O Passeio Público de Curitiba e as dinâmicas náuticas na capital paranaense da transição dos séculos XIX-XX[1]

07/05/2024

Leonardo do Couto Gomes

Inaugurou-se com grande pompa o local destinado para passeio publico desta capital, e disso já devem ter ido os telegrammas para a corte.Appladudimos a ideia, e achamos menos má a escolha do terreno, por ser um brejal que se pretende deseccar, e tornal-o util de imprestavel que antes era (O Dezenove de Dezembro. 4 de mai. 1886, p.1)

A história das primeiras experiências náuticas da capital paranaense está intimamente entrelaçada com a construção do primeiro parque público da cidade em. Nas primeiras páginas do principal jornal paranaense do período, O Dezenove de Dezembro, estampava-se a notícia da inauguração do pioneiro Passeio Público de Curitiba. Com aplausos, a mídia local aparentava apreciar com bons olhos a formação deste espaço para recreio. Destaca-se ainda, no anúncio acima, a colocação de que o local onde o passeio foi construído era um terreno pantanoso e que nada de proveitoso se tirava dali. Tratava-se, portanto, de uma construção vantajosa ao desenvolvimento material da capital paranaense.

A respeito da área onde foi edificado o Passeio Público, de fato, era um vasto terreno lamacento de 48 mil metros quadrados situado, naquele momento, ao norte da cidade (atualmente região central), banhado pelas águas do Rio Belém, que rotineiramente alagavam a região, espavorecendo os habitantes devido o odor e os miasmas provocados pelas águas paradas. Portanto, o novo ambiente emergia como um símbolo útil para a transformação urbana e que as atividades ali difundidas também estariam imbuídas deste mesmo ideário.

Fonte: Casa da memória. Curitiba/PR.
A estrela amarela indica a área do Passeio Público de Curitiba.
O retângulo roxo identifica a Praça Tiradentes, marco central da cidade.
A linha laranja trata-se da Rua 15 de novembro, logradouro onde funcionou o Teatro Hauer, espaço utilizado para a promoção de diversas festividades entre 1891 e a década de 1930.
O traço azul claro representa a Rua Aquidaban (atual Emiliano Perneta). Ponto de variados empreendimentos ligados aos divertimentos. O Colyseu Curytibano um parque de diversões famoso da década de 1900 e o Frontão Curitybano, casa especializada no jogo da pelota basca, são bons exemplos.
A linha branca trata-se da estrada da graciosa, importante trajeto que liga Curitiba ao litoral – e ao principal porto comercial, o da cidade de Paranaguá.

À frente dos projetos arquitetônicos, estava o italiano João Lazzarini, nesse momento engenheiro da câmara municipal e encarregado pela edificação. Enquanto o responsável político pela empreitada era o então presidente da província, ligado ao partido liberal, o carioca Alfredo d’Escragnolle Taunay, que acelerou a construção para finalizá-la durante seu mandato (1885-1886) – com o propósito de colher as glórias da conclusão da obra.  Em discurso o governante evidencia sua visão sobre a construção do parque:

A cidade de Curitiba ressente-se de uma grande falta, que já deveria ter sido motivo de algumas medidas por parte dessa Municipalidade: a de um passeio ou Jardim Público, que servin-do à população de ameno e freqüentado logradouro, mostrasse a quantos procuram ou visitam esta localidade que ela com-preende devidamente a importância de certos melhoramentos cuja ligação com a saúde e higiene gerais são hoje indiscutí-veis e que nos centros de aglomeração de gente se tornam até indispensáveis( Boletim do Arquivo do Paraná. v. 13, 1886, p. 40).

Notemos que, na percepção do político, a obra era uma necessidade pública indispensável para a cidade. Esse ponto de vista observava a estrutura como uma importante possibilidade de melhorias para a saúde e higiene geral da população, e que só se efetivaria por meio de reformas em uma área que até então contava com características insalubres. Sobre esses pontos a construção do Passeio de fato apresentava avanços para a higiene pública, pois a estrutura remodelaria um espaço visto como foco de pestilências. Ainda, foi por meio dos avanços da engenharia que a empreitada promoveu a condensação da vegetação e regularizou o escoamento das águas, que era o foco de preocupação com doenças.

O primeiro parque de Curitiba foi inaugurado em 1886. Entre seu leque de possibilidades, destacavam-se diversas inovações, algumas marcadas pelo controle do homem perante a natureza, como a possibilidade de caminhar por cima de pontes e jardins em uma área que até então era pantanosa e insalubre. A imagem a seguir ilustra esse feito, ao retratar sujeitos em cima de uma passarela nos primórdios do funcionamento do Passeio.

Figura 2. Passarela no Passeio Público, 1886.
Fonte: Arquivo da Gazeta do Povo. Curitiba/PR

Mas destaque mesmo ganhou o carrossel elétrico colocado no parque. Se tratava de um instrumento da maquinaria que trazia ar de tecnologia e novidade ao ambiente que proporcionava experiências singulares ligadas as percepções de velocidade e vertigem. A iluminação por meio da energia elétrica – utilização ainda pouco comum na época –, era um importante componente e símbolo de modernização também presente no ambiente, mesmo que, não raro, detecte-se o uso de lampiões no local (O Dezenove de Dezembro. 14 jan. 1887, p. 3).

Figura 3. Primórdios do Passeio Público, destaque para o carrossel a direita (1886).
Fonte: Arquivo Público do Paraná. Curitiba/PR.

O propósito delineado para o Passeio, conforme aponta Molina (2020), era tornar o espaço um bem material para a cidade, reunindo ali diversos elementos tidos como benéficos para o avançar urbano. Nesse sentido, a realização de experiências com divertimentos náuticos eram um importante sustentáculo, pois além de evidenciar todo um domínio da engenharia ao controlar a natureza, possibilitando deslizar nas águas de um ambiente até então inóspito, também proporcionava aos habitantes o contato com práticas que estavam ganhando conotação de novos tempos, como é o caso das esportivas.

A respeito do funcionamento do parque e realização de algumas atividades, conseguimos detectar que este ficava aberto todos os dias. As entradas eram francas – cobrava-se apenas o que se consumisse no ambiente. Tratava-se de um sistema de concessão de licença, a Câmara Municipal cedia aos contratantes a possibilidade de explorar comercialmente a estrutura, em troca de uma taxa do lucro. Nesse sentido, é provável que os remos e canoas disponíveis para deslizar nas águas do Passeio, inclusive, fossem cedidos pelo próprio poder público, que provavelmente cobrava alguma taxa da manutenção dos materiais. Infelizmente devido à ausência de relatos, essa é uma questão que não conseguimos identificar com maiores detalhes. Por ventura até mesmo fossem embarcações similares as retratadas em uma imagem do parque anos mais tarde.

Figura 4.  Embarcações, Passeio Público, década de 1920.
Fonte: Casa da memória. Curitiba/PR.

 Existiam horários específicos para o inverno (das 10h às 17h) e para o verão (das 10h às 19h[1]).  Os ingressos para usufruir das atrações eram cobrados e vendidos nas próprias dependências da estrutura. Uma taxa de 100 reis era necessária para desfrutar de 10 minutos no carrossel, a idade máxima permitida era 15 anos. Contudo, se levarmos em consideração o ineditismo do instrumento, não é improvável que adultos também se arriscassem em experimentar dessa curiosidade.  

Já para praticar as atividades náuticas eram cobrados uma taxa de 1$000 reis[2]. Comidas e bebidas também eram comercializadas no local. O valor cobrado[3] para deslizar sobre as águas era similar a outras atrações que vinham se conformando na cidade. O bilhete geral para as peças no Teatro Hauer custava 1$000[4]. Via de regra, eram valores acessíveis para um amplo[5] extrato da população curitibana.

Com um espaço promissor e com um público aparentemente disposto a usufruir da dinâmica, deslizar sobre a água não demoraria para ganhar contornos competitivos, conforme evidência uma nota jornalística:

REGATAS

Informam-nos que brevemente serão installadas as regatas no grande lago do Passeio Público, para cujo fim o director desde logradouro está se occupando da organização de um club especial.

Será isso um novo e grande attractivo para aquelle centro, que desde já é o rendez-vous da nossa melhor sociedade (O Dezenove de Dezembro. 25 de jan. 1888, p. 2).

Na fonte é possível observar que o desejo era organizar um clube específico para regatas. O local das disputas era o único possível na cidade: o lago do Passeio. Contudo, de acordo com Bahls (1998), a falta de verba municipal – uma característica comum durante os tempos do império – freava a tentativa. Aliás, a falta de recurso foi uma constante nos primeiros anos do passeio, mas nem por isso o espaço deixou de ser usado pela população.

As regatas começavam a angariar interesse. O jornal A República anunciava: “Domingo as quatro horas da tarde, deu princípio, as regatas no Passeio Público que estiveram animadíssimas” (A República. 12 de jun. 1892, p. 2). Apesar desse dia de disputas ter se mostrado pela imprensa como animado, misteriosamente após esse evento os jornais locais só voltariam a relatar novas performances em 1895. Antes disso, somente na cidade litorânea de Paranaguá foram encontrados registros de eventos beneficentes e da fundação de um clube de regatas[1]. Há algumas possibilidades para explicarmos tal ocorrência. Uma delas são os próprios surtos epidêmicos do período, assim como a Revolução Federalista que estava por vir e o clima e a escassez hídrica ocorrida na época, além do mais elementar: um possível baixo interesse por parte da população em relação ao novo divertimento.

Em meados de 1895 é que os primeiros relatos mais detalhados de regatas nas dependências do Passeio foram abordados pela imprensa local. A República publicava o seguinte cartaz de divulgação:

GRANDES REGATAS NO PASSEIO PÚBLICO DE CURITYBA

De hoje 18 a 21  do corrente, até as 2 horas da tarde, recebe-se, no challet do dito Passeio, inscripções para as regatas que terão lugar domingo 22 do corrente á tarde, se o tempo permitir, e que constarão do seguinte:

1º PAREO – Premio – 35$000

Canôa de um só  remo contra um bóte de dous remos; inscripção – 20$000

2º PAREO – Premio – 25$000

Botes de dous remos – inscripção – 15$000

3º PAREO – Premio – 20$000

Botes de quatro remos – inscripção – 15$000

4º PAREO – (de honra) – Premio – 40$000

Botes de dous remos, movidos e dirigidos por moças, inscripção – 25$000.

Juiz de partida – Deputado Leoncio Correia.

Juiz de chegada – Cidadão José Brito

Juiz da luta – Engenheiro Costard.

Musica exllente, botequim onde se encontrará, á preços razoaveis as melhores e puras bebidas e doces dos mais deliciosos (A República. 19 de set. 1895, p. 3).

O folhetim A tribuna também anunciava a notícia com certo entusiasmo dizendo “Feliz ideia essa, que talvez vá levar áquelle logar, mais alguma animação”[1]. Observemos detalhes importantes a respeito da divulgação: a característica ligada ao clima era um alerta importante. O trecho “Se o tempo permitir” passaria a ser constante nas chamadas para disputas. Apesar dos avanços de canalização hídrica do Passeio, os canais nesse momento não eram tão avantajados como os da Baia de Guanabara na capital federal, ou vastos como o litoral paranaense já utilizado para regatas em Paranaguá.  Na verdade, eram sinuosos, característica pouco conveniente para a prática de atividades náuticas.

Ainda assim, as disputas ocorreram em Curitiba e seguiram certos parâmetros organizacionais similares aos tradicionais clubes de regatas da capital carioca. Um desses padrões é a presença de juízes (um sinal, inclusive, pela busca de assegurar o resultado e equidade, características, aliás, preconizadas pelo Esporte moderno) esses eram estipulados para cada momento das disputas.

Houveram novas tentativas da formação de um clube de regatas na cidade que tentaria promover eventos no lago do Passeio.

CLUB DE REGATAS CURITYBANO

Domingo – 23 – Domingo

Inauguração do Club ás 4 horas da tarde.

Grandes Regatas no Lago do Passeio Publico

1º Pareo Esperança. Botes á 4 remos.

2º Pareo, Juvenal. Botes a 2 remos para um remador.

3º Pareo, Bouque. Botes a 2 remos para dois remadores;

4º Pareo, Violetas, Botes á 4 remos.

Pede-se o comparecimento dos sr.s socios ás 2 horas da tarde de Domingo no Chalet do Passeio a fim de proceder-se á eleição da directoria e tratar-se de mais negocios concernentês ao publico. (A República. 23 de abr. 1899, p. 1).

A respeito de quem eram os sujeitos dispostos a gerir tal organização, nada foi constatado. O clube, na verdade, não teve vida longa. O motivo, ao que parece, era uma dificuldade que já era sentida antes mesmo da inauguração: a ausência de água. Essa adversidade é visualizada na publicação do jornal Diário da Tarde:. “Devido a não haver agua sufficiente no lago do Passeio Público, não se realizaram alli regatas, annunciadas para hontem, que devem agora ter logar em próximo domingo”[1]. Nem mesmo conseguimos localizar se a entidade promoveu algum evento.  O que sabemos é que o desejo existiu, e uma tentativa foi planejada.

No ano seguinte os jornais relatariam um episódio beneficente que seria promovido pelo “antigo” clube de regatas que haveria funcionado no Passeio, sinal de que a empreitada já estava em desuso. “Consta-nos que o antigo grupo de regatas que funcionou no Passeio Público, vai se reorganizar afim de beneficiar o Azylo de Orphãos” (Diário da Tarde. 27 e 28 de mar. 1900, p.1).

Aconteceram outras tentativas de eventos com características similares que, inclusive, lograram algum interesse[2], como um em benefício à sociedade protetora dos animais. Entretanto, os problemas de infraestrutura e naturais, notadamente devido aos canais não serem vastos e profundos suficientemente, além do clima chuvoso pouco propício, sempre ameaçaram as experiências com as atividades náuticas em Curitiba. Todavia, mesmo com as limitações à prática, a iniciativa contribuiu para o forjar de um discurso progressista que valorizava o desenvolvimento material da cidade e dos costumes da sociedade curitibana, principalmente por meio da construção de espaços modernos de divertimentos, aliados às ideias de benefícios para a modernização urbana e melhoramento da saúde através do fortalecimento do físico.

As experiências náuticas, sobretudo as de caráter competitivo, voltariam a ser organizadas em Curitiba, especialmente na administração do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916) já que este promoveria uma ampliação dos espaços hídricos do parque e de outros ambientes da cidade. Deslizar sobre as águas do Passeio Público por meio de remos e canoas ainda seria possível quando a água existisse e o tempo permitisse até meados dos anos 1960, quando os pedalinhos entrariam como novidade.

Figura 5. Parque Passeio Público, passeio de canoa década de 1920
Fonte: Arquivo Gazeta do Povo. Curitiba/PR.

Referências

BAHLS, Aparecida Vaz da Silva. O verde na metrópole: a evolução das praças e jardins em Curitiba (1885-1916). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1998.

GOMES, Leonardo do Couto; CAPRARO, André Mendes. As atividades náuticas em Curitiba (1886-1900). Revista de História Regional, v. 27, n. 02, 2022.

MOLINA, Ana Heloisa. “Temos um Passeio Público, digno desta adiantada capital”: espaços de sociabilidades em registros fotográficos do acervo do Museu Paranaense. Curitiba. 1913-1930. História (São Paulo), v. 39, 2020.


[1] Diário da Tarde. 24 de abr. 1899, p. 1

[2] A República. 9 de set. 1902, p. 2.


[1] A Tribuna. 19 de set. 1895, p. 2.


[1] Ver, A República. 13 de out. 1894, p. 1.


[1] Ver, relatório apresentado pelo Presidente da Província do Paraná Joaquim D’Almeida Faria Sobrinho. PARANÁ, relatórios de secretários de governo, 30 de out. 1886, p. 69.

[2]A República. 17 de out. 1897, p. 4.

[3] Uma vassoura, artefato do cotidiano, custava 1$200. Ver, A Tribuna. 21 nov. 1895, p. 3; já um regador e a menor lata de erva mate custavam ambos 2$500. Ver, A República. 7 de jan. 1896, p.3; Diário da Tarde. 3 de abr. 1899, p.2. Nesse sentido, basicamente quem pudesse usufruir de artefatos básicos do dia a dia, de certo modo, poderia pagar pelos valores do carrossel e regatas.

[4] A República. 8 jan. 1896, p. 3.

[5] A título de comparação, um porteiro da câmara municipal ganhava 1:000$000 reis e um arquivista da mesma estrutura 2:400$000. Ver, A República. 29 mar. 1896, p. 2.

[1] Uma parcela significativa desse material foi publicada na Revista de História Regional. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/rhr/article/view/20260/209209217059


A naturalização da barbárie: a cultura dos “parças” e a permissividade no âmbito hostil do futebol

28/03/2024

por Eduardo Gomes (eduardogomes.historia@gmail.com)

No último domingo, 24 de março de 2024, acordei com o efervescer das prisões de Rivaldo Barbosa e dos irmãos Chiquinho Brazão e Domingos Brazão, todos envolvidos com os assassinatos da então vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e de seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018.

Outros possíveis nomes envolvidos com esse bárbaro episódio, ainda seguem sendo investigados, tendo no mesmo domingo sido cumpridos doze mandados de busca e apreensão. Dentro de uma perspectiva em que possamos pensar o Estado Democrático de Direito, esse é um ponto de avanço importante no que tange a resolução do caso das mortes de Marielle e Anderson. Como afirmou Marcelo Freixo, ex-deputado federal e estadual pelo RJ e atual presidente da Embratur, em declaração publicada no portal Uol, “[…] a prisão dos irmãos Brasão e do Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, deixa claro quem matou, quem mandou matar e quem não deixou investigar. Esse é um ponto importante para explicar porque ficamos seis anos de angústia”.

Tal situação nos permite refletir, também, outras formas de violência contra as mulheres que ultimamente estão sendo debatidas e que ocorreram no âmbito do futebol. Os casos das condenações recentes dos ex-jogadores Daniel Alves e Robinho, tal como a condenação, agora prescrita, do atual treinador e também ex-jogador Cuca, todos relacionados a crimes de estupro contra mulheres, nos permite refletir de várias formas como o mundo do futebol ainda se caracteriza como sendo um espaço culturalmente marcado pela naturalização do machismo, do corporativismo exacerbado (a camaradagem dos “parças”) e do preconceito como pontos normalizados.

Uma demonstração dessa cultura do “passar pano” no âmbito do futebol, são as declarações já dadas por Tite (ex-treinador da seleção brasileira e atual técnico do Flamengo, ambos no futebol masculino) ao abordar o caso Daniel Alves; Dorival Júnior (atual treinador da seleção brasileira de futebol masculino), notadamente ao falar sobre o caso Robinho; e Cuca (atual treinador do time masculino do Athletico-PR) ao problematizar o próprio caso.

Em todos esses ocorridos, como veremos, é de se destacar a priori como as narrativas se basearam na diminuição e relativização dos fatos acerca dos crimes cometidos, mesmo se tratando de violências sexuais explícitas sofridas por mulheres e julgadas pela justiça dos países em que ocorreram (Espanha, no caso Daniel Alves; Itália, no caso Robinho; e Suíça, no caso Cuca e companhia). O fato de serem três nomes de considerável relevância no âmbito do futebol brasileiro e/ou mundial, fez com que tais assuntos fossem ainda mais problematizados e refletidos no contexto social atual.

Iniciando a análise pelo “caso Daniel Alves”, o badalado ex-jogador da seleção brasileira e com passagens por clubes como Barcelona-ESP, Sevilla-ESP, Juventus-ITA, Paris Saint-Germain-FRA, Bahia, São Paulo e Pumas-MEX, foi condenado por um crime cometido em Barcelona no dia 30 de dezembro de 2022, após agredir sexualmente uma mulher de 23 anos no banheiro de uma boate. Para além de diversos absurdos, como o pagamento de uma fiança que garantiu a liberdade provisória ao atleta mesmo após ser condenado a 4 anos e meio de prisão, Daniel ainda contou com uma “ajudinha dos parças”, como Neymar da Silva Santos (ou, “Neymar pai”, pai do atleta Neymar Jr., ex-companheiro de Daniel Alves no Barcelona, PSG e seleção brasileira), que o emprestou 150 mil euros e colaborou para a diminuição de sua pena. Ao portal CNN Brasil, Neymar pai afirmou que

A família nos pediu ajuda. O Daniel não tinha dinheiro para se defender, e o prazo para o pagamento da defesa estava expirando. Pense bem, em nenhum momento, eu podia negar ajuda a um amigo que está tentando se defender de uma acusação

https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/neymar-pai-confirma-auxilio-financeiro-a-daniel-alves-ajuda-a-um-amigo/

Mesmo com todas as evidências claras de um julgamento que publicamente explicitava as incoerências de Daniel Alves e sua culpabilidade no crime, Neymar pai estabeleceu que a “amizade” com o atleta valia mais que os parâmetros éticos que se relacionavam com o crime cometido pelo ex-lateral, destacando ser justificável o empréstimo de dinheiro que resultou no pagamento de uma taxa denominada pela justiça espanhola como “atenuante de reparação de dano causado”, o que consequentemente estabeleceu, também, o caminho para a diminuição da pena no veredito final posterior.

Essa permissividade no mundo do futebol é algo tão latente que, mesmo dentre aqueles que esperamos uma maior racionalização do olhar e, consequentemente, uma opinião mais crítica e com base social, vemos um mantimento desse mundo naturalizado e caracterizado pelo preconceito, solidificando uma estrutura machista e hostil que ronda os espaços desse esporte.

Um exemplo foi a declaração de Adenor Leonardo Bachi, o Tite, hoje treinador do Flamengo. Ao comentar o caso do ex-lateral, Tite destacou que só poderia comentá-lo “conceitualmente”, mesmo com a condenação de Daniel já efetivada:

[…] Eu não posso fazer julgamento sem ter todos os fatos e as informações verdadeiras a respeito. Posso falar conceitualmente. Conceitualmente, todo erro deve ser punido. Mas não sou julgador e não tenho todos os fatos. Fora que há uma etapa de um profissional que trabalhou comigo e existem outras etapas profissionais e pessoais que ele também exerce. Essas eu não conheço e não posso julgar, tenho que ter muito cuidado. Vou dizer mais: quando fui numa coletiva que houve um problema com Neymar, foram 24 perguntas, tive que responder 18 a respeito de um suposto (estupro). E eu disse a mesma coisa, que eu não tinha conhecimento aprofundado. Mas quem erra deve ser punido. Foi assim que eu fui educado. Primeiro te ensino, segundo tu é punido para que aprenda.

https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2024/02/25/tite-cita-nao-ter-todas-as-informacoes-do-caso-daniel-alves-mas-diz-todo-erro-deve-ser-punido.ghtml

Mesmo tendo se arrependido dias depois e explicitado que a comparação que fez do caso de Daniel Alves com o de Neymar era inapropriada, já que o ex-lateral foi efetivamente condenado e não se tratava apenas de uma acusação que poderia não ter fundamento, a fala a priori estabelecida por Tite explicita essa “autoproteção” existente no mundo do futebol, que faz com que muitos dos envolvidos no campo, além de pouco politizados, relativizem casos como esse e “passem pano” com base nas relações que vivenciaram. Foi fazendo referência a essas relações de trabalho, que Tite citou ter tido com Daniel, que o hoje treinador rubro-negro saiu pela tangente ao comentar o crime cometido pelo jogador. Nessa mesma linha, Dorival Júnior, treinador da seleção brasileira, também evitou aprofundar olhares sobre os casos e ainda disse, especificamente sobre Robinho, que o ex-atleta é uma “pessoa fantástica”.

Robinho foi um atacante de destaque, tendo logo em seu início de carreira alcançado grande visibilidade pelos dois títulos brasileiros conquistados atuando pelo Santos, em 2002 e 2004. Suas famosas pedaladas o levaram para diversos outros clubes de relevância nacional e mundial, como Real Madrid-ESP, Manchester City-ING, Milan-ITA, Guangzhou Evergrande-CHI, Atlético Mineiro, Sivasspor-TUR e Istanbul-TUR.

O atleta, que ainda disputou duas Copas do Mundo (2006 e 2010) pela seleção brasileira, tal como outras muitas competições, foi condenado a nove anos de prisão pela participação no estupro coletivo de uma mulher em uma boate de Milão, Itália, no ano de 2013.

Em entrevista concedida antes de sua estreia como técnico da seleção brasileira no último sábado (23), onde venceu por 1×0 a Inglaterra em amistoso disputado em Wembley, Dorival Júnior também se esquivou de respostas mais concretas e profundas ao ser questionado sobre os crimes cometidos por Robinho e Daniel Alves. Assim como Tite, se tratando de Daniel Alves, Dorival se apegou ao passado em que trabalhou com Robinho e chegou a destacar ser o ex-atacante, agora um criminoso preso por estupro, uma “pessoa fantástica”, como podemos conferir em parte de sua declaração abaixo:

Como treinador da Seleção, tenho obrigação de me manifestar. Primeiro, acho que é uma situação muito delicada. O Robinho foi meu atleta, uma pessoa fantástica, um profissional desses, dentro da nossa convivência, acima da média. Não tive oportunidade de trabalhar com o Daniel, mas a história dele dentro do futebol todos nós conhecemos. Fico, naturalmente, até… É um momento difícil para nós expressarmos toda e qualquer situação. Primeiro eu penso nas famílias das pessoas envolvidas e principalmente das vítimas envolvidas nesses episódios, que acontecem diariamente no nosso país e em todo mundo e que, de repente, não são abordados, são abafados porque as pessoas não têm voz. Se houve realmente e comprovado algum tipo de crime, ele tem que ser penalizado. Por mais que doa no meu coração falar disso a respeito de uma pessoa com quem tive um convívio excepcional

https://ge.globo.com/futebol/selecao-brasileira/noticia/2024/03/22/dorival-junior-comenta-condenacoes-de-daniel-alves-e-robinho-olho-muito-mais-pelas-vitimas.ghtml

Visões como as de Tite e Dorival Júnior, dois dos últimos três treinadores da seleção brasileira, explicam muito do porquê o mundo do futebol brasileiro ainda é caracterizado por uma estrutura que naturaliza o machismo, os preconceitos e a desigualdade de gênero e racial. Mesmo daqueles que esperaríamos um posicionamento mais refinado e crítico, dada a experiência, formação e posição de liderança que ocupam, vemos análises rasas e “em cima do muro” acerca de temas que, moralmente falando, deveríamos sempre prezar por posicionamentos mais enfáticos e combativos.

As falas de Dorival, por exemplo, ao ignorar a condenação de Robinho e o referendar como uma pessoa “fantástica”, questionando inclusive se houve ou não crime (mesmo com todas as evidências já publicamente destacadas), explicitam mais que uma ausência de opinião sobre o tema, um posicionamento conivente com o caso em si (o que se torna ainda pior).

Outro caso que podemos citar como exemplo é o de Alexi Stival, o Cuca. Atual treinador do Athletico-PR, Cuca é um profissional multicampeão, tendo dentre outros títulos ganho uma Copa Libertadores da América e dois Brasileirões. Já comandou equipes gigantes do futebol nacional, como São Paulo, Grêmio, Botafogo, Flamengo, Fluminense, Palmeiras, Santos, Atlético Mineiro, Cruzeiro, dentre outras.

Quando jogador, Cuca esteve envolvido no caso de estupro de uma jovem na Suíça, em 1987, quando seu então clube (o Grêmio) disputava uma competição amistosa na ocasião. Depois de um mês detido no país, Cuca retornou ao Brasil após pagamento de fiança e, mesmo tendo sido posteriormente condenado pela justiça suíça a 15 meses de prisão, nunca cumpriu tal pena.

Cuca foi um dos condenados no caso conhecido como “Escândalo de Berna”, por ter cometido o crime de violência sexual na Suíça.
Foto: Jornal Zero Hora, 01 de agosto de 1987.

Nos últimos anos, veio à tona no Brasil a condenação de Cuca. O treinador, a priori sempre se esquivando do tema, negava sua participação no caso. Quando assumiu o comando técnico do Corinthians em 2023, os debates acerca da temática se acirraram.

Após muita pressão, notadamente da torcida feminina do clube paulista e dos movimentos sociais, Cuca se demitiu do Corinthians com a promessa de provar sua inocência. Como, segundo a justiça suíça, sua condenação foi anulada devido a prescrição do crime, Cuca pôde retornar aos trabalhos e, finalmente, fez mea-culpa ao se pronunciar sobre o caso já como comandante do Athletico-PR:

Eu escolhi me recolher durante muito tempo, mas consegui seguir a minha vida, enquanto uma mulher que passa por qualquer tipo de violência não consegue seguir a vida dela sem permanecer machucada, carrega o impacto para sempre. Eu consegui seguir minha vida. O mundo do futebol e o mundo dos homens nunca tinha me cobrado nada, mas o mundo está mudando e eu acho que é para melhor. Não adianta eu ser um grande treinador, esposo, pai, avô, irmão, se eu não entender que o mundo é mais do que o futebol e que eu faço parte dessas coisas. Eu enxergava os problemas, mas me calei porque a sociedade permitia que eu, como homem, me calasse. Hoje entendo que o silêncio soa como covardia. Tenho buscado ouvir mais, entender mais, aprender mais. Não posso mudar o passado. Muitos homens agora me escutam e são capazes de olhar para o passado para rever suas atitudes. Sabemos que o mundo é um lugar diferente para os homens e mulheres, e quando enxergamos isso podemos até resistir, mas as coisas começam a mudar. Só que mudanças honestas e verdadeiras levam tempo, exigem dedicação, estudo, são dolorosas e desafiadoras. […] Eu pensei que eu estava livre da minha angústia quando solucionei meu problema com a anulação do processo e a indenização. Mas entendi que não acabou porque não dependia apenas da decisão judicial, mas que eu precisava entender o que a sociedade esperava de mim. O que vocês vão ver de mim daqui para frente não serão palavras, serão atitudes. Mas obrigado por me ouvirem hoje.

https://ge.globo.com/pr/futebol/times/athletico-pr/noticia/2024/03/10/o-que-a-sociedade-esperava-de-mim-cuca-faz-pronunciamento-sobre-condenacao-na-suica.ghtml

A verdade é que, mesmo louvável e necessária, a necessidade de realização da declaração acima citada só existiu pela ausência de falas sobre o tema no passado de Cuca. Independente de arrependimentos e sem desconsiderar possíveis esforços atuais, o que se percebe na fala dos três treinadores é um modus operandi que vai ao encontro da ideia, já consolidada no mundo do futebol, de não se “tocar em feridas” em casos tão polêmicos como esses.

Assim, Tite, Dorival e Cuca se esquivaram a priori de temas que são muito caros e que, nos espaços que ocupam, cada vez mais socialmente são esperados posicionamentos transparentes e que respeitem minimamente os Direitos Humanos. Não se trata de estabelecer cancelamentos, mas lembremos que, mesmo prescrito, o crime em que Cuca esteve envolvido existiu. E que nos casos de Daniel Alves e Robinho, estamos falando de condenações mais recentes em que se foram comprovadas com evidências claras as violências que ambos cometeram.

O primeiro passo para a quebra de preconceitos no mundo do futebol e, por consequência, o estabelecimento pedagógico de um olhar que lute contra preconceitos como o machismo, racismo, lgbtfobia, dentre outros que ainda ocorrem no âmbito desse esporte, é o de se estabelecer a quebra dessa cultura dos “parças” e de se tocar na ferida em temas sensíveis que muitas das vezes são colocados para debaixo dos tapetes, mas que ocorrem quase que diariamente na sociedade e devem ser abordados como forma de se estabelecer caminhos de luta e combate.

Referências

https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2024/03/23/caso-daniel-alves-mp-espanhol-entra-com-recurso-contra-liberdade-provisoria.ghtml

https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/13400572/daniel-alves-paga-fianca-consegue-liberdade-provisoria-justica-espanha

https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2024/03/02/tite-do-flamengo-pede-perdao-sobre-fala-em-caso-de-daniel-alves-comparacao-sem-sentido.ghtml

https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2024/02/25/tite-cita-nao-ter-todas-as-informacoes-do-caso-daniel-alves-mas-diz-todo-erro-deve-ser-punido.ghtml

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-brasil/2024/03/24/operacao-ajuda-a-entender-relacao-entre-crime-e-politica-diz-freixo.htm https://ge.globo.com/pr/futebol/times/athletico-pr/noticia/2024/03/10/o-que-a-sociedade-esperava-de-mim-cuca-faz-pronunciamento-sobre-condenacao-na-suica.ghtml


1920 e o raro depoimento da jogadora francesa de futebol Jeanne Brule

19/03/2024

Aira Bonfim

Março de 2024

Os registros mais antigos e documentados de partidas de futebol feminino estrangeiro, ou seja, realizados fora do Brasil, remontam ao final do século XIX, embora muitos desses marcos temporais sejam informais (não estão inscritos na documentação formal de ligas, entidades e clubes – masculinos – da época).

O Brasil também se insere numa história documental informal similar, fato que nos dificulta determinar a totalidade de eventos de futebol nas primeiras décadas do século XX. Na cena internacional, por exemplo, já há relatos de mulheres escocesas jogando futebol nas últimas décadas do século XIX, como nos eventos festivos entre as pescadoras de Musselburgh e Inveresk, em East Lothian[i].

No século XVIII, há registros de garotas escocesas brincando de jogar bola, numa condição menos institucionalizada e por isso, fora dos enfoques das pesquisas travadas na categorização da modalidade futebol como um esporte moderno, a partir do século XIX. É consensual entre os pesquisadores da área que a década de 1890 foi crucial para o desenvolvimento organizado e público das partidas de futebol feminino na Europa. Um dos marcos pioneiros remete ao dia 23 de março de 1895, quando as equipes femininas do Norte e Sul se enfrentaram no Crouch End Athletic Ground de Londres, diante de uma plateia curiosa de mais de 10 mil pessoas.

Apesar da escassez de notícias e documentação da época, o período foi caracterizado por uma maior participação feminina no cenário esportivo internacional. Em meio aos dilemas e receios masculinos costumeiramente expressos na imprensa, algumas notas indicam que, no exterior, muitas mulheres desafiaram ou questionaram os limites físicos estabelecidos em cada modalidade esportiva praticada na época.

O historiador Fausto Amaro[ii] oferece informações valiosas sobre esses grupos femininos dissidentes, revelando, por exemplo, que a recusa da participação feminina no atletismo dos Jogos Olímpicos levou anos mais tarde à organização de eventos paralelos exclusivos para mulheres em 1920 e 1921, no distrito de Monte Carlo. Esse desagravo resultou na criação da Federação Esportiva Feminina Internacional em 1917, responsável pela realização dos primeiros Jogos Mundiais Femininos[iii] em Paris, em 1922.

Na cena esportiva europeia do início do século XX, destacavam-se inclusive certames de futebol entre equipes de países como Inglaterra e França, que atraíam uma “numerosa e enthusiasmada assistência”, demonstrando o grande interesse dos torcedores pela novidade esportiva. Contudo, junto com a disseminação dessas notícias, surgiam inquietações na imprensa sobre a legitimidade do desenvolvimento do futebol feminino naqueles anos. Mas além de desafiar na prática, será que alguma atleta do futebol teve seu discurso dissidente registrado nas fontes da época?

Um exemplo desse raro tipo de expressão oriunda de uma mulher jogadora se deu na publicação espanhola Heraldo Desportivo[iv] de 1920, cujo repórter expressou preocupações com a presença de mulheres em um ambiente esportivo tradicionalmente masculino. Esses alertas provocaram a resposta de Jeanne Brule, uma atleta e jogadora de futebol francesa da época, que argumentou em defesa das mulheres praticantes do jogo.

Aqui vale dizer que é muito raro encontrar uma fonte primária que tenha registrado as palavras de personagens mulheres no esporte, e consequentemente, uma outra maneira de compreender os contextos esportivos e de lazer. Dito isso, vamos as palavras de Jeanne Brule!

A entrevista-resposta de Brule é relativamente extensa, sem cortes e recheada de ironias. Ela também faz considerações para além do esporte ao mencionar, por exemplo, o cenário vivido pelos países europeus e o papel das mulheres durante a I Guerra, questionando por que somente agora se duvidava da capacidade das mulheres para a prática esportiva.

Segundo Brule, durante a guerra, ninguém questionou na França se as mulheres tiveram seus corpos modificados ao trabalharem o mesmo tanto que alguns homens. De acordo com ela, “hoje as pessoas se perguntam se a constituição de uma mulher pode permitir atividade esportiva por uma hora por semana”.

O texto  da publicação abordava os debates em torno do suposto descompasso biológico das mulheres com os esportes coletivos e de impacto, uma ideia sugerida por médicos e educadores físicos eugenistas. Os argumentos de Brule também evidenciam o engajamento das francesas nas pautas feministas da época. A referência à I Guerra soa quase como um deboche em meio às críticas da autora sobre as preocupações descabidas e as tentativas de controle e cerceamento dos corpos através da interrupção do futebol e de outros esportes de contato físico praticados pelas mulheres naqueles anos.

Valores como liberdade, autonomia e emancipação estão presentes na resposta publicada, que reflete uma visão assertiva:

“Você vê que a autoridade não é, de forma alguma, afirmada no ponto de vista feminino, porque vocês são homens. Ainda nos [mulheres] consideramos os únicos juízes e responsáveis por nossos erros após a experimentação [do futebol]. E, por enquanto, não temos mais tempo para ensaiar. Quando as médicas adquirirem a autoridade necessária sobre a prática dos esportes, nós lhes daremos o direito de nos aconselhar.”

O texto também nos presenteia com uma pitada de ironia feminista ao desqualificar os argumentos que ridicularizavam o futebol praticado por mulheres. Esses argumentos iam desde a preocupação masculina com o surgimento de rugas até o aumento do tamanho dos tornozelos. A francesa Jeanne Brule responde de forma contundente:

“Falam do esforço obstinado, das contrações do rosto que provocam fatalmente as rugas, do desenvolvimento anormal dos tornozelos… Todas essas observações, senhores, sobre que assunto vocês as estudaram? Em sua imaginação sem dúvida, e essa convicção tomou forma em sua mente a ponto de arrastá-lo para as mais falsas declarações. Sou jogadora de futebol e atleta de primeira hora, e garanto que meus tornozelos nunca aumentaram de circunferência. Eu era uma grande fã de dança e não ponho os pés em nenhum [salão] desde que comecei a praticar esportes. Todas essas censuras que vocês fazem ao futebol podem ser aplicadas à dança. E garanto-vos que desde uma noite de contrações no baile, no meio de micróbios, a uma hora e um quarto de contrações e esforços no futebol, ao ar livre, a minha preferência dirige-se a esta última distração que considero muito mais saudável.”

Brule ironicamente aborda a necessidade de avaliação médica prévia às atividades físicas, expressando sua preferência por jogar bola ao ar livre em vez de frequentar salões de baile lotados, considerando a primeira atividade mais higiênica. Encerrando sua resposta de forma provocativa, ela convida todas as jovens a se juntarem aos times femininos franceses nos campos esportivos:

“Para encerrar, faço, ao contrário, uma chamada presunçosa a toda juventude feminina que venha ocupar os nossos campos de esportes.”

Esse tipo de relato fornece uma perspectiva única de leitura do passado e ajudam a dar voz às mulheres cujas histórias por tempos seguiram negligenciadas e até esquecidas. Permitem, dessa maneira, uma compreensão mais completa, inclusiva e até divertida do passado. Ao reconhecer a importância de narrativas como a da jogadora Brule, podemos ampliar nossa visão da história e promover uma narrativa histórica mais abrangente e diversificada.


[i] BONFIM, A. F. Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941). São Paulo: Edição da Autora, 2023.

[ii] AMARO, Fausto. O “bom feminismo”: a mulher e os Jogos Olímpicos sob os olhares da imprensa carioca (1920-1935). In. 41. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), Joinville – SC, 2018.

[iii] Os Jogos Mundiais Femininos, evento organizado majoritariamente por atletas mulheres da Europa e Estados Unidos, foram impedidos pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) de mencionar a palavra “olímpico” em seu nome. Além da primeira edição de 1922, foram realizadas novas programações em Gotemburgo, Suécia (1926), Praga, República Checa (1930) e Londres, Inglaterra (1934).

[iv] Los Deportes y La Mujer. Heraldo Desportivo, Madrid, p. 59-60, 05 fev. 1920.


Colo-Colo e a organização do Campeonato Sul-Americano de clubes de 1948.

12/02/2024

Por Hugo da Silva Moraes.

No dia 11 de fevereiro comemora-se 75 anos da Copa América del Sul, competição que inspirou a Conmebol Libertadores. Principal torneio esportivo de clubes da América do Sul, a Copa Libertadores da América foi disputada pela primeira vez em 1960.[1] Dominado até meados dos anos de 1970 por clubes argentinos e uruguaios, o torneio despertava pouco interesse dos clubes brasileiros, dedicados às competições nacionais. Além disso, as tensões políticas entre as confederações brasileira e Sul-americana, os custos elevados e a falta de lisura esportiva refletida principalmente nas más arbitragens, também afastavam as equipes brasileiras da competição sul-americana.

Essa tendência mudou partir dos anos de 1980. Diante de um processo cada vez mais acelerado de mercantilização do futebol sul-americano num cenário global (RINKE, 2007, p. 206), a competição passou a atrair gradativamente a atenção do público e o interesse de clubes, imprensa e patrocinadores. Não por acaso, entre os anos de 1990 e 2000, com ascensão de clubes brasileiros, colombianos, paraguaios e equatorianos, a competição tornou-se mais competitiva.

Dominada desde os anos de 2020 pelos brasileiros, a atual CONMEBOL Libertadores é uma das competições mais populares do continente. Obsessão dos clubes sul-americanos, além da disputa pela “Glória Eterna”[2], a sua fama se estende às premiações, ao retorno comercial de clubes, empresas e confederações.

Imagem 1: Charge representando a Conquista da primeira Libertadores pelo Fluminense. Jornal Lance!, 4 nov. 2023. p.1. Disponível em: https://www.lance.com.br/institucional/ta-no-ar-faca-a-sua-capa-historica-do-lance-para-a-libertadores-2023.html
Imagem 2: Jogadores do Internacional erguendo a taça da Copa Libertadores da América. Jornal Correio da Manhã, 19 ago. 2010. p.1. Disponível em: https://historiadoesporte.files.wordpress.com/2024/02/647d6-bra5erg_cdp.jpg
Imagem 3: Imagem representando o continente sul-americano. Dentro, destaca-se jogadores do C.R. do Flamengo erguendo o troféu da Copa Libertadores. Jornal Extra, 24 nov. 2019. Disponível em: https://www.facebook.com/jornalextra/photos/a.208847352481556/3058880180811578/?type=3

Organizados desde a primeira década do século XX, os amistosos e torneios futebolísticos entre clubes se tornaram uma constante, inicialmente na região do Prata. Sob o ponto de vista simbólico, estes eram e ainda são significativos na construção de representações que, em geral associam a hegemonia clubística à “gloria” nacional dentro do cenário sul-americano e mundial.

Além de construir discursos que exaltavam a nação, esses torneios foram determinantes para o desenvolvimento econômico das agremiações esportivas. Diante desta perspectiva, o Colo-Colo decide organizar em 1948 um torneio inédito entre os dias 11 de fevereiro e 14 de março reunindo os campeões nacionais da América do Sul, recebendo o nome Copa America del Sur (ESTADIO. 3 de janeiro de 1948, p.5).

Desde finais dos anos de 1920, o Chile experienciou um processo de desenvolvimento socioeconômico com a expansão de demandas dos setores urbanos, principalmente a classe média e o operariado. Visando a construção de uma nova ideia de nação (PARRA, 2013, p. 25-26), os governos atuavam diretamente em questões sociais e culturais do país – como a educação e o esporte, por exemplo.

Ocorridas entre 1941 a 1962 – ano do Mundial do Chile -, o governo aprovou medidas legislativas, em apoio ao esporte profissional e amador investindo em educação, formação de profissionais de educação física e na construção de aparelhos esportivos, como o caso do estádio Nacional.

Inspirado nos governos europeus e americanos (SANTA CRUZ, 2005, p.142), o Estado atuaria como promotor do esporte para o desenvolvimento educacional, social, a saúde pública e moral da raça chilena. Dessa maneira seria possível superar o atraso nacional despontando o Chile como um país pujante, superando o isolacionismo, equiparando-se aos demais países do Prata. Todavia:

Las respuestas de los poderes públicos, al menos durante las dos primeras décadas no fueron más allá de meras declaraciones de buenas intenciones o de normativas legales que solo tenían existencia en el papel” (SANTA CRUZ, 2005, p. 143).

No que tange ao futebol, além de limitado como gestor e provedor, o Estado era pressionado por outros atores como Federações, clubes e a imprensa esportiva, igualmente importantes no desenvolvimento do esporte. Amador até os anos de 1933, o futebol tem no processo de apropriação, massificação e mercantilização, seus principais sustentáculos para a organização de uma estrutura profissional (SANTA CRUZ, 2005,  p. 139).

Neste quesito o Club Social y Deportivo Colo-Colo merece o nosso destaque. Dissidência do Magallanes, o clube foi fundado em abril de 1925 se tornando em pouco tempo um dos pioneiros no processo de profissionalização do futebol chileno ao introduzir treinamentos obrigatórios, treinadores e modelos táticos (SANTA CRUZ, 1991, p. 32). Entre os anos de 1930 a 1960, o Colo-Colo se consolidou no cenário nacional ao realizar partidas pelo interior do país, excursões ao exterior e, em especial, pequenos torneios de verão, convidando clubes e seleções de todo o mundo.

Com apoio de parte do campo esportivo, o Campeonato Sul-Americano de 1948 representou o esforço do Colo-Colo e da comunidade esportiva na (re)construção da nação chilena que, mesmo diante de suas contradições, tentava se equiparar às grandes nações sul-americanas (Manual do 1º Campeonato Sul-americano de Campeões, 11 de fevereiro de 1948). Registrado nas páginas da revista Estadio, esse empenho é referendado, dentre outras coisas, pelo esforço logístico e diplomático do Colo-Colo em reunir numa só capital todos os campeões do continente[3]. Pode-se considerar tal trabalho algo digno de um espetáculo promissor, de grande magnitude, jamais visto na América do Sul e até mesmo na Europa (ESTADIO, 3 de janeiro de 1948, p.5).

Poster do 1º Campeonato Sul-Americano de Campeões realizado em Santiago entre 11 de fevereiro a 14 de março de 1948. Disponível em:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Campeonato_Sul-Americano_de_Campe%C3%B5es_de_1948

Outro aspecto ressaltado pela revista foi o esforço empreendido pelo clube albo na aquisição de recursos financeiros para a realização do campeonato. Neste quesito, destaca-se a figura de Róbinson Álvarez Marín, advogado, empresário, político e presidente do Colo-Colo. Sua atuação viabilizou recursos através da publicidade e do patrocínio de empresas do setor de serviços, em especial hotéis, restaurantes e lojas de artigos esportivos situados na cidade de Santiago, sede do torneio (Manual do 1º Campeonato Sul-americano de Campeões, 11 de fevereiro de 1948). Com a grande afluência de público nos onze jogos, o campeonato sul-americano foi considerado um sucesso comercial, tanto para os clubes, empresários e a cidade de Santiago, promovida como a capital do desporto chileno dentro do concerto sul-americano.

Enquanto os resultados financeiros denunciavam um certo progresso das relações capitalistas no campo esportivo, os resultados esportivos não refletiram o discurso em torno do desenvolvimento do jogador chileno. A expectativa exitosa descrita pela Estadio foi imediatamente substituída pelas críticas ao fraco desempenho do Colo-Colo, equipe pentacampeã chilena, diante de equipes consideradas inferiores como o Litoral da Bolívia (ESTADIO, 28 de fevereiro de 1948, p.28).

Imagem 1: Primeiras reportagens sobre o torneio sul-americano. No centro, foto da equipe do Colo-Colo. Revista Estadio, 3 de janeiro de 1948.
Imagem 2: Balanço geral sobre o campeonato. Foto da equipe do Vasco da Gama, campeã do torneio. Revista Estadio, 27 de março de 1948.

Para o semanário, a responsabilidade de atuar como o anfitrião e o prestígio de equipes como a do River Plate da Argentina justificavam certo abalo psicológico sofrido pelos jogadores chilenos. Em outros casos, o reconhecimento da limitação técnica e tática do futebol praticado, como foi descrito no jogo contra o Vasco da Gama, clube brasileiro, foram empregados como desculpa para o insucesso colocolino. Segundo a Estadio:

Los chilenos han sido en Sudamérica abanderados de la “marcación” y hasta llegamos a creer que éramos los maestros …, hasta que no vimos la marcación de Vasco, prefecta como es. […]  (ESTADIO, 3 de janeiro de 1948, p.5).

Considerada modesta, a campanha do Colo-Colo foi a constatação de que o jogador chileno ainda era inferior às principais equipes sul-americanas. Diante dos resultados, restou a imprensa esportiva a construção de um discurso que apresentava o chileno moderno como um exemplo moral, um bom anfitrião, um bom “deportista equivalía a ser un buen esposo, padre, trabajador y ciudadano”. (PARRA, 2013, p. 10).

Bibliografia

RINKE, Stefan. Historias del fútbol em America Latina – historias de sociedades y culturas. In. RIBEIRO, Luiz (Org.). Futebol e Globalização. Jundiaí: Fontoura, 2007.

SANTA CRUZ, Eduardo. Crónicas de un encuentro: Fútbol y cultura popular. Santiago: L&M, 1991.

_____________,  Eduardo. Escuelas de identidad. La cultura y el deporte en el Chile desarrollista. Santiago: LOM, 2005.

PARRA, D. V. Del Chile de los triunfos morales al país ganador: Una historia de la selección chilena de fútbol durante la Dictadura Militar (1973-1989). Dissertação (mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Chile, Santiago, 2013. 247 f.


[1] A Copa Libertadores teve sua primeira edição em 1960, com sete equipes participantes: Peñarol e Nacional (Uruguai), Olimpia (Paraguai), Millonarios (Colômbia), Jorge Wilstermann (Bolívia), Universidad de Chile (Chile) e San Lorenzo (Argentina). 

[2] Termo comercialmente empregado pela Conmebol para se referir ao troféu da competição.

[3] Emelec (Campeão do Equador), Litoral (Campeão da Bolívia). Municipal (Vice-Campeão do Peru), Vasco da Gama (Campeão Carioca), Nacional (Campeão do Uruguai) e River Plate (Campeão da Argentina).


Os primórdios das experiências automobilística na Curitiba do início do século XX[1]

15/01/2024

Leonardo do Couto Gomes

As invenções e seus impactos na vida em sociedade são características marcantes do conjunto de transformações ocorridas no decorrer do século XIX e XX (Sevcenko, 1998). Os novos artefatos reestruturam a forma de viver, sobretudo no que tange a uma inédita configuração do tempo social. A separação entre momento de trabalho e não trabalho foi algo típico do desenvolvimento dos modos de produção capitalista fabril, proporcionado principalmente pelos avanços da primeira revolução industrial, marcada pelo domínio da tecnologia do vapor e do ferro (Thompson,1998).

O rádio, a luz elétrica, a fotografia, o cinema, as bicicletas, os esportes e medicamentos como a aspirina, são bons exemplos que evidenciam os saltos tecnológicos desse período, possibilitando percebermos que não apenas nos espaços de trabalho melhorias eram desenvolvidas (Hobsbawm, 1988). A vida cotidiana como um todo, inclusive os momentos de diversão ganhavam novos incrementos.

Nesta esteira, os avanços da ciência e tecnologia contribuíram diretamente para a emergência de novas sensibilidades, como as de agilidade, eficiência, motricidade e fugacidade. Noções essas estimuladas e promovidas especialmente pelos países da Europa e os Estado Unidos. Conforme detalha Hobsbawm (1988), essas nações representavam os locais em que o crescimento industrial nascia, e suas presenças em outros países do globo ainda menos industrializados significavam a chegada do conquistador estrangeiro, trazendo ares de modernização, inclusive no Brasil (Sevcenko, 1998).

Efeito dos avanços do contexto em questão, em especial da segunda Revolução Industrial, o automóvel é um dos símbolos mais importante do século XX. A maquinária viria substituir e superar a força animal, sobretudo cavalar, bem como o próprio esforço humano. Tratava-se de um artefato chave para materialização de idealizações que passavam progressivamente a ser valorizadas na sociedade mundial, notadamente as de velocidade, vertigem, produtividade e mobilidade (Weber, 1988).

Entretanto, devemos levar em consideração as particularidades do contexto histórico brasileiro em relação aos momentos da industrialização europeia e estadunidense.  Nesses locais o segundo momento da industrialização já caminhava, marcada pelo domínio das técnicas de trabalho baseados na eletricidade, domínio do aço, petróleo e elementos químicos. No Brasil estava se iniciando os primórdios desse modelo de produção.

Em terras brasileiras, o primeiro automóvel, ao que tudo indica, aporta em solo nacional no porto de Santos na década final do século XIX: um Peugeot, trazido diretamente da França, de propriedade do inventor e aviador Alberto Santos Dumont (Melo, 2011). O veículo desembarcava, e trazia consigo o progresso. Seria mais uma marca fundamental para forjar o país como uma nação que seguia os preceitos dos avanços modernizadores já sentidos em países no qual a industrialização melhor se estruturava, notadamente a Inglaterra, França e Estados Unidos. Significava uma verdadeira vitória do homem sobre a natureza, uma mostra do desenvolvimento científico.

Melo (2011) se dedicou em explorar os primórdios da chegada dos automotores no Brasil. Em suas pesquisas explorou as primeiras experiências ligadas ao automóvel e o automobilismo na então capital Federal, Rio de Janeiro, e em São Paulo, cidades em que a industrialização avançava mais intensamente. Em tais urbes os achados do autor indicam que os automóveis eram úteis de diferentes maneiras, seja para o transporte de cargas e pessoas e/ou então para diversão.

No que diz respeito aos passatempos automobilísticos, os veículos motorizados, ampliavam as opções de passeios, especialmente aqueles ligados à natureza, algo amplamente valorizado no Brasil no período em questão, em virtude do crescimento das cidades. Também possibilitavam o contato com sensações de velocidade jamais atingidas, o que gerava a oportunidade de buscar por novas aventuras através de desafios e competições. A máquina era, inclusive, um contribuinte para indicar e reivindicar a necessidade de melhores infraestruturas para intensificar sua mobilidade, bem como para fortalecer certo status e distinção social. Afinal a ideia era exibir o dispositivo tão inédito na sociedade brasileira. Assim, vias, avenidas e rodovias em situação favorável para a locomoção eram essenciais. Como teria, então, se estruturado as primeiras experiências com o automóvel em outras cidades do Brasil?

Em Curitiba que, assim como outras capitais brasileiras durante a transição dos séculos XIX e XX, passava por intensas transformações ligadas a circulação de noções de modernização, o automóvel também se fez presente. Há que se pontuar que as experiências julgadas modernas na capital paranaense, nesse período, estavam sendo singularmente impulsionadas pela produção e pelo comércio de uma planta nativa: a erva-mate, que no decorrer do século XIX, ganhava produtividade em escalas industriais (Pereira, 1996).

É nesse contexto que chegam os primeiros carros da capital paranaense. O primeiro veículo aporta em Curitiba pelas mãos de um consolidado comerciante local, Francisco Fido Fontana. Membro de uma das mais importantes famílias da economia do período, os Fontana. Fido era filho de Francisco Fasce Fontana e Maria Dolores Leão. O pai, um uruguaio que se tornou um dos mais importantes industriais de mate do Brasil. A mãe, membro de outra família de destaque no cultivo de mate, os Leões, filha do desembargador Agostinho Ermelino de Leão. O casamento significava um importante laço comercial.

Em 1903 os jornais anunciavam a aquisição do primeiro carro do Estado por parte de Francisco Fido Fontana. O Diário da Tarde comunicava em primeira página: “De Paris veio nesse mesmo vapor para o sr. Francisco Fido Fontana, dessa Capital, um automovel. E’ o primeiro importado para nosso Estado” (Diário da Tarde, 10 de março, 1903, p.1).

O primeiro automóvel a transitar em Curitiba era da marca Renault, modelo La Minerve.

Figura 1. Veículo francês, o primeiro de Curitiba. Fonte: Arquivo Público do Paraná.

O piloto era Francisco Fido Fontana, o passageiro era o caricaturista Mario de Barros. Notemos a manivela na frente do veículo. Esse instrumento era usual nos primeiros carros, tratava-se de uma peça chave para o funcionamento da máquina. De uso braçal, era preciso gira-la para iniciar o circuito inicial do motor.

Expressões como espanto, admiração e principalmente atenção em relação aos cuidados que a presença da nova maquinaria nas ruas de Curitiba geraria seriam uma constante nos jornais locais. Tais termos ganhavam vazão principalmente por dois motivos que estavam interligados: o próprio ineditismo do dispositivo e o desconhecimento desse produto. Em uma breve crônica jornalística sem autoria, alguns dessas significações são reforçadas: “Nessa não caiam os reverendíssimos; o automóvel, que não é puxado nem empurrado, ainda apresenta um não sei que de diabólico!” (Diário da tarde, 19 de maio, 1903, p.1).

Um ar de diabólico. A dúvida que se apresentava para alguns era: como pode um veículo se locomover sem ajuda de tração animal ou humana? Ao que parece, o que hoje para nós é um simples elemento usual em qualquer cidade, naquele período o veículo representava tamanha inovação e avanço científico para alguns habitantes de Curitiba a ponto de ser associada ao sobrenatural.

Em uma cidade onde o cavalo e as carroças eram a principal forma de deslocamento, a presença do veículo gerava a necessidade de novas instruções para convívio com a maquinaria. O comparecimento do carro certamente era mais um elemento que passava a exigir maior atenção ao andar nas ruas, bem como estabelecia aos motoristas a aquisição de certas habilidades para trafegar.

Para aqueles que cogitavam andar pelas calçadas, e mesmo para quem buscava trafegar pelas ruas, certamente um novo conjunto de medidas precisava ser instruído. A notícia de uma eventual tragédia é uma elucidação do quanto o novo artefato gerava a necessidade de se aprender certos comportamentos.

Hoje pela manhã quando á toda velocidade passava pela rua Campos Gerais o automóvel de propriedade do sr. Fido Fontana, iam sendo vitimadas duas crianças, filhas do sr. Braga, que brincavam na porta da sua residência. As crianças á custo escaparam. Sendo, porém, morto um cachorrinho pertencente aquele sr. (A República, 18 de maio, 1903, p.2)

Se as marginais e suas calçadas eram o espaço do pedestre, as ruas ganhavam exclusividade para os carros. Contudo, as carroças, animais e seus condutores, que eram até então os únicos usuários das vias, também precisavam aprender a conviver com o novo artefato. Na mesma medida, a população precisava estar em alerta ao atravessar e usar de algum modo as vias, sendo a cautela e a atenção algumas das atitudes importantes a serem compreendidas e executadas para ambas as ações, a fim de evitar tais acidentes.

Se o automóvel era inédito, por consequência, pilotar também. Logo, se o gesto mais elementar para dirigir é saber como conduzir a máquina, e tal manuseio ainda não havia sido difundindo, não é de causar espanto, portanto, eventualidades dessa natureza.

Uma classe trabalhadora ganharia destaque para tal função, o chauffeur. Não raro, junto da compra de um veículo, os proprietários contratavam o serviço de chofer. Alguns deles vindos diretamente da capital federal Rio de Janeiro, como o caso de um contratado para servir o governo do Estado:

Deve chegar amanhã a esta capital o automóvel encomendado pelo governo do Estado, por intermédio do sr. Francisco F. Fontana, para serviço do palácio. Este veículo é um landau com espaço para 7 pessoas e possui motor de 25 cavalos. No mesmo vapor deve também vir um chauffeur contratado no Rio de Janeiro (A Notícia. 15 de fevereiro, 1907, p.3).

O fato de o chofer ser da capital federal, talvez indique que o motorista já estava “acostumado” a dirigir. O Rio de Janeiro já tinha contato anterior com a máquina. É provável, portanto, que o condutor em questão tivesse certas habilidades ao volante, visto que assumiria uma função importante, a de trabalhar para o governo.

Figura 2. Modelo comum de divulgação das empresas automobilísticas nos jornais de Curitiba. Fonte: Diário da tarde. 21 de maio, 1908, p. 3.

Ao que tudo indica, nessa altura ainda não existia em Curitiba um teste de habilidades para dirigir. Outro acidente, dessa vez causado por um chofer, reforça essa questão:

Sábado, as 5 horas da tarde quando pela Avenida Luiz Xavier, passava o automóvel n. 1, com o chauffeur Correa da Gama, deu-se uma colisão com um carro de praça, da cocheira Menegheto.

Lamentamos tal facto e apelamos para a Prefeitura que muito bem, podia sujeitar os indivíduos que se destinam ao mister de guiar carros a um exame prático. (Diário da tarde. 20 de setembro, 1911, p. 1)

Os jornais eram contundentes em reclamar da necessidade de testes práticos. A formação dos condutores era um problema, dirigir de maneira precipitada colocava vidas em risco. Ao que parece a objeção jornalística surtiu efeito. Apesar de não conseguirmos localizar ao certo em que ano medidas avaliativas de condução foram efetivadas, em 1913 elas já existiam e eram, inclusive, motivo de piada (A bomba. 10 de setembro, 1913, p.9).

Figura 3. Charge Exame de chauffeur.

Fonte: A bomba. 10 de setembro, 1913, p. 9.

            Os exames eram realizados pela prefeitura municipal. Porém, equívocos como excesso de velocidade e fatalidades como atropelamentos de pessoas e animais eram ridicularizados, ao ponto de serem debochadamente associados como elementos comuns na aprovação dos condutores. Talvez a avaliação ainda não fosse eficiente para formar motoristas. De toda forma, aqueles que se arriscavam em aventurar-se de algum modo com o automóvel, ganhavam status de automobilistas na capital paranaense.

Com essas pinceladas acerca das experiências em torno do automóvel em Curitiba, percebemos que esses elementos evidenciam que artefatos comuns do dia-a-dia podem ser ricas possibilidades para compreendermos as transformações históricas. Dessa maneira, os automóveis e as experiências automobilísticas são mais um entre tantos outros temas que nos permite perceber como os habitantes das urbes vivenciam e notavam as mudanças em curso. Os veículos motorizados são, portanto, mais uma possiblidade para lançarmos um olhar original para a histórias das cidades, dos esportes e das diversões.

Referências

Cofaigh, Éamon. Motor sport in France: Testing-ground for the world, The International Journal of the History of Sport 28, 2011.

Hobsbawm, Eric. A era dos impérios. São Paulo: Paz e Terra, 1988.

Melo,Victor Andrade de. Before Fittipaldi, Piquet And Senna: The Beginning Of Motor Racing In Brazil. The International Journal of the History of Sport, 2011.

Pereira, Magnus Roberto de Mello. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: UFPR, 1996.

Sevcenko, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In. (Org.). A história da vida privada no Brasil: da Belle Époque à era do rádio, São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Thompson, Edward Palmer. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial. In: Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Weber, Eugene. França Fin de Siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.


[1] Uma parcela significativa desse material foi publicada na Revista Tempos Históricos. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/article/view/29843


Estádio Alfonso López Pumarejo e Estádio Nemesio Camacho (El Campín): as praças esportivas dos Jogos Bolivarianos de 1938

04/12/2023

Por Eduardo de Souza Gomes – eduardogomes.historia@gmail.com

No cenário de desenvolvimento dos primeiros Jogos Bolivarianos em 1938, os principais fatores que podem ser destacado e relacionados à movimentação econômica foram, sem dúvidas, a criação de dois estádios na cidade de Bogotá: o Estádio Alfonso López Pumarejo (Estádio da Cidade Universitária), localizado na Cidade Universitária da Universidad Nacional de Colômbia – Sede Bogotá; e o Estádio Nemesio Camacho (El Campín), uma das maiores e mais conhecidas sedes esportivas do país até a atualidade.

O Estádio da Cidade Universitária, criado em proporções menores se comparado ao El Campín e com uma proposta de ser, de fato, um estádio universitário, foi importante por sediar diversas modalidades do referido evento, tal como reconfigurar a capital colombiana com mais uma possibilidade de espaço para a construção de distintas formas de sociabilidade a partir do esporte.

Estádio da Cidade Universitária na inauguração dos Jogos Bolivarianos de 1938. Foto: Universidad EAFIT.

Já no El Campín, mais do que construir novos espaços de sociabilidade e de prática para distintas atividades, foi marcante a necessidade de se pensar o esporte enquanto uma possibilidade de espetáculo. Pensou-se no futebol como parte de um mercado. Ou seja, dentro de um padrão relacionado à indústria cultural, ocorria a interligação do esporte com os padrões capitalistas da modernidade pensada na Colômbia.

El Campín. Foto: Conmebol

Clark entende que essa espetacularização no cenário contemporâneo se trata de

[…] uma tentativa – parcial e inacabada – de trazer ao campo teórico uma série variada de sintomas em geral tratados pela sociologia burguesa ou pela esquerda convencional como etiquetas anedóticas aplicadas de forma um tanto leviana à velha ordem econômica: “consumismo”, por exemplo, ou “sociedade do lazer”; a emergência dos meios de comunicação de massa, a expansão da publicidade, a hipertrofia das diversões oficiais (CLARK, 2004, p. 43).

As motivações para a efetivação da construção daquelas que se tornariam as duas principais praças esportivas da capital, se deu por distintas questões. Dentre os interesses envolvidos e motivações oriundas da construção dos dois estádios, David Quitián Roldán  destaca que

Na ocasião, dizia-se: Em relação ao esporte, basta dar alguns indícios: […] a construção do estádio National University (parte de um complexo projeto de complexo esportivo) obedeceu à ideia inglesa, aperfeiçoada pela tradição norte-americana, de um campus onde a energia da juventude será canalizada para a combinação de estudo e agonismo sublimado pelo esporte, que de fato é a base de todos os campis desses países […]. Ao contrário, ninguém menos que Jorge Eliécer Gaitán, com sua visão populista e como prefeito de Bogotá, resolveu a polêmica sobre os rumos do esporte ao insistir, contra a ideia do governo, em colocar um polo popular alternativo ao esporte da capital, com a criação do estádio Nemesio Camacho, mais conhecido como El Campín. Foi uma decisão de encruzilhada (QUITIÁN ROLDÁN, 2009, p. 3, tradução nossa).

Essa perspectiva de consolidar um mercado via esporte se materializava no país desde a década anterior, a partir de preocupações diversas e questionamentos que surgiam na população de então. Ruiz Patiño destaca, ao analisar a Ley 80, legislação que teve como objetivo institucionalizar a prática da Educação Física e dos esportes no país, que

A lei foi necessária graças às diferentes preocupações que emergiram de forma decisiva de diferentes setores da população: 1) a chegada à Colômbia da pedagogia moderna e da nova escola, com o Ginásio Moderno à frente; 2) a modernização do ensino religioso em espaços populares de escolas, como as instituições La Salle; 3) a importância do esporte para a higiene, impulsionado pela medicina, e 4) o debate sobre a raça e a importância de evitar sua “degeneração”, por meio do esporte (RUIZ PATIÑO, 2009, tradução nossa).

O olhar das elites do país nos anos 1930, no que se diz respeito à resolução de conflitos e tensões, foi a de considerar parâmetros entendidos como “mais modernos e civilizados” enquanto caminhos, deixando de lado a violência e os conflitos de outrora para, assim, dar lugar a um caminho mais diplomático e negociador (BENNINGHOFF, 2001).

Aprofundando tal análise, é possível inferir que o cenário econômico não se desconectava dos caminhos políticos do país. E, em 1938, os interesses do governo passavam diretamente pelo esporte e seus equipamentos. Tentando vincular Bogotá a uma ideia de desenvolvimento acadêmico e científico, buscou-se assim estabelecer um parâmetro diplomático onde a capital do país fosse vista como um modelo em distintos quesitos, inclusive acadêmicos: “López acreditava que Bogotá deveria estar intimamente ligada à vida da universidade e acreditava que manter o estádio inserido nesse espaço era um bom pretexto para alcançá-lo.” (ACOSTA, 2013, p. 34 e 56, tradução nossa).

Não à toa, foi nesse cenário que o governo comprou os prédios e espaços necessários, então pertencentes a José Joaquim Vargas, para a construção da Cidade Universitária da Universidad Nacional em Bogotá, local onde também foi construído o estádio universitário (NIÑO, 2003, p. 172).

A planta do local integrava dois estádios: um para o futebol e outro para o atletismo que, com o tempo, acabaram sendo fundidos em um único projeto, até pela questão da viabilidade econômica (NIÑO, 2003, p. 56). Inclusive, um espaço para a construção de um campo de beisebol, esporte que se consolidou com maior força na região do caribe do país, havia sido pensado a priori. As obras do estádio Alfonso López Pumarejo se iniciaram em setembro de 1937, tendo sido concluídas para as competições em junho de 1938. Algumas dificuldades ocorreram, como cita Acosta:

Por sua vez, o estádio da Universidade Nacional também enfrentou dificuldades políticas, como foi o caso do pretexto que Carlos Arango Vélez deu para sua renúncia à prefeitura em 6 de maio de 1936: a localização da cidade universitária contribuiu para a valorização das terras vizinhas da família presidencial, o que representava “oportunismo” e “desonestidade”. Gaitán, na época, usou os mesmos motivos de Arango para se opor à construção de uma arena esportiva que rivalizasse com a da cidade (ACOSTA, 2013, p. 57, tradução nossa).

No caso de El Campín, é importante destacar que o projeto para a construção de um “Estádio Nacional” é anterior ao de consolidação dos Jogos Bolivarianos enquanto evento festivo no país. Já era previsto na Ley 12 de 1934, que tinha como objetivo a reorganização do Ministério de Educação da Colômbia, dialogando com a Ley 80 que versava sobre os esportes no país, que se construísse um estádio de grande porte na Colômbia. Destaca Acosta que

Esta lei cria o quadro legal que permite, a 10 de setembro do mesmo ano, à Câmara Municipal nomear “uma comissão que está em parceria com a Comissão Nacional de Educação Física (CNEF) para estudar o procedimento a adoptar para realizar a criação do Estádio Nacional.” (ACOSTA, 2013, p. 53, tradução nossa).

No mesmo ano, em 17 de novembro, um comunicado foi enviado ao prefeito de Bogotá, Junior Pardo Dávila, onde foi solicitado pela CNEF que “ao Conselho Pró-Centenário da cidade que inclua nas obras urbanas os projetos de um Estádio ou praça esportiva, com um orçamento mínimo de $ 400.000 (quatrocentos mil pesos)” (ACOSTA, 2013, p. 53, tradução nossa).

Em 1935, foi criada uma junta destinada a desenvolver o projeto de construção do estádio. De início e com o aval presidencial, se pensou em construir uma praça esportiva que se vinculasse à Universidad Nacional (que depois, seria o Estádio da Cidade Universitária). Porém, a proposta de construir um espaço esportivo universitário não foi bem aceita por todos. Por exemplo, Jorge Eliécer Gaitán, liderança histórica do Partido Liberal e um dos maiores nomes desse campo político até sua morte em 1948, se opôs à parte desse olhar então defendido por López Pumarejo. Entendia que o estádio deveria ir além do mundo acadêmico, sendo assim também destinado ao povo e fazendo rodar, economicamente e culturalmente, a vida social dessa parcela da sociedade.

Não que o Estádio da Cidade Universitária, que também veio a ser construído, se destinasse apenas ao público acadêmico. Mas pelo menos no âmbito do discurso e das narrativas, a defesa daqueles que eram contrários efetivava-se no sentido de apontar para uma possível predominância do público das universidades em algo que deveria “ser de todos”. Por isso, foram para frente as duas ideias, já que vincular o esporte às universidades era também parte importante do projeto de López Pumarejo. Destaca Zea, que “Gaitán diminuiu o tom polêmico, quando o terreno foi doado para a construção do estádio de Bogotá.” (ZEA, 1987, p. 34, tradução nossa). Acosta destaca que a temática do estádio voltou à tona em

3 de janeiro de 1936, quando o CNEF comunica ao Ministro da Educação, Jorge Zalamea, que “Don Luis Camacho M. [um aliado da causa de Gaitán] deu a Bogotá 43 alqueires de graça para construir o Estádio”. Em seguida, no dia 6 de fevereiro, é processada a doação do terreno. Em um gesto de reciprocidade, a Câmara lhe envia uma carta de agradecimento informando que o estádio terá o nome de seu pai, Nemésio Camacho. Diante do gesto de generosidade do empresário, a classe trabalhadora decidiu não ficar para trás e por isso a Unión Deportiva Obrera (UDO) aprovou por unanimidade em sua sessão de 6 de fevereiro uma “doação feita para o estádio de Bogotá”. Em uma sessão de 14 de fevereiro, o Conselho rejeitou a oferta dizendo que “por ordem presidencial [ele] foi ordenado a arquivar (ACOSTA, 2013, p. 54, tradução nossa).

Gaitán se esforçou para conseguir 350 mil pesos em agosto de 1936, visando a construção do estádio. A partir de um Decreto (n. 268), ficou destinada tal verba para a construção do “estádio nacional”, tendo os atrasos em sua obra gerado manifestações nas ruas de Bogotá.

Junto com seus dois estádios, inaugurou cinco playgrounds para crianças de bairros populares e foi definido um período de quatro anos para comprar “a arena de touros ao custo de 190.000 pesos, para usá-la no tênis, basquete e concertos” (El Tiempo, 15 de maio de 1938, p. 7, tradução nossa).

A agenda esportiva passou, assim, a fazer parte também de uma agenda do entretenimento, pautada por questões relacionadas diretamente ao mercado do país. O esporte em geral, como não foi diferente em outros cenários em que a ideia de modernidade fruto da industrialização burguesa foi consolidada, se fez presente neste processo. Com isso, a consolidação da construção de equipamentos culturais diversos (como os estádios) e outras obras abertas às questões do lazer, são explicitações desse processo. Como destaca Acosta sobre o El Campín:

O palco representou aquela integração “uteromimética” de que fala Gabriel Restrepo. Nesse sentido, o estádio El Campín continua a ser um “útero” acolhedor, mas Alfonso López tornou-se um belo “óvulo” dentro de um “útero” maior: a alma mater. Podemos dizer também que, embora o esporte tenha se tornado uma diversão para a população desde os anos 20, com o boxe, e nos anos 30, com o atletismo e o futebol, entre outros; a construção dos estádios significou a transição definitiva de Bogotá para o esporte como espetáculo, que talvez seja sua característica mais visível em nossos dias e constitui uma das expressões mais importantes das sociedades modernas (ACOSTA, 2013, p. 58, tradução nossa).

Já na inauguração dos jogos, o Estádio da Cidade Universitária recebeu um grande público, digno de grandes eventos mundiais, não só no esporte, mas também de eventos como festas cívicas ou diplomáticas. Importante como marco e pontapé inicial dos jogos, o estádio se caracterizou como um dos pontos altos dos Jogos Bolivarianos organizados na Colômbia, tendo logo em sua primeira aparição alcançado um público de mais de vinte mil pessoas (El Siglo, 06 de agosto de 1938, p. 9). Como é destacado no calor do momento pelo periódico bogotano El Siglo,

Mais de 20.000 pessoas compareceram ao Estádio Ciudad Universitaria para testemunhar a abertura dos Jogos. […] Os Jogos Esportivos Bolivarianos foram solenemente inaugurados ontem à tarde no amplo estádio universitário. Mais de seiscentos atletas que participarão das competições bolivarianas, desfilaram em frente à tribuna presidencial – O doutor Alfonso López declarou solenemente inaugurados os jogos – A apresentação no estádio das delegações esportivas – O emocionante ato de soltar os pombos que partiram na direção aos países bolivarianos, anunciando a abertura dos jogos – As cerimônias formais realizadas – A exibição das bandeiras, aos acordes dos hinos dos países particulares (El Siglo, 06 de agosto de 1938, p. 9).

Tal público explicitou muito mais que a euforia dos colombianos pelo início dos jogos e a paixão desse povo pelos esportes. Demonstrou também a força econômica que um evento desse porte poderia gerar, sendo mais do que necessário, se o lucro também for um dos objetivos da festa, se consolidar localidades e espaços destinados a esses fins, como eram os recém-criados El Campín e o Estádio da Cidade Universitária.

As partidas eram sempre muito exaltadas pela imprensa, que também destacava a beleza dos estádios e a importância desses para a efetivação dos jogos. Um exemplo foi a partida entre Peru, que seria o campeão do torneio de futebol, com a Colômbia, por essa mesma modalidade. Tendo inaugurado o certame para os colombianos, alguns periódicos aproveitaram-se do fato de ser esse um dos jogos mais esperados até então, para exaltar parte da organização e estrutura construída pelo país para o evento, como o próprio estádio El Campín. Como vemos nas páginas de El Espectador:

Nada menos que 50.000 pessoas assistirão esta manhã à inauguração do grande estádio municipal <El Campín>, uma das belas conquistas inauguradas no centenário. […] Depois que as bandas tocaram o Hino Bolivariano, escrito por Alfredo Gómez Jaime, o Hino Nacional foi tocado na entrada do presidente com sua comitiva. O Luégo deu início ao desfile da Educação Física e da guarda olímpica […]. A organização do trânsito foi digna de admiração e a que se implantou para que o público pudesse entrar e sair com conforto (El Espectador, 15 de agosto de 1938, p. 3, tradução nossa).

Assim, fica notório o quanto o público foi importante para se consolidar os interesses, não só diplomáticos, mas também econômicos dos agentes fomentadores do evento. Se na inauguração do Estádio da Cidade Universitária teve-se aproximadamente 20.000 espectadores, em El Campín esse número mais do que dobrou, deixando explícito a formação de um “mercado ao redor” do evento esportivo que se desenvolvia, característica essa que foi importante para a consolidação do campo esportivo colombiano.

Referências bibliográficas

ACOSTA, Andrés. Elementos sociohistóricos intervinientes en la construcción de los estadios Alfonso López e El Campín para los primeros Juegos Bolivarianos: Bogotá, 1938. Revista Colombiana de Sociologia, Bogotá, v. 36, n. 01, p. 43-62, jan-jun 2013.

BENNINGHOFF, F. ¿Cuánta tierra civilizada hay en Colombia? Guerras, fútbol y élites en Bogotá 1850-1920. (Trabajo de grado),Departamento de Historia, Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2001.

CLARK, T.J. A pintura da vida moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

NIÑO, C. Murcia. Arquitectura y Estado. Contexto y significado del Ministerio de Obras Públicas. Colombia 1905-1960. Bogotá: UniversidadNacional de Colombia, 2003.

QUITIÁN ROLDÁN, David Leonardo. Gaitán, el fútbol y la Universidad Nacional. En Asciende, Memorias Cátedra Jorge Eliécer Gaitán. Sociología 50 años. Clase 9. Universidad Nacional, Bogotá, 2009, p. 2-15.

RUIZ PATIÑO, Jorge Humberto. La política del sport: elites y deporte en la construcción de la nación colombiana, 1903-1925. 2009. 139 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Políticos) – Pontificia Universidad Javeriana, Bogotá, 2009.

ZEA, S. 1987. Esponjas del Caribe Colombiano. Bogotá: INVEMAR, 1987.


A (não) realização da Copa do Mundo de 1986 na Colômbia

04/05/2023

Por Eduardo Gomes (eduardogomes.historia@gmail.com)

https://www.verminososporfutebol.com.br/viagem-no-tempo/colombia-disse-nao-a-fifa-na-copa-de-1986/

Atualmente, é de conhecimento geral que a Copa do Mundo de futebol masculino no ano de 1986 ocorreu no México. Foi, naquela ocasião, a segunda vez em que os mexicanos organizaram o principal torneio de futebol organizado historicamente pela FIFA.

O que muitos atualmente não sabem, é que tal torneio não estava destinado para, a priori, ocorrer em terras mexicanas. Pelo contrário: desde 1974, a Colômbia já tinha sido escolhida para ser o país sede da Copa de 1986. Com isso, surge a pergunta: por que então os colombianos não foram os organizadores desse referido certame?

É válido relembrar que a década 1980 é marcante na Colômbia, quando se trata de entender os efeitos do narcotráfico no país. Foi nessa década que se materializou o auge dos principais cartéis, como os de Medellín (liderado por Pablo Escobar) e Cali (sob liderança dos irmãos Rodríguez Orejuela), tendo ambos influenciados em diferentes questões políticas, sociais, econômicas e culturais.

Em 1982, ocorreu a Copa do Mundo na Espanha. E foi nessa competição que os colombianos, paulatinamente, desistiram de sediar o torneio seguinte. Apesar de não ter disputado esse mundial (até então o país só havia jogado uma Copa, em 1962 no Chile), os debates acerca da Colômbia se fizeram presentes em 1982, já que seriam os próximos a sediarem o principal torneio da FIFA.

É verdade que os dirigentes envolvidos com a consolidação da Colômbia enquanto sede da competição, estavam até os “45 do segundo tempo” esperançosos em efetivar o torneio mundial no país. Nas páginas de El Tiempo, aproximadamente dois meses antes da Copa na Espanha, foi destacado parte do otimismo colombiano acerca da organização do mundial em 1986:

A realização do Campeonato Mundial de futebol de 1986 na Colômbia foi assegurada ontem com o aceite do Presidente Julio Cesar Turbay Ayala que seja a empresa privada que o financia. Contando que o governo garantirá a segurança do certame.

Turbay Ayala se reuniu com dirigentes empresários ao meio-dia em Palacio, aos quais lhe explicaram os diferentes sistemas de autofinanciamento que poderiam estabelecer para efetivar um Mundial a baixo custo e que utilizaria o máximo de recursos existentes. […]

Nos diferentes círculos desportivos do país, a notícia despertou grande interesse, pois se antes alguns haviam se mostrado contrários a celebração do Mundial, agora com o concurso da empresa privada as coisas estão em outro preço.

Alfonso Senior, presidente da Federação de Futebol e o “pai do Mundial” declarou que “hoje é o dia mais feliz da minha vida. Eu sabia que a Colômbia não podia se colocar mal perante o mundo inteiro”.

Ao concluir a reunião o presidente do grupo Grancolombiano assinalou que se apresentará durante o tempo que dure o Mundial da Espanha uma campanha de tipo publicitário, que releve o nome da Colômbia, especialmente no campo turístico.[1]

Em 30 de maio de 1982, todavia, Turbay não conseguiu levantar o apoio necessário para que um sucessor de seu partido vencesse as eleições, tendo o conservador Belisário Betencur sido eleito, o que efetivou o retorno de seu partido ao poder executivo nacional depois de oito anos afastado.

Meses depois, em outubro de 1982, Betencur proferiu um discurso onde oficializou a desistência da Colômbia no objetivo de sediar a Copa de 1986. Ainda no decorrer da edição de 1982, já era ventilado dentre os dirigentes das federações, a imprensa e a própria FIFA, que a Colômbia tomaria tal decisão. O periódico brasileiro, Folha de São Paulo, repercutiu a decisão do presidente do país vizinho em suas páginas:

O presidente da Colômbia informou que o país não organizará a Copa ‘devido ao desrespeito à regra de outro pela qual o Mundial deveria servir à Colômbia e não a Colômbia à multinacional do futebol’ (no caso a Fifa). A decisão foi adotada por razões econômicas, depois de uma consulta democrática sobre a realidade do país, que permitiu concluir que ‘o esbanjamento é imperdoável’. Afirmou Betancur que ‘temos muitas coisas a fazer e não temos sequer tempo de nos ocupar com as extravagâncias da Fifa e de seus membros.’[2]

Betancur, no referido contexto, destacou a relevância da Colômbia em outras esferas culturais, como na literatura, tendo o país no contexto em voga acabado de vencer um prêmio Nobel de Literatura com Gabriel Garcia Márquez. Também foi destacado na imprensa o quanto a decisão de sediar a Copa não era algo tão aceito pelos colombianos, tal como o quanto as exigências da FIFA eram já visualizadas como absurdas:

Belisário Betancur concluiu seu breve discurso afirmando que Gabriel Garcia Márquez, escritor colombiano recém-premiado com o Prêmio Nobel de Literatura, ‘compensa totalmente o que, eventualmente, possamos perder em prestígio com a renúncia à sede do Mundial de Futebol’. […] A distância entre as exigências da Fifa e as propostas da Colômbia permitiu prever que a próxima Copa não seria na Colômbia. […] vale lembrar que pesquisas de opinião revelaram que cerca de 70 porcento dos colombianos não concordavam com a Copa em seu país por questões econômicas. A Colômbia, no entanto, sente-se “traída” pela Fifa por causa das exigências, que foram consideradas absurdas e até mesmo como “ingerências em assuntos internos da Colômbia”.[3]

A verdade é que, dentro de um parâmetro mais amplo da organização da Copa do Mundo, a FIFA exigiu da Colômbia um maior investimento público, para além daquele que a priori foi destinado por empresas privadas. Como entrou no poder já destinado a questionar alguns dos caminhos outrora estabelecidos pelo governo Turbay, Betancur se negou a ceder aos interesses da entidade maior do futebol internacional, desistindo de sediar a Copa de 1986.

De imediato, os periódicos colombianos e brasileiros, no calor do ano de 1982 quando ocorreu a Copa na Espanha, destacaram a possibilidade do Brasil se tornar a sede da próxima copa. Senior reivindicou até o final que seria uma vergonha a Colômbia não conseguir se manter como sede da Copa de 1986, destacando ser uma oportunidade única para o país sediar o torneio.

Parte da imprensa colombiana, inclusive, destacou a proposta de Senior de estabelecer uma ‘troca’ com a Colômbia, deixando a Copa de 1994 para os colombianos sediarem, enquanto os brasileiros organizariam a de 1986. A questão é que a definição da sede de 1994, que depois seria confirmada para os Estados Unidos, nunca havia sido destinada ao Brasil.

Mesmo assim, os rumores de uma possível sede brasileira no evento ficaram marcados, inclusive na imprensa brasileira:

O Brasil começa a receber apoio como candidato a promover a Copa do Mundo de 1986, depois que o presidente Belisário Betancur anunciou oficialmente a desistência da Colômbia, anteontem à noite, através de uma cadeia de rádio e televisão. A Federação Colombiana de Futebol estará reunida nos próximos dias para elaborar um documento a ser entregue à Fifa, o que poderá acontecer dia 5, em Acapulco (México), quando o presidente da entidade internacional, João Havelange, lá estiver para assistir à inauguração de um campeonato de seleção de juniores em sua homenagem, com a participação de vários países.

As principais manifestações a favor do Brasil partiram do peruano Teófilo Salinas, presidente da Confederação Sul-americana de Futebol; do alemão Hermann Neuberger, vice-presidente da Fifa e presidente da Federação de Futebol da Alemanha Ocidental e do argentino Júlio Grondona, presidente da Associação de Futebol da Argentina. A afirmação de Salinas é categórica: “O Brasil sediará o Mundial de 86, pois já conta com oito votos da América Latina e quase igual número de votos de um total de 21 que integram o Comitê Executivo da Fifa.[4]

Portanto, se torna possível identificar que muitos dos problemas sociais, políticos e econômicos pelos quais vivenciava a Colômbia, influenciaram diretamente no fato do país não realizar da Copa de 1986. Em um cenário marcado pelo narcotráfico, inclusive no futebol como já aqui demonstrado, tal situação se fez mais ainda marcante, tendo em vista que o país reconhecia com essa recusa, dentre outros fatores, as questões internas que tinha para resolver.

A verdade é que a organização da Copa do Mundo de 1986 na Colômbia, definida ainda em 1974, tinha tudo para ser uma virada no futebol do país dentro do cenário nacional e internacional. Tal virada até ocorreu, notadamente pela visibilidade que os clubes do país passaram a ter nos anos 1980 e 1990. Mas, obviamente, não se deu pela Copa que o país não realizou, mas sim pelo investimento do narcotráfico em alguns clubes, como foi aqui demonstrado em alguns casos.

Desde 1982, no calor da copa da Espanha, a temática já se aflorava, sendo a violência e o envolvimento político marcas que caracterizaram a realidade do país. No fim, a Colômbia ganhou o direito de realizar um mundial, mas acabou por não efetivá-lo por questões que iam muito além das quatro linhas, como aqui foi demonstrado, deixando explícito para os leigos o quanto o futebol é “muito mais que um jogo”.


[1] El Tiempo, 22 de abril de 2023.

[2] Folha de São Paulo, 26 de outubro de 1982, p. 28.

[3] Folha de São Paulo, 26 de outubro de 1982, p. 28.

[4] Folha de São Paulo, 27 de outubro de 1982, p. 28.


O debate acerca dos esports no campo esportivo: uma pequena reflexão

21/01/2023

Por Eduardo Gomes

eduardogomes.historia@gmail.com

Ana Moser assumiu o Ministério do Esporte no atual governo Lula. Foto: Agência Brasil

Nesse início de 2023, com o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência do Brasil depois de 12 anos desde sua saída do cargo, muito tem se debatido sobre as escolhas dos nomes que irão representar os diferentes ministérios em seu governo.

Uma das pastas que retornaram com o atual mandato, foi a do Ministério do Esporte, que durante o período de Jair Bolsonaro no poder ficou vinculado à Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania.

Para comandar tal ministério, Lula escolheu o nome de Ana Moser, ex-atleta de vôlei e muito ligada às causas progressistas relacionadas com o esporte, notadamente por sua atuação no Instituto Esporte e Educação (IEE). A escolha de Moser foi muito festejada por aliados do governo, que no geral entenderam ser a nova ministra, de fato, um bom nome para comandar a “velha nova” pasta.

Todavia, uma fala da agora ministra no último dia 10/01/2023, gerou grande debate. Segundo Moser,

A meu ver, o esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento, não é esporte. Então, você se diverte jogando videogame, você se divertiu. “Ah, mas o pessoal treina para fazer”. Treina, assim como o artista. Eu falei esses dias, assim como a Ivete Sangalo também treina para dar show e ela não é atleta da música. Ela é simplesmente uma artista que trabalha com entretenimento. O jogo eletrônico não é imprevisível. Ele é desenhado por uma programação digital, cibernética. É uma programação, ela é fechada, ela não é aberta, como o esporte.

Essa perspectiva conceitual do que deve ou não ser entendido como esporte, gera grandes debates e, ao mesmo tempo, divergências no âmbito do campo esportivo. No senso comum, olhares como o da ministra podem ser reproduzidos e, também, utilizados como forma de demarcação daquilo que buscam passar como sendo um “modelo ideal” do que se deve considerar como esporte.

Moser destacou ainda que o objetivo central da pasta será o de olhar para o “esporte social”, ponto importante e que deve ser encarado como um verdadeiro caminho no que se diz respeito ao entendimento do esporte enquanto uma ferramenta de mobilização e mudança na sociedade. Passada a “era dos megaeventos”, focar nos aspectos sociais do esporte são, sem dúvidas, os melhores caminhos para se pensar a importância dessa pasta para o país. A partir dessa perspectiva, Moser ainda enfatizou o porquê de não estabelecer um olhar mais profundo para, por exemplo, os esports.  

Não tenho por objetivo aprofundar neste pequeno texto um olhar necessariamente crítico ao posicionamento da ministra, mas sim de problematizar a própria ideia do que conceitualmente entendemos como esporte, tendo como parâmetro alguns dos avanços e debates oriundos das Ciências Humanas e Sociais (o que, obviamente, não inviabiliza um debate acerca do tema com as perspectivas conceituais de outras áreas/campos). Afinal, os esports são ou não modalidades esportivas?

Tratando-se de forma mais específica das pesquisas acadêmicas sobre o objeto, deve-se ter em conta alguns fatores importantes. Pierre Bourdieu, em seu ensaio intitulado “Como é possível ser esportivo?”, destacou algumas características daquilo que entende como “esporte moderno”. O autor referendou, em um pequeno ensaio mas que foi de grande valia para o campo de Estudos do Esporte, as diferenças existentes entre o esporte moderno e as práticas corporais e de divertimento anteriores à modernidade.

Caracterizando a importância de conceitualmente definir tal objeto, Bourdieu escreveu sobre o que hoje é conhecido como campo esportivo. Para o autor, a história do esporte é

[…] uma história relativamente autônoma que, ainda quando é escondida pelos grandes acontecimentos da história econômica e política, tem o seu próprio ritmo, as suas próprias leis de evolução, as suas próprias crises, em suma a sua cronologia especifica.

Dentro dessas características, é válido enfatizar que para entender uma determinada manifestação como um esporte, no olhar do campo esportivo, se faz necessário que a mesma possua determinadas características, que são:

. Entidades representativas (como os clubes);

. Um calendário próprio e autônomo;

. Um corpo técnico especializado;

. Um mercado ao seu redor.

A verdade é que o conceito de esporte na modernidade não é fechado e nem deve ser entendido como algo não mutável, pelo contrário. O fato é que os esports conglomeram todas as características do campo esportivo, dentro do contexto do século XXI, sendo por si só esses alguns fatores que referendam essa perspectiva conceitual de inclusão de tais modalidades também como “esportivas”.

Obviamente, dentro do mundo acadêmico, a própria concepção daquilo que devemos entender conceitualmente como esporte, pode ser mudada. Os olhares introdutórios de Bourdieu acerca do objeto serviram como pontapé inicial de um campo investigativo e não como linha de chegada. Desde então, inclusive no Brasil, muitos autores já se debruçaram sobre as perspectivas do campo esportivo, aprofundando, criticando, dando novas sugestões ou apontando distintos caminhos acerca do conceito.

Victor Andrade de Melo, por exemplo, aprofundou esse debate em várias ocasiões. Em uma de suas obras, intitulada “Esporte e Lazer: conceitos – uma introdução histórica”, o autor destacou a importância de se estudar o conceito de esporte dentro de uma perspectiva histórica, abarcando vários pontos que podem ser considerados como caminhos para estabelecer um diálogo entre o esporte e as práticas corporais anteriores à modernidade. Assim, problematizou o conceito de “prática corporais institucionalizadas”, entendendo que

A História das Práticas Corporais Institucionalizadas “abarcaria, em um mesmo campo de investigação, sem excluir outras possibilidades de diálogos, práticas sociais como o esporte, a capoeira, a dança, a ginástica, as relativamente recentes práticas físicas ‘alternativas’ (antiginásticas, eutonia etc.), a educação física (entendida enquanto uma disciplina escolar e como uma área do conhecimento), as práticas específicas de períodos anteriores à Era Moderna (da Antiguidade e da Idade Média), entre outras. A despeito dessa conceituação, para facilitar o entendimento e/ou em função de questões operacionais, em muitas oportunidades usamos “história do esporte” como metonímia”.

Com isso, surge-se mais uma questão: modalidades que se referendam menos pela utilização do corpo e mais pelo uso da mente, como é o caso do xadrex e dos próprios esports, devem ser chamados de “esporte”? Manoel Tubino, Fábio Tubino e Fernando Guarrido destacam, na obra “Dicionário Enciclopédico Tubino do Eporte”, que esses seriam os chamados “esportes intelectivos”:

Os esportes intelectivos são aquelas práticas ou modalidades esportivas nas quais há uma dominância de solicitações intelectivas nas disputas. […] Há alguns anos muitos dos atuais Esportes Intelectivos não eram reconhecidos como Modalidades Esportivas pela falta de movimentos convincentes. Entretanto, a partir da Carta Internacional de Educação Física e Esporte da Unesco (1978), que estabeleceu o direito de todas as pessoas ao Esporte, em todas as idades e em qualquer circunstância física, o conceito de Esporte ficou mais abrangente, passando a compreender muitas modalidades que antes não eram percebidas como Práticas Esportivas. Os Esportes Intelectivos, que muitas vezes são tradicionais pelo longo período de existência – e em outras também são ligados a culturas e identidades nacionais -, na verdade enriqueceram bastante o contexto esportivo internacional.

Tendo em vista essas colocações, é válido relembrar um ponto já aqui abordado: a questão da possibilidade de mutação do conceito. No mesmo livro já aqui citado, Victor Melo apontou em 2010 sobre a necessidade de estarmos sempre atentos às mudanças que o fenômeno esportivo nos proporciona, destacando assim que um olhar não apurado poderia se materializar em uma equivocada estagnação do conceito. Já citando inclusive os esports, o autor destacou que

[…] desde o tempo do Telejogo, primeira geração de games, são muitos os jogos eletrônicos que fazem da prática esportiva o motivo central. Aliás, com o Wii, vemos a junção entre o movimento corporal e o que ocorre no monitor, uma nova forma de interação. Alguns mais desconfiados podem afirmar que isso não é esporte. Quero lembrar que nem sempre a movimentação corporal foi parte essencial do fenômeno esportivo […]. Além disso, enquanto prática social que deve ser historicizada, não podemos nos prender a apreensões essenciais: o esporte é aquilo que em cada momento se defina como tal, conceitos relacionados a experiências históricas específicas. […] A questão fundamental é: se mudou a forma de relação com o outro, de relação com o corpo, de representação do corpo, por que não mudaria a concepção do que significa fazer esporte?

A verdade é que, de fato, a perspectiva conceitual acerca daquilo que devemos ou não considerar como esporte, sempre gerará divisão de opiniões. Reconheço esse ponto, tal como reconheço que, para além de um olhar que pode ou não estar equivocado, as colocações da ministra Ana Moser dizem mais respeito ao foco e tratamento que idealiza para a pasta que agora lidera, do que uma opinião em que seja necessariamente contrária aos esports.

Porém, como pesquisador que se debruça sobre o objeto há mais de uma década e que entende que o fazer ciência se constrói com embasamento teórico e conceitual, reitero a importância de se trazer esse debate hoje. Assim, fica nítido que, para além das visões difundidas no senso comum, no âmbito acadêmico não podemos cair em tais armadilhas. Deve-se sempre se fortalecer os olhares e embasamentos acerca dos fenômenos sociais existentes, entendendo que o esporte (tal como qualquer outra manifestação cultural) necessita de um entendimento com base em um conjunto de características que definam o que é o objeto a partir de uma perspectiva científica e social, ignorando assim os achismos, opiniões e visões que fujam dos olhares mais amarrados e consolidados sobre o tema.

Referências

BOURDIEU, Pierre. Como se pode ser desportista? In: _______. Questões de sociologia. Lisboa: Fim do século, 2003, p. 181-204.

MELO, Victor Andrade de. Esporte e lazer: conceitos – uma introdução histórica. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.

TUBINO, Manoel; GARRIDO, Fernando; TUBINO, Fábio. Dicionário enciclopédico Tubino do esporte. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2007.


As Exposições Internacionais e suas influências nos Jogos Bolivarianos (Bogotá, 1938)

20/10/2022

Eduardo Gomes (eduardogomes.historia@gmail.com)

A Exposição Internacional de 1893, em Chicago, influenciou os caminhos da Colômbia nas décadas seguintes. Foto: Reprodução

No século XIX, os parâmetros da modernidade se espalharam mundo a fora, notadamente a partir da expansão cultural, econômica e política oriundas da Inglaterra e demais nações europeias, até então entendidas como “modelos” globais. Uma das formas de explicitar tal parâmetro, por parte de tais países, foram as realizações de Exposições Internacionais, que visavam consolidar perante o mundo um modelo a ser seguido enquanto padrão de civilidade. Destaca Elias, que

Na verdade, nossos termos “civilizado” e “incivil” não constituem uma antítese do tipo existente entre o “bem” e o “mal”, mas representam, sim, fases em um desenvolvimento que, além do mais, ainda continua. É bem possível que nosso estágio de civilização, nosso comportamento, venham despertar em nossos descendentes um embaraço semelhante ao que, às vezes, sentimos ante o comportamento de nossos ancestrais. O comportamento social e a expressão de emoções passaram de uma forma e padrão que não eram um começo, que não podiam em sentido absoluto e indiferenciado ser designados de “incivil”, para o nosso, que denotamos para a palavra “civilizado”. […] A “civilização” que estamos acostumados a considerar como uma posse que aparentemente nos chega pronta e acabada, sem que perguntemos como viemos a possui-la, é um processo ou parte de um processo em que nós mesmos estamos envolvidos. (ELIAS, 1994, p. 73).

Com base nas referências acima, é possível inferir que aquilo que buscava-se impor ou se colocar como civilizado, está normalmente relacionado a um conjunto de valores ou culturas que passam a ser entendidos como padrões a serem seguidos, dentro de um recorte espacial e temporal específico da história e das relações humanas. O processo do século XIX exacerba tais relações, pois nos faz pensar a partir de uma perspectiva de civilização em proporções globais, exposta pelas classes então dominantes.

Essa tentativa de difundir um ideário universal de civilidade, pôde ser identificada nas exposições internacionais, já que as tinham como parâmetro e princípio. Trata-se da expansão de uma “cultura universal”, ligada aos modelos da modernidade oriunda da industrialização. Cultura essa que, obviamente, não pertencia a todos os povos, mas que moldados pelos parâmetros civilizatórios expostos acima, se incluíam dentro de um conjunto de fatores que determinadas nações buscam para efetivar um caminho homogêneo globalmente. Era a tentativa de povos entendidos como “civilizados” definirem, também, a cultura a ser seguida pelos povos “não-civilizados” (GÁLVEZ, 2012, capítulo 2).

A nomenclatura das exposições variava, de acordo com o ano, local e forma de divulgação. “Exposição Universal”, “Feira Mundial” e “Exposição Internacional”, foram alguns dos nomes mais utilizados. Debater qual seria a forma correta de se referir aos eventos, não é o nosso objetivo, por considerar que mais importante que a nomenclatura, é saber o que esses momentos representavam no cenário social de então. Destaca Nelson Sanjad, como os estudiosos do campo não devem perder de vista:

(a) o termo “exposição”, a partir do século XIX, sofreu um alargamento semântico à medida que novos museus foram surgindo e os megaeventos foram sendo organizados, sob diversos pretextos e roupagens; (b) é importante atentar para a maneira como cada evento é apresentado pelos seus próprios organizadores, sobretudo em estudos comparativos que buscam semelhanças e diferenças entre as mostras; (c) somente em 1928 foi assinada a primeira convenção internacional destinada a normatizar e definir regras, prazos e a periodicidade de exposições internacionais, pois se tornou inviável a participação dos países em todos os eventos (SANJAD, 2017, p. 788).

A primeira exposição, ocorrida em 1851 em Londres, reuniu 25 nações e mais 15 países que ainda eram colônias naquele contexto, dando a conotação mundial ao evento. Na França, a primeira exposição ocorrida nessas características se deu em 1855. Em alguns anos, como em 1888, chegou-se a ocorrer cinco mostras simultâneas: Barcelona, Espanha (Exposição Universal); Bruxelas, Bélgica (Exposição Universal e Internacional e Grande Concurso Internacional de Ciência e Indústria), Copenhague, Dinamarca (Exposição Nórdica da Indústria, Agricultura e Arte), Glasgow, Escócia (Exposição Internacional de Ciência, Arte e Indústria) e Melbourne, Suécia (Exposição do Centenário) (SANJAD, 2017).

O cenário latino-americano não ficou de fora das relações que ocorriam globalmente na Europa ou nos Estados Unidos. Tais eventos se fizeram importantes para a construção cultural da América Latina na transição do século XIX para o XX. O período da Bélle Époque, inclusive, estimulou disputas e questões, onde cidades como Rio de Janeiro e Buenos Aires, por exemplo, lançavam discursos como aqueles que as idealizavam como a “Paris dos trópicos”.

Portanto, é notório que a recepção da cultura europeia que se expandia, fez parte de um processo de consolidação imperialista de tais países, mas também de inserção no sistema-mundo por parte de algumas das nações independentes da América Latina. Nesse espaço, que desde então já rivalizavam com a hegemonia dos Estados Unidos (porém não com tanta força como atualmente), países da Europa viram seus padrões culturais e econômicos se disseminarem. Todavia, tal disseminação se deu dentro de um processo de ressignificação cultural, marcado por um caminho singular em cada país.

Desde seus primórdios, as exposições já contavam com a participação de nações latino-americanas nos eventos, inseridas de diferentes formas. Era comum países da América Latina, alguns ainda com fortes vínculos coloniais com as antigas metrópoles, participarem como expositores de “hábitos e natureza exóticas” (GÁLVEZ, 2012).

No século XX, entretanto, em um cenário de redefinição das ideias de nação latino-americanas, os países da região passavam a não só participar dos eventos europeus, como também organizar suas próprias exposições internacionais, tendo destaque o caso do Brasil em seu centenário da independência no ano de 1922. Em um cenário inicial, buscaram copiar o que era produzido no “velho mundo” para, em um segundo momento, estabelecerem eventos com uma caracterização mais autoral e nacionalista. Sanjad destaca que

Apesar de situadas em contexto periférico, no qual os efeitos da industrialização e massificação só começaram a ser sentidos em prática no século XX, as elites das sociedades latino-americanas portaram-se como eco das discussões e debates teóricos desenvolvidos nesses principais centros culturais em torno do tema da representação. Sua “tarefa principal” era aprender, imitar e divulgar as concepções “civilizadas” do progresso, artes, ciências e indústria apreendidas através das Exposições. […] Cosmopolitismo e nacionalismo eram conceitos tanto desejosos como conflitivos pelas representações latino-americanas. […] As nações latino-americanas, desejosas por valorizar seus países através de reações nacionalistas, desejavam também fazer parte do cosmopolitismo, isto é, serem parte do grande grupo civilizado, enquanto tinham necessidade de gerar, para esta afirmação, uma cultura e ciência de caráter único (GÁLVEZ, 2012, p. 34).

No cenário latino-americano, o campo de investigação que se dedica a essas questões e, por que não, tensões, é bem vasto. Analisam, assim, as relações entre o nacional e o regional, tal como “a forma como as elites locais ou regionais representavam seus estados/províncias, muitas vezes em oposição ao poder central ou em competição com outros estados/províncias” (SANJAD, 2017, p. 809).

Mesmo nesse caminho, não devemos desprezar as variações locais que cada processo gera nesse cenário híbrido que se colocava. A construção nacionalista dos países latino-americanos, em contato ou não com seus vizinhos da região, passa necessariamente por um cenário histórico das relações internacionais em que a influência (tal como as tensões) dos países europeus se faz presente. Como explicita Sanjad,

Pensar nas mostras latino-americanas como partes de um sistema descentralizado que se ampliou e transformou ao longo do tempo e do espaço permitiria incluí-las em um panorama mundial, complexo e diverso. Exigiria, contudo, um esforço de investigação que considerasse a constituição das comunidades intelectuais que conceberam, apoiaram e materializaram as exposições latino-americanas, e como essas comunidades interagiram com as de outros países, que conceitos e práticas adotaram, por onde circularam, que ideias fizeram circular sobre nação, progresso, raça, classe, gênero, cultura e natureza, entre outras. Exigiria, ainda, a análise da produção do “nacional” como uma via de mão dupla, isto é, observando tanto as negociações políticas internas quanto os intercâmbios transculturais, nos quais textos, objetos, imagens, edificações, espetáculos, alimentos etc. ganham uma dimensão simbólica capaz de influenciar processos identitários de diversos grupos sociais no próprio país e em outros países (SANJAD, 2017, p. 815).

Ainda com uma ideia de nação bem incipiente e com particularidades bem peculiares em cada caso, foi entre as décadas de 1910 e 1950 que boa parte dos países da região passaram por uma reconfiguração de seus padrões identitários e nacionalistas. Inclui-se entre esses o caso da Colômbia, notadamente a partir das décadas de 1920 e 1930.

Desde o século XIX e indo até os dias atuais, a Colômbia participou de distintas exposições internacionais espalhadas mundo a fora, apesar de não ter tido, em nenhum momento, um evento dessa natureza organizado em seu território.

Entretanto, os colombianos estão presentes nas exposições internacionais desde os seus primórdios, em 1851, quando o país ainda atendia pela nomenclatura de “República de Nova Granada”. Mesmo tendo tido poucos objetos ou materiais para expor, diplomaticamente já marcava sua presença e consolidava um pouco de sua posição enquanto nação na modernidade que se expandia.

No auge das exposições do século XIX, a Colômbia marcou presença nos seguintes anos, além de Londres em 1851: Paris, em 1855, 1867, 1878 e 1889; Madri em 1892; e Chicago em 1893, tendo essa última se relacionado com o cenário latino-americano, pois teve como temática central os festejos do IV centenário da chegada de Cristóvão Colombo na América (BONILLA PARDO, 2016).

A experiência política dos anos 1930 na Colômbia gerou diferentes efeitos e mudanças no país. Após um período de domínio do Partido Conservador no poder, indo de 1886 até 1930 (conhecido como “Hegemonia Conservadora”), se iniciou nesse mesmo ano o período conhecido como “República Liberal”, onde até 1946 apenas presidentes do Partido Liberal se mantiveram no poder. Entre esses, reforço a importância de López Pumarejo, que governou o país durante dois mandatos nesse período (1934-1938 e 1942-1945), na construção de símbolos e padrões identitários para se pensar a nação colombiana.

Dentro do longo período da “hegemonia conservadora”, o país ficou sem participar de eventos com natureza global como eram tais exposições, tendo retornado a esse circuito apenas em 1929, em Sevilha na Espanha, com a mostra de produtos agrícolas (BONILLA PARDO, 2016).

Nos primórdios de sua participação nas exposições internacionais, no decorrer do século XIX, a Colômbia teve uma área de 500 “pés quadrados” para realizar suas mostras, o que representa pouco mais de 45 metros quadrados. Teve assim, de acordo com os diários oficiais, sido esse espaço entendido como “justo” para o país na época (BONILLA PARDO, 2016). É destacado que

Sobre los productos presentados, estos fueron principalmente cacao, tapioca, nuez moscada y algunas esmeraldas de Muzo”80 las cuales estaban en estado en bruto y vienen en diferentes estados de pureza. Las de mayor tamaño tienen un color suave y con pocos defectos. Además de ser clasificadas dentro de la Clase 1 del Reino Unido y al ser comparadas con otros ejemplares, mostraron una gran ventaja y superioridad81. Este tipo de reconocimiento también lo obtuvo el tabaco, el cacao y los metales. Para la Exposición de 1878 se muestra evidencia del progreso de Colombia en los campos de la botánica y la pedagogía, los cuales se traducen en una premiación en ambas categorías. El área de pedagogía gana una medalla de bronce y en el área de la botánica gana una medalla de oro gracias a los trabajos realizados a partir de la Comisión Corográfica, especialmente por el estudio de la quina85, además de un reconocimiento por las autoridades gubernamentales de Colombia86. No obstante este reconocimiento, Colombia llegó a último momento, sin mayor presupuesto ni “riquezas” y su comitiva fue alojada en un pequeno espacio dentro del pabellón de Guatemala (BONILLA PARDO, 2016).

Mesmo com essa inserção, a participação colombiana na agenda das exposições, continuava a ser secundária. O que não quer dizer que não tenha gerado influências na formação identitária do país. Porém, que ideia de nação seria essa? Como teve participações mais específicas e entendidas como secundárias, se comparadas com as de outros países, será que pode-se definir que tal cenário influenciou na construção simbólica do nacionalismo colombiano? Destaca-se ser provável que toda essa cena favoreceu para se pensar a Colômbia como um

País pequeño, sin industria y atrasado más no un país bárbaro; los reconocimientos obtenidos por sus avances en las ciencias, la lingüística y la botánica y zoología, daban cuenta de un país en progreso y relativamente comprometido con ello, pero definitivamente no de uno industrializado y moderno, motivo por el cual Colombia no pudo obtener la tan anelada inmigración que se necesitaba para industrializar el país […] (BONILLA PARDO, 2016, p. 32).

No decorrer do início do século XX, houve a tentativa de se repensar o país. Mesmo com vários incentivadores tratando da importância de se continuar participando dos eventos, como já explicitado, o país só voltou a se inserir em 1929. Nacionalmente teve uma exceção, que foi a organização da exposição do centenário de independência da Colômbia em 1910, organizada apenas em seu âmbito e sem outras nações enquanto participantes.

Quando retornou ao circuito das exposições internacionais em 1929, mesmo com percalços, a Colômbia deixou sua marca com a explicitação de produtos de qualidade, tal como referendou diplomaticamente sua posição política e cultural. Mesmo sem ainda se encontrar em um estado de centralidade, se colocar à mostra, tendo em vista a transição política no país entre conservadores e liberais que já se anunciava, fazia parte dos planos relacionados aqueles que estariam no poder a partir de 1930.

Nesse evento em questão, os responsáveis pela apresentação da Colômbia foram o então cônsul colombiano em Sevilha, Sr. Ernesto Restrepo Tirado, e o comissário geral do país na Exposição, Sr. Roberto Pinto Valderrama (BONILLA PARDO, 2016). A posição colombiana, em um evento organizado no território de seus antigos colonizadores, foi de buscar enfatizar uma identidade para além da Espanha, pois

los delegados de Colombia reconsideraron la evidente hispanidad del edificio y decidieron que lo más conveniente para Colombia, era exaltar nuevamente su passado milenario, pues a pesar de ser hijos de España, había algo mucho más antiguo y digno de presentar como propio, “constituyéndose como el mejor símbolo de indigenismo en la Iberoamericana y la mejor síntesis de manifestaciones artísticas que reflejan el relato cosmológico y el origen del hombre como expresión de la identidad nacional” (BONILLA PARDO, 2016, p. 34).

Ao analisar o cenário de construção dos Jogos Bolivarianos de 1938 na Colômbia, identifica-se que tal evento se inclui em um conglomerado de festejos inerentes ao IV Centenário de Bogotá.

Cerimônia nos Jogos Bolivarianos de 1938. Foto: Reprodução

No caso do esporte no país, essa relação com a modernidade se iniciou no ano de 1936, quando no âmbito da Olimpíada de Berlim ocorrida nesse ano, se definiu a realização dos primeiros Jogos Bolivarianos em 1938, como parte dos festejos do IV centenário de Bogotá. Isso era também, de certa forma, uma maneira de se inserir nos parâmetros (mesmo que tardios) de modernidade que o país buscava se enquadrar durante o período de governos liberais, com moldes exemplificados pelas experiências das outrora importantes exposições internacionais.

A escolha de uma agenda esportiva como forma de se comemorar os quatrocentos anos da maior e mais importante cidade do país, explicita o quanto o esporte passava a ser entendido como um modelo a ser difundido no país moderno que se pensava para a Colômbia.

Assim, pode-se perceber o quanto a idealização dos Jogos Bolivarianos fez também parte de um projeto político de internacionalização da nova ideia de nação pensada na Colômbia de López Pumarejo, sendo assim uma forma de enquadrar o país dentro de discursos de modernidade e de difusão política no contexto em questão.

Referências

BENNETT, Tony. The birth of the museum: history, theory, politics. London: Routledge. 1995.

BONILLA PARDO, David. Espectáculo de Identidades Nacionales: presentación de Colombia em las Exposiciones Internacionales de 1992, 1998, 2010. Monografia (Graduação em História) – Escola de Ciencias Humanas, Universidad Colegio Mayor de Nuestra Señora del Rosario.

CANCLINI, Néstor Gárcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2015.

ELIAS, Nobert. O processo civilizador – Volume 1: uma História dos Costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

GÁLVEZ, Marcia Furriel Ramos. Dois pavilhões em Exposições Internacionais do século XX – ideias de uma arquitetura brasileira. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). 2012. 164 f.

GONZÁLEZ STEPHAN, Beatriz; ANDERMANN, Jens (Ed.). Galerías del progreso: museos, exposiciones y cultura visual en América Latina. Rosario: Beatriz Viterbo. 2006.

MOTTA, Marly. Exposição Internacional do centenário da independência do Brasil. In: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/EXPOSIÇÃO%20INTERNACIONAL%20DO%20CENTENÁRIO%20DA%20INDEPENDÊNCIA.pdf

RASMUSSEN, Anne. Les classifications d’exposition universelle. In: Schroeder-Gudehus, Brigitte; Rasmussen, Anne. Les fastes du progrès: le guide des expositions universelles, 1851-1992. Paris: Flammarion. p.21- 38. 1992.

SANJAD, Nelson. Exposições Internacionais: uma abordagem historiográfica a partir da América Latina. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.24, n.3, jul.-set. 2017, p.785-826.

SCHUSTER, Sven. (Ed.). La nación expuesta: cultura visual y procesos de formación de la nación en América Latina. Bogotá: Editorial Universidad del Rosario. 2014a.

https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos20/CentenarioIndependencia/ExposicoesUniversais


Pintou o nono grande na Colômbia? Conheça a história do Deportes Tolima

07/06/2022

por Eduardo Gomes

eduardogomes.historia@gmail.com

Em 02 de junho de 2021, escrevi um pequeno texto onde tentei representar um pouco daqueles que são considerados os “maiores clubes do futebol colombiano”. No total, são oito equipes que por mim foram destacadas: Independiente Santa Fé e Millonarios, de Bogotá; América de Cali e Deportivo Cali, ambos da cidade de Cali; Atlético Nacional e Independiente Medellín, de Medellín; Junior Barranquilla e Once Caldas. Essas oito equipes historicamente se destacam como sendo aquelas que ganharam o patamar de “maiores” times do país, envolvendo parâmetros como títulos, torcida, continuidade e disputa nas principais competições do país, dentre outros pontos.

Longe de entender que tais escolhas são definitivas ou mesmo devem ser consideradas como as mais corretas acerca do tema, uma pergunta surge ao se definir tal lista: existe a possibilidade de outras equipes serem também entendidas como grandes e pleitearem um lugar em tal seleto e privilegiado grupo de agremiações? Desde já, destaco que minha resposta é sim!

Como historiador, não posso me privar dos cuidados que devemos ter ao realizar seleções como essas, que muitas das vezes podem desvalorizar questões locais e representativas. Em outros países, por exemplo, a questão daqueles que são considerados “grandes” sempre foi marcada por muitos debates.

Na Argentina, por exemplo, se popularizou a ideia de que o país possui “cinco grandes clubes”, que seriam Boca Juniors, Independiente, Racing, River Plate e San Lorenzo. Até aí tudo bem, já que de fato estamos falando de cinco grandes agremiações que merecem ocupar tal espaço, cada uma com sua história, representação, torcida, títulos e ídolos. E tal escolha possui também referenciais históricos, que remetem às décadas iniciais do século XX, em que estiveram como principais equipes no processo surgimento, expansão e profissionalização do futebol argentino.

Mas daí surgem outras questões: como deixar, por exemplo, o Estudiantes de La Plata, tetracampeão da Libertadores da América, fora de uma lista dos grandes do país? Ou clubes como Huracán, Neweell’s Old Boys, Rosario Central, Vélez Sarsfield e Argentinos Juniors, todos com conquistas, ídolos e muita história? Tais equipes possuem histórias singulares, tendo em diferentes momentos todas pleiteado o título de “sexto grande” do futebol argentino.

No Brasil, se popularizou chamar 12 clubes como grandes, que seriam Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco da Gama no Rio de Janeiro; Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo em São Paulo; Atlético Mineiro e Cruzeiro de Minas Gerais; e Grêmio e Internacional no Rio Grande do Sul. Lista merecida, mas também injusta, pois ignora as variações culturais e regionais do Brasil, que possui outras grandes equipes espalhadas por todo seu território. Como deixar de fora o Bahia, primeiro campeão nacional e que fez parte do Clube dos 13; ou o Athletico Paranaense, um dos clubes mais vitoriosos e organizados do país no século XXI; ou mesmo Sport, Coritiba, Fortaleza, Vitória, Ceará….

Enfim, a lista é grande, assim como são todos esses e muitos outros clubes espalhados por todo o Brasil. E esse fator só aflora o debate que destaca a importância da descentralização dos olhares sobre o futebol nacional, ainda muito marcados por narrativas e construções oriundas do eixo Rio-São Paulo.

Destaquei aqui tais exemplos de Argentina e Brasil, países que assim como a Colômbia estão no cenário sul-americano, apenas para demonstrar que uma lista que se propõe a definir os “clubes grandes” de um país, além de não se estática, nunca será considerado uma ciência exata, pelo contrário: leituras e releituras devem ser feitas a todo o momento, se utilizando da história das agremiações nas suas mais variadas facetas como forma de se encontrar um caminho plausível e que possua critério na análise e escolhas realizadas.

No caso da Colômbia, como também destaquei em outra oportunidade, esse olhar cíclico se fez importante na escolha daqueles que poderiam ser considerados “os grandes do país”. Antes fora dessa lista, o Once Caldas passou a ser considerado a “oitava força” colombiana, principalmente pelos desempenhos dos últimos vinte anos e pela conquista da Copa Libertadores da América em 2004 (até hoje, apenas o Once Caldas e o Atlético Nacional conseguiram conquistar a principal competição sul-americana, dentre os clubes colombianos). Somando esses fatores ao desempenho histórico do clube, que é muito tradicional no país desde seus primórdios, se fez valer sua chancela como um dos grandes times da Colômbia.

Com isso, surge uma nova pergunta: o Deportes Tolima, que atualmente é o único clube colombiano que está nas oitavas de final da Copa Libertadores da América 2022 de futebol masculino, deve ser considerado o “nono grande” do país? Minha resposta para essa pergunta é positiva e irei apresentar abaixo um pouco da história do clube como forma de defender tal hipótese.

Equipe do Deportes Tolima. Foto: reprodução.

Fundado em 18 de dezembro de 1954 na cidade de Ibagué, que é a capital do departamento colombiano de Tolima, o Deportes Tolima é um dos clubes mais consistentes da história do futebol colombiano. Desde sua fundação, ocorrida na reta final do período El Dorado do futebol no país (caso queira saber mais sobre esse momento do futebol colombiano, veja aqui), o Tolima só não disputou a primeira divisão (Primera A) do campeonato nacional organizado pela Dimayor  – División Mayor no ano de 1994. E venceu a competição em seu único ano disputando a Primeira B, tendo em 1995 retornado à primeira divisão, de onde nunca mais saiu.

Esse desempenho que representa uma histórica consistência, entretanto, não havia se materializado em conquistas maiores até o século XXI. Mas isso tem se modificado. Desde 2003, o clube já foi três vezes campeão colombiano (2003-II, 2018-I e 2021-I), uma vez campeão da Copa Colômbia (2014) e uma vez vencedor da Superliga da Colômbia (2022).

Time do Tolima comemora o título colombiano em 2018. Foto: Reprodução.

Além das conquistas nacionais, o Deportes Tolima tem se mantido constante também nas disputas de competições internacionais.

Na Copa Libertadores da América, onde irá enfrentar o Flamengo nas oitavas de final da atual edição, está disputando o certame pela nona vez. A equipe já participou do torneio nas seguintes edições: 1982, 1983 2004, 2007, 2011, 2013, 2019 e 2022. Em 1982, logo em seu primeiro ano, chegou no triangular semifinal. Já em 2011, ficou marcado por eliminar o Corinthians na fase eliminatória da competição, o que marcou o último jogo da carreira do atacante Ronaldo, então atleta do clube paulista.

A equipe é ainda a segunda agremiação que mais vezes disputou a Copa Sul-Americana na história, tendo por nove vezes competido no segundo principal torneio de clubes sul-americanos (o Deportivo Cali lidera o ranking com dez participações, que também tem o Atlético Nacional com nove, empatado com o Tolima).

Última partida da carreira de Ronaldo “fenômeno” foi contra o Tolima, representando o Corinthians na Libertadores de 2011.

Além de todos os dados, histórias e conquistas aqui apresentadas, o Tolima está entre os nove primeiros colocados dos rankings que medem o desempenho histórico dos clubes colombianos no principal torneio nacional do país, tal como na Copa Libertadores da América, o que representa que a equipe tem cada vez mais fazendo por merecer esse lugar entre os grandes, não só pelos títulos e disputas recentes, mas principalmente pela consistência histórica que se faz ainda mais importante.

Portanto, mais uma vez, gostaria de reiterar que esse texto não possui a intenção de definir quem são, de fatos os “grandes clubes” da Colômbia ou de qualquer outro país. Porém, se com critérios críticos estabelecidos for realizada uma lista dessa natureza em terras colombianas, o Deportes Tolima, pelos pontos já aqui assinalados, cada vez mais pede passagem para, também, ser considerado um dos gigantes do futebol em seu país.

Referências

Deportes Tolima – Site oficial: http://www.clubdeportestolima.com.co

RUIZ BONILLA, Guillermo. La gran historia del fútbol profesional colombiano: 60 años de logros, hazañas y grandes hombres. Bogotá: Ed. DAYSCRIPT, 2008.