso deve ir além do que diz a imprensa local, que possui outros interesses na afirmação. Responsável pela idealização, organização, promoção e venda da competição, jornalistas como Mario Filho buscavam enaltecer e agigantar seu produto, muitas vezes vendendo gato por lebre. Não buscarei aqui analisar o discurso produzido pela imprensa local. Para isso, sugiro o artigo de Sérgio Settani Giglio sobre a Copa Rio de 1951, “O Palmeiras tem mundial?”, publicado em três partes no Ludopédio (Parte 1; Parte 2; Parte 3). Nele, Giglio deixa transparecer, pelas crônicas de Mario Filho no Jornal dos Sports, o esforço em vender a ideia de grandiosidade do torneio. Isso fica evidente em sua argumentação para justificar a ausência das equipes espanholas:

[…] foi precisamente a significação da ‘Copa Rio’ que afugentou os espanhóis. Primeiro o campeão da Espanha, o Atlético de Madri, depois o vencedor da Copa Generalissimo Franco, o Barcelona. A vitória da Portuguesa sobre o Atlético Madri em Madri convenceu inteiramente os espanhóis da superioridade do football brasileiro. De tal forma que para os espanhóis a ‘Copa Rio’ seria apenas uma oportunidade brasileira, para reeditar, contra a Espanha, a goleada do campeonato do mundo (Mario Filho. A “Copa Rio”, verdadeiro campeonato mundial de campeões. Jornal dos Sports, 12 de junho de 1951, p. 5. Apud Sérgio Settani Giglio. O Palmeiras tem mundial? (parte 2). Ludopédio, São Paulo, v. 106, n. 9, 2018.)

Em sua retórica contorcionista, Mario Filho justifica a ausência dos campeões espanhóis Atlético de Madri e Barcelona pelo medo que teriam de vir ao Brasil se defrontar com o futebol brasileiro. O receio de uma nova entoação de “Touradas em Madri” no Maracanã, como na Copa de 1950, seria a única explicação possível para a ausência das equipes. A distância, os custos, ou mesmo a falta de interesse comercial e esportivo não eram nem ao menos aventadas como possibilidades, pois assim diminuiria a importância do evento que vendiam como a principal competição futebolística do ano. 

Mas se não iremos nos basear na imprensa local  – geralmente a principal, quando não única, fonte de pesquisadores do futebol no Brasil -, como podemos avaliar o caráter de competição mundial da Copa Rio?

Uma outra possibilidade seria investigar o olhar da imprensa internacional sobre a competição. Como ela foi repercutida na imprensa de outros países, participantes ou não do torneio. De Buenos Aires a Montevideo. De Londres a Lisboa, passando por Paris e Madri. Esses países enxergavam a competição como um mundial de clubes? 

De acordo com matéria da ESPN (link), o jornal italiano La Stampa, de Turin, enviou uma equipe liderada por Vittorio Pozzo, treinador bicampeão mundial pela Itália em 1934 e 1938, para cobrir a competição com a Juventus. O artigo aponta que em suas reportagens, Pozzo teria se referido à Copa Rio como “Torneio dos Campeões”, mas não indica que esse era o nome pelo qual a imprensa carioca, capitaneada por Mario Filho, usava para se referir ao torneio: a expressão “Torneio Mundial de Clubes Campeões” era o epíteto da competição. Nota-se também que o termo “mundial” não é evocado.

Página do jornal ‘La Stampa’ sobre a final da Copa Rio de 1951. Disponível em Francisco De Laurentiis, 2021. Link aqui.

Mas uma única reportagem não é suficiente para basearmos nossa análise. Seria necessário buscar um número significativamente maior de artigos, englobando as duas edições da competição, de um número maior de localidades, com e sem clubes próximos participando do certame. Mas isso eu vou ficar devendo. Essa pesquisa de fundo ainda está para ser realizada, e fica aqui uma indicação de um possível objeto de estudo. 

Uma análise possível.

A opção que buscarei desenvolver aqui é uma análise dos clubes participantes das duas edições do “Torneio de Campeões”, o que também poderá nos fornecer importantes elementos a serem observados. Quais são os clubes que participaram da primeira edição? Qual era sua projeção local e internacional no período? Como essa representação foi alterada na segunda edição da competição? Levando em consideração que as equipes de ponta na Europa não estariam, de fato, “afugentados” pelo medo do futebol brasileiro, como sugeriu Mario Filho, o sucesso internacional da Copa Rio em 1951 deveria resultar na maior participação de equipes de peso internacional no ano seguinte. 

Mas como determinar quais seriam “equipes de peso internacional” no futebol europeu da década de 1950?

Antes de começar, devemos lembrar da conjuntura européia do início dos anos 50. Recém saída da Segunda Guerra Mundial, a Europa começava a se reorganizar no campo esportivo. A Copa do Mundo no Brasil, em 1950, foi a primeira grande competição esportiva realizada depois do conflito, e a Copa Rio buscava dar continuidade ao sucesso da Copa no Brasil. Na Europa, o pós-guerra começa a ver a reorganização de competições esportivas supranacionais. A Copa Mitropa, uma competição entre clubes campeões dos países da Europa central criada nos anos 1920 e interrompida no período de guerra, voltava a ser organizada em 1951, não tendo continuidade nos anos seguintes. Já a Copa Latina, envolvendo equipes de Portugal, Espanha, França e Itália, começou a ser organizada em 1949. As duas competições são apontadas por muitos como a principal inspiração para a criação da Taça dos Clubes Campeões Europeus, que décadas depois foi renomeada como Liga dos Campeões da UEFA.

Benfica, campeão da copa Latina de 1950.

Assim, podemos convencionar que “equipes de peso internacional” no futebol europeu seriam times com passagens por essas competições, assim como equipes campeãs em seus países. É importante notar que clubes de países como Inglaterra e Escócia, por exemplo, não tinham o costume de participar de competições internacionais. Mesmo suas seleções evitavam a participação em copas do Mundo. A Inglaterra fez sua estreia em copas no Brasil, em 1950. Já a Escócia se recusou a disputar a competição em solo brasileiro. 

 A primeira edição, em 1951, contou com 8 equipes. Do Brasil, disputaram os campeões dos campeonatos do Rio de Janeiro e São Paulo, Vasco da Gama e Palmeiras. Não entraremos aqui no debate sobre o critério de seleção dos clubes brasileiros convidados, uma vez que não havia competição nacional nesta época. Do Uruguai, o Nacional foi a equipe convidada, campeã de 1950. 

Da Europa, equipes da Inglaterra, Espanha, Escócia e Suécia declinaram os convites. Vieram ao Brasil o Sporting, campeão português da temporada 1950/51; o Áustria Viena, da Áustria, era o terceiro colocado de seu país na temporada, mas os dois primeiros ,Rapid Viena e Wacker, declinaram o convite brasileiro para disputar a Copa Mitropa no mesmo período. Já o Estrela Vermelha, da Iugoslávia, foi a equipe indicada por sua federação e acabou se sagrando a campeã nacional daquele ano. 

O Milan, campeão italiano, decidiu disputar a Copa Latina daquele ano, da qual se sagrou campeão. Em seu lugar, veio ao Brasil a Juventus, terceira colocada na Itália, e com ampla participação internacional. É significativo notar que a equipe representante da Itália na Copa Mitropa deste ano, a Lazio, tinha se classificado atrás da Juventus no campeonato nacional de 1950-51. É possível argumentar que a Juventus deu preferência ao torneio no Brasil do que à competição centro-europeia. Mas, aparentemente, a Copa Latina era a principal competição de clubes para as equipes italianas. 

Já na França, a Copa Rio recebeu o Nice,  campeão do país na última temporada, com participação frequente nas representando o país em competições internacionais. Já na Copa Latina, o país foi representado pelo Lille, segundo lugar no campeonato francês de 50-51. Diferentemente do caso italiano, os franceses priorizam a Copa Rio e enviaram seu segundo lugar para a Copa Latina. 

Já em 1952, a Juventus recusou o convite para participar novamente da competição. A equipe, agora campeã italiana, deu preferência à Copa Latina, assim como o Milan havia feito no ano anterior. A Itália não enviou nenhuma equipe em seu lugar para essa edição. Apenas o Áustria Viena e o Sporting participaram de ambas as edições do torneio. Do Brasil, Fluminense e Corinthians eram os campeões estaduais presentes. Da América do Sul, o Penharol e o Libertad representavam o Uruguai e o Paraguai, respectivamente. O Racing, da Argentina, declinou o convite, tendo em vista que as relações esportivas entre Brasil e Argentina estavam rompidas nesse período. 

Da europa, além do Sporting e do Áustria Viena, dois clubes participaram do torneio. Da Suíça, o Grasshopper, que era o campeão nacional. O último participante europeu era uma equipe que vivia uma situação inusitada. O Saarbrücken era uma equipe alemã da região do Sarre, que no pós-guerra foi transformada em um protetorado separado da Alemanha ocidental até o ano de 1957. Proibido de participar do campeonato da Alemanha Ocidental, o Saarbrücken tinha vencido a segunda divisão do campeonato francês, e ficou afastado de competições oficiais até a temporada de 1951-52, quando pode ingressar na liga da alemanha Ocidental, junto com outras equipes do Protetorado do Saar. Neste ano, a equipe se sagrou vice-campeã do campeonato alemão, atrás do Stuttgart.

Vemos assim que, ainda que contasse com algumas equipes de renome e com títulos nacionais em seus países, a Copa Rio esteve longe de atrair para o Brasil as principais equipes europeias e de realmente representar um campeonato mundial de clubes. Sua segunda edição, em 1952, teve participação de equipes ainda menos proeminentes no cenário europeu, apesar da maior participação de equipes sul-americanas. Apesar do discurso produzido localmente por jornalistas brasileiros, a competição não era encarada pelas equipes europeias como um campeonato mundial. A participação das grandes equipes europeias era escassa, seja devido à falta de interesse comercial ou esportivo no evento. 

Isso não significa dizer, no entanto, que a Copa Rio foi uma competição sem importância. Ela foi, indubitavelmente, um empreendimento inovador e ousado para sua época. Uma tarefa hercúlea de organização que conseguia, com todas as limitações de seu tempo, unificar calendários e superar barreiras para ter em solo brasileiro equipes da Europa e da América do Sul. A Copa Rio pode não ter representado um título mundial para seus campeões, mas foi o primeiro campeonato intercontinental de clubes e deve ser lembrada com orgulho por isso. 


Salazar, O Estádio Nacional e o Desporto no Estado Novo Português

15/05/2023

por Maurício Drumond

O Primeiro desportista de Portugal – é Salazar. […] O chefe de uma nação é geralmente um atleta – porque para resolver os problemas que se lhe deparam tem de o ser. A firmeza de espírito, a decisão, a ponderação, o cálculo, a visão, o aprumo, o espírito de luta, a simplicidade – todos os predicados que se reconhecem e se aplaudam em Salazar, são predicados de um atleta. Para conduzir a nau, que é um país, nos mares revoltos, sob os céus toldados de tempestades, é preciso ser forte e ser um atleta. Não só os músculos definem o atleta: também e talvez mais ainda, o espírito, o cérebro e o coração. Por isso se pode dizer – se deve dizer – que Salazar é o primeiro desportista de Portugal.
Alberto Freitas, Os Sports, 12 jun. 1944, p. 6-7

            Sob um primeiro olhar, Alberto Freitas, redator do jornal Os sports, na epígrafe acima, utiliza-se de grande liberdade poética e retórica jornalística para associar Oliveira Salazar ao fenômeno esportivo. O momento é a inauguração do Estádio Nacional, em 10 de junho de 1944, e a comunidade desportiva portuguesa celebra o Estado Novo, a ditadura de Salazar, e sua relação com o esporte. Com uma imagem nada afeita ao movimento esportivo ou às questões do corpo de maneira mais geral, Salazar é retratado como o maior benfeitor do movimento desportivo nacional.

Oliveira Salazar governou Portugal com mão de ferro por mais de três décadas. Sua liderança autoritária, exercida através do regime do Estado Novo, trouxe consigo um período de opressão política e limitação das liberdades civis. Durante seu governo, Salazar centralizou o poder, estabeleceu um forte controle sobre a imprensa e a oposição política, além de adotar uma política econômica intervencionista. O legado de Salazar continua sendo objeto de estudos e discussões sobre a história política e social de Portugal.

Apesar da aparência de initmidade de Salazar com o esporte, descrita por Alberto Freitas na epígrafe acima, a realidade era bem diferente. O ditador português demonstrava um honesto desinteresse perante o tema – o qual o próprio Salazar reconhecera em discurso proferido em 1933, no qual afirmou ser “pessoalmente estranho a todas as organizações do género [desportivo]” (SALAZAR, 1935, p. 268). Professor catedrático de Coimbra, visto como grande guia da nação, o presidente do Conselho de Ministros era percebido como um homem ligado ao intelecto, opondo-se às questões do corpo. Sua figura personificava um tipo característico de homem português que se buscava forjar em no Estado Novo português: um cristão devoto, filho de camponeses, simples e trabalhador. Não era visto como um homem próximo ao povo, mas como um pai austero, rígido e disciplinador, que cuidaria do futuro de sua família, a nação.

Assim, podemos nos perguntar: por que o jornalista se esforçou tanto, com tal contorcionismo de argumentos e malabarismo de palavras, para colocar Salazar como o “Primeiro desportista” de Portugal? Afinal, circunspecto e reservado, o ditador mantinha uma imagem de contraste com o ideal desportivo. Além das evidentes vantagens da alusão a Salazar, especialmente por parte de um periódico integrante da engrenagem de propaganda do regime – Os Sports era um periódico trissemanal dirigido que pertencia à empresa proprietária do jornal Diário de Notícias, jornal oficioso do governo, é preciso colocar o momento de publicação da matéria em perspectiva. O artigo, intitulado “Dezenas de milhares de portugueses envolveram a inauguração do Estádio Nacional numa atmosfera de apoteose à Cultura Física e ao Desporto” foi publicado em 1944, celebrando a inauguração da maior obra esportiva da História de Portugal até aquele momento, o Estádio Nacional. Celebrava-se assim a realização de uma velha e reiterada demanda dos agentes do campo esportivo lusitano, uma que havia sido prometida por Salazar em 1933, no início de seu regime, naquele que se tornou um dos principais momentos da formação do ideário esportivo estadonovista, o “Congresso de Clubes Desportivos”.

O Congresso de Clubes Desportivos

Realizado entre 26 de novembro e 3 de dezembro de 1933, o evento foi organizado por Raul de Oliveira, diretor de Os Sports, e reuniu as principais lideranças desportivas portuguesas, entre dirigentes e jornalistas. Em uma das primeiras, e mais bem sucedida, iniciativa de organização do campo esportivo português, o evento era comumente referido como “I Congresso de Clubes Desportivos”, assumindo a prerrogativa que outros congressos regulares se seguiriam a ele, o que acabou não ocorrendo. Seus participantes apresentaram teses ao público presente, muitas das quais foram posteriormente publicadas e estão disponíveis para consulta na Biblioteca Nacional de Lisboa.

O evento deixava evidente a necessidade de se ressaltar as possíveis relações entre Estado e esporte. Os agentes do campo esportivo de Portugal estavam produzindo cartas abertas com um programa que atrelava um projeto de desenvolvimento do desporto nacional que se demonstrava em consonância com as propostas do regime. O esforço pode ser facilmente observado no título de algumas das teses apresentadas, como “Auxílio do Estado às organizações desportivas – Criação de parques desportivos municipais e nacionais”; “A entidade superior da organização desportiva e as suas relações com o Estado”; ou mesmo “Isenção de direitos sobre os artigos de desporto destinados aos clubs coloniais”. Através das relações do Estado com as organizações desportivas, seja através de auxílio financeiro ou isenção fiscal, visava-se sua utilização como meio de controle e doutrinação, em Portugal e nas colônias.

            Em seu discurso na cerimônia inaugural, transcrito pelo Diário de Notícias, Raul de Oliveira menciona diretamente a importância que o esporte teria para o novo projeto de nação que se implementava com Salazar:

O sr. Ministro da Instrução tem que velar pela educação do povo. Para isso, precisa de escolas, mas precisa, também, de estádios, piscinas, e ginásios. Porque no dia em que Portugal tivesse uma população média de sábios e uma minoria de homens válidos para a luta em campo raso, a Pátria estaria irremissivelmente perdida.
O sr. Ministro da Guerra, a quem está confiada a missão sacrossanta de defender a Pátria, precisa de homens fortes, sãos, destros, acostumados a luta, apetrechados da coragem que só a consciência na própria força pode dar. Esses homens encontrá-los-á nas fileiras desportivas.
O sr. diretor do Secretariado de Propaganda Nacional tem a seu cargo a propaganda do País e a valorização de todas as iniciativas, dentro e fora das fronteiras, e o desporto nacional constitui uma força de propaganda capaz de atingir os mais latos objetivos.
Ao sr. Presidente da República, Chefe de Estado, supremo magistrado da Nação, interessa que o Povo seja forte, para que continue a cumprir a sua missão civilizadora e a afirmar a vitalidade duma raça que soube dar leis ao Mundo e que terá de marear sempre o seu lugar no concerto das nações. (Diário de Notícias, 27 nov. 1933, p. 1)

O discurso era uma interlocução direta com figuras ilustres do governo que ali se encontravam. A cerimônia inaugural do evento contou com a presença do Presidente da República, general Oscar Carmona, e com os ministros da Guerra, Luiz Alberto de Oliveira, e da Instrução Pública, Alexandre Alberto de Sousa Pinto. Apenas António Ferro, diretor do Secretariado de Propaganda Nacional não se encontrava presente, mas enviara Augusto Cunha como seu representante.

Raul de Oliveira procurava demonstrar as duas vertentes nas quais o esporte poderia ser útil na formação do Estado Novo: na formação eugênica da juventude, que criaria um povo forte e saudável, e na propaganda nacional. A questão eugênica era, por sinal, o principal argumento dos defensores de uma maior participação do governo junto ao esporte.

Raul Vieira, então presidente da Federação Portuguesa de Football Association (FPFA), em sua tese apresentada no congresso – publicada no ano seguinte – argumentava: “Toda despesa dispendida no aperfeiçoamento de sua constituição física [da nação] deve ser considerada produtiva, porque um país será tanto mais forte quanto mais robusta for a sua raça” (VIEIRA, 1934, p. 9). O discurso produzido acerca da prática desportiva buscava se referenciar na função social de preparação das gerações futuras e apontava a prática desportiva como elemento fundamental neste processo.

Com o encerramento do Congresso de Clubes Desportivos, em 1933, foi organizada uma grande parada de desportistas e ginastas que acompanhariam até o Terreiro do Paço uma comissão designada pelo evento, que levaria a Salazar as deliberações do congresso, apresentadas como sugestões e aspirações dos desportistas portugueses. Reunindo-se na praça onde era finalizada a edificação do monumento ao Marquês de Pombal, estimou-se que cerca de 4 mil pessoas, entre atletas e crianças, desceram a avenida do antigo Passeio Público, já chamada de Avenida da Liberdade, e desfilaram até a Praça do Comércio, no dia 03 de dezembro de 1933.

Salazar recebeu os representantes do congresso em seu gabinete no Ministério das Finanças. Esses, junto a todas as resoluções aprovadas no congresso, apresentavam como principal pedido, a construção de um Estádio Nacional. Ao fazê-lo, justificavam seu pedido ressaltando a importância política que ele teria para a nação:

sob o ponto de vista das relações internacionais, pelo que o desporto contribui para a aproximação entre os povos e como factor importantíssimo da propaganda de uma nação, citando-se, a exemplo o que tem feito na Checo Eslovaquia, com a obra do «Sokols», na Suecia, na Holanda, na Belgica, no Uruguai, na Italia, etc. (Diário de Notícias, 04 dez. 1933, p. 1)

Depois de escutar os delegados do congresso e de receber suas considerações em um documento oficial, Salazar se dirigiu à multidão que aguardava sua já programada resposta ao microfone na Praça do Comércio. O chefe de governo termina seu discurso com uma promessa dirigida a todos os desportistas do país: “regozijemo-nos, porque teremos em breve o Estádio Nacional!” (SALAZAR, 1935, p.271).

A Inauguração do Estádio Nacional

Onze anos depois, não tão breve quanto fora prometido por Salazar, o Estádio Nacional foi inaugurado, em uma das maiores festas oficiais realizadas no Estado Novo. É verdade que as iniciativas para a construção do estádio começaram já em 1934, em uma portaria publicada no dia 01 de março, previa-se a inauguração do Estádio Nacional como parte das festas do duplo centenário de 1940, comemoração pelos oito séculos da Fundação de Portugal e três séculos de Restauração da Independência, após a União Ibérica. A inclusão da construção do estádio em uma das maiores festas organizadas pelo regime salazarista já pode considerada como um indicador da importância simbólica do estádio e do futebol no período. No entanto, devido ao início da Segunda Guerra Mundial e à dificuldade financeira e de obtenção de materiais de construção provenientes da mesma, as obras foram iniciadas em 1938, mas se estenderam até o ano de 1944.

Na festa de inauguração do estádio, sem dúvidas a maior ode desportiva ao regime, não se pouparam louvores à Salazar e seu regime. Em plena Segunda Guerra Mundial e atravessando racionamentos e outras dificuldades dela provenientes, o governo executava uma grande cerimônia cívica para entregar o que era visto como a maior contribuição do Estado português ao esporte. E mesmo onze anos depois, sua promessa não fora esquecida – na realidade, ela era constantemente mobilizada pela imprensa desportiva.

Como sempre, a promessa cumpriu-se. (…) Dá-nos motivo de legítimo orgulho porque, uma vez completadas as obras do plano geral – o nosso Estádio será o mais completo da Europa. É sóbrio e grandioso – é, sobretudo uma realização portuguesa, com materiais portugueses, sem copiar em nada o que existe no estrangeiro. (Diário de Notícias, 09 jun. 1944, pp. 1-2)

Apesar da reportagem proclamar a execução exclusivamente nacional do estádio, uma prática discursiva que visava realçar o caráter nacionalista que o desporto mobilizava, deve-se ressaltar que o projeto teve grande contribuição de arquitetos alemães como Konrad Wiesner, assistente de Heinrich Wiepking, que havia trabalhado no projeto do Estádio Olímpico de Berlim. Carl Diem, um dos principais organizadores das Olimpíadas de Berlim de 1936, também teria dado conselhos ao projeto.

Como sempre, a promessa cumpriu-se. (…) Dá-nos motivo de legítimo orgulho porque, uma vez completadas as obras do plano geral – o nosso Estádio será o mais completo da Europa. É sóbrio e grandioso – é, sobretudo uma realização portuguesa, com materiais portugueses, sem copiar em nada o que existe no estrangeiro. (Diário de Notícias, 09 jun. 1944, pp. 1-2)

            A festa do esporte tornou-se assim uma festa de Portugal. A grandiosidade do evento pode ser vista pelos números que envolveram sua preparação. O Grêmio dos Industriais de Transportes em Automóveis, um dos diversos responsáveis pelos transportes exclusivos para o evento, expôs em seu relatório que utilizara 101 ônibus e 161 taxis para transportar 23.517 pessoas do público presente, além de 112 ônibus para o transporte de 15.136 atletas no dia do evento, contando, além disso, com 3 estacionamentos para carros particulares. O estádio, que ficou lotado, podia receber cerca de 50.000 espectadores, mas a estimativa oficial era a de que a presença de pessoas, entre público e atletas, fosse em torno de 60.000 pessoas. Vale ainda ressaltar que a população do concelho de Lisboa, de acordo com o censo de 1940, era de 702.409 pessoas. Ou seja, o equivalente a pouco menos de 10% de toda a população de Lisboa estava presente no evento, considerando-se o público e os atletas envolvidos.

As ruas nos arredores do estádio, entre o Cais do Sodré e a Cruz Quebrada, foram interditadas das 13:45 às 16:30 e das 18:45 às 22:15, com tráfico restrito a transportes autorizados pela organização do evento, e os estabelecimentos de comércio e indústria de Lisboa se encerraram excepcionalmente às 13:00. A Mocidade Portuguesa comunicou a seus filiados que iriam se apresentar no evento que estes deveriam se retirar do estádio “imediatamente após o ato inaugural”, para que retornassem para suas casas, devido ao grande número de pessoas que transitaria pelo local após o jogo de futebol. Os ingressos postos à venda para o público se esgotaram no primeiro dia de venda, e a procura por ingressos por parte de autoridades e outros órgão do governo levaram António Eça de Queirós, sub-diretor do Secretariado e responsável pela distribuição dos bilhetes de cortesia, a comentar: “É evidente que no enorme, direi mesmo, no prodigioso assalto que me foi feito e aos meus serviços para serem dados convites  me vi em muitos sérios embaraços para que o meu duro e delicado trabalho não fôsse desiquilibrado por completo” (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. Fundo SNI, cx. 5240).

O evento tornara-se maior do que o esporte, tornara-se um símbolo de Portugal sob a égide de Salazar, que conduzia a nação em paz, em meio à guerra que assolava a Europa. Esse caráter fica evidente no discurso que António Ferro, homem forte da propaganda salazarista, pronunciara pelo rádio, através dos microfones da Emissora Nacional, afirmando que “a inauguração do Estádio ultrapassa os limites de uma simples festa desportiva, para atingir um significado mais alto e mais vivido”, e que “A festa da inauguração do Estádio não é apenas, portanto, a grande festa do esporte nacional, mas acima de tudo, a apoteose de Portugal Novo, a confiança no dia de hoje e a certeza do dia de amanhã” (Diário da Manhã, 11 jun. 1944, p. 6.). De fato, a festa de inauguração foi uma grande parada cívica a celebrar o regime e uma imagem de auspicioso futuro do país sobre o comando de Salazar.

Contando com a presença de Salazar e Carmona no estádio, a festa se iniciou com desfile ginástico da Mocidade Portuguesa, no qual milhares de jovens saudaram as autoridades de braço ao alto e depois realizam demonstrações de exercícios atléticos. Seguiu-se a isso a disputa de corridas de 100 e 800 metros entre atletas federados a clubes da capital, ambas vencidas por representantes do Sporting Club de Portugal. Inicia-se então um desfile de moças da FNAT e na sequência um com atletas das diversas modalidades dos clubes da capital e adjacências. Estavam presentes atletas de hipismo, com suas casacas vermelhas, calções brancos e altas botas negras, de tiro, com suas armas debaixo do braço, de esgrima, de sabres em punho, assim como de futebol, tênis, remo, natação, automobilismo, vela, atletismo, rúgbi e outros mais, todos uniformizados de acordo com a prática do seu esporte.

Depois dos desfiles, um atleta leu ao microfone uma mensagem para os chefes de Estado e de Governo. O agradecimento a Salazar mostra tom eufórico e hiperbólico.

SALAZAR! Devemos-te a esperança! Devemos-te a paz! Devemos-te o presente!
Mas a partir de hoje a nossa dívida tornou-se ainda maior:
Devemos-te a certeza! Devemos-te a alegria! Devemos-te o futuro!
Em nome de todos nós! Em nome de todos aqueles que hão de vir depois de nós, mais fortes e mais saudáveis! Bem hajas, Salazar, por teres cumprido a tua promessa!
Obrigado pelos séculos fora! Obrigado para sempre!
(Diário de Notícias, 11 jun. 1944, p. 1)

O Estádio Nacional aparecia assim como uma das maiores realizações do Estado Novo até então e Salazar era retratado como seu idealizador e executor. Sua promessa feita onze anos antes era agora cumprida em pleno período de guerra, da qual dizia-se que Portugal escapara devido a Salazar. Chegou-se mesmo a cogitar, por parte da imprensa e de alguns nomes ligados ao esporte, que o estádio recebesse o nome do ditador.

Conclusão

Voltamos assim à epígrafe da Alberto Freitas, que iniciou este artigo. Como mais uma ode à Salazar, no contexto da inauguração do Estádio Nacional, o jornalista  buscava associar o governante à prática esportiva, ainda que não tivesse meios concretos para fazê-lo. Ao afirmar que “Não só os músculos definem o atleta”, o redator esforçava-se para traçar paralelos entre Salazar e o fenômeno esportivo. Mesmo com o distanciamento real entre homem e prática, o esporte pôde ser observado em esporádicos momentos junto à propaganda nacional, como no caso da inauguração do Estádio Nacional. Sua edificação em tempos de guerra foi uma marca não só a capacidade edificadora do regime, mas também de uma ligação simbólica entre Estado, esportes e capacidade física de seus cidadãos. O discurso produzido em torno do evento, da promessa cumprida de Salazar e de sua suposta ligação com o desporto, era utilizado tanto pelo regime como pelo campo desportivo. O Estado se utilizava do esporte, assim como os agentes do campo esportivo se beneficiavam das iniciativas oficiais.

Referências:

SALAZAR, Oliveira.  Discursos: 1928-1934. Coimbra: Coimbra Editora, 1935.

VIEIRA, Raul. A difusão do desporto: meios eficientes para obtê-la em todo o país. Lisboa: [s.n.], 1934.


Jornalistas e Cartolas: uma reflexão sobre o jornalismo esportivo como fonte histórica a patir de uma análise do Jornal do Brasil e do Jornal dos Sports no dissídio esportivo dos anos 1930

30/01/2023

por Maurício Drumond

Dentro do campo da História do Esporte, o uso de material da imprensa esportiva como fonte histórica é recorrente, e mesmo natural. Como apontado por Victor Melo et al. (2013, p. 120), “os periódicos, notadamente os jornais, são muito usados nos estudos históricos (…). De fato, provavelmente permanecerão por muito tempo como sua principal fonte”. São raros os trabalhos sobre os esportes, e sobre o futebol no Brasil em particular, que não utilizam matérias do jornalismo esportivo como fontes. E isso não deve ser encarado como um problema. De fato, as páginas dos jornais representam um importante meios de comunicação e de registro que permanecem acessíveis aos pesquisadores, onde um grande volume de informações sobre assuntos relacionados ao esporte podem ser acessadas e interpretadas. Tendo-se em conta um procedimento metodológico adequado, as páginas esportivas são, sem dúvida, um importante manancial de informações para historiadores que se debruçam sobre diferentes aspectos do fenômeno esportivo. O artigo de Tânia de Luca (2010) ainda é um importante ponto de partida para quem busca compreender melhor essa metodologia. De forma bem resumida, pode-se afirmar que em um trabalho de pesquisa histórica, é parte fundamental do ofício do historiado adotar um olhar crítico sobre suas fontes, de modo que este não seja levado à conclusões distorcidas devido ao mal uso de fontes tendenciosas.

No entanto, ainda é possível encontrar obras em que tais fontes parecem ser utilizadas sem esses mínimos cuidados. Onde tem-se a impressão de que os jornais apresentam o passado “como ele realmente aconteceu”, em uma abordagem rankeana da história, no que Melo et al. (2013, p. 120) definem como uma “crença ingênua de que os jornais apenas registram os acontecimentos, sendo, portanto, confiáveis para o relato do passado”. Isso não quer dizer, no entanto, que tais fontes não possam, ou mesmo não devam, ser utilizadas pelos historiadores ou pesquisadores em geral. Deve-se apenas levar tais fatores em consideração ao se proceder com a análise do material utilizado.

Este post tem como objetivo demonstrar a importância de tais cuidados ao se estudar o esporte nas páginas dos jornais. Já fiz apontamentos nesse sentido em outro post aqui no blogue (LINK), sobre a imprensa esportiva na Argentina peronista. O presente trabalho teve início durante minhas pesquisas sobre o esporte no primeiro governo Vargas. Ao analisar a imprensa esportiva carioca no período de 1933 a 1937, foi visível a diferença de enfoque com que diferentes jornais lidavam com o mesmo assunto. Dentre esses, destaco aqui dois dos principais jornais da cidade do Rio de Janeiro, o Jornal do Brasil (JB) e o Jornal dos Sports (JS). Em um momento no qual a organização esportiva estava dividida entre dois grupos dirigentes antagônicos, o JB e o JS conduziam suas matérias de forma visivelmente parcial, tornando-se porta-vozes dos grupos em conflito, no que Bernardo Buarque de Hollanda (2012) chamou de “cronistas-cartloas”, ou seja, agentes da imprensa esportiva que transitavam entre os campos do esporte e da imprensa.

Para melhor entendermos a questão aqui proposta, faz-se necessária uma breve análise do período em que a organização esportiva nacional esteve dividida entre dois grupos antagônicos, fato conhecido na época como o dissídio esportivo.

O dissídio esportivo

O governo de Vargas teve como uma de suas principais marcas uma profunda ambiguidade, entre modernização e tradição. Por um lado, o país atravessava uma grande modernização econômica e social, com a implementação de ampla gama de políticas sociais, envolvendo a regulamentação da educação, do serviço público, do trabalho e da cultura, por exemplo, e com uma crescente racionalização do aparelho burocrático do Estado, que provia meios administrativos e recursos financeiros a essas políticas. Junto a essa modernização, conviviam fortes características tradicionais, representadas pelas oligarquias regionais que ainda possuíam grande influência junto ao governo.

Tal ambiguidade pode ser também encontrada nas relações entre Estado e esporte, em especial no que se refere à inserção do profissionalismo no Brasil. Um olhar mais superficial sobre a relação entre Getúlio e o esporte poderia apontar para um esforço do Estado na consolidação do regime profissional no esporte brasileiro. Contudo, tal não foi o caso, como pode ser visto no processo de construção do profissionalismo do futebol brasileiro.

Amador desde adoção pelas elites brasileiras no início do século, o futebol se modernizava e os clubes tentavam acompanhá-lo, buscando meios de burlar as barreiras limitadoras do amadorismo vigente. O amadorismo marrom era feito através do pagamento de “bichos” aos jogadores amadores – como não podiam receber salários dos clubes por serem amadores, os jogadores recebiam prêmios por cada jogo disputado.

O amadorismo marrom foi uma das maiores armas utilizadas pelos clubes para manter seus jogadores e aliciar craques de outras equipes. No entanto, no final dos anos 20 e início dos 30, o futebol se profissionalizava na Argentina e no Uruguai, e a Itália descobria os Oriundi – jogadores descendentes de italianos que eram cooptados para times da terra de Mussolini e do calcio. Os clubes de futebol brasileiros começavam a sofrer com um grande êxodo de jogadores brasileiros para o exterior. Em 1931, muitos jogadores paulistas foram parar na Itália, como Filó[1], Del Debbio, Serafini, Pepe e Ministrinho – todos que já haviam defendido a seleção brasileira –, assim como Nininho e Ninão, ambos do Palestra Itália de Belo Horizonte, atual Cruzeiro.

Devido ao êxodo de jogadores para o exterior e o baixo poder aquisitivo dos clubes, o profissionalismo passou a ser visto por alguns como o único caminho a ser seguido rumo à modernização do futebol brasileiro. A ideia de considerar jogadores profissionais verdadeiros trabalhadores ainda enfrentava grandes barreiras, mas não era mais inconcebível.

Alguns clubes de São Paulo e do Rio de Janeiro passaram então a pleitear a introdução do regime profissional junto à Confederação Brasileira de Desportos (CBD). Entre esses, encontravam-se os ex-presidentes da CBD Arnaldo Guinle e Oscar Costa, ex-presidente e presidente do Fluminense respectivamente, assim como dirigentes da entidade gestora do futebol paulista, a Apea. Com a recusa por parte da CBD em acatar os termos do regime profissional, Fluminense, Vasco, Bangu e América tomam a iniciativa de romper com a Amea e criam a Liga Carioca de Futebol (LCF), à qual o Flamengo logo aderiu. A LCF adotou o profissionalismo como regime vigente e foi rejeitada pela CBD, que só aceitava entidades amadoras. A nova Liga Carioca teve seu primeiro campeonato em 1933, disputado por América, Bangu, Bonsucesso, Flamengo, Fluminense e Vasco. O Bangu sagrou-se o primeiro campeão do regime profissional no Rio de Janeiro, vencendo o Fluminense na final. Assim, o futebol seguia os passos de outros esportes que haviam criado Ligas paralelas à Amea, como o tênis, em 1931, o atletismo e o basquete, ambos em 1933.

Juntamente com a criação da LCF no Rio de Janeiro, a Apea adota o profissionalismo e se desliga da CBD. Em pouco tempo, as duas entidades recebem o apoio da Federação Fluminense de Esportes (com clubes do estado do Rio de Janeiro, que tinha sua capital na cidade de Niterói, visto que a cidade do Rio de Janeiro era ainda o Distrito Federal), da Associação Mineira Esportes e da Federação Paranaense de Desportos e formam a Federação Brasileira de Football (FBF). Esta representava o futebol profissional em todo o país. Presidida por Sérgio Meira, ligado ao São Paulo, a FBF tinha em seus quadros os maiores clubes do Brasil: América, Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama, Corinthians, Palestra Itália-SP, Santos, São Paulo, Palestra Itália-MG, Atlético Paranaense e Coritiba, entre outros. Já a CBD continuou contando com os clubes das demais federações, como a Bahia e o Rio Grande de Sul, além dos times amadores que não se uniram à FBF, como o Botafogo.

Um olhar mais atento à cisão do futebol brasileiro pode, no entanto, observar que a disputa não era uma mera discordância entre amadores e profissionais. O dissídio representava as próprias contradições do regime vigente. A antiga elite que dirigira o futebol nacional, representada por Arnaldo Guinle, que fora presidente da CBD de 1916 a 1920, perdia o controle da direção do esporte nacional para um novo grupo que ascendia juntamente à Revolução de 1930. Nomes como Luiz Aranha e João Lyra Filho, ligados à CBD e ao Botafogo, passavam a exercer grande influência junto à Confederação Brasileira de Desportos e iam aos poucos assumindo o controle da entidade.

A imprensa esportiva e a pacificação em 1934

Em 1934 aparece a primeira tentativa de fim ao dissídio, logo chamada de pacificação dos esportes. Essa primeira proposta de acordo entre a Confederação Brasileira de Desportos e a Federação Brasileira de Football veio à tona pouco após a desclassificação da seleção brasileira da Copa de 1934, no mês de junho. É importante observar aqui que a precoce eliminação da seleção nacional, que perdeu o jogo eliminatório da estreia, pode ter sido um fator determinante na movimentação de dirigentes da CBD, visando reformar e fortalecer o futebol da seleção nacional, o carro chefe a CBD.

A proposta apresentada previa, entre outras medidas, que a FBF e suas afiliadas especializadas (as federações regionais de futebol) fossem reconhecidas pela CBD, fazendo com que a FBF, então filiada à Confederação Brasileira, dirigisse o futebol nacional. No Rio de Janeiro, a Liga Carioca de Football assumiria o futebol da cidade, com a incorporação de um único clube da Associação Metropolitana de Esportes Athléticos (Amea) a seus quadros – o Botafogo. Dos demais clubes de futebol ligados à Amea, alguns fariam parte de uma liga de amadores – como o Olaria, o Brasil e o Andarahy – e outros entrariam para uma subliga, a segunda divisão da época. Nos outros esportes, o basquete seria dirigido pela Liga Carioca de Basketball, uma das especializadas, e o atletismo teria uma nova liga criada, com a unificação da Amea e da Liga Carioca de Athletismo.

Esse “pacto de paz” foi assinado por dirigentes de ambas as facções em luta, como Arnaldo Guinle (então com o cargo de presidente do Conselho de Administração da LCF), Luiz Aranha (presidente do Conselho de Administração da CBD), Sergio Meira Filho (presidente da FBF) e Eduardo Góes Trindade (presidente da Amea), além de um convidado representante da Liga Argentina de Football, Enrique Pinto.

A repercussão deste acordo ganhou diferentes tons junto aos diferentes órgãos da imprensa esportiva. O Jornal do Brasil, que desde o início do dissídio havia tomado abertamente a defesa da Confederação Brasileira de Desportos e de suas afiliadas, as chamadas entidades ecléticas, não procurava esconder em suas páginas seu descontentamento com o acordo que estava para ser firmado, como pode ser visto em matéria intitulada “A tal ‘pacifiação’”, publicada no dia 05 de junho:

A nota dominante em nossos meios esportivos é a tal “pacificação” que, segundo se afirma, os mentores profissionalistas que para a desgraça do nosso sport, ao que parece, o empolgam no momento, vão impingir aos que se tem batido com sinceridade pela verdadeira causa do sport nacional, concretizada nessa organização magnífica e sem similar no mundo inteiro, que é a Confederação Brasileira de Desportos. (Jornal do Brasil, 05/06/1934, p. 24)

Pode-se observar, por este trecho, que o Jornal do Brasil não escondia de que lado estava e em nome de quem falava. Ao se referir à CBD como uma “organização magnífica e sem similar no mundo inteiro”, não havia dúvida de que o jornal estava contrário ao grupo liderado por Arnaldo Guinle, que, de acordo com o próprio jornal, empolgavam o esporte nacional no momento, mesmo que para a suposta desgraça do mesmo.

O Jornal do Brasil continuaria mostrando sua insatisfação com o acordo firmado em uma série de artigos em que tentava provar que o pacto atendia apenas os interesses da FBF. De acordo com o JB, tal acordo prejudicaria todos os esportes, com exceção do futebol, uma vez que seria o lucro com o futebol que permitiria a Amea e todas as outras entidades ecléticas regionais financiarem os outros esportes. Dessa forma, o jornal publicou uma série de matérias que, ao falarem dessa proposta de pacificação, se referiam a ela em seus títulos como “pretensa pacificação”: “A Pretensa Pacificação que vai Desmantelar o Sport Nacional” (07/06/1934, p. 24), e “A Pretensa Pacificação dos Sports Nacionais” (15/06/1934, p. 25).

Já o Jornal dos Sports, que à época era dirigido por Argemiro Bulcão, apontava a proposta de pacificação como a grande esperança para o bem do esporte nacional. Já em 02 de junho, o jornal estampava com grande destaque em sua primeira página: “Para Grandeza dos Sports Brasileiros a Pacificação Virá!” (Jornal dos Sports, 02/06/1934, p.1). A assinatura do pacto foi vista com muita felicidade pela redação do Jornal dos Sports, que na edição do dia 07 de junho publicou a matéria “Uma Nova Trilha, Tranquila e Esperançosa, para os Sports Nacionaes”, onde dizia:

A pacificação dos sports, hontem feita atravez do pacto firmado pelos “leaders” mais proeminentes das duas facções que lutavam sem desfallecimentos, há mais de um anno, é, antes do mais, uma victória para o próprio sport brasileiro, seu maior beneficiário (…). (Jornal dos Sports, 07/06/1934, p.1)

Ainda que de forma mais velada, é possível ver no Jornal dos Sports sua predileção pela liga especializada. O acordo, tido pelo JB como alog benéfico para a FBF, em prejuízo à CBD, era tratado como “uma vitória para o próprio esporte brasileiro”. O destaque dado cotidianamente aos dois campeonatos organizados simultaneamente pela Amea e pela LCF demonstra a posição do jornal. Se por um lado o Jornal dos Sports destinava a maior parte de suas manchetes de primeira página aos times da LCF – Flamengo, Fluminense e, até 1935, Vasco da Gama –, por outro o Jornal do Brasil dava uma cobertura muito mais ampla aos jogos organizados pela associada regional da CBD, como Botafogo e Olaria, Andarahy e Cocotá, Portuguesa e Mávilis. Nas páginas do JB, até mesmo os jogos da segunda divisão da Amea tinham maior destaque dos que os jogos da LCF, mesmo que se tratasse de jogos como Argentino e América Suburbano, Ideal e Penha, Irajá e Municipal, Brasil Suburbano e União, pela Amea, e Fluminense e Bangu, Bonsucesso e Vaso, pela LCF (Jornal do Brasil, 01/06/1934, p. 22). Um pesquisador desatento, sem conhecimento do futebol carioca, poderia achar que Flamengo e Fluminense não jogaram nesse período, caso se informasse apenas pelo JB.

No final de julho de 1934, aproximadamente dois meses após a assinatura do pacto assinado por Luiz Aranha, uma assembleia de diretores da CBD e representantes de suas entidades filiadas decide rejeitar as bases do pacto firmado em início de junho. Mais uma vez, as respostas dos dois órgãos de imprensa esportiva aqui analisados são díspares no tratamento da questão.

O Jornal dos Sports vê a rejeição do pacto como uma atitude impatriótica, e aponta a Confederação Brasileira de Desportos como culpada pelo fracasso nas negociações. Tal fato pode ser observado na matéria “A Federação Brasileira de Football Considera inexistente o Pacto de Paz!”:

A última tentativa de paz, na qual ambas as correntes cediam parte de suas imposições a bem de uma tranquilidade posterior, vem agora de ruir. Toda a culpa cabe, sem dúvida alguma, aos mentores da C.B.D., que embora reconhecidos pela opinião insuspeita do público como vencidos, ousaram uma vez mais repudiar uma paz, em que na verdade o vencedor não espesinhava o adversário. (Jornal dos Sports, 03/08/1934, p. 1)

Se afastando um pouco mais de sua aparente neutralidade, o Jornal dos Sports apontava claramente um grupo como “vencedor” do embate entre as duas facções – o grupo das especializadas liderado por Arnaldo Guinle. Já o Jornal do Brasil comentou a notícia com um tom de felicitação ao que, sob seu ponto de vista, foi uma atitude de coragem e bom senso dos dirigentes cebedenses. No artigo “A Situação do Sport Nacional”, comenta que a ação foi “natural”, “lógica” e fruto de “bom senso”.

O gesto da assembleia geral da Confederação Brasileira de Desportos recusando as bases do pacto de 6 de Junho foi natural, lógico, numa demonstração clara de bom senso e eloquente em sua unanimidade. (Jornal do Brasil, 07/08/1934, p. 22)

Na mesma matéria, o Jornal do Brasil ainda ataca o grupo das especializadas (FBF e entidades regionais), acusando-o de manipular os órgãos da imprensa esportiva que se colocavam contra a atitude da assembleia da CBD e ao fim do pacto de paz.

O despeito pelo ruidoso fracasso dessa tentativa, o desespero de não poder humilhar (…) o adversário levaram esse grupo, através de sua imprensa, a atacar justamente aqueles que, num movimento de legítima defesa para o resguardo da própria vida, recusaram o pacto (…). (Jornal do Brasil, 07/08/1934, p. 22)

Ao utilizar a expressão “através de sua imprensa”, o JB deixava claro o papel exercido por veículos como o Jornal dos Sports, privando-se de mencionar que desempenhava o mesmo papel, apenas de outro lado. É interessante observar que a figura do dirigente Luiz Aranha – talvez por sua influência política ou por prestígio pessoal – é exaltada por ambas as correntes da imprensa como um digno dirigente que buscava o melhor para o esporte nacional. Figura proeminente no campo político nacional, ele era irmão de Oswaldo Aranha, membro fundador do Clube 3 de Outubro e amigo íntimo de Getúlio Vargas – que se refere a ele ao longo de seu diário como “Lulu Aranha” (VARGAS, 1995). Luiz Aranha ocupou o cargo de presidente do Conselho Administrativo da CBD durante a presidência de Alvaro Catão, entre 1933 e 1936, e foi presidente da entidade entre 1936 e 1943. Ou seja, ele esteve à frente da entidade durante praticamente toda a disputa do dissídio esportivo.

Dependendo do lado defendido pelo jornal, Luiz Aranha poderia ter sido induzido ao erro de assinar o pato por sua vontade em encerrar a cisão no esporte (como visto pelo JB), como poderia ter sido traído pelos dirigentes da CBD, que rejeitaram seu acordo. Essa última visão ficava clara nas páginas do Jornal dos Sports, como no artigo “A Federação Brasileira de Football Considera inexistente o Pacto de Paz!”, matéria que comentava o fim do pacto de paz e afirmava: “Os srs. drs. Luiz Aranha e Eduardo Trindade, que foram incansáveis baluartes nos últimos estertores da entidade cebedense, viram baldeados todos os esforços desenvolvidos em prol de uma paz digna para as duas correntes” (Jornal dos Sports, 03/08/1934, p. 4).

A primeira tentativa de acordo falhara, e as disputas continuariam por cerca de três anos.

O percurso até o fim do dissídio

Em dezembro de 1934, o Vasco da Gama, campeão carioca daquele ano, decide abandonar as fileiras da LCF após uma breve crise com as diretorias do Flamengo e do Fluminense. O clube dos camisas negras aposta todas as suas fichas no título recém conquistado e, juntamente com o Botafogo, funda uma nova entidade no Rio de Janeiro, a Federação Metropolitana de Desportos (FMD), ligada à CBD. A diretoria vascaína pretende usar de seu prestígio e carregar consigo os pequenos clubes à nova entidade. Bangu e São Cristóvão seguem o exemplo e desligam-se da LCF para se filiar à nova entidade. Em São Paulo, o Palestra Itália – campeão paulista pela APEA – e o Corinthians desligam-se da entidade profissional e fundam a Liga Paulista de Futebol, também filiada à CBD. Em apenas alguns dias a FBF perde três dos maiores clubes de seus quadros, entre eles os campeões do Rio e de São Paulo. Com isso a CBD consegue se reerguer, mas paga um preço por tais aquisições: o fim do amadorismo. Clubes como Corinthians, Palestra Itália, Vasco da Gama e Bangu não voltariam ao amadorismo tão facilmente.

Por mais que a CBD ainda tentasse manter as aparências, é evidente que as coisas já não eram mais como antes. Com a FMD e a Liga Paulista, a CBD adota o “regime livre” – também chamado de regime misto –, concentrando em um mesmo campeonato equipes amadoras e profissionais.

Com a nova configuração das forças do futebol brasileiro, passa-se a falar muito pouco sobre a questão do amadorismo e do profissionalismo. O grande desentendimento que supostamente teria provocado a criação de novas entidades gestoras do esporte não era mais um obstáculo à conciliação das partes. No entanto, a rixa que havia entre os dois regimes ficava mais clara como uma luta entre duas facções pela hegemonia do controle do esporte brasileiro, uma luta entre grupos que agora levantavam as bandeiras das entidades especializadas e ecléticas.

O ano de 1937 assistiu ao fim do dissídio com a chamada “pacificação dos esportes”. Em 1937 a CBD voltou a sofrer importantes baixas em seus quadros. Os clubes de Juiz de Fora decidiram abandonar a Associação Mineira de Futebol, ligada à entidade eclética e alinharam-se à FBF. O Mesmo aconteceu em Porto Alegre, onde os principais times da Liga Atlética Porto Alegrense – Internacional, Grêmio, Força e Luz e Cruzeiro – também passaram para o lado das especializadas. No Rio de Janeiro, o Bangu demonstrou insatisfação em ralação à FMD e seus dirigentes mostraram-se nostálgicos quanto a seu tempo junto à LCF. No início de julho o Bangu pediu seu reingresso nas fileiras das especializadas e abandonou a FMD.

Em 17 de julho de 1937, o América e o Vasco da Gama apresentaram uma proposta de reunificação do futebol carioca. O pacto entre América e Vasco criava uma nova entidade no futebol carioca, à qual todos os grandes clubes da cidade estavam convidados a entrar como membro fundador. Com a criação de uma terceira entidade, tanto a FMD como a LCF seriam dissolvidas. A nova agremiação se filiaria à Federação Brasileira de Futebol e essa, por sua vez, pediria filiação à CBD. Nesta nova organização de forças, a FBF ficaria responsável pelo futebol brasileiro e a CBD (entidade filiada à FIFA) seria a responsável pela representação do Brasil no exterior. Desse modo, todos os clubes brasileiros deveriam se filiar à Federação Brasileira de Futebol, ou não poderiam enfrentar os outros clubes filiados à mesma.

Essa nova divisão de poderes no futebol deixava bem claro quem havia saído do dissídio esportivo como vencedor. A CBD não saía do dissídio com nenhum benefício. Deixaria de comandar o futebol dentro do território nacional e ficaria apenas com o comando da seleção brasileira em disputas internacionais, encargo que já controlava antes do pacto por ser a entidade brasileira filiada à FIFA. Já o grupo ligado à FBF sagrava-se vitorioso na pacificação e assumia o controle do futebol no Brasil. No entanto, esse ponto de vista não era reproduzido por toda a imprensa esportiva carioca.

A imprensa esportiva no fim do dissídio

Em julho 1937, a imprensa esportiva foi surpreendida pela noticio do pacto entre América e Vasco que levariam ao fim do dissídio esportivo. Até meados de junho daquele ano, o Jornal do Brasil acusava as especializadas, a quem chamava de “dissidentes”, de estarem caminhando para o ocaso. Segundo os cronistas do jornal, as entidades rivais à CBD contavam em suas fileiras apenas com o que chamava de “tripé”: América, Flamengo e Fluminense, no Rio de Janeiro. A estes, somavam apenas o Atlético Mineiro, em Belo Horizonte, e a Portuguesa de Desportos, em São Paulo. Já a CBD teria em suas fileiras diversos clubes de renome, como o Botafogo e o Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, o Palestra Itália (atual Palmeiras), o Corinthians, o São Paulo, o Santos e a Portuguesa de Santos, em São Paulo, e o Palestra Itália (atual Cruzeiro) e o América Mineiro, em Minas Gerais.

Essa visão do Jornal do Brasil fica clara na ocasião em que Grêmio e Internacional se filiam à FBF, fortalecendo o grupo dos supostos “dissidentes”, na matéria “Um Bandeamento por Vantagens Momentâneas e Efêmeras”:

Literalmente batidos, encurralados nesse tripé [América, Flamengo e Fluminense], os dissidentes já estavam reduzidos, praticamente aos célebres Fla-Flu que a imprensa amiga proclamava como sendo coisa de outro mundo, embora esses quadros, na realidade, não passem de medíocres, com vários medalhões e uma propaganda formidável para alimentar o fogo sagrado de suas hostes. (Jornal do Brasil, 26/06/1937, p. 25)

Se referindo especificamente ao Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro, a reportagem mais uma vez criticava indiretamente o Jornal dos Sports por seu apoio às entidades especializadas. Além de reclamar da “imprensa amiga” e de sua “propaganda formidável”, o jornal forçosamente depreciava as equipes de Flamengo e Fluminense, referindo-se a elas como “medíocres”. Deve-se ressaltar aqui que Flamengo e Fluminense tinham dois dos melhores quadros do futebol nacional na época, com alguns dos maiores craques brasileiros [2].

Ao receberem a notícia do acordo entre Vasco e América, taxado como “pacto da paz” – como o primeiro pacto o fora três anos antes –, ambos os lados da imprensa procuraram demonstrar terem se saído vitoriosos na disputa. Para isso, mostravam seus dirigentes satisfeitos com o resultado das negociações, e ao mesmo tempo tentavam demonstrar a derrota do adversário com insinuações sobre o descontentamento do lado oposto com o acordo. Dessa forma, o Jornal do Brasil buscava demonstrar a vitória da CBD com uma declaração de Luiz Aranha relatada no artigo “Feita a Paz no Football Brasileiro”:

O dr. Luiz Aranha (…) felicitou a Metropolitana [Federação Metropolitana de Desportos – FMD] pela resolução tomada, mostrou como sempre esteve pronto a estabelecer uma paz honrosa e terminou declarando que a C.B.D. via igualmente com satisfação aproximar-se essa paz subscrevendo também, em nome da entidade máxima do desporto brasileiro a proposta Vasco-América. (Jornal do Brasil, 20/07/1937, p. 16)

Ao mesmo tempo, o jornal tentava mostrar uma possível insatisfação por parte de dirigentes da Federação Brasileira de Football e da Liga Carioca de Football com o pacto, insinuando uma possível derrota destas face ao acordo firmado.

Segundo os comentários que fervilham nas rodas desportivas, o sr. Arnaldo Guinle, que se acha na Europa tratando justamente de assuntos desportivos a ver se consegue alguma coisa em favor da dissidência, se manifestou aborrecido com o assunto e contrário ao pacto.
O América foi também taxado de traidor porque não só concorda em que os dissidentes voltem para a C.B.D., desta ou daquela maneira, mas na C.B.D., como ainda mata o pretexto da especialização pelo qual se batem.
O Dr. Ari Franco, presidente da Liga Carioca de Football, segundo declarações publicadas nos jornais, é contrário à formula apresentada e se dispõe a abandonar o desporto caso seja ela executada. (“Está Iminente a Paz no Football Carioca”, Jornal do Brasil, 20/07/1937, p. 16)

O jornal fazia afirmações que não se comprovaram em nenhuma outra fonte. Arnaldo Guinle não “se manifestou aborrecido” e Ari Franco não “abandonou o desporto”, segundo outras fontes. O mesmo padrão pode ser observado nas páginas do Jornal dos Sports, então já dirigido por Mario Filho.[3] Nesse período o jornal já se mostrava mais claramente ligado ao lado das especializadas, como demonstra uma foto estampada na primeira página do dia 12 de julho de 1937, sob a manchete “A Multidão Viu o ‘Enterro’ da C.B.D.” (Jornal dos Sports, 12/07/1937, p.1). A foto mostra torcedores segurando velas acesas e um pequeno caixão preto com os dizeres “C.B.D. – Galinha Morta”, antes de um jogo entre o Fluminense e um combinado de jogadores argentinos.

No mesmo dia em que o Jornal do Brasil noticiava a declaração de Luiz Aranha a favor da pacificação, o Jornal dos Sports publicou a fala do vice-presidente da FBF, Plínio Leite. Este comandava a entidade na ocasião, em virtude de viagem de Arnaldo Guinle à Europa. Na matéria “A Palavra do presidente em Exercício da F.B.F”, o Jornal dos Sports procura passar uma imagem vencedora da FBF. Segundo a matéria, Plínio Leite teria dito:

O contentamento é geral pelo prenuncio da terminação do dissídio do football nacional. Como vice-presidente da Federação Brasileira de Football cabe-me afirmar que o gesto do América assignando o pacto com o Vasco nada mais é do que ser elle o representante verdadeiro da opinião de todos os seus companheiros de lutas e que com elles estão solidários como sempre estiveram. (Jornal dos Sports, 20/07/1937, pp. 1 e 6)

Assim como o Jornal do Brasil, o Jornal dos Sports também procurou demonstrar uma possível insatisfação com o pacto pelo lado da CBD, de modo a que este aparecesse como o derrotado no processo de pacificação. Como exemplo pode-se apontar duas matérias publicadas no dia 18 de julho, sem maiores destaques na última página da edição. Em “«Traição do Vasco»> Eis como o Sr. Célio de Barros Classificou, Pelo Radio o Movimento em Prol da Paz Sportiva” (Jornal dos Sports, 18/07/1937, p. 6), o jornal menciona uma entrevista de Célio de Barros[4], secretário da CBD à rádio Cruzeiro do Sul, na qual este teria chamado o Vaso da Gama de traidor devido ao pato que firmara com o América. Já a matéria “A Situação do Botafogo é de Expectativa” alegava que o clima no Botafogo era de desaprovação à pacificação, dizendo: “havia até diretores (…) que preferiam ver o club com a sua secção de foot-ball extincta a aceitar uma paz iniciada nas condições do actual movimento” (Jornal dos Sports, 18/07/1937, p. 6).

Considerações Finais

Em 29 de julho de 1937 era realizada a solenidade de fundação da nova entidade que viria a gerir o futebol carioca, a Liga de Football do Rio de Janeiro (LFRJ). Não tardou muito para que o futebol paulista seguisse os passos da pacificação. Com o fim do dissídio em São Paulo, os clubes da Apea se filiaram à Liga Paulista de Futebol (LPF), que inscrevia a Portuguesa de Desportos como membro fundador da entidade e se filiava à Federação Brasileira de Football, agora ligada à CBD. No Paraná a federação Paranaense de Desportos, após um breve afastamento da FBF, voltou a pedir sua inscrição na entidade, também seguindo os parâmetros acordados no Distrito Federal. Em Minas Gerais, o mesmo acontecia com a Liga Esportiva Mineira, assim como em muitos outros estados do país.

Com o fim do dissídio, a paz voltou a reinar no futebol brasileiro. Os outros esportes que já organizavam ligas especializadas seguiram o mesmo caminho traçado pelo futebol, com os clubes se filiando à federação especializada e essa se filiando à CBD. Da mesma forma, a imprensa esportiva abraçou os ideais da paz, selando suas atividades de porta-vozes de entidades em conflito.

Do dia 21 ao 26 de julho, o Jornal do Brasil já repetia diariamente com grande destaque em sua página de “Notícias Desportivas” o confronto entre Flamengo e Fluminense, que ocorreria no dia 26/07. Já o Jornal dos Sports passa a dar maior destaque a notícias envolvendo o Botafogo e o Vasco da Gama em sua primeira página.

Vê-se, desta forma, que uma análise crítica das fontes estudadas é de fundamental importância para um trabalho histórico. Caso um pesquisador menos cuidadoso buscasse olhar o período através de um único veículo da imprensa esportiva, este teria uma visão parcial e desfocada do esporte no período analisado.

Como qualquer outra área da imprensa, da mídia, ou mesmo qualquer outra fonte produzida pelo homem, a imprensa esportiva é feita a partir de um olhar historicamente situado, feita a partir de um ponto de vista específico, por alguém de uma determinada posição social e visando atingir um público em preferencial. Assim, torna-se imprescindível para o pesquisador um olhar mais cuidadoso para a natureza da fonte, sendo ela a imprensa esportiva ou não.


[1] Anfilóquio Guarisi foi contratado pela Lazio e, por também possuir nacionalidade italiana, acabou sendo convocado para a seleção italiana que conquistou a Copa do Mundo de 1934 em casa. Chamado pelos italianos de Guarisi, Filó chegou a disputar um jogo na competição e se tornou o primeiro brasileiro campeão do mundo.

[2] Entre os grandes jogadores da dupla Fla-Flu de 1937, podemos destacar Leônidas da Silva, Romeu, Tim e Hércules, base do ataque da seleção brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1938.

[3] Mario Filho assumiu a direção do Jornal dos Sports em 1936, em meio ao dissídio esportivo, e manteve a política do jornal de fidelidade às especializadas, grupo que ele já defendia das páginas esportivas d’O Globo. De acordo com Rui Castro, Mario Filho teria adquirido o Jornal dos Sports de Argemiro Bulcão com dinheiro financiado de Arnaldo Guinle e José Bastos Padilha (Castro, 2001, p. 133). Padilha era concunhado de Mario Filho (era casado com a irmã de sua esposa) e foi presidente do Flamengo de 1933 a 1938.

[4] Célio de Barros era jornalista, presidente de Sport Club Brasil e importante dirigente da Confederação Brasileira de Desportos e do esporte carioca. O estádio de atletismo situado junto ao Maracanã foi nomeado em sua homenagem.

Referências bibliográficas

DE LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKI, C. (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2010.

HOLLANDA, Bernardo Buarque de. O cor-de-rosa: ascensão, hegemonia e queda do Jornal dos Sports entre 1930 e 1980. In: HOLLANDA, Bernardo Buarque de; MELO, Victor A. (Orgs.). O esporte na impresna e a imprensa esportiva no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

MELO, Victor A. et al. Pesquisa histórica e História do Esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

VARGAS, Getúlio. Diário.  2V.  São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV, 1995.


O ESPORTE NA MOCIDADE PORTUGUESA

10/10/2022

Maurício Drumond

Esporte e juventude são elementos frequentemente associados em regimes autoritários, especialmente nos de inspiração fascista. Um dos principais objetivos do fascismo perante as massas era o de “mobilizar e unificar as energias nacionais para o renascimento e o engrandecimento do país” (Paxton, 2007: 235). Tendo em vista esse fim, a mobilização do esporte (e das atividades físicas em geral) por esses regimes foi uma prática amplamente observada.

Juntamente com o esporte, encontrava-se a ideia de formação da juventude nacional. A constituição física dos jovens, os “novos” homens e mulheres da nação, futuros lutadores apolíneos e cidadãos obedientes, era uma grande preocupação de tais regimes. Seja na Itália fascista, na Alemanha nazista, na Espanha franquista, no Portugal salazarista, no Brasil varguista ou mesmo na Argentina peronista, organizações de mocidade paralelas ao sistema escolar estatal, de filiação mais ou menos obrigatória e com maior ou menor sucesso, foram criadas.

Na Itália surge, em 1926, a Opera Nazionale Balilla (ONB). Na Alemanha, a Juventude Hitlerista foi concebida em 1922, tornando-se responsável por toda juventude alemã a parir da ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933. O mesmo ocorreu em Portugal, com a criação da Mocidade Portuguesa (MP), em 1935, a partir da experiência com a Associação Escolar Vanguarda (AEV), de 1934. Herdeira aparente de suas congêneres alemã e italiana, a MP teve grande adesão popular, sendo sua participação obrigatória para todos os jovens, e sua inscrição anotada junto à caderneta escolar.

A relação entre a Mocidade Portuguesa e o esporte foi estreita desde sua origem.  No Congresso de Clubes Desportivos, a primeira grande iniciativa de organização do esporte português, ocorrida em 1933, o dirigente Salazar Carreira já reivindicava a criação de uma organização “semelhante aos Balilas de Itália”, em Portugal. Esta seria, segundo ele, encarregada de preparar os rapazes portugueses que viriam a ser os futuros defensores da pátria.

E é de fato sobre o modelo da Opera Nazionale Balilla e da Juventude Hitlerista que a MP iria ser formada. Luís Figueira, Comissário Nacional Adjunto do primeiro comissariado nacional da Mocidade Portuguesa teve a função de visitar as organizações da Itália e da Alemanha, tendo em vista estudá-las para melhor desenvolver a organização lusa. Desse modo, assim como na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussonlini, a organização da juventude em Portugal iria assumir o controle do ensino e da prática de esportes entre os jovens do país.

De acordo com Alberto Rosário (1996: 50), “[as atividades desportivas] constituíram para a MP o pilar principal do seu edifício e o cavalo de Tróia com que penetrou em muitos meios levando no bojo a ideologia do regime”. Ou seja, de acordo com o autor português, o esporte é um dos principais meios pelos quais os jovens eram atraídos à Mocidade Portuguesa, atuando como um “cavalo de Troia”. Joaquim Vieira destaca a importância do esporte para o sucesso da organização:

As razões para o sucesso inicial da MP junto da juventude portuguesa ficaram a dever-se, na maior parte, às portas que a organização abriu aos rapazes para o desenvolvimento de atividades físicas, fossem elas competições desportivas, exercícios de ginástica, desfiles e paradas, acampamentos ou a simples ocupação dos tempos livres em ações de carácter manual. (…) A MP aproveitou assim a lacuna crónica do sistema de ensino português no que respeitava ao cumprimento de sucessivos métodos e programas de educação física, que, apesar de adotados oficialmente, não passavam do papel, pela simples razão de que esse era um capítulo absolutamente menorizado, e até desprezado, na ação pedagógica. As modalidades desportivas nas escolas eram virtualmente inexistentes e o sistema de exercícios físicos praticados baseava-se nos princípios da chamada ginástica respiratória, de natureza estática, frustrando o instintivo desejo de movimento, ação e competição entre os rapazes.

Joaquim Vieira (2008: 159)

O desporto era, portanto, um elemento fundamental na estrutura da Mocidade Portuguesa e em sua capacidade de mobilização dos jovens. Vale lembrar que seu primeiro Comissário Nacional foi Francisco Nobre Guedes, nome conhecido do campo esportivo português, membro do Comitê Olímpico Português e profundo entusiasta do que definia como um caráter educacional do esporte. É dessa forma que, meses após sua criação, a MP tem uma delegação composta por 29 jovens entre 15 e 18 anos, enviados para representar o país no Campo Internacional da Juventude, um acampamento que reunia jovens de vários países, uma iniciativa dos organizadores dos Jogos Olímpicos de Berlim, que acontecia no mesmo momento. Antes de partirem, os jovens da MP foram a Palácio de São Bento e visitam Salazar e Carmona, chefes de governo e de estado de Portugal. O evento, descrito como o “primeiro ato público” da MP, mostrava a forte interação entre o esporte e a nova entidade.

Delegação da Mocidade Portuguesa em Dresden, Alemanha, na ocasião do “Campo Internacional da Juventude”, em 1936.

É necessário aqui se atentar para o caráter mobilizador do esporte. Além da preparação física da juventude, este exercia um grande atrativo para a atuação dos jovens junto à organização. De acordo com Serrado e Serpa (2010: 254), a prática do futebol nas ruas era proibida pela polícia de Lisboa, nessa época. Vidal e Gonçalves (2011: 156) citam ordens de serviços da polícia de Lisboa que informam que o Código de Posturas, em 1914, indicava uma multa para os que “se entregam ao jogo da bola, malha, foot-ball, etc.”, e mostram que havia certa tensão na prática de esportes na rua. Com a ginástica sendo priorizada frente ao desporto nas escolas e a prática de esportes nas ruas sendo reprimida pelas forças policiais, a Mocidade Portuguesa se tornava um dos espaços privilegiados para a prática de atividades físicas.

Foi assim que o esporte acabou por se tornar uma das principais estratégias de atração da juventude para a Mocidade Portuguesa. Ainda que Joaquim Vieira (2008: 167) afirme que “no ambiente das atividades desportivas da MP, a atmosfera era despolitizada, desprovida de proselitismo”, a participação ativa dos jovens nas organizações estatais da juventude do Estado Novo era em si o tipo de participação política almejada pelo governo. Não era almejada a discussão política e doutrinária em meio às atividades esportivas. Isso poderia ocorrer em outros momentos, de forma mais ou menos aparente. A própria presença dos jovens nas atividades da MP era o alvo final. A formação de redes de sociabilidade ligadas ao aparato do governo era o objetivo.

Integrantes da MP fazem a saudação à romana para a fotografia.

Essa função do esporte não passada despercebida pelos dirigentes da entidade. Em carta endereçada ao Ministro da Educação Nacional, o Comissário Nacional interino da MP em março de 1945, José Soares Franco, declara ser o orçamento da entidade para aquele ano insuficiente e pede novos incentivos. Em suas justificativas, ele cita os gastos envolvendo o esporte, declarando:

O desporto é hoje um poderoso meio de atração dos rapazes. A extensão alcançada pela obra deve-se em grande parte a essas atividades.

Não se pode, por outro lado, pôr já em dúvida as vantagens da educação física como processo educativo.

Os campeonatos segundo a orientação sempre seguida são indispensáveis como objetivo a apontar às atividades normais e motivos de interesse para a juventude.

(…)

Por outro lado, há a maior vantagem em prosseguir na Campanha do Mar, que encontrou entre os rapazes uma crescente aceitação e vem ao encontro de uma política tradicional da Nação, que convém desenvolver.

(Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mocidade Portuguesa, cx. 978, ff. 34-35)

            O esporte era visto como um forte meio de se atrair os jovens para a obra do governo, sendo os campeonatos esportivos forte motivo de interesse para eles. Praticavam-se diversos esportes na Mocidade Portuguesa, como vela, remo, futebol, handebol, rúgbi, basquetebol, tênis, voleibol, pingue-pongue, hóquei sobre a grama, atletismo, ginástica, tiro, esgrima, hipismo e natação. No entanto, as competições esportivas não estavam disponíveis a todos. Alguns esportes, como o futebol e outras modalidades de contato físico, deveriam ser praticados apenas para os mais velhos. Para os mais jovens, recomendavam-se jogos com bolas ou esportes sem contato físico, como a vela.

            É também importante ressaltar que nem todos os jovens atraídos pela prática de esportes eram, de fato, arregimentados pelos ideais salazaristas. Muitos só estavam interessados na prática de esportes. Marcelo Caetano queixava-se deste fato:

Disse e repito: há muitos rapazes portugueses que não andam fardados, não estão inscritos em qualquer Centro, não se encontram em contato com nenhum dirigente, – e são nossos porque comungam no nosso espírito.

E há imensos jovens enquadrados na Organização mas que só cá estão presentes em corpo, para fazer número e aproveitar egoisticamente certas vantagens, porque a alma, essa, mantem-se de todo alheia aos nossos propósitos e ideais.

As competições desportivas realizadas ultimamente vieram demonstrar que ainda existem muitos desses corpos sem alma, verdadeiros cadáveres vivos, na M.P.

Meninos que se inscreveram na Organização apenas para fruir em boas condições do ensino e do treino em qualquer modalidade desportiva, julgando-se sócios sem encargos de um clube elegante, mas ignorando o sentido de certas virtudes essenciais da M.P. chamadas disciplina, sacrifício, austeridade, dedicação.

Marcelo Caetano (1942: 238)

Para alguns, segundo ele, a Mocidade Portuguesa seria apenas um “clube elegante” gratuito. Mas para o governo, sua importância era outra. E mesmo a atividade esportiva dentro da MP deveria assumir sua função de formação física da juventude. Para seus dirigentes, a prática de atividades físicas tinha um papel fundamental na formação do jovem português. Buscava-se formar uma juventude que iria suplantar uma suposta “raça degenerada” portuguesa, indolente e cansada, inapta para a luta e para grandes conquistas. Como afirmou Raul Vieira:

A nação armada não poder ser constituída apenas pelo material destinado á defesa nacional. De nada valerá esse material se os seus filhos não possuírem a necessária preparação atlética. (…)
Toda despesa dispendida no aperfeiçoamento de sua constituição física deve ser considerada produtiva, porque um país será tanto mais forte quanto mais robusta for a sua raça.

Raul Vieira (1934:8)

Via-se assim uma importância fundamental na formação eugênica da juventude, como meio de fortalecimento nacional. Para tanto, via-se a necessidade de se criar uma nova cultura corporal, de forma a possibilitar o surgimento de um novo homem estadonovista, idealizado e divulgado pela propaganda oficial.

Dentro deste projeto, o esporte era defendido como um meio de saúde e educação, como uma ferramenta para se alcançar o aperfeiçoamento eugênico e cívico da juventude. Ele se tornava um elemento essencial de todo o processo educacional. Começando pela ginástica e encerrando-se no esporte, a prática de atividades físicas seriam o grande impulsionador para uma juventude mais sadia e forte, que formaria a nação forte do futuro. Essa era, ao menos, a ideia apresentada nos discursos produzidos por agentes do estado em relação ao esporte.

PS: O site RTP Arquivos traz algumas imagnes de competiçõe esportivas da Mocidade Portuguesa. Deixo o link de alguns abaixo:

  1. Finais dos Campeonatos Nacionais de Basquetebol e Voleibol da Mocidade Portuguesa, em 1969, na categoria de juniores, jogo entre o Porto e Aveiro (basquete), e Póvoa de Varzim e Lisboa (volei). Pavilhão do Estádio Universitário. LINK
  2. Campeonato Nacional de Atletismo da Mocidade Portuguesa de 1968, no Estádio Nacional. LINK

Lista de referências

CAETANO, Marcelo. “A Mocidade Portuguesa é alma”. Boletim mensal do Comissariado Nacional, n. 8, v. 2, Lisboa, jun.1942.

PAXTON, Robert O. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

ROSÁRIO, Alberto Trovão do. O desporto em Portugal: reflexo e projeto de uma cultura. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

SERRADO, Serrado; SERPA, Pedro. História do futebol português: das origens ao 25 de Abril – uma análise social e cultural. Lisboa: Prime Books, 2010.

VIDAL, Frédéric; GONÇALVES, Gonçalo Rocha. O desporto na rua em Lisboa no início do século XX. In: José Neves e Nuno Domingos (orgs.). Uma história do desporto em Portugal: volume I – corpo, espaços e média. Vila do Conde: Quidnovi, 2011.

VIEIRA, Joaquim. Mocidade Portuguesa. Lisboa: Esfera dos Livros, 2008.

VIEIRA, Raul. A difusão do desporto: meios eficientes para obtê-la em todo o país. Tese apresentada no Congresso de Clubs Desportivos organizado pelo jornal “Os Sports” – 26 de novembro a 3 de dezembro de 1933. Lisboa: [s.n.], 1934, p. 8.


CONIFA: a representação internacional através do futebol, para além da FIFA

20/06/2022

por Maurício Drumond

Neste final de semana foi realizada a primeira edição do primeiro campeonato sulamericano de futebol organizado pela Confederação de Associações de Futebol Independentes (CONIFA), no Chile. Chamada de Copa América 2022, a competição contava inicialmente com a participação de 4 equipes, sendo 3 do Chile. Além das federações Aimara, Mapuche e Maule Sur, a Federação Alternativa de Desporto de Estado de São Paulo (FAD) se inscreveu na competição, mas não viajou ao Chile. Sem a participação de seu 4º representante, o torneio foi modificado para um triangular disputado entre os dias 17 e 19 de junho e teve como vencedora a seleção de Maule Sur. As equipes Mapuche e Aimara ficaram em segundo e terceiro, respectivamente.

Equipe de Maule Sur, campeã da Copa América da ConIFA de 2022.

Mas o que seria a CONIFA? Em um de meus primeiros posts aqui no bolgue (link), escrevi sobre a Nouvelle Fédération-Board (NF-Board), uma confederação criada em 2003 que possuía associações como Tibet, Chechênia, Groenlândia, Ilhas de Páscoa e Mônaco (a seleção do principado, não o clube). Escrito em 2009, o artigo cita a realização das três primeiras edições da Copa do Mundo VIVA, organizada pela entidade. A Copa VIVA teria ainda mais duas edições. Em 2010, em Gozo, na República de Malta, a Copa contou com seis seleções participantes, tendo a Padânia como campeã e a delegação da região do Curdistão em segundo lugar. Já em 2012, em sua última edição, a competição contou com a participação recorde de nove equipes, sendo realizada na região do Curdistão, no Iraque. A equipe anfitriã levou o título, com a seleção da república Turca do Chipre do Norte em segundo lugar.

Cartaz da V Copa do Mundo Viva, no Curdistão

Em 2013 a NF-Board é desarticulada e a ConIFA surge em seu lugar. De acordo com Joel Rockwood (2020), a ConIFA foi criada com base nas experiências da NF-Board, tentando propor uma estrutura mais profissional para a organização. Mas qual seria a proposta dessas confederações? Quais seriam sua “federações-alvo”?

A princípio, destacam-se as federações de regiões ou grupos que buscam reconhecimento internacional por meio do futebol. Como aponta a chamada no site da CONIFA para novos membros, são convidados representantes de equipes que “representem uma nação, minoria, região isolada ou região cultural” (https://www.conifa.org/en/join-now/). São esses os casos como o da Somalilânida, por exemplo, um Estado de facto, com sua própria Constituição, forças armadas, impostos, moeda, placas de automóveis e mais de 3 milhões de habitantes, mas que não é reconhecido internacionalmente por outros países. Nesses casos, o esporte se torna uma importante ferramenta na luta por reconhecimento internacional. Como a própria federação somalilandesa destaca em sua apresentação no site da CONIFA,

A Somália ainda declara que a Somalilândia é uma região autônoma da Somálila. Independente de seu estatuto oficial de reconhecimento, a somalilândia é de facto independente e autogovernada e por isso tem uma excelente razão para ter sua própria seleção nacional. A Associação de Futebol da Somalilândia foi fundada em 2011 e representa a Somalilândia e os somalilandeses de todo o mundo (tradução minha, https://www.conifa.org/en/members/somaliland/).

O mesmo ocorre com os Estados de reconhecimento limitado da Abcásia e da Ossétia do Sul, regiões autônomas que se declaram independentes da Geórgia. Ambos os casos são apoiados pelo governo russo e têm reconhecimento internacional da Rússia, Nicarágua, Venezuela e de alguns outros estados de reconhecimento limitado. Sua semelhança de identificação com a Somalilândia pode ser vista também no texto de apresentação no site da confederação internacional, indicando um possível modelo pré-produzido entregue às confederações no momento da formulação sa página eletrônica. Acompanhado de algumas informações particulares ao caso da associação específica, está o mesmo texto destacado acima:

A Geórgia ainda declara que a [Abcásia/Ossétia do Sul] é uma parte da Geórgia. Independente de seu estatuto oficial de reconhecimento, a [Abcásia/Ossétia do Sul] é de facto independente e autogovernada e por isso tem uma excelente razão para ter sua própria seleção nacional. A Associação de Futebol da Somalilândia foi fundada em 2011 e representa a Somalilândia e os somalilandeses de todo o mundo (tradução minha, https://www.conifa.org/en/members/abkhazia/ e https://www.conifa.org/en/members/south-ossetia/).

O mesmo texto, com leves variações, pode ser encontrado na apresentação de outras associações como Artsaque. Um outro grupode nações representadas são regiões que se entendem como ocupadas, e buscam a representação internaciona como forma de afirmação de sua identidade, que por vezes não tem a possibilidade de vir à tona em outras áreas. As federções do Tibete e do Turquestão Oriental são dois exemplos. Na apresentação do Turquestão Oriental, afirmam que “dois anos antes de invadirem o Tibete, o Estado comunista Chinês anexou a República Oriental do Turquistão, em 1949. Como uma nação ocupada, os turquestaneses orientais possuem uma herança cultural e linguística única, que são significativamente diferentes daquela da dinastia han chinesa” (tradução minha, https://www.conifa.org/en/members/east-turkistan/).

No entanto, não são apenas Estados em busca de reconhecimento internacional que buscam a filiação à CONIFA. Povos minoritários também utilizam a filiação internacional como ferramenta para aumentar sua representatividade no cenário internacional. As federações do Povo Romani, Rohingya, Mapuche, Aimara e das Primeiras Nações da Austrália, por exemplo, demonstram a iniciativa de afirmação de grupos étnicos e culturais minoritários. Como destaca a apresentação da federação Aimara, ao dizer que “a seleção representa o povo Aimara do Chile, Peru, Bolívia e Argentina, com a missão de promover a cultura aimara pelo mundo” (tradução minha, https://www.conifa.org/en/members/aymara/).

Podemos perceber ainda a presença de federações que buscam celebrar/reafirmar identidades culturais regionais. Dentre esses pode-se destacar a federação da Cornuállia, de Yorkshire e da Ilha de Man, no Reino Unido, do condado de Nice e da Occitânia, na França, ou ainda da Sicília e da Padânia, na Itália. Nesses casos, majoritariamente em território europeu, a identidade local não é monilizada de forma a se separar a identidade nacional. A valorização da identidade local é atrelada ao nacional, ainda que por vezes essa valorização esteja também associada a movimentos por maior autonomia regional, como no caso da Padânia, cuja autonomia é uma bandeira do partido de extrema-direita italiano Liga Norte, cujo nome oficial é Lega Nord per l’Indipendenza della Padania.

Outro elemento relevante, que ganha força com muitas dessas associações, é a possibilidade da filiação de entidades não profissionais que busquem uma filiação internacional fora da FIFA, de forma a atrair talentos e filiações de clubes, em geral amadores. A federação do Condado de Nice deixa isso evidente em sua apresentação, ao afirmar que “busca representar sua região cultural e histórica no palco global, e deseja promover talentos locais através de sua Associação de Futebol” (tradução minha, https://www.conifa.org/en/members/county-of-nice/). Como apresentado em sua página inicial, a CONIFA se caracteriza como  “a federação de futebol para todas as associações fora da FIFA” (https://www.conifa.org/en/). Vemos assim um outro grupo de entidades, qe possuem um leve – e por vezes inexistente – pretexto cultural para sua filiação. Na Europa, as federações da Ilha de Elba e das Duas Sicílias parecem se aproximar mais desse caso, ainda que uma investigação mais detalhada deva ser efetuada para podermos afirmar com certeza. Nas Américas, a ANBM (ASOCICACIÓN NACIONAL DE BALOMPIÉ MEXICANO) e Cascadia, na América do Norte, também aparentam seguir esse caminho. No Brasil, a adesão da Federação Alternativa de Desporto do Estado de São Paulo (FAD), também demonstra esse lado da filiação. A FAD é uma associação amadora paulista sem nenhum elemento de valorização cultural ou identitária.

Em 2022, a CONIFA planeja organizar competições regionais na África, América do Sul e o campeonato munidal de futebol feminino. A Copa Africana contou apenas com 3 equipes, tendo a seleção de Biafra se sagrado campeã. Na América do Sul, vimos anteriormente que a seleção de Maule Sur foi a vencedora. Já o campeonato feminino será realizado no início de julho, sediado pela feeração do Tibete. O campeonato europeu masculino, a Euro 2022 CONIFA, seria realizada no início de junho, em Nice, mas foi cancelada e a entidade ainda não declarou se ainda irá promover uma nova competição europeia este ano.

Ainda que pequena e de pouco alcance midiático, a CONIFA busca se estabelecer em um campo onde outras entidades já atuaram. O modelo atual parece ser mais aberto e propenso a um modelo mais comercial. No entanto, ainda que muito aquém do futebol profisional, para muitas dessas entidades é uma das possíveis formas de representação internacional, dentro de um quadro de poucas possibilidades.

Referências
ROCKWOOD, Joel. The politics of ConIFA: Organising and managing international football events for unrecognised countries. Managing Sport and Leisure, 25 (1-2), p. 6-20.


A FIFA e o COI na guerra na Ucrânia: possíveis papéis e notas de repúdio

28/02/2022

por Maurício Drumond

“Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor

(Desmond Tutu)

Em meio à escalada beligerante da guerra na Ucrânia na última semana, cresce a pressão pelo posicionamento e por ações dos mais variados atores do sistema internacional. É dentro desse contexto que podemos ver as primeiras medidas adotadas pelos dois principais agentes do campo esportivo no planeta, o Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Federação Internacional de Futebol (FIFA). O COI tomou a dianteira neste processo ao publicar em 24 de fevereiro, no dia seguinte ao início da invasão russa ao território ucraniano, sua primeira posição condenando a incursão militar. Na nota de repúdio divulgado em seu sítio eletrônico intitulada “O COI condena veementemente a violação da trégua olímpica” (link), a entidade manifesta sua oposição à ação do governo de Vladimir Putin ressaltando a resolução 76/13 aprovada de forma unânime pela Assembleia Geral da ONU no dia 2 de dezembro de 2021. A resolução “Construindo um mundo pacífico e melhor através do esporte e do ideal olímpico” resgata a simbólica ligação dos Jogos Olímpicos Modernos com os jogos da antiguidade, invocando a “tradição grega da ekecheiria (Trégua Olímpica), reivindicando uma trégua durante os Jogos Olímpicos a fim de encorajar um ambiente pacífico e garantir passagem segura (…), mobilizando assim a juventude do mundo para a causa da paz” (link). O documento então declara que os países membros devem se esforçar pela manutenção da paz durante o período que se iniciaria sete dias antes dos Jogos de Inverno de Pequim, iniciados em 7 de fevereiro, e acabaria 7 dias após os Jogos Paralímpicos, agendados para terminar em 13 de março.

Em sua primeira declaração, o COI apenas condena a ação militar russa dentro desse período de Trégua Olímpica. No dia seguinte, 25 de fevereiro, a entidade vai muito pouco além do posicionamento contrário à guerra e faz um pedido para que as federações esportivas internacionais realoquem ou cancelem os eventos esportivos planejados para a Rússia ou Belarus, e que não permitam a exibição da bandeira ou do hino desses países em suas competições (link).

Essas ações vão ao encontro de ações prévias do COI sobre a Rússia, que em 2019 foi condenada pela Agência Mundial Antidoping (WADA) a não ter seus símbolos exibidos em competições internacionais. As ações, de efetividade muito limitada e duvidosa, já vinha sendo posta em prática, o que diminui ainda mais o impacto da nota de repúdio do COI, que clama por sanções que em larga medida já estavam sendo impostas ao país beligerante. A FIFA seguiu postura semelhante ao COI em nota divulgada ontem, dia 27 (link). Nela, a entidade máxima do futebol mundial diz agir “em linha com o Comitê Olímpico Internacional (COI)” e determina as seguintes medidas:

  • Nenhuma competição deverá ser realizada em território russo, e os jogos onde o país tiver mando de campo deverão ser realizados em território neutro, sem público;
  • A associação representando a Rússia deverá participar das competições com o nome “Federação de Futebol da Rússia (RFU)” e não como “Rússia”;
  • A bandeira e o hino da Rússia não poderão ser realizados em jogos de times da Federação Russa.

As medidas da FIFA, tímidas como as medidas do COI esbarram, no entanto, na postura mais rígida de federações associadas como a da sueca, polonesa e tcheca, que declararam que não realizarão os jogos pelas eliminatórias da Copa do Mundo contra a seleção russa. Frente às declarações destas federações, a nota emitida pela FIFA diz apenas que a entidade “tomou nota das posições expressas nas mídias sociais” por essas federações e que “já dialogou com todas essas associações de futebol”. A nota diz ainda que “[a] FIFA permanecerá em contato próximo para buscar soluções adequadas e aceitáveis ​​em conjunto”, sem nenhuma posição mais definida.

Ainda é preciso acompanhar o desenrolar das ações nos próximos dias. As entidades internacionais ainda buscam se ancorar na velha máxima de que “esporte e política não se misturam”, repetida há décadas por dirigentes esportivos e mais recentemente por alguns nomes da grande mídia, a fim de não se envolverem profundamente, ou adotarem apenas medidas cosméticas, como as do momento. No entanto, a pressão de outros agentes esportivos, como as federações nacionais no caso da FIFA, pode levar ao maior envolvimento dessas entidades. Os jogos da repescagem europeia para a Copa do Mundo estão agendados para o final de março. A tabela prevê jogos da Rússia contra as federações que já declararam que não enfrentarão a seleção. Além disso, a capacidade de participação da Ucrânia também deverá ser colocada em questão. Se ações mais duras virão, o tempo ainda dirá. Mas a pressão se faz presente. Um possível endurecimento sobre a Rússia será mais resultado dessa pressão do que uma ação espontânea dos dirigentes das maiores entidades esportivas do planeta. Vamos acompanhar.


O ÁS ALEMÃO NAS PISTAS CARIOCAS: APONTAMENTOS INICIAIS SOBRE AUTOMOBILISMO E COMÉRCIO BILATERAL NOS ANOS 1930.

02/11/2021

Por Maurício Drumond

            As relações entre esporte e propaganda política não são novidade para os leitores desse blogue. As interfaces entre a prática e o espetáculo esportivo e a promoção política de diferentes grupos e regimes já foram exploradas de diversas maneiras e perspectivas nos hiperlinks deste sítio coletivo. O mesmo pode ser dito em relação ao automobilismo. A modalidade já foi alvo de diversas postagens e ganha cada vez maior atenção dos historiadores do esporte no Brasil que buscam olhar para além do futebol.

            Nesse artigo, busco trazer novos ohares, ainda que de forma inicial, para o automobilismo no Brasil. Mais exatamente, procuro entender os interesses econômicos na participação alemã no Circuito da Gávea, nos anos 1930.  Além de seu papel na promoção da imagem de uma nova Alemanha que o regime nazista buscava difundir no mundo, as disputas automobilísticas foram utilizadas como uma estratégia de divulgação de carros e peças da indústria alemã. Através da análise de empresa representante da Auto Union no Brasil e de sua promoção através do piloto Hans Stuck (ou “Von Stuck”, como aparece nos periódicos do período), buscarei fazer os primeiros apontamentos sobre o papel do automobilismo nas relações econômicas bilaterais que se consolidavam entre Brasil e Alemanha nos anos 1930, até o início da Segunda Guerra Mundial.

O Automobilismo e a Economia Alemã no III Reich

            Em setembro de 1934, a revista britânica The Light Car, especializada em automobilismo, publicou em um artigo sobre a Alemanha:

“Desde a chegada de Hitler ao governo alemão, o automobilismo, sob todas as suas formas, foi tremendamente encorajado. Não apenas devido à completa eliminação de taxas sobre a compra de carro novos  e à redução de custos com seguros […], mas também pelo estímulo ativo de todo o movimento esportivo. De fato, o esporte a motor acordou para uma nova vida” (apud Ludvigsen, 2009, p. 72).

                A profunda crise política econômica que engolfara a Alemanha no início dos anos 1930 parecia estar superada. O forte impacto causado pela Grande Depressão, especialmente em uma Alemanha em grande medida dependente de capital estadunidense, se somou à instabilidade política gestada há mais longo prazo no país, contribuindo para a ascensão de Hitler ao cargo de chanceler e, pouco mais tarde, ao estabelecimento do III Reich e do regime ditatorial nazista.

            As relações especiais de Hitler e de seu regime com o automobilismo seria notas sem demora. Dias após sua nomeação como chanceler, no dia 11 de fevereiro de 1933, Hitler discursou na abertura de uma exposição de carros em Berlim, algo inédito para alguém em sua posição. Em seu discurso, o novo chefe de governo apresentou seus planos para a indústria automobilística do país, já indicando o abatimento nos impostos para os compradores de carros, mencionado na revista britânica, e divulgou ações como a construção de Autobahns, o fim da obrigatoriedade de “auto escolas” e a promoção do automobilismo esportivo.

De acordo com König (2004), já havia a ideia da promoção de um carro popular, batizado de Volskwagen – um termo utilizado desde o início do século para se referir a carros a preços populares. No entanto, o modelo a ser adotado ainda não havia sido definido e sua versão final não chegaria ao mercado internacional antes do início da guerra. Sendo assim, ele não será foco deste trabalho, ainda que tenha tido papel fundamental na política da indústria automobilística nazista.

O foco deste artigo se dará sobre a empresa Auto Union, criada a partir da fusão de quatro empresas da indústria automobilística alemã em 1932, como resposta á crise da grande depressão: Audi, DKW, Horch e Wanderer (daí o símbolo com 4 argolas da Audi atualmente). Com a nova postura apresentada por Hitler, a Auto Union buscou um contrato com Ferdinand Porsche e, juntamente com a emprea Dimler-Benz, conseguiram uma subvenção do novo governo para a produção de carros de corrida alemães, no valor de 450 mil Reichsmark. Foi o início das “Flechas de Prata” (“Silberpfeile” ou “Silver Arrows”), os carros alemães que viraram lenda no automobilismo internacional.

Dentre os pilotos envolvidos com a Auto Union, encontrava-se Hans Stuck. Famoso por provas de montanhas, Stuck era um nome reconhecido no automobilismo internacional quando se encontrou com Hitler pela primeira vez, ainda em 1932, antes de sua chegada ao poder. Segundo Ludvigsen (2009, p. 56), Hitler teria prometido um carro de corrida alemão a Stuck, desde que ele não assinasse com nenhuma escuderia de outro país. Não temos como afirmar se isso de fato ocorreu, ou se é parte das lendas que circulam as relações entre o esporte e o III Reich. No entanto, Hans Stuck e a Auto Union foram de fato uma das frentes que buscavam alçar o automobilismo alemão a patamares similares ao do automobilismo italiano guiado por Mussolini, que já estrelava as provas internacionais com seus carros Alfa-Romeo, Bugatti e Maserati.

Acompanhando o aporte financeiro do governo alemão à indústria automobilística, apontado na revista britânica em 1934, o ano também marcou o início de novas relações comerciais da Alemanha com a América Latina, através da adoção de acordos econômicos bilaterais.  O comércio de compensação estabelecido entre Berlim e Rio de Janeiro estabelecia que as importações de produtos brasileiros pela Alemanha não seriam pagas em moeda corrente, mas ficariam depositadas em contas bloqueadas no Reichsbank e seriam utilizadas para pagar compra de mercadorias alemãs que seriam importadas pelo Brasil, em uma moeda chamada marcos Aski (Ausländer-Sonderkonten für Inlandszahlungen, abreviação para o termo “Conta Estrangeira para Pagamentos Domésticos”), ou  marcos de compensação (Azevedo, 2010; McCann, 1995; Oliveira, 2010).

O sistema de compensação permitia que alemães oferecesse preços mais atraentes que os estadunidenses, que haviam se tornado os maiores parceiros econômicos do Brasil os anos 1930, ocupando posto que pertencera ao Reino Unido. Na verdade, como aponta McCann (1995), os preços de produtos de bem de consumo alemães em marcos de compensação eram mais favoráveis do que os em Reichsmarks em até 24%. Se, por um lado, os alemães compravam algodão, lã, borracha e frutas do Brasil, permitindo que o país escoasse seus excedentes de produção, por outro o mercado brasileiro tinha acesso a bens de produção e de consumo da indústria alemã a preços mais em conta. Carvão, cimento, papel para jornal, aço e adubos químicos alemães, por exemplo, inundaram o mercado nacional (Oliveira, 2010).  Dentre os bens de consumo, pode-se citar aparelhos de rádios e peças de automóveis.

É nesse quadro de relações bilaterais entre Alemanha e Brasil, que busco entender em parte a participação da Hans Stuck como piloto da Auto Union em provas automobilísticas no Rio de Janeiro, em especial no Trampolim do Diabo, como ficou conhecido o circuito da gávea (para maiores informações, ver aqui). Qual seria, de fato, o papel desse “Novo Plano” econômico alemão de comércio bilateral e qual teria sido o impacto da política de compensação na importação de automóveis e peças no mercado brasileiro. Ainda mais, como isso teria afetado o automobilismo no Brasil? Essas e outras perguntas, ainda sob investigação, deverão ser respondidas no futuro. Por enquanto, realizei uma busca por anúncios da Auto Union em jornais do Rio de Janeiro, centrando minhas buscas, até o momento, em um jornal de grande circulação, o Correio da Manhã, e em jornais esportivos, e alguns apontamentos iniciais podem ser identificados.

A Auto Union no Brasil: automobilismo e propaganda

A Auto Union Brasil Ltda. Foi a principal empresa do Rio de Janeiro a importar automóveis e peças da Auto Union, vendendo carro como o DKW, que se popularizou no período. Outras empresas, como a Bramensis, também trabalhavam com a importação de Auto Union em São Paulo, mas ficarão de fora desta análise. Apesar de fundada oficialmente apenas em agosto de 1935 (cf. DOU 08/08/1935, p. 26), as propagandas em jornais brasileiros da Auto Union começam já em fevereiro deste ano.

Imagem 01: Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 17 fev. 1935, p. 19
(Correio da Manhã. 17/2/1935, p. 19)

Ainda sem o nome “Auto Union Brasil”, a peça publicitária já era provavelmente o pontapé inicial para o empreendimento que seria inaugurado no meio do ano. Utilizando-se de um recorde internacional de velocidade batido por Hans Stuck na Itália, a propaganda alardeava: “Aguardem o novo programma de fabricação de 1935 da Auto-Union, que constituirá um acontecimento sensacional do automobilismo brasileiro”, seguido de endereço a rua Mexico e do símbolo da Auto Union. Hans Stuck, por sua vez, já era conhecido internacionalmente e já tinha estado no Brasil em 1932 para a disputa de uma prova que era sua especialidade, a “Subida da Montanha”, na estrada Rio-Petrópolis, inaugurada alguns anos antes (Melo, 2009).

O automobilismo era assim o ponto de partida e de chegada do anúncio. O feito de Stuck nas pistas de Florença simbolizavam a capacidade dos veículos da Auto Union, que em breve chegariam ao automobilismo brasileiro – e ao mercado de passeio brasileiro, provavelmente o grande alvo dos anunciantes. Ainda segundo as propagandas no Correio da Manhã, a comercialização de automóveis e peças começou antes mesmo da criação oficial da empresa Auto Union Brasil, visto que em 28 de abril de 1935 já divulgavam a venda a prazo de DKWs e de “grande stock de sobressalentes”, que estariam em exposição na “Rua do Mexico, 158”, na esplanada do Castelo (Correio da Manhã, 28/4/1935, p. 15).

Os anúncios se repetem por algumas vezes na primeira metade do ano. Já ao final de 1935, a Auto Union Brasil anunciava a vitória do DKW na prova do trecho Rio-Teresópolis, ressaltando o tempo de 2h45min e os apenas 8 litros de gasolina gastos (Correio da Manhã, 10/11/1935, p. 23). Ainda que utilizassem as provas automobilísticas como mote para propaganda, a principal característica ressaltada era a economia de combustível, especialmente nos DKWs, o modelo mais acessível dentre os oferecidos pela importadora.

As propagandas da Auto Union Brasil se tornam mais frequentes em 1937, com a participação de Hans Stuck no Circuito da Gávea, quando o corredor conquistaria a segunda posição, ficando atrás do italiano Carlo Pintacuda, que venceria em 37 e 38, pilotando seu Alfa-Romeo. As provas do circuito da Gávea foram inauguradas em 1933, um ano depois de Stuck ter participado da “Subida da Montanha”, mas antes da formação da equipe de corridas da Auto Union.

O Grand Prix do Rio de Janeiro, como também era chamada a prova, foi reconhecida oficialmente pela Association Internationale des Automobile Clubs Reconnus (AIACR), a futura FIA, mas não atraiu grande atenção internacional a princípio. Em 1933, apenas alguns pilotos argentinos e uruguaios se juntaram aos pilotos brasileiros na disputa, e em 1934 o Jornal do Brasil (3/10/1934, p. 23) indicou que dos 44 participantes da prova, 15 eram argentinos e 7 italianos, sendo que os pilotos apontados como italianos eram na verdade brasileiros de descendência italiana que representavam o país. Enviar pilotos, carros e equipes de apoio para o outro lado do oceano ainda era caro e pouco interessante para as escuderias que disputavam o campeonato europeu.

A primeira edição do Circuito da Gávea a atrair pilotos europeus foi a de 1936. Nesse ano, os italianos Carlo Pintacuda e Atilio Marinoni vieram com seus Alfa Romeos, além da francesa Helle Nice. Mas 1937 marcaria o auge da participação internacional no circuito, como pode ser visto na lista de competidores divulgada no Correio da Manhã.

(Correio da Manhã, 6/6/1937, p. 3)

Dentre os participantes, oito se inscreveram com nacionalidade europeia, um alemão (Stuck), quatro italianos, um francês e dois portugueses. No entanto, uma investigação mais minuciosa sobre esses nomes poderia apontar que alguns eram residentes do Brasil, e não atravessaram o atlântico para as disputas esportivas. A profusão de Alfa Romeos também é aparente. Dos 27 carros listados, 12 eram da montadora italiana. Somados os seis Bugatti e um Fiat, foram 19 carros italianos disputando a prova.

A participação de Hans Stuck, no entanto, pode ser vista como uma forma de promoção da Auto Union no país. Três dias depois de ficar em segundo lugar no GP do Rio de Janeiro, Hans Stuck participaria de outo evento, agora em sua especialidade, a corrida de montanha. No dia 9 de junho, o piloto levou sua Flecha de Prata para a estrada Rio-Petrópolis, na tentativa de bater os recordes mundiais de velocidade na categoria. Em duas tentativas registradas pelo Automóvel Clube do Brasil, o piloto tentava o recorde de velocidade no “kilômetro parado” e na “milha parada”. Tais feitos, na corrida e na tentativa de quebra de recordes, foram utilizados como forma de propaganda pela importadora da Auto Union, como mostra a peça publicitária de grande destaque no Correio da Manhã de 13 de junho (p. 12)

(Correio da Manhã, 13/6/1937, p. 12)

No texto, há o destaque para os recordes conseguidos na Rio-Petrópolis e na volta mais rápida no Circuito da gávea, que ainda dependiam de homologação da AIACR. “A Auto Union sente-se jubilosa por ter encontrado no ‘Trampolim do Diabo’ e na Rio-Petrópolis a grande oportunidade de que precisava, para patentear de forma categórica o valor de suas machinas no Brasil.” E completa com a associação da marca a seus carros de passeio: “Audi – DKW – Horch – Wanderer. 4 marcas de fama mundial são produtos da Auto Union.”

Dessa maneira, a participação de Hans Stuck no Circuito da Gávea e sua iniciativa em bater recordes de velocidade em terras brasileiras deve ser vista, também como forma de promoção da empresa, na busca por incentivar ainda mais as importações que provavelmente vinham crescendo devido ao acordo bilateral entre Brasil e Alemanha. A proximidade cada vez maior da guerra, no entanto, afeta a realização de provas internacionais e a importação de peças alemães. Com o início do conflito em setembro de 1939, a Inglaterra impõe o bloqueio naval e os produtos alemães deixam de chegar ao Brasil. Em 10 de setembro de 1939, a pequena peça publicitária da Auto Union no Correio da Manhã (p. 7) já transparece o problema. No lugar do anúncio de veículos, oferecem “concertos, pinturas, reformas”. As importações, assim como as provas automobilísticas internacionais, retornariam apenas após a Guerra.

(Correio da Manhã, 10/9/1939, p. 7)

            A investigação ainda está em estágios iniciais. No entanto, as evidências já dão indícios da relação entre o automobilismo e a expansão da indústria automobilística alemã para mercados internacionais, pelo menos no caso brasileiro. O acordo bilateral firmado em 1934 é seguido pelo estabelecimento da importadora Auto Union Brasil, na capital federal, que inicia seus trabalhos já nos primórdios de 1935. As propagandas veiculadas nos jornais cariocas demonstra a estreita ligação das conquistas esportivas tanto nas pistas europeias como na eventual participação de Hans Stuck no Circuito da Gávea, em 1937. Muito ainda precisa ser investigado, estamos apenas nas primeiras voltas.

Referências:

Azevedo, Monica (2010). Relação Brasil-Alemanha (1937-1945): Evolução e paradoxos. XIV Encontro Regional na Anpuh-Rio: Memória e Patrimônio. Disponível em: http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276651062_ARQUIVO_Artigo_-_Anpuh_2010final.pdf

König, Wolfgang (2004). Adolf Hitler vs. Henry Ford: The Volkswagen, the Role of America as a Model, and the Failure of a Nazi Consumer Society. German Studies Review, Vol. 27, No. 2, p. 249-268.

Ludvigsen, Karl (2009). German Racing Silver: Drivers, Cars and Triumphs of German motor Racing. Surrey: Ian Allan Publishing.

McCann, Frank (1995). The Forgotten Ally. What did you do in the war, Zé Carioca? Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, Vol. 6, No. 2, p. 35-70.

Melo, Victor Andrade (2009). Antes de Fittipaldi, Piquet e Senna: o automobilismo no Brasil (1908-1954). Motriz, Vol. 15, No. 1, p. 104-115.

Oliveira, Arthur (2010). Os regimes cambiais alemães e os acordos bilaterais entre 1934-1939. Departamento de Economia, pontifícia Universidade católica do Rio de Janeiro.


A Criação do CND: o futebol a serviço do Estado Novo

13/06/2021

Maurício Drumond

No dia 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas fechou o Congresso e instaurou um novo regime conhecido como Estado Novo, fortalecendo seu poder e passando a investir ainda mais em uma política de centralização e união nacional. No campo esportivo, essa postura levaria a uma maior aproximação do governo com o esporte, que já poderia ser observada na ocasião da III Copa do Mundo, realizada na França em 1938.

Ciente da popularidade do esporte e de sua importância como símbolo nacional, o novo regime concede vultosa subvenção à delegação brasileira para se apresentar no evento – Tomás Mazzoni (1941, p. 16) chega a destacar o “interesse do ministro das Relações Exteriores à delegação que esteve na III Taça do Mundo”. Deve-se somar a isso o fato de que a CBD permanecia como responsável pela representação brasileira no certame, e que Luiz Aranha era seu presidente desde 1936 e sua proximidade pessoal com a alta cúpula do governo, sobretudo com o referido ministro das Relações Exteriores no período do evento, Oswaldo Aranha, seu irmão. A imagem do governo é ainda mais intimamente associada ao escrete brasileiro com a declaração de que Alzira Vargas, filha de Getúlio, receberia o simbólico título de madrinha da seleção nacional.

Alzira Vargas, a madrinha da Seleção Nacional de 1938, e os atletas do escrete brasileiro.

Antes do embarque para a França, a seleção foi recebida pelo Presidente da República, que fez questão de cumprimentar os jogadores, um a um. Pela primeira vez, o Brasil contava com sua força máxima em uma Copa do Mundo. A miscigenação racial da equipe brasileira era vista no Brasil como o verdadeiro retrato de nossa democracia racial, o que servia de forma perfeita aos ideais de ufanismo nacional e harmonia social propagandeados pelo Estado Novo. 

Apesar da derrota para a Itália na semifinal, a destacada apresentação dos jogadores brasileiros na Europa eram vistos como prova do sucesso esportivo e da capacidade física nacional. Até mesmo Getúlio Vargas acompanhou a Copa e se surpreendeu com a reação popular frente à derrota para os italianos, escrevendo em seu diário: “A perda do team brasileiro para o italiano causou uma grande decepção e tristeza no espírito público, como se tratasse de uma desgraça nacional” (Vargas, 1995, v.2, p. 140). De volta ao Brasil, a seleção foi recebida nas ruas como “campeã moral” do campeonato, sob a alegação de que sua derrota teria sido fruto de um pênalti ilegal.  “Queira ou não queira a FIFA, somos campeões do mundo”, estampava o Jornal dos Sports, logo após a conquista do terceiro lugar (JORNAL DOS SPORTS, 20 jun. 1938, p. 1).

O sucesso popular da Copa do Mundo foi mais um sinal para o governo da importância de controlar mais de perto o futebol no Brasil. Menos de três anos mais tarde, Getúlio assinaria o decreto-lei que oficializou a intervenção governamental nos esportes e colocou o grupo de Luiz Aranha de volta ao comando do futebol nacional. No dia 16 de abril de 1941 o Diário Oficial da União trazia em suas páginas o decreto-lei que criava o Conselho Nacional de Desportos (CND), no Ministério da Educação e Saúde, que teria como função “orientar, fiscalizar e incentivar a prática dos desportos em todo o país” (BRASIL, 1941). Em outras palavras, o conselho detinha o controle total dos esportes.

O Decreto-Lei n. 3.199 vai além da criação do CND.  Toda a estrutura da organização desportiva brasileira é alterada. De acordo com o decreto, cada esporte, ou grupo de esportes, poderia se organizar em apenas uma confederação em todo território nacional, sendo essa, necessariamente filiada à entidade internacional de seu ramo desportivo. Cada unidade territorial brasileira – Distrito Federal, estados e territórios – teria apenas uma federação filiada a cada uma das seis confederações esportivas reconhecidas pelo decreto-lei: Confederação Brasileira de Desportos; Confederação Brasileira de Basquetebol; Confederação Brasileira de Pugilismo, Confederação Brasileira de Vela e Motor; Confederação Brasileira de Esgrima; e Confederação Brasileira de Xadrez. Uma nova confederação só poderia ser criada através de decreto presidencial.

Um dos principais jornalistas esportivos do país, Tomás Mazzoni, sob o pseudônimo Olímpicus, que utilizava em suas colunas esportivas, escreveu um livro em homenagem à intervenção no esporte, intitulado “O Esporte a Serviço da Pátria”, cujo prólogo é datado “abril-maio de 1941” (MAZZONI, 1941, p. 18). A obra, de grande teor apologético ao regime estadonovista, defende a oficialização do esporte:

Somente, pois, graças à oficialização e com o espírito de 10 de novembro, dentro da doutrina do Estado Novo, aplicando os princípios do regime atual, é que poderíamos tomar rumos novos! O 10 de novembro esportivo deve ser completo! Exterminar as tais “assembleias”, “judiciários”, “pactos”, “inquéritos”, “caciquismos” – é extinguir a política, o personalismo, o clubismo, é dar rumo certo e vida sã ao esporte! (MAZONI, 1941, p. 20).

A intervenção esporte, aludido por Mazzoni como “o 10 de novembro esportivo”, em referência à data de instauração do Estado Novo, seria assim a adequação do esporte ao ideal do regime vigente.  Assim como outros regimes do período, como a Alemanha nazista, Itália fascista, Espanha franquista e França de Vichy, o Brasil se adequava, segundo o jornalista, a um novo período do esporte mundial. Suas referências a “assembleias”, “pactos”, “caciquismos”, e “clubismo” são alusões nada veladas às disputas internas dos dirigentes brasileiros, no que definira algumas páginas depois como uma forma de dirigir o esporte “com a mentalidade do governante brasileiro de vinte anos atrás, (…) por parte dos políticos do velho regime”, em uma explícita referência à Primeira República, que terminara com o movimento militar que colocou Vargas no poder em 1930 (MAZZONI, 1941, p. 27).

A Confederação Brasileira de Desportos se estabeleceu então como a principal confederação desportiva do país, sendo responsável pela organização do futebol, do tênis, do atletismo, do remo, da natação, dos saltos, do polo aquático, do vôlei, do handebol e de qualquer outra modalidade desportiva que não se enquadrasse em nenhuma das outras confederações. As outras confederações tinham competência administrativa sobre as modalidades descritas em sua nomeação. Isso não significa que o futebol receberia o mesmo tratamento que as outras modalidades desportivas, visto que o próprio decreto-lei afirmava que “o futebol constitui o desporto básico e essencial da Confederação Brasileira de Desportos” (BRASIL, 1941, art. 16, §2º).

O CND detinha controle quase total não apenas sobre os esportes, como também sobre as entidades desportivas. Os estatutos das confederações e das federações a elas filiadas tinham que ser aprovados pelo CND, que poderia propor ao Ministro da Educação a criação ou a supressão de qualquer confederação. No tocante às competições internacionais, o Conselho Nacional de Desportos exercia um controle ainda mais rígido. A participação de qualquer clube ou entidade em uma competição internacional deveria ser previamente autorizada pelo CND. Caso o conselho decidisse pela participação de alguma equipe em um campeonato internacional, esta não poderia abster-se da convocação. Assim, os clubes que cedessem jogadores a esses campeonatos não poderiam pleitear qualquer indenização pela perda temporária de seus atletas, a não ser em caso de jogos amistosos.

Buscava-se controlar o esporte nacional, ainda que mantendo na direção do órgão estatal de controle paredros dirigentes conhecidos da elite desportiva brasileira. Mesmo com a intervenção do governo brasileiro sobre o esporte, pouco muda de forma efetiva em sua organização. No entanto, o Estado agora se equipava com a possibilidade de intervir em clubes e federações caso julgasse necessário, como ocorreu com o Corinthians ainda em 1941. A disputa entre o grupo do então presidente Manuel Correcher e da oposição, liderada por Ricardo R. de Moura e Saverio Nigro, levou o governo paulista a apontar Mário Henrique Almeida como interventor no clube, cargo que ocupou por pouco tempo (MAZZONI, 1950, p. 292).

Manuel Correcher (15) e Mário Henrique Almeida (16)

Na visão dos defensores da intervenção, como Tomás Mazzoni (1941, p. 17), os “políticos e arruaceiros terão, pois, suas azas cortadas”, não podendo mais assim “arrumar panelinhas e (…) se defender com prestígio equívoco”. A oficialização colocava em xeque a antiga ordem esportiva, mas ao mesmo tempo garantia a permanência daqueles que se adequassem aos novos tempos. O futebol estaria, assim, a serviço da pátria.

O sentimento nacional seria mobilizado com maior veemência com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942. Dentro desse quadro de patriotismo exacerbado pelo envolvimento no conflito, o CND decretou que as associações esportivas – clubes ou outras agremiações – só poderiam ser presididas por brasileiros natos ou naturalizados. O conselho abria exceção apenas a estrangeiros radicados no Brasil há mais de vinte anos, que já tivessem exercido o cargo anteriormente, ou a portugueses que tivessem se destacado nos meios esportivos.  O CND já apontava para a importância cívica das associações esportivas no decreto-lei 3.199.  De acordo com o decreto, as entidades esportivas não poderiam gerar lucro para seus financiadores ou para seus dirigentes, visto que essas entidades exerciam uma função de caráter patriótico.

O esporte era então visto como um dos grandes símbolos da nação. Antes mesmo da declaração oficial de guerra contra o eixo, agentes do Departamento de Ordem Social e Política (DOPS) paulista começaram a pressionar a diretoria de clubes que apresentassem membros de nacionalidade estrangeira, especialmente italianos e alemães. A ação baseava-se no Decreto 383, de 18 de abril de 1938, que vedava a estrangeiros a atividade política no Brasil, incluindo a organização, criação e manutenção de “sociedades, fundações, companhias, clubes e quaisquer estabelecimentos de caráter político”, ou mesmo se associarem a tais agrupamentos (BRASIL, 1938). O próprio Decreto-Lei 3.199, que criou o CND, reforçava a ideia em seu artigo 51, atestando que “As diretorias das entidades desportivas serão compostas de brasileiros natos ou naturalizados; os seus conselhos deverão constituir-se de dois terços de brasileiros natos ou naturalizados pelo menos” (BRASIL, 1941).

A pressão sobre os clubes ligados a colônias estrangeiras aumentou com a publicação do decreto-lei 4.166, de 11 de março de 1942, que avultava a possibilidade do confisco de bens e direitos de cidadãos de nacionalidade alemã, japonesa e italiana, fossem pessoas físicas ou jurídicas. O confisco incluiria uma parte de todos os depósitos bancários e patrimoniais superiores a dois contos de réis (BRASIL, 1942). Para os clubes de futebol, pessoas jurídicas sob o jugo do decreto-lei, havia o risco do confisco de sua sede e de seu estádio, além de boa parte de seus depósitos bancários. Dessa maneira, os paredros dos clubes de colônias decidiram mudar o nome de suas agremiações que fizessem referência direta a um dos países do eixo.

Em São Paulo, o Palestra Itália, que em março de 1942 passou a se chamar apenas Palestra de São Paulo, mudou sua denominação para Sociedade Esportiva Palmeiras ainda em setembro do mesmo ano. Já o Germânia, clube que lançara Arthur Friedenreich no futebol, mas que não aderira ao profissionalismo nos anos 1930, mudou seu nome para Pinheiros, após passar por uma intervenção governamental. Em Belo Horizonte, no mesmo ano, o Palestra Itália passou ser conhecido como Esporte Clube Cruzeiro, adotando o nome de um dos maiores símbolos brasileiros. Em Curitiba, o Savóia – nome da família real italiana – mudou de nome para Esporte Clube Brasil, em uma afirmação hiperbólica do nacionalismo de sua diretoria.

Nos anos seguintes, o CND se estabeleceu como a principal entidade de supervisão e controle do esporte, sobrevivendo ao final do Estado Novo. O conselho detinha controle quase total não apenas sobre os esportes, como também sobre as entidades desportivas. Os estatutos das confederações e das federações a elas filiadas tinham que ser aprovados pelo CND, que poderia propor ao Ministro da Educação a criação ou a supressão de qualquer confederação. No tocante às competições internacionais, o Conselho Nacional de Desportos exercia um controle ainda mais rígido. A participação de qualquer clube ou entidade em uma competição internacional deveria ser previamente autorizada pelo CND, que também era responsável pelas delegações que acompanhavam a seleção brasileira de futebol.

Mesmo após o fim do Estado Novo e o restabelecimento da democracia, o Conselho Nacional de Desportos não sofreu grandes alterações. A entidade ainda detinha a prerrogativa de regular os clubes, federações e competições esportivas nacionais, indicava os chefes de delegações que acompanhavam a seleção brasileira em competições no exterior e pairava sobre toda a organização esportiva nacional, ainda que não exercesse todas suas atribuições de forma regular. Foi apenas com a publicação da Lei Zico – Lei n. 8.672, de 6 de julho de 1993 – que o Conselho Nacional de Desportos foi extinto, tendo durado mais de 50 anos.

Referências:

BRASIL. Decreto-lei n. 383, de 18 de abril de 1938. Diário Oficial da União, 19 abr. 1938, p. 7357.

BRASIL. Decreto-Lei n. 3.199, de 14 de abril de 1941.  Diário Oficial da União, 16 abr. 1941, p. 7453.

BRASIL. Decreto-Lei n. 4.166, de 11 de março de 1942. Diário Oficial da União, 12 mar. 1942, p. 3918.

MAZZONI, Tomás. O esporte a serviço da pátria. São Paulo: [s.n.], 1941.

MAZZONI, Tomás.  História do futebol no Brasil: 1894-19550. São Paulo: Edições Leia, 1950.

VARGAS, Getúlio. Diário.  2V.  São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV, 1995.


Do turismo aos títulos Mundiais: apontamentos sobre Automobilismo e política na Argentina (1904-1955)

25/01/2021

por Maurício Drumond

Em meios a tantas leituras e anotações decorrentes da produção de um artigo acadêmico, por vezes nos deparamos com assuntos e ideias que acabam não se desenvolvendo ao longo do trabalho. Os motivos para isso variam. Por vezes, o recorte do artigo foge um pouco ao material encontrado. Em outros casos, as ideias não se enquadram exatamente ao escopo da análise proposta no artigo. Isso é ainda mais comum ao escrevermos com limite máximo de páginas ou palavras, onde temos menos espaço para olhares tangenciais que contribuem para a compreensão do objeto, mas que não são essenciais e acabam ficando de fora da edição final. 

Muitas vezes, separamos essa informação com a intenção de utilizá-la em um novo artigo, no futuro. No entanto, são raras as oportunidades em que esse novo trabalho acaba por se concretizar. Eventualmente, damos a sorte de ter uma postagem agendada no blogue no momento em que isso ocorre. É por isso que aproveito minha postagem dessa semana para estabelecer alguns apontamentos sobre automobilismo e política na Argentina durante a primeira metade do século XX, fruto de um trabalho de História Comparada em andamento que acabará por não abarcar todos os elementos aqui presentes. 

Origens do automobilismo argentino – as primeiras décadas do século XX

O automobilismo começa a tomar corpo na Argentina a partir de Buenos Aires, ainda no início do século XX. Os registros históricos apontam que os primeiros automóveis com motor de combustão interna, movidos à gasolina, chegaram à capital argentina entre 1896 e 1898. Dalmiro Varela Castex importou da Europa um triciclo De Dion Bouton e foi o primeiro portenho a ter um registro com permissão para conduzir o automóvel.

Não demorou para que a nova máquina se popularizasse entre a elite local. De acordo com a historiadora Melina Piglia (2014), por volta de 1900 já havia mais de cem carros na cidade, e dez anos depois o número já chegava a quase 5.000 veículos. É nesse período que Dalmiro Varela Castex lidera, em novembro de 1904, a criação do Automóvil Club Argentino (ACA), uma instituição voltada para a organização, o incentivo e a fiscalização do automobilismo esportivo no país. Sua primeira corrida oficial foi realizada em dezembro de 1906, no já desaparecido hipódromo de Nuñez, que assim como o hipódromo do Derby Clube no Rio de Janeiro, deu lugar ao maior estádio de seu país. Nessas primeiras corridas, se enfrentavam renomados membros da elite afeita à modernidades e importadores de automóveis, como Juan Cassoulet.

Em 1910, o ACA organizou a primeira edição do Grand Premio de la Argentina, uma prova de resistência e velocidade ligando as cidades de Buenos Aires e Córdoba, passando por Rosário. De acordo com Eduardo Archetti (2001, p. 69), os carros demoraram dez horas para chegar em Rosário, e o primeiro a alcançar Córdoba demorou quatro dias. O último a chegar o fez apenas uma semana após a largada. a ausência de estradas, o desconhecimento do trajeto e inúmeros problemas mecânicos faziam do Grand Premio de la Argentina uma empreitada única para seu tempo. No entanto, já era possível observar elementos que caracterizaram as famosas corridas de Turismo Carretera que marcariam o automobilismo anos depois: “caminhos pobres, público curioso, pilotos cheios de coragem, verdadeiros aventureiros, e acompanhantes mecânicos capazes dos mais insólitos consertos” (ARCHETTI, 2001, p. 70).

Nas décadas de 1910 e 1920, era possível encontrar muitos pilotos de origens mais modestas, em geral mecânicos, e do interior do país. Alguns competiam empregados por empresas importadoras de carros e peças, ou por alguma revendedora local dos grandes fabricantes. No entanto, muitos outros eram pilotos independentes, que coletavam dinheiro para sua participação em suas cidades ou patrocinadores, em busca dos prêmios em dinheiro, cada vez maiores. A popularização do automóvel também impulsionava o esporte a novas fronteiras. Em 1920, a frota do país já alcançava o impressionante número de 1 automóvel para cada 160 habitantes, proporção maior do que na França (que tinha 1 para cada 169). Sete anos mais tarde, a proporção na Argentina vai  para 1 carro para cada 49 pessoas, com aproximadamente 200 mil veículos, o dobro da frota do Brasil, que possuía o triplo da população (FONTE: PIGLIA, 2018). 

O automobilismo argentino cresceu e se diversificou ao longo dessas décadas iniciais, dando origem a diferentes modalidades. Corridas de velocidade, tanto em circuitos fechados, geralmente disputadas em autódromos, como em circuitos abertos, em trechos de estradas, reuníam carros rápidos e especiais para corridas. No entanto, tornaram-se cada vez mais populares as corridas de regularidade, com grandes distâncias percorridas ao longo de dias, ou semanas. Havia ainda modalidades específicas para veículos com mecânica nacional ou importada, com diferentes cilindradas, ou com carros de corrida ou carros de passeio. 

Ao longo dos anos 1930 e 40 ganha popularidade uma modalidade tipicamente argentina. Corridas de resistência, disputadas em várias etapas em estradas não necessariamente fechadas para o trânsito. A partir de 1937, essas corridas seriam disputadas por automóveis de passeio (ou de turismo, como eram chamados) ligeiramente modificados. Essa modalidade ficou conhecida como Turismo Carretera

Turismo Carretera: Automobilismo e Turismo nas décadas de 1930 e 40

As ações do governo tiveram forte impacto no automobilismo argentino durante a chamada Década Infame. Se, por um lado, as ações do governo em manutenção e obras de melhoramento nas estradas criaram condições de ampliação do alcance do esporte, por outro, diversos empecilhos foram criados a fim de controlar os riscos presentes em sua prática. O já tradicional Grand Premio de la Argentina, organizado pelo ACA, não se limitava mais ao trajeto Buenos Aires-Córdoba, sendo realizado em trajetos diferentes a cada ano entre 1933 e 1943. Já as provas de velocidade, apesar de populares, acabaram  sofrendo embargo do governo em 1934, através da Dirección Nacional de Vialidad (DNV,  Administração Nacional de Rodovias), que proíbe a modalidade após recorrentes mortes em corridas locais. 

Com a proibição de provas de velocidade em território nacional, o Grande Prêmio do ACA é convertido no Primeiro Grande Prêmio Internacional, em 1935, unindo Buenos Aires a Santiago, Chile. O trajeto de cerca de 5.000 km era composto por cinco etapas (Buenos Aires-Mendoza; Mendoza-Santiago de Chile; Santiago de Chile-Neuquén; Neuquén-Bahía Blanca; e Bahía Blanca-Buenos Aires), disputadas por pilotos de ambos países,. A prova era travada com limite de velocidade em território argentino, e velocidade em território chileno. No ano seguinte, o trajeto foi expandido para mais de 6.000 kms e marcas como Chevrolet e Plumouth participam. 

Em maio de 1937, utilizando o argumento de que pretendia privilegiar a circulação de veículos de passeio, a DNV proibiu a realização de provas oficiais em rodovias nacionais, com exceção daquelas que “por seu caráter, busquem difundir o conhecimento do país e fomentem o turismo dentro do mesmo, mediante adequada utilização de estradas argentinas” (citado por PIGLIA, 2018). É nesse contexto em que aparece a nova modalidade de Turismo Carretera.

  O Grand Premio Argentino de Turismo Carretera (TC) foi realizado entre os dias 5 e 15 de agosto de 1937. A bandeirada de largada foi dada pelo presidente argentino, general Augustín Justo, e aparece como destaque o nome do jovem piloto Oscar Gálvez, que se tornaria uma das lendas do automobilismo no país, juntamente com Juan Manuel Fangio, que se iniciou no TC do ano seguinte. 

A própria concepção das TC foram forjadas pelo Estado argentino, através da DNV. Uma série de normas estabelecia que poderiam participar apenas carros de passeio (com poucas modificações permitidas), com chassis e motores da mesma marca, capota fechada, e velocidade máxima de 120 km/h. Todos os carros deveriam seguir as orientações gerais de trânsito e deveriam estar dentro das normas para rodar pelas cidades do país. 

O Estado buscava assim assegurar um propósito de integração nacional e de apoio ao turismo proporcionado pelo automobilismo. O esporte serviria como propaganda do turismo interno, estimulando viajantes a percorrer os mesmos trajetos com seus próprios carros, a visitar locais antes desconhecidos e a conhecer e confiar na rede de vias rodoviárias do interior do país. O fato dos automóveis que corriam nessas provas serem veículos de passeio faria com que turistas se sentissem mais confiantes na segurança das estradas. O limite de velocidade relativamente baixo tornava as corridas mais seguras para pilotos e para as pessoas que se aglomeravam ao lado das pistas para assistir. O menor número de acidentes fatais era fundamental para construir a confiança do público nas estradas. 

As provas internacionais levavam essas propostas a patamares ainda maiores. Inicialmente organizadas entre Argentina e Chile, em 1940 o ACA passa a organizar novas empreitadas que se coadunavam com o ideal Pan Americanista que ganhava força com a Segunda Guerra Mundial. A Argentina, país com tradição de neutralidade, reforçava suas relações com seus vizinhos hispanófonos da América. Nessa ocasião, foi organizado o Grande Prêmio Internacional do Norte,  ligando Buenos Aires a Lima, passando por La Paz. Juan Manuel Fangio, correndo com um Chevrolet, foi o vencedor da prova, com tempo total de 109 horas, 36 minutos e 16 segundos. 

O sucesso da prova foi tanto que o ACA planejava ampliá-la, planejando sua extensão à Caracas em 1941 e Nova York em 1942. No entanto, a escalada da guerra e a posterior entrada dos Estados Unidos após o ataque japonês em Pearl Harbor levaram ao cancelamento das provas até 1948. Os custos para os pilotos participantes era muito elevado. As provas duravam muitos dias e exigiam muito de pilotos e seus carros. Uma grande equipe de mecânicos e quantidade de peças era fundamental para resistir a todos os problemas que surgiriam durante a jornada. A dificuldade em conseguir peças, combustível e dinheiro para a participação levou ao cancelamento das principais provas, que foram sendo retomadas gradativamente após o final da guerra. 

Em 1948, já sob o governo de Juan Perón, a prova Buenos Aires-Caracas é realizada. Entre os 141 participantes, contavam-se 8 peruanos, 5 chilenos, 5 bolivianos, 3 venezuelanos, 1 uruguaio e 119 argentinos (ARCHETTI, 2001, p. 80). O trajeto, com 9,580 km, foi percorrido em 20 dias, com 5 dias de descanso. No entanto, o TC já começava a perder espaço para outra modalidade do automobilismo, as corridas de velocidade. Com a chegada de Perón ao governo, novos ideais passaram a reger o ideal do automobilismo como esporte e seu potencial serviço à nação. 

Um Novo Automobilismo na Nova Argentina de Perón.

O governo de Juan Domingo Perón estabelece uma nova relação entre Estado e os diversos campos esportivos na Argentina. Com aporte financeiro do Estado, o Automóvil Club Argentino adquire carros de corrida para formar uma equipe para disputar provas na Europa. Correndo com uma Maserati, Fangio venceu quatro provas na Europa em 1949. No ano seguinte, Fangio e José Froilán González estrearam na Fórmula 1 Internacional. A popularidade e habilidade dos pilotos argentinos era agora posta na vitrine internacional, em disputas com os melhores pilotos do mundo. A Nova Argentina de Perón exibia seus frutos, demonstrando a capacidade do povo argentino quando propriamente guiado, diria a propaganda do governo. 

E o resultado não poderia ter sido muito melhor. Fangio foi campeão mundial de Fórmula 1 em 1951, 1954 e 1955, durante o período peronista, e ainda em 1956 e 1957, já depois da queda do Presidente argentino. Já González foi vice-campeão em 1954 e ficou marcado por ter conseguido a primeira vitória da Ferrari em uma corrida de Fórmula 1, em 1951. A equipe argentina era acompanhada por jornalistas que transmitiriam as vitórias nacionais para a América. 

Em 1950, ao receber os pilotos que voltavam de sua temporada na Europa, Perón teria perguntado se os visitantes precisavam de alguma ajuda de seu governo. Fangio teria tomado a palavra ao afirmar: “Precisamos de um autódromo, general” (LUPO, 2004, p. 308). Sendo verdadeira ou não essa versão dos acontecimentos, o fato é que em janeiro de 1951, a cidade de Buenos Aires anunciou o início da construção do novo autódromo municipal, que ficaria pronto 15 meses depois. O autódromo, com diversos circuitos e capacidade para mais de 100 mil pessoas, seria um dos maiores símbolos dessa nova relação entre o automobilismo e o Estado argentino. 

Imagens do Grande Premio de Buenos Aires de 1953. Vale notar a presença de Perón nas imagens do evento.

Nomeado inicialmente como Autódromo 17 de Outubro, em homenagem a uma importante data do Peronismo, o dia da Lealdade, o circuito marcou o ingresso da Argentina no calendário oficial do circo da Formula 1, como a primeira prova do ano a partir de 1953. 

Considerações Finais

O Turismo Carretera Marcou uma importante fase no automobilismo argentino. Em um período em que as ambições políticas de projeção internacional do governo argentino tinham como maior ênfase sua relação de supremacia com seus vizinhos de língua espanhola (ou seja, excetuando-se o Brasil), a modalidade serviu tanto para o incentivo de uma política interna de unidade territorial e de difusão do turismo doméstico, como um mecanismo de afirmação da superioridade do país em uma área profundamente ligada à tecnologia e à modernidade como o automobilismo. 

A realização das provas internacionais fortaleceram esses laços, com provas de múltiplos trajetos unindo diversos países da América do Sul. Argentina, Chile, Peru, Bolívia e até Colômbia receberam os pilotos de Turismo Carretera, e mais países ainda tiveram pilotos participantes das provas, em geral dominadas por argentinos. 

Com o final da Segunda Guerra Mundial e a ascensão de Juan Perón, uma nova visão política sobre a Argentina e o esporte passa a vigorar no país. O final da primeira metade do século XX vê assim uma profunda mudança no automobilismo do país.O Turismo Carretera perde espaço para as provas de velocidade em circuitos fechados. Com financiamento do governo peronista, uma equipe argentina passa a disputar o principal campeonato do mundo e se destaca com as vitórias daquele que foi considerado por muito tempo o melhor piloto da história: Juan Manuel Fangio. Para completar, o novo governo argentino constrói um novo circuito para a cidade de Buenos Aires, que passa a abrigar provas internacionais de Fórmula 1. De referência regional, a Argentina se torna um símbolo mundial para o esporte. 

Referências:

Archetti, Eduardo P. (2001). El potrero, La Pista y el Ring: las Patrias del Deporte Argenitno [The Paddock, The Racetrack and the Ring: the Homelands of Argentine Sport]. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica.

Lupo, Victor (2004). Historia política del deporte argentino (1610-2002) [Political History of Argentine Sport (1610-2002)]. Buenos Aires: Corregidor.

Piglia, Melina (2014). Autos, rutas y turismo. El Automóvil Club Argentino y el Estado [Cars, Routes and Tourism. The Automobile Club of Argentina and the state]. Buenos Aires: Siglo XXI Editores.


Futebol como Diplomacia: a Política de Apaziguamento

31/08/2020

por Maurício Drumond

1938. A Alemanha estava sob o regime nazista desde 1933 e já dava claros sinais de que a guerra estava próxima. No dia 14 de maio de 1938 as seleções de futebol da Inglaterra e da Alemanha se encontraram no Estádio Olímpico de Berlim, em um jogo amistoso que marcou a história. Sob os olhares de 105 mil espectadores, a equipe britânica cumprimentou os oficiais do regime com a saudação nazista e depois derrotou os alemães por 6 a 3. Mas o que teria motivado o encontro de dois países que pouco mais de um ano depois estariam se enfrentando em uma das mais devastadoras guerras da história? E por que teriam os ingleses feito a saudação à romana, um dos maiores símbolos do movimento fascista?

A política do Apaziguamento

Ainda sob o impacto dos efeitos da I Guerra Mundial e de seu alto custo de vidas humanas, Inglaterra e França buscaram evitar o confronto com a Alemanha de Hitler através do que se convencionou chamar de “Política de Apaziguamento”, na qual os países mantinham uma política de boa vontade e condescendência perante às investidas alemães na Europa (como no caso da remilitarização alemã e da anexação da Áustria com a Anschluss) e buscavam se aproximar do governo de Hitler. O auge dessa política se deu com a Conferência de Munique, realizada alguns meses após o jogo, que levou Churchill a proferir a célebre frase: “Vocês puderam escolher entre a desonra e a guerra. Vocês escolheram a desonra e terão a guerra”.

Inicialmente, a política apaziguadora de Neville Chamberlain, contou com grande apoio popular e da mídia britânica. Após a assinatura do tratado de Munique, Chamberlain foi recebido com festa ao sair do avião, em seu retorno para Londres, ao proferir o discurso sobre a “Paz de nosso tempo“, no dia 30 de setembro de 1930 (Peace o four time).

No entanto, poucos meses depois a Alemanha invadiria o resto da Checoslováquia, e menos de um ano depois a II Guerra Mundial teria início com a invasão da Polônia. A política de apaziguamento seria então considerada um grande erro, como descrito no livro “Guilty Men” (Homens Culpados) publicado em 1940, em meio à guerra e aos bombardeios alemães a Londres. Assinado por “Cato” (pseudônimo para três jornalistas ingleses), o livro apontava Chamberlain e outros líderes do governo britânico como responsáveis pela guerra. Eles teriam sido fracos e medrosos, e o apaziguamento uma política imoral e covarde. O clima de guerra e a disputa interna da política britância, especialmente entre Churchill e Lorde Hallifax (então ministro de relações exteriores, que apoiava a paz com o Eixo), contribuíram para o tom do livro.

Após o final da guerra, no primeiro volume de sua obra “Memórias da Segunda Guerra Mundial”, Churchill aponta o apaziguamento como um erro de Chamberlain, ainda que motivado por boas intenções. Apesar de se vender no livro quase que como o único a se opor à política, Churchill tentava apresentar uma visão que se coadunava com o início da Guerra Fria, afirmando que ao invés de se buscar o apaziguamento com o agressor, o Reino Unido deveria ter buscado se aliar a outras potências contra um inimigo em comum. Visão que se manteve por anos como a principal visão sobre o tema na historiografia.

Nos anos 1960, historiadores revisionistas como AJP Taylor buscam novas interpretações e começam a apontar a pequena margem de manobra política na qual Chamberlain estava inserido, e a necessidade de ganhar tempo para preparar as Forças Armadas britânicas para uma eventual guerra. Já a partir dos anos 1990, com o fim da Guerra Fria e a abertura de arquivos soviéticos, novos debates historiográficos voltam a apontar o quinhão de responsabilidade de Chamberlain e sua política de apaziguamento sobre a eclosão da Segunda Guerra. Entre os novos fatores elencados, a visão de que Chamberlain sobrestimou sua capacidade de negociação com Hitler, de modo a manter um aliado forte próximo à fronteira com a União Soviética, demonstra a importância da manutenção de boas relações com a Alemanha nazista. Dessa maneira, fica evidente que o Ministério dos Assuntos Exteriores britânico, o Foreign Office, via a aproximação diplomáticas com o III Reich um elemento central da política externa inglesa. Dentro dessa política, uma melhor relação com a Alemanha era fundamental, e o futebol foi um dos meios nos quais um símbolo de boa vontade entre os dois países poderia ser demonstrado.

Apaziguamento pelo futebol

A aproximação do futebol britânico com a Alemanha nazista teve início com o convite aceito pela equipe do Derby County FC no final da temporada de 1933/34. Os Rams (Carneiros), como também são conhecidos, terminaram a temporada como quarto colocados na primeira divisão do campeonato da Football Association e receberam o convite da Federação Alemã de Futebol (Deutscher Fußall-Bund)para participar de quatro jogos amistosos em maio. Além de uma temporada de sucesso, a equipe contava com alguns jogadores da seleção britânica, até então vista como a principal equipe de futebol do mundo.

A participação dos Rams ia diretamente ao encontro da diplomacia cultural britânica de aproximação com o novo regime implantado por Hitler a partir de 1933. Dave Holford era um ponta esquerda de apenas 19 anos que fez parte da equipe que viajou à Alemanha. Anos mais tarde, o então jovem atleta rememorou:

Em todos os lugares onde íamos, podíamos ver a suástica. Se dizíamos “bom dia”, eles respondiam com “Heil Hitler”. Se você entrasse em uma lanchonete e dissesse “bom dia”, teria um “Heil Hitler” como resposta. Já naquela época, era possível perceber que se tratava de um país que se preparava para a guerra (Fonte).

Os jogos não foram o passeio tranquilo que os jogadores britânicos provavelmente imaginaram, com a tradicional empáfia inglesa de inventores do esporte. Enfrentando equipes de selecionados de jogadores locais, os Rams acumularam três derrotas (5 a 0 em Colônia, 5 a 2 em Frankfurt e 1 a 0 em Dusseldorf) e um empate (1 a 1 em Dortmund). No entanto, os confrontos foram marcados pela primeira vez em que uma equipe britânica realizou a saudação à romana, conhecida também como saudação nazista, já que estavam na Alemanha. A saudação já se tornara rotina no cotidiano alemão e tinha sido tornada obrigatória em eventos esportivos, simbolizando uma saudação ao füher, mesmo ele não estando presente.

George Collin, zagueiro dos Rams que capitaneava a equipe nos confrontos, teria explicado o fato anos depois:

Dissemos ao nosso técnico, George Jobey, que não queríamos fazer o gesto. Ele conversou com os dirigentes, mas eles disseram que o embaixador britânico insistiu que deveríamos fazê-lo. Ele afirmou que o Foreign Office tinha medo de que nossa recusa poderia causar um incidente internacional. Seria uma ofensa a Hitler, em um momento em que as relações internacionais eram tão delicadas.

Então fizemos como pedido. Todos nós, com exceção de nosso goleiro, Jack Kirby. Jack fez questão de não faze a saudação. Quando chegou a hora, ele apenas continuou com o braço para baixo e quase virou de costas para os dignitários. Se alguém notou, não falou nada. (Fonte)

A fotografia da ocasião corrobora o testemunho de Collin. Nela podemos observar o semblante de constrangimento de muitos jogadores do Derby County, com alguns mantendo sua cabeça baixa e os olhos fixados no gramado a seus pés. No canto esquerdo, o goleiro Jack Kirby está de lado, quase se virando de costas à tribuna, com os braços para baixo. A coragem de Kirby parece não ter tido maiores repercussões, e novos encontros futebolísticos ocorreriam voltariam a ocorrer.

Em dezembro do ano seguinte, a seleção alemã visitaria Londres para enfrentar a tão temida seleção inglesa. E o local da partida foi o antigo estádio do Tottenham, White Heart Lane, um clube conhecido por sua ligação com a comunidade judaica inglesa. O jogo gerou alguns protestos de torcedores em formas de cartas e de ameaças de boicotes e manifestações no dia do jogo. Duas horas antes do início da partida, uma passeata anti-nazista foi organizada, distribuindo panfletos e carregando cartazes com dizeres como “O esporte do fascismo é a caça aos judeus”, “Acerte Hitler abaixo da cintura” e “Mantenha o jogo limpo, combata o fascismo”. Ao se aproximarem do estádio, a passeata foi atacada pela polícia, que rasgou panfletos e cartazes, prendeu manifestantes e deu fim ao protesto. Outros manifestantes distribuíram panfletos em outras partes da cidade ou os jogaram das janelas dos ônibus.

Atenção para a bandeira nazista a meio mastro no canto superior direito.

Algumas fontes afirmam também que a bandeira nazista que era exibida no estádio foi momentaneamente retirada por um manifestante, que foi preso em flagrante. Ernie Wooley subiu na cobertura da arquibancada e cortou a corda que mantinha a bandeira a meio mastro (em homenagem à recente morte da princesa Victoria) e foi detido assim que desceu. No dia seguinte, foi liberado. O dia do jogo foi marcado também pela grande afluência de torcedores alemães à Londres, como é relatado na reportagem disponível no canal do British Pathé, no youtube.

Se as fotos do jogo mostram a equipe alemã realizando a saudação à romana, o vídeo da reportagem mostra as cenas do jogo, onde é possível reparar que o gesto foi restrito aos atletas da equipe alemã.

Seleção Alemã saudando a equipe inglesa no início do jogo, em 1935.
Imagem retirada do vídeo da reportagem, mostra o momento da saudação, com a equipe inglesa também em enquadramento.

A seleção inglesa venceu o jogo por 3 a 0, sem maiores contratempos. Como retribuição à visita alemã, a Federação Alemã de Futebol convidou a seleção inglesa para um amistoso em Berlim, no Estádio Olímpico, que havia sido reformado para as Olimpíadas de 1936 e era um dos maiores símbolos da política esportiva do III Reich.

Para o Foreign Office, o jogo era mais uma grande oportunidade para se estreitar as relações entre os países. Apesar do chefe da pasta, Robert Vansittart, ser um opositor do apaziguamento defendido por Neville Chamberlain, este escreveu a Stanley Rous, secretário da Football Association (que seria presidente da FIFA de 1961 a 1974), pedindo que este se certificasse de que a equipe inglesa realizasse um papel de primeira ordem em solo alemão, o que significava bom comportamento e um futebol exemplar.

A equipe alemã já estava treinando há algumas semanas na Floresta Negra e vinha embalada por uma série invicta de 16 jogos desde 1937. A seleção nazista era ainda mais forte após a anexação da Áustria ocorrida dois meses antes e da absorção de quatro jogadores austríacos. No início da década de 1930 a seleção austríaca era considerada uma das mais fortes da Europa e era chamada de Wunderteam e ainda tinha muitos bons jogadores. Matthias Sindelar, craque e líder do time, também foi convidado pelos alemães para se juntar à seleção, mas recusou. No entanto, a federação inglesa exigiu que nenhum jogador austríaco participasse do jogo pela equipe alemã. Como contrapartida, foi organizado uma série de jogos extra contra a equipe do Aston Villa


Era assim compreensível o receio do Foreign Office, que desejava manter uma boa relação com a Alemanha, mas também reviver o prestígio esportivo britânico. Uma vitória era fundamental. Como parte da demonstração de camaradagem por parte dos ingleses, os jogadores britânicos, incluindo o jovem Stanley Matthews, então com apenas 23 anos, foi aconselhada pelo embaixador britânico em Berlim, sir Neville Henderson, a realizar a saudação à romana perante Hitler, como ocorrera com o Derby County alguns anos antes. Henderson teria dado a seguinte explicação aos jogadores: “Quando me encontro com Hitler, faço a saudação nazista porque é a cortesia normal esperada. Ela não demonstra nenhuma simpatia pelo que Hitler ou seu regime possam fazer”.

Tendo em vista as instruções do embaixador e a pressão da federação por um bom comportamento, os jogadores se postaram à frente das tribunas e executaram a saudação nazista durante o hino alemão, perante às autoridades nazistas, ao grande público e a fotógrafos que marcaram o momento que entrou para a história do esporte, ainda que de forma negativa. Hermann Göring (Presidente do Parlamento), Joseph Goebbels (Ministro de Propaganda), Rudolf Hess (vice führer do Partido Nazista) e Joachim von Ribbentrop (embaixador alemão no Reino Unido) assistiram ao jogo.

Os 22 jogadores perfilados fazem a saudação à romana no jogo em Berlim, 1938.

Iniciado o jogo, as amabilidades se encerraram e a equipe inglesa aplicou uma das maiores goleadas já sofridas pela Alemanha. Fechando o placar com um chute que furou a rede do Estádio Olímpico, os Ingleses derrotaram os alemães em casa por 6 a 3 e fizeram o que deles era esperado. Para os alemães, uma derrota para os “pais do futebol” não era algo do que se envergonhar. Muito pelo contrário, o jogo havia sido um grande sucesso em termos de propaganda, em especial devido à realização da saudação à romana pelos visitantes (veja uma reportagem britânica sobre o jogo aqui).

O jogo contra o Aston Villa, também no estádio Olímpico, no dia seguinte, também foi marcado por grande público. No início do jogo, todos os jogadores do Aston Villa fizeram a saudação à romana. O jogo foi marcado por grandes vaias do público, uma vez que o Villa colocava em ação uma nova estratégia para a época, a linha de impedimento. Após a vitória por 3 a 2, os jogadores ingleses saíram de campo sem fazer uma segunda saudação, o que gerou um certo desconforto diplomático, que logo foi contornado. Os jogos seguintes da equipe inglesa na Alemanha foram em Stuttgart e Dusseldorf e ocorreram sem maiores problemas no que diz respeito à saudação por parte dos ingleses. A foto abaixo, de um dos jogos do Aston Villa na Alemanha (talvez o jogo em Berlim, mas não consegui ter certeza na identificação), mostra a equipe saudando as autoridades, ainda que de forma tímida, sendo possível perceber o constrangimento de alguns jogadores.

Ainda que o discurso majoritário por parte de atletas e envolvidos em relação aos encontros tenha mudado nos anos seguintes, acompanhando as mudanças de visão sobre o apaziguamento, é importante entendermos que no momento desses confrontos, a política implementada por Chamberlain era vista como um grande sucesso, especialmente depois da Conferência de Munique. Com o início da guerra e especialmente após o seu fim, antigos simpatizantes do apaziguamento e da Alemanha nazista mudaram seus discursos e criaram uma nova narrativa sobre seu passado. As fontes, no entanto, nos contam outro lado da história. Ainda assim, a relação entre os jogos de futebol e a política de apaziguamento nos proporciona importantes reflexões sobre a importância do futebol como meio de diplomacia e a natureza frágil das relações internacionais nesse período.