O protagonismo branco na luta contra o racismo

23/12/2019

Por Ricardo Pinto

Historiador

De tantas coisas graves que devem ser superadas na luta contra o racismo, uma das que mais me incomodam é a tentativa do protagonismo branco nesse debate. Seja como agente principal da transformação ou mesmo ditando regras, os brancos insistem em se manter no apogeu destas questões. Esse mal percorre a história da luta contra racismo, e se consolidou como representação inequívoca de Instituições que dizem ter lutado contra o mesmo.

Disse, em outras ocasiões, que representar ou assumir uma luta exige bem mais que simples ações descontinuadas e com forte indício de oportunismo. Na verdade, precisamos compreender que lutar contra o racimo, hoje, mais do que nunca, é um exercício diário, profundo e, acima de tudo, deve ser protagonizado por negros, visto que, como me ensinou minha maior amiga, “só sabe da dor, aquele que sente”.

Em geral, mas vou destacar a experiência no esporte, brancos falam sobre racismo em ocasiões bem definidas: por ocasião da data comemorativa da Abolição da escravatura (maio), o Dia da Consciência Negra (novembro) e em casos onde o racismo é tão explícito que não conseguimos esconder, notadamente ocorridos em grandes disputas esportivas. Fora desse contexto, o racismo deixa de ser um tema. Enquanto para os negros, essa é uma questão diária, de sobrevivência, de identidade e, sobretudo, da sua existência.

O futebol tem essa questão muito clara. A história da inserção do negro no futebol é representada, no senso comum, como sendo resultado da iniciativa de clubes de brancos que, “muito amigável e conscientemente” abriram as portas para os negros entrarem. Essa tese afronta o protagonismo negro. Afinal, foi o destaque dos negros, a sua luta e, fundamentalmente, a sua excelência em jogar e obter resultados que os levaram para os grandes clubes. Devemos lembra que nenhum clube encampou luta contra racismo antes de tê-los gerando lucro para os seus cofres. E, mais do que isso, com a profissionalização do esporte, o primeiro passo de alguns destes clubes que dizem terem lutado contra o racismo foi separar os jogadores negros dos sócios brancos.

Antes de continuar, preciso fazer uma ressalva importante. Antes de magoar amigos brancos que se posicionam e, de certa forma, lutam contra o racismo, preciso dizer que vocês devem continuar na luta, vocês devem seguir cumprindo um relevante papel para humanidade, que é acabar/minimizar os danos de algo tão grave. No entanto, antes de qualquer coisa, busquem informações sobre essa luta com aqueles que sentem em seus corpos essa dor.

O exemplo do futebol italiano, ou melhor, da forma como a liga italiana de futebol encontrou para lutar contra o racismo é emblemático sobre esse aspecto. Antes de mais nada, vale destacar que o ataques racistas vem se tornando cada vez mais comuns no futebol italiano. Só nesta temporada, foram proferidos cânticos ofensivos contra Romelu Lukaku (Inter de Milão), Franck Kessie (Milan), Dalbert Henrique (Fiorentina), Miralem Pjanic (Juventus) e Ronaldo Vieira (Sampdoria).

Diante de tantos casos, vamos a uma das soluções “pensadas” pela liga italiana para combater esse crime. Em tempo de crise aguda, a instituição buscou pelo artista Simone Fugazzotto, que é branco, para criar uma grande campanha que buscasse uma representação importante que marcasse a luta contra o racismo no futebol italiano. Apesar de todas as reflexões possíveis sobre o tema, o artista produziu o seguinte cartaz:

Macacos

Pior do que isso, como justificativa para o resultado extremamente criticado, Fugazzotto, explicou que para ele “todos somos iguais”, “todos somos macacos” e que, em geral, o macaco se tornaria um símbolo para indicar que não haveria diferenças e, repetiu a máxima que os brancos adoram: “somos todos iguais”.

Esse fato nos serve para apresentar algumas questões importantíssimas para o nosso debate, vejamos:

  1. Não há instituições, grupos, intelectuais negros na Itália que poderiam ter desenvolvido o projeto?

  2. Seria então, possível pensar, que brancos só enxergam brancos para pensar/agir o/sobre racismo.

  3. Por que, afinal, buscaram um branco para essa construção?

  4. Por que, em vez de retratarem o mundo a partir das suas diferenças e, sobretudo, respeitando-as, insistimos em igualar o inigualável?

  5. Por que respeitar as diferenças é tão difícil?

  6. Por que não temos protagonismo negro nas grandes instituições esportivas lidando com o tema?

  7. Por que ofensas racistas, pelo mundo todo, em geral, não são punidas com rigor? (vou dar uma pista – são, basicamente, brancos que julgam estes “crimes”)

  8. Por que, até mesmo em clubes que dizem lutar contra o racismo, encontramos marcas irrefutáveis de racismo?

Enfim, a luta contra o racismo não foi e não é uma prioridade para as Instituições esportivas. Salvo no campo da retórica oportunista, o tema segue a margem dos grandes debates internos desses lugares. Ainda que a FIFA e tantas outras instituições se mostrem preocupadas, ainda é um dilema para brancos punirem outros brancos para proteger/defender homens e mulheres negros, ainda mais quando temos muito dinheiro envolvido no processo. Essa é uma questão que precisa ser resolvida. A questão que fica é: Quem serão os protagonistas desta história?


O futebol baiano e o racismo comum do Brasil.

18/02/2019

Começamos esse texto com uma constatação importante: Os negros e as suas práticas, mesmo o futebol, por longo período na história, não se encaixavam na imagem que se esperava ou se construía de uma cidade que buscava se reinventar. A imagem que eles, os negros, refletiam, não cabia nas cidades que se modernizavam e, sobretudo, desejavam exibir para o Brasil e para o mundo. Esse pressuposto, grosso modo, motivava o discurso e as ações de grande parte das elites brasileiras no início do século XX. Será que a Bahia, terra de todos os santos e marcada por sua negritude, apresentou algo de diferente nessa história?

Inicialmente, devemos entender que não tivemos uma escravidão benévola, como afirma Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, sociólogo da USP, em prefácio do livro A integração do negro na sociedade de classes (FERNANDES, 2008). Assim, quando tratarmos da história do negro, e em especial do futebol praticado por ele, nada se torna mais acintoso do que insistir no mito da democracia racial e associá-lo a “invenção” de que o futebol é um jogo essencialmente democrático. Nesse caso, levando-se em conta apenas o fato desse esporte poder ser praticado na sua forma mais simples pelas camadas mais pobres da população.

O futebol, assim como várias outras modalidades esportivas, apresenta “versões” simples, assim como aquelas mais arrojadas em que o investimento financeiro cria um espetáculo que, de modo algum, está disponível para todos. Ou seja, o futebol não traz e não carrega nenhum valor em si, mas é, sobretudo, um esporte que possibilita um grande contingente de variações que acomodam os interesses e possibilidades dos mais diversos grupos sociais. Ainda hoje, temos o futebol da várzea e o futebol dos grandes clubes. Continuamos com o futebol amador, agora com outras representações, bem como com o futebol profissional, este experimentado nas suas mais diversas escalas financeiras. Temos, enfim, desde o início do século XX, vários “futebóis” possíveis.

A Bahia, Estado marcado pela sua negritude, como já foi dito, não foi exceção. Foi na imprensa, por exemplo, que os comerciantes da cidade difundiram as regras do jogo e, sobretudo, se definiu o material esportivo que deveria ser usado para uma partida de futebol “adequada”. O interesse era tanto que, desde o ano de 1903, os jornais publicavam em detalhes suas regras, enquanto o material esportivo vendido para a prática do jogo se esgotava rapidamente nas lojas, conforme afirma o memorialista Aroldo Maia (1944, p. 8). Ou seja, o estabelecimento de regras e, sobretudo, de um “modo adequado” de jogar, deixa claro que, em contrapartida, o que não se encaixasse no modelo deveria ser combatido.

Um fato chama a atenção sobre aquele momento. Na Bahia, até o ano de 1905, não encontramos nenhuma referência à presença das camadas populares, especialmente os negros, nas partidas “adequadas” de futebol. Em geral, eles apareciam na descrição de várias reclamações, no caso de Salvador, feitas por conta das partidas disputadas fora dos locais “adequados” à prática. Então, nos perguntamos: porque os negros não participaram do futebol adequado daquele estado? Será que eles não queriam participar daquele tipo de futebol, ou haveria algo por trás daquela situação?

Vale, nesse sentido, uma vista rápida pelo estatuto de alguns clubes da capital baiana. Com isso, acho que conseguiremos revelar o cenário no qual estavam presos os negros de lá e de tantos outros Estados. Vejamos o que traz o Estatuto do Esporte Clube Vitória sobre os membros do seu clube:

São membros do Club todos os cidadãos maiores de 18 anos, de qualquer estado e nacionalidade, de bom comportamento, que não pertençam a outro Club Sportivo desta Capital e que sendo proposto por um ou mais sócios forem aceitos pela diretoria. (SANTOS, 2012, p. 55) [grifos nossos]

Em geral, a exclusão ocorria de forma sorrateira, negociada, definida na sala de reuniões, onde a aprovação dos candidatos a sócios eram postas. Devemos lembrar, sobre o método utilizado, que para os grupos dirigentes o conceito de “bom comportamento” era, e continua sendo, bem restrito a aquilo que eles consideravam aceitável para o seu grupo social. No entanto, algumas vezes, o disfarce da reunião e de uma possível análise justa das propostas era apressado por uma exclusão declaradamente explícita.

O estatuto do Sport Club Bahia, fundado em 1906, mostra bem o que eles desejavam dentro do seu clube e como eles resolveram a questão do negro. Há no documento um parágrafo único que, categoricamente, define que “em hipótese alguma poderá fazer parte do Club pessoas de cor1 (Ibidem). Mais do que isso, o estatuto determina que, para a admissão ao clube, a proposta deveria ser aceita por uma comissão de sindicância e que, na proposta, deverá constar, além do nome e endereço, a profissão honrosa do proposto.

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Estatutos do Sport Club Bahia

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Ou seja, assim como no Rio de Janeiro e em São Paulo, a entrada de novos sócios era determinada por uma comissão de sindicância, formada também por sócios, notadamente brancos. E que, em casos que não houvesse a categoria da raça como determinante a entrada, o “problema” do negro seria resolvido através da sua ocupação ou pela comissão de sócios. Não havia brechas.

Salvador, nesse aspecto, não se difere das outras capitais. Importante, nesse caso, é a manutenção dos poderes absolutos à comissão de sindicância. Em Salvador, possivelmente também em Porto Alegre, mesmo no Rio de Janeiro e em São Paulo, a comissão decidia quem entrava e quem saía dos clubes. Haveria para isso uma série de requisitos que deveriam ser cumpridos pelo solicitante que almejava fazer parte dos quadros da agremiação; dentre elas, a que mais servia como fonte de exclusão, quando a raça não estivesse definida, era a necessidade de indicar a profissão que o postulante exercia. Nesse caso, somente as profissões reconhecidas como “honrosas” eram aceitas pela comissão. Esse item visava atingir os trabalhadores braçais, em especial os negros, que, em geral, trabalhavam em atividades que não eram reconhecidas como honrosas ou não o suficiente para ocuparem a posição de sócios nesses “distintos clubes”.

Henrique Sena, sobre a Bahia, diz que “ainda que houvesse uma proliferação de clubes, era bem claro para os sócios do Vitória, Internacional, São Salvador e outros clubes posteriores, o ideal de distinção sociorracial nas suas agremiações, uma tentativa de se manterem longe dos populares e setores médios” (SANTOS, 2012, pp53).

Enfim, a Bahia de todos os santos não fugiu a regra. O processo de inserção do futebol na Bahia seguiu à regra os outros estados. Ou seja, o futebol foi gestado de forma excludente e racista. Na verdade, para além do esporte, o racismo é uma marca social brasileira, que ainda deixam marcas em nossas relações sociais. Porém, algo bem peculiar aconteceu durante o processo de estruturação do futebol na Bahia, especificamente em Salvador. Por motivos que veremos noutra ocasião, os negros e pobres “venceram” e dominaram o futebol. Doravante, veremos como isso aconteceu. Por enquanto, ficamos por aqui.

Bibliografia

FERNANDES, Florestan. A integração do Negro na Sociedade de Classes: volume 1 e 2. São Paulo: Globo, 2008.

MAIA, Aroldo. Almanaque Esportivo da Bahia. Salvador: Helenicus. 1944.

SANTOS, Henrique Sena dos. Pugnas Renhidas: futebol, cultura e sociedade em Salvador, 1901–1924. Dissertação de Mestrado. Feira de Santana. UEFS – 2012.

1 Uma cópia digital do Estatuto foi cedida pelo pesquisador Henrique Sena e agora faz parte do meu acervo pessoal.


O ceará, a abolição e o racismo no futebol.

16/04/2018

Os estudos sobre o futebol, notadamente aqueles que frequentam o imaginário sobre a história desse esporte, ficaram fixados, durante muito tempo, nas experiências vivenciadas no Rio de Janeiro e São Paulo. No entanto, saindo desse eixo, temos um grande número de vivências socioesportivas que poderiam nos ajudar a compreender melhor o fenômeno, não fossem menosprezados.

Diante disso, resolvi “percorrer” o Brasil e tentar validar, ou não, as minhas apreensões sobre o racismo no esporte, em particular no futebol, já realizadas em meus estudos sobre cariocas e paulistas. Nesses novos trajetos, andei por terras gaúchas e baianas. Por lá, constatei divergências e semelhanças que me fizeram expandir a minha compreensão sobre o racismo no futebol.i

Continuando minhas andanças, no post de hoje, resolvi visitar as lindas terras cearenses. Partirei da sua história de emancipação dos escravos, em 25 de março de1884ii, portanto, a primeira do Brasil, e da chegada e desenvolvimento do futebol naquelas terras (1903/04). Nesse contexto de análise, tentarei demonstrar o quanto a luta pela abolição da escravatura não reverberou na luta contra o racismo na sociedade, em particular no futebol. Assim, mais uma vez, farei um esforço para demonstrar a fragilidade dos discursos, também atuais, daqueles que dizem lutar pelo fim do racismo, apenas por questões pontuais marcadas em sua trajetória.

De forma apressada, em geral, associamos aqueles que lutaram contra escravidão há um perfil socialmente mais igualitário e que, por essa aproximação, o racismo subsequente experimentado pela população negra se tornaria incoerência a priori, devido a natureza e o vínculo entre as questões. O que percebemos, nesse caso, é que a parte dos setores envolvidos no processo de emancipação, especialmente a classe média, foram as mesmas que criaram ou aceitaram as distinções existentes no campo esportivo em relação a presença e a desqualificação dos negros no esporte. Vejamos:

A década de 1880 foi um marco no processo de emancipação dos escravos no Ceará. Houve, nesse período, uma organização dos clubes emancipacionistas e, ao mesmo tempo, um avanço nas campanhas da imprensa sobre o tema. Por um curto período, 1881 e 1882, a opção por uma abolição gradual era a mais defendida. Porém, em 1883, houve um recrudescimento no esforço de uma abolição mais rápida.

Entre aqueles que defendiam um processo rápido e aqueles que optavam pela forma gradual, havia um consenso: a inevitabilidade do fim da escravidão. Mesmo a igreja católica que, durante o século XIX defendera e legitimara a permanência do sistema, “mudou” de lado nesse período. Em geral, todos passaram a defender o fim da escravidão.

Nesse momento ainda não tínhamos o futebol no ceará. Porém, esse período foi crucial para a realocação do negro na sociedade cearense. O escravo passaria a homem livre e, teoricamente, passaria a poder frequentar os espaços de sociabilidade do homem branco. É, nesse sentido, que entra o futebol e o racismo experimentado nesse esporte.

Considerando a luta e o resultado pela emancipação dos escravos, antecipada e, sobretudo, vitoriosa em terras cearenses, antes mesmo das principais capitais brasileiras (RJ – SP), poderíamos supor que, de um modo geral, a posição do negro pós-escravidão tenha sido menos segregadora ou desqualificadora das outras capitais. Ledo engano, caro leitor.

O fim da escravidão não gerou cidadania. O fim da escravidão não gerou reconhecimento, acolhimento e, principalmente, acomodação da comunidade negra. Afinal, suas experiências, símbolos e práticas continuaram fora das representações de modelos sociais. Usando o futebol como objeto de análise para o caso, podemos confirmar essa tese.

Assim como noutros cantos do país, o futebol cearense também possui um “mito fundador”. Ainda que, como noutros locais, sobre controvérsias, José Silveira foi o personagem eleito para forjar o mito. Filho de portugueses, aos 22 anos, retornava da Europa (alguns dizem que ele retornava do Rio de Janeiro) com uma bola na sua bagagem. Independente do ponto de origem da sua viagem, foi, mais uma vez, um jovem da elite local que recebeu os méritos pela inserção do futebol local. A história se repete. Mais do que isso, mesmo que as fontes apontem para uma popularização rápida do futebol e, principalmente, colocava essa informação como algo positivo, o modelo a ser seguido permanecia sendo o dos jovens da elite local. Ou seja, o mais do mesmo se confirma, também, no ceará. O futebol da periferia, como noutras capitais estudadas, era apresentado como rude e seus praticantes eram mau educados e grosseiros, como aponta o jornal A Gazeta de Notícias, do dia 11 de agosto de 1927, Ano I, N° 1:

“Durante o dia de domingo, e geralmente às tardes, reúnem-se imnúmeros meninos desoccupados e iniciam o seu inacabável foot-ball. (…) A match acompanha commumente os palavrórios dos mal educados jogadores”.

“O barulho, as palavras indecentes e o fervor tanto dos praticantes como dos espectadores são concebidos como inconvenientes: assobios, gritos e palavras obscenas(das maiores)somos obrigados a ouvir”.

Assim como aconteceu noutras capitais, os clubes populares do ceará, especialmente aqueles que possuíam negros, foram forçados a criarem uma liga e campeonatos próprios. Ainda que o processo de mercantilização do futebol, a partir dos anos 40, tenha gerado uma acomodação de atletas de outras classes sociais e etnias, as distinções, nesses moldes, permaneceram posteriormente.

O futebol da várzea, nesse processo, se confirmava como sendo um caso de polícia, visto que a sua prática, desregulada e desmedida, fragilizava o imaginário de civilização ascendente para elite local. Ou seja, o futebol na capital Cearense, assim como no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Salvador, seguiu o caminho da exclusão, da estruturação segmentada e, fundamentalmente, da legitimação da elite como modelo dos modus operandi.

Enfim, os mesmos “homens” que se organizaram, lutaram e aboliram a escravidão, em tempo recorde, mantiveram os homens de cor excluídos do que reconheciam como modelos sociais. Ainda que houvesse, em geral, a participação de negros e populares nas práticas esportivas, especialmente como apostadores e espectadores, a posição do grupo seguia como periférica na escala de valor simbólico e real.

A história seguiu, o futebol se desenvolveu e, doravante, acomodou os homens de cor. No entanto, a tese de que clubes lutaram contra o racismo segue mostrando suas fragilidades, ainda que, pontualmente, suas ações tenham gerados algum tipo de conflito e movimentação no campo esportivo. Nesse sentido, entendo que se quisermos, efetivamente, entender e combater o racismo no esporte, precisamos ter clareza dos limites dessas histórias que preencheram nosso imaginário e, mais do que isso, devemos fazer muito além de levar faixas para o centro do campo e acreditar que isso basta para encerrar uma luta de séculos.

i Ver em: SANTOS, Ricardo Pinto dos. Futebol Fora do Eixo: uma história comparada entre o futebol de Porto Alegre e Salvador – 1889-1912. Tese (Doutorado em História Comparada) Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014).

iiAlguns historiadores consideram que a emancipação no ceará ocorreu em 01 de janeiro de 1883, durante a entrega das cartas de alforrias a 116 escravos, na vila do Acarape, atual município de redenção.


TRAUMAS COLETIVOS E O RACISMO NO ESPORTE

18/09/2017

            Em geral, o racismo no esporte é compreendido de forma equivocada. Na verdade, rotineiramente, salvo para as vítimas, as atitudes racistas vivenciadas no campo esportivo são encaradas como brincadeiras ou, como dizem alguns, são coisas do jogo que, quando proferidas, não tornam ninguém um racista.

            De forma objetiva, essa compreensão é bem eficiente para esvaziar o fenômeno e os seus desdobramentos legais e sociais. Nesse contexto, assistimos o crime de racismo se travestir em qualquer coisa bem distante da gravíssima violência que ele, efetivamente, representa. Quase sempre enquadrado como injúria racial, onde a pena é menor e os danos facilmente absorvidos, o crime de racismo no Brasil, especialmente no esporte, se torna quase que um crime impossível.

            Tentando encarar o desafio de expandir a nossa compreensão acerca desse fenômeno e, de algum modo, demonstrar o quanto somos condescendente com o crime de racismo, resolvi aproximar esse tema aos novos estudos denominados: pedagogia do ensino dos traumas coletivos.

            Com ênfase inicial no Holocausto, Francisco Carlos Teixeira da Silva e Karl Schurster, em texto publicado em 2016[1], apresentam essas novas análises e, principalmente, revelam uma demanda urgente em revisitarmos os estudos realizados sobre o tema e, sobretudo, a forma de ensinar esse fenômeno nos diversos níveis escolares. Dessa forma, enquanto ferramenta de ensino, a proposta visa combater a violência e as diversas manifestações de ódio presentes no cotidiano social.

            Ainda que o foco inicial seja o holocausto, os estudos dos traumas coletivos se aplicam perfeitamente ao racismo enquanto fenômeno que atingiu um grupo especifico da sociedade e que, dia a dia, continua sofrendo com os reflexos do seu passado. No caso do racismo, no Brasil, ainda possuímos alguns agravantes que são, em geral, difíceis de serem superados sem uma reestruturação completa na forma de ensinar e no conteúdo ensinado sobre o tema.

            Como sabemos o racismo é um tema pouco estudado no brasil. Quase sempre tratado de forma periférica nas escolas e universidades, assim como ocorre com o holocausto que é visto na periferia do estudos da Segunda Guerra Mundial, o racismo acabou se tornando um fenômeno pouco explicado e, consequentemente, pouco entendido.

            Quando aproximamos esse tema do esporte isso se torna ainda mais grave, visto que, quase sempre, as manifestações esportivas estão imersas naquilo que definimos como sendo o espaço do “não sério” e, principalmente, seguem sendo definida por um perspectiva completamente romantizada.

            Nesse sentido, há sempre a desculpa de que o que se faz em campo/arquibancada, diante de suas especificidades e sendo um lugar de catarse, não devem ser levados tão a sério. Tudo, no final, não passaria de um ação momentânea sem desdobramentos maiores.

            Esse trato peculiar sobre o tema é visto nos desdobramentos dos casos de racismo no esporte. Apenados, quase sempre, de forma branda, os que agridem não compreendem a dor do “outro”, tampouco a gravidade da sua violência. Via de regra, os agressores se escondem sobre a desculpa de que “não são racistas” e que foi apenas um momento quente do jogo.

            Sobre isso, em seu texto, Silva e Schurster trazem uma reflexão importante sobre a experiência alemã que pode nos ajudar a trilhar nossos primeiros passos nessa nova tentativa de aprofundar sobre o racismo. Gitta Sereny (historiadora, austríaca, 1921-2012), citam os autores, revela em seu livro, Trauma Alemão. Experiência e reflexões, que “ foi através de um melhor entendimento sobre o idealismo e a capacidade de uma determinada tirania de perversão dos instintos humanos, que conseguiu chegar a uma definição do ‘trauma alemão’”. Ou seja, explicam os autores, o “trauma alemão teria sido capaz de causar e deixar profundas feridas com as quais as futuras gerações do processo histórico tiveram e ainda têm , para o bem e para o mal, a obrigação de lidar”.

            A idéia de um passado que não passa é fundamental para a compreensão desse sistema onde se distanciam aqueles que sentem e sofrem com a dor e aqueles que agridem e a negam o dano. No Brasil, como sabemos, “não reconhecemos” o racismo porque acreditamos que ele ficou no passado. ademais, há um esforço brutal em negar as consequências e, fundamentalmente, as responsabilidades sobre ele.

            E isso é facilmente explicável, vejamos: como quase sempre atrelamos os estudos sobre o racismo ao tema escravidão e pós-escravidão (aqui ate os anos de 1930), dessa forma, conseguimos afastar nesse tempo histórico as nossas relações e conexões com esse fenômeno social. Assim, parece muito bem resolvido uma renúncia em revisitar o tema.

            Talvez por isso, na maior parte dos casos de racismo no Brasil, encerramos o debate com o enquadramento dos fatos como injúria racial. Pela sua natureza jurídica, a injúria são “apenas” palavras proferidas que acabariam se encerrando nelas mesmas. Nesses casos, não se compreende a continuidade da violência estrutural na qual a injúria está inserida. Ou seja, retiramos o racismo que estruturou a injúria e resolvemos a questão para seguirmos em frente.

            Quando vamos debater o racismo no esporte contamos ainda com outro desafio. Cotidianamente, definido a partir de uma perspectiva estéril e romântica, qualquer fenômeno que afete essa estrutura são consideradas desvios do esporte e não parte dele. Assim, como ocorre com a análises apressadas acerca da violência no esporte, que busca rapidamente defini-la como algo externo ao campo esportivo, o racismo também é um desses fenômenos que nada tem haver com o esporte.

            Enfim, já passou da hora de reconhecermos o racismo no esporte como um fenômeno bem mais complexo e grave do que tratamos hoje. Do contrário, de nada vai adiantar times entrando em campo com faixas dizendo “não ao racismo”, quando, na verdade, eles não sabem nada sobre o tema. igualmente, de nada vai adiantar respostas apressadas aos eventos de racismos no esporte, se elas não vierem substanciadas de uma compreensão mais ampla, realista e corajosa sobre o tema. Em síntese, precisamos falar seriamente sobre o racimo no esporte.

[1] SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. SCHURSTER, Karl. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 42. N.2. p. 744-772, mai-ago 2016.


O racismo e a participação do negro no esporte.

24/04/2017

Por Ricardo Pinto

Em geral, quando tratamos do racismo no esporte reduzimos, substancialmente, o debate a participação, ou não, do negro a uma modalidade esportiva. Vale destacar, ainda nesse contexto, que criamos uma espécie de reducionismo interpretativo ao usarmos a frase “participar de um esporte” vinculado-a a experiência exclusiva da prática em si, deixando de lado ou minimizando, na estrutura esportiva, outras ligações possíveis e, algumas vezes determinantes, ao objeto.

Ou seja, a presença de atletas negros se tornara a peça chave para compreendermos a participação do negro no esporte. Mais do que isso, se havia atleta negro em uma modalidade, grosso modo, não haveria racismo ou, de alguma maneira, os clubes e equipes que tinham a presença destes negros se tornavam símbolos de uma “possível” luta contra o racismo.

A vinculação entre presença de negros e a luta contra o racismo no Brasil é encontrada facilmente nas histórias sobre o futebol brasileiro. Por conta dessa redução grosseira de uma experiência tão complexa, passamos a acreditar que bastávamos encontrar um negro para podermos afirmar que aquele clube ou equipe possuía uma relação direta com a luta dos negros na sociedade.

Compreender esse reducionismo não deve nos levar a uma banalização da importância acerca da presença de negros em alguns clubes. Na verdade, esse fato deve continuar sendo visto como importante passo para a inserção do grupo no círculo dos atletas. Porém, devemos ter cuidado com a ressonância desse discurso, visto que passamos muito tempo acreditando que pensar o atleta era a única forma possível de refletir os grupos sociais e suas inter-locuções com o esporte.

No contexto esportivo, o negro sempre esteve atrelado a história do futebol. Na verdade, assumimos, por conta das escassas pesquisas sobre o século XIX, o futebol como sendo a primeira porta de entrada dos negros, como atletas, no universo esportivo. Claro que estamos tratando do campo esportivo reconhecido, ou seja, das práticas regulamente acomodadas na sociedade que, mesmo que sofressem com críticas, pertenciam na sua prática e simbolismo ao que era adequado. Visto que as experiências dos negros, em geral, eram combatidas, reprimidas e, sobretudo, categoricamente, desprezadas em seus símbolos.

No entanto, Victor Melo, relevante pesquisador do campo esportivo no século XIX, traz em seus novos textos contribuições fundamentais que, mesmo não sendo sua preocupação central, nos ajuda no entendimento sobre a participação do negro no esporte. Melo, em texto recente, nos apresentou fontes importantes nesse contexto.

A começar pela participação dos populares no esporte, Melo deixa claro que em meados do século XIX essa já era uma questão que gerava tensões e debate público, não obstante e/ou por consequência de todas as estratégias de separação e distinção do público envolvido. No entanto, Melo aponta para uma questão ainda mais importante para estudos relacionados aos negros, visto que nos traz a experiência de um jovem negro destaque no turfe em meados do século XIX.

O fato ocorreu em dezembro de 1853, quando Balbino (ou Albino) se destacou em uma prova de turfe. Na verdade, não só uma, foram seis. O pequeno negro, de apenas 13 anos, venceu as seis provas que disputou e acabou, com isso, sendo declarado na imprensa o primeiro jóquei do Prado (Correio Mercantil, 11 dez. 1853, p.1.).

Para além do fato de retirar do futebol a centralidade no processo de entradas dos negros no esporte, Victor Melo nos ajuda a expandir a compreensão a respeito desse fenômeno. Fica claro, a partir destas novas pesquisas, que a despeito de todo o racismo, o negro já estava inserido no esporte bem antes da chegada do futebol e, algumas vezes, com destaque. Ademais, fundamentalmente, seus escritos nos conduz aos indícios, que comprovam a tese, de que já havia o reconhecimento, pelo menos representado por parte da imprensa, de que o esporte, o turfe, nesse caso, já era fonte de possível mobilidade/ascensão social.

Nesse sentido, o caso do futebol, já no século XX, e o seu potencial transformador das “vidas negras” se torna parte de um processo que foi iniciado mais de meio século antes e, não mais, fonte original de todas as transformações. Claro que o futebol continua sendo o esporte que gerou mais resultados nesse sentido, notadamente pela importância que ele assumiu no cenário esportivo, porém, nos parece que o caso do negro no turfe, no século XIX, bem como do negro no futebol, no século XX, estão muito mais vinculados as demandas do mercado do seu tempo, do que de qualquer luta contra o racismo e, principalmente, de qualquer ressignificação do negro na sociedade.

Enfim, as pesquisas acerca da história do negro no esporte ainda tem muito para avançar. No entanto, nos últimos anos, com a descoberta de novas fontes, uma pesquisa mais densa sobre o século XIX, levada a cabo e em destaque pelo Prof. Victor Andrade de Melo, e a estruturação de debates mais amplos e articulados conseguimos dar importantes saltos na compreensão sobre o tema. Com isso, a meu ver, podemos concluir com tranquilidade que: Não podemos mais vincular a luta contra o racismo apontando apenas para a participação de negros em clubes esportivos.

Na verdade, precisamos entender que esse discurso vinculante atende, em larga escala, muito mais a demanda de uma construção romântica sobre o futebol, onde a trajetória do negro nesse esporte passa a representar, também, a sua trajetória em relação a sociedade, do que a efetiva realocação do negro na mesma.

Não houve, em tempo algum, mesmo com atletas negros por todos os cantos e, alguns, com destaque mundial, como é o caso do futebol, uma transformação do país em relação a raça. Precisamos reconhecer que, para o bem e para o mal, O mercado foi, e ainda é, definidor de parte fundamental destas questões.

Bibliografia:

MELO, Victor Andrade de. Amador ou profissional? Um debate primordial no campo esportivo. In: GOMES, Eduardo de Souza, PINHEIRO, Caio Lucas Morais. Olhares para a profissionalização do futebol: análises plurais. Rio de Janeiro: Luminaria Academica, 2015, p. 19-44, 978-85-8473489-4

MELO,___________ Tempo [online]. 2015, vol.21, n.37, pp.208-229.  Epub July 21, 2015. ISSN 1413-7704.  http://dx.doi.org/10.1590/tem-1980-542x2015v213706.


A limitada luta contra o racismo no futebol

28/11/2016

Virou senso comum levantar bandeiras. Esquerda e direita, contra ou a favor, hoje em dia, nem precisa conhecer a causa, basta um clique e você estará, ou melhor, se sentirá envolvido em questões que, na verdade, efetivamente, você não faz a menor idéia da sua complexidade. Nesses dias, basta um acontecimento virar destaque nas redes sociais que, rapidamente, um frenesi será instalado e, na maioria das vezes, dois grupos passarão a se enfrentar. É assim com as questões relacionadas a violência contra a mulher, os gays e aos negros, dentre tantos outros temas.
No esporte não é diferente. Mesmo sendo reconhecido, rotineiramente, apenas pelas suas boas características, com destaque para as máximas de que “esporte é saúde” e “Esporte é união:”, o olhar sobre o fenômeno esportivo precisa avançar, nesse sentido, para que possamos reconhecê-lo na sua amplitude e totalidade. Vejamos, por exemplo, o caso da luta contra o racismo no esporte.
Não foram poucos os eventos em que o racismo foi exposto de forma explicita no Brasil e no Mundo e, o que é pior, se, num primeiro momento, as coisas parecem gerar desdobramentos que trarão efetividade ao combate ao racismo, passado algum tempo, descobrimos que tudo não passou de mais um frenesi passageiro e inócuo para a luta.
No Brasil, pra ficarmos apenas em um exemplo, lembramos do caso do goleiro Mário Lúcio Duarte da Costa, mais conhecido como Aranha, dos Santos FC, que foi severamente ofendido por torcedores gremistas durante uma partida de futebol. Com grande repercussão, o caso tomou as mídias sociais gerando desdobramentos dos mais diversos, dentre eles a demissão profissional de alguns envolvidos e, mantendo a máxima da violência se resolve com mais violência, a torcedora Patrícia Moreira, flagrada pelas câmeras chamando o goleiro de macaco, teve sua casa pichada e teve que mudar de cidade.
No entanto, mesmo com tudo isso, violência, repercussão e, sobretudo, visibilidade extrema, o caso terminou como um acordo feito entre os agressores e o Ministério Público, acatado pelo Juiz, em que, os envolvidos na agressão deveriam se apresentar a uma delegacia em todos os jogos do Grêmio até agosto de 2015. Enfim, o acordo revela a total falta de conhecimento sobre a profundidade dos fatos e, principalmente, a nossa comprovada anuência sobre esse tipo de crime. Grosso modo, o ataques racista são tidos como um crime menor.
Anterior a Copa do Mundo disputada no Brasil, esse crime gerou um fantasma sobre os organizadores do maior evento esportivo do mundo. Afinal, como no Brasil, país de maioria negra, onde um deles é reconhecido como o maior jogador de futebol de todos os tempos (Pelé), evitariam eventos em que o racismo pudessem colocar em xeque o imaginário do evento????
Devemos lembrar que a FIFA, em março de 2013, após o episódio com o Jogador do Milan, Kevin-Prince Boateng, criou um Força Tarefa para combater o racismo e a discriminação no futebol. O grupo, formado por advogados, jornalistas, jogadores e personalidades, funcionou como um laboratório de idéias que visava impulsionar iniciativas que pudessem apontar soluções para o combate ao racismo no futebol. No entanto, com a crise instalada na maior instituição do futebol mundial, acusada de corrupção sistemática, o grupo pouco se reuniu e, acima de tudo, pouco contribuiu para os avanços nestas questões.
Dissolvido pouco tempo depois, as lideranças da Força Tarefa, criada pela FIFA, com intuito de minimizar a repercussão do encerramento dos seus trabalhos, publicou em seu site as medidas alcançadas pelo grupo:

– Sistema de monitoramento para identificar partidas de alto risco e qualquer tipo de incidente racista.
– Guia de boas práticas para a diversidade e o combate à discriminação.
– Prêmio FIFA de diversidade.
– Embaixadores da FIFA: lendas do futebol envolvidas no combate ao racismo.
– Várias iniciativas como parte da estratégia de sustentabilidade para a Copa do Mundo de 2018, na Rússia.
– Programa FIFA para o desenvolvimento da liderança feminina.
– Treinamento de árbitros e delegados das partidas para lidar com atos discriminatórios.
– Jornadas de combate à discriminação.
– Campanha “Diga Não ao Racismo”.
– Conferências sobre futebol feminino e liderança em 2015 e 2016 em Zurique.
Ou seja, percebe-se que nenhuma das iniciativas contribuem para um aprofundamento das questões relacionadas ao racismo. Ademais, não houve sequer um trabalho que envolvesse, por exemplo, as torcidas organizadas, que, na maioria das vezes, mesmo sendo parte central do espetáculo do futebol, não participam dos processos decisórios do campo esportivo.
No Brasil, não é diferente. A CBF pouco, ou nada, contribui para avançarmos neste aspecto. Na maioria das vezes, Tanto a CBF, quanto os principais clubes de futebol brasileiro, tem atuações limitadas sobre os episódios racistas. Quase sempre faixas são levadas a campo, multas são aplicadas e, por fim, o que parece encerrar a “luta” das instituições, discursos apaixonados são feitos para que não voltem ocorrem tais cenas.
Vale destacar que, sobre esses pontos, as multas, na maioria das vezes, não são pagas. As faixas não surtem o menor efeito, a não ser o de parecerem politicamente corretas diante das telas televisivas. E os discursos, repletos de senso comum, são tão frágeis quanto as soluções impostas.
Repetidamente, o racismo é combatido apenas com punições em dinheiro e com discursos frágeis. Nenhuma ação afirmativa contundente é realizada sobre os episódios. Ações que envolvam torcidas organizadas ou não, dirigentes e jornalistas esportivos que visem um olhar mais apurado sobre o tema, ou, numa escala ampliada, contribua para a formação de uma geração de torcedores mais bem informados, nunca foram postas em prática.
Enfim, todos os anos, nas comemorações do dia da consciência negra, o tema volta a bailar nas manchetes dos jornais e TVs. Nelas, clubes insistem em emplacar discursos sobre uma luta histórica contra o racismo que, efetivamente, nunca existiu, jornalistas insistem em falar de um tema que não dominam e, pelo visto, nem querem dominar e, o que é mais grave, passado as “comemorações” o silêncio volta a reinar até o próximo episódio se tornar manchete. Ou sejam longe dos holofotes, o mundo da bola continua o mesmo.


A luta contra o racismo no futebol e uma mea-culpa

04/07/2016

Uma das atividades centrais do ofício de um historiador é o de interpretar os fatos. Claro, para isso, mergulhamos nos arquivos e nos debruçamos sobre incontáveis fontes que possam nos ajudar no desafio de contar uma certa história. Não digo, com isso, que ao final de uma escrita o historiador considere ter dado um ponto final nas questões possíveis de um determinado objeto de estudos. Na verdade, ao contrário, ao terminar um trabalho, quase sempre, temos a certeza de que poderíamos ter ido mais fundo, ter encontrado mais “vozes” ou mesmo ajustado melhor nossos métodos no tratamento do material encontrado. Mesmo parecendo uma angústia, a de está sempre fazendo um trabalho sem termos definitivos, essa característica também serve como estímulo para seguirmos em frente no desafio de encarar os desafios da nossa profissão.

Por isso, inicio esse texto com uma mea-culpa sobre parte do que escrevi e falei sobre a luta contra o racismo no futebol brasileiro. Na verdade, para não parecer generalista, evitando riscos desnecessários, nesse momento, trato especificamente do Rio de Janeiro e dos, considerados, grandes clubes de futebol da cidade.

Então, para início de conversa, preciso afirmar que: NENHUM CLUBE DE DESTAQUE NO RIO DE JANEIRO LUTOU OU LUTA CONTRA O RACISMO NO FUTEBOL. Ou seja, por mais que ações individuais ou de clubes tenham gerado alguma tensão no cenário esportivo, nenhuma delas pode, a meu ver, ser considerada parte de uma luta sistemática contra o racismo levada a cabo por qualquer que seja o agente/grupo. Quase sempre a luta contra o racismo se resume a entrada em campo por uma equipe com uma faixa declarando serem contrários a esse tipo de acontecimento. Guardadas as faixas, ânimos acalmados, a bola rola e a estrutura segue sendo a mesma. Nenhuma instituição esportiva apresenta/apresentou um programa sistemático para o combate ao racismo no esporte propondo e efetivando punições e, sobretudo, educando jogadores, dirigentes e torcedores para uma nova perspectiva sobre o tema de modo a dirimir os casos em sua base constitutiva.

Sei que a afirmação pode parecer categórica. Porém, decidi encarar o risco a partir dos novos desdobramentos de leituras e trato com as fontes. Para explicar melhor o assunto, devo iniciar apontando para o ajuste que fiz na compreensão da palavra LUTA. Vejamos: considero luta um processo de engajamento atrelado a uma causa na qual o objeto central da questão, nesse caso a luta contra o racismo, esteja no centro do debate e, fundamentalmente, o interesse na sua solução seja parte essencial na formulação das questões apresentadas para os indivíduos ou para as Instituições envolvidas na lide.

Logo, a partir desse novo olhar, posso falar com tranquilidade sobre o Club de Regatas Vasco da Gama e o imaginário criado a respeito do seu engajamento na luta contra o racismo no futebol, forjado no embate entre o Clube e a principal liga de futebol nos anos 20. Tomados por esse exemplo acredito que poderemos dar um salto na compreensão do fenômeno, bem como dos seus desdobramentos reais e retóricos.

Inicialmente, devo reforçar que a famosa carta de 1924, na verdade um ofício enviado a Liga e publicado pela imprensa, conhecida como grande marco na luta contra o racismo no esporte, foi um evento importante para o cenário futebolístico do Rio de Janeiro. No entanto, a partir das novas pesquisas, verificamos que o fato não apresentou nenhuma ressonância fora das fronteiras do estado e em nada tem a ver com a luta contra o racismo, seja no esporte ou fora dele. Na verdade, o documento (“a carta”) visava agir sobre uma demanda interna da instituição que visava manter os bons e vitoriosos jogadores em seus quadros de atletas, atingidos pela solicitação da Liga de retirá-los dos quadros de esportistas do clube.

Ou seja, não podemos afirmar, por que não há indícios comprobatórios que nos possibilite tal coisa, que a questão apontada pela carta tenha gerado desdobramento no futebol de outros estados no Brasil. Ademais, o evento em si não foi resultado do engajamento do clube na causa do negro, mas sim, parte de um processo de mercantilização do futebol que, sem os jogadores apontados na ocasião, causaria um alto prejuízo ao clube em termos esportivos e financeiros e que, naquele momento, teria pouca ou nenhuma outra possibilidade de ser solucionada.

Após a leitura de todos os documentos administrativos disponíveis em arquivo no Centro de Memória do Clube podemos aferir que o racismo, a luta contra o racismo ou qualquer questão relacionada ao negro nunca foi uma temática debatida ou apresentada pelo grupo dirigente da Instituição. Tal fato é constatado na análise das fontes no período anterior e posterior ao da carta. Logo, a Carta de 1924, entendida num contexto maior e, notadamente, pelo seu caráter pontual, não confere ao clube legitimidade no discurso que o define como liderança na luta contra o racismo no futebol brasileiro.

Vale destacar sobre o perfil popular do clube, criado a partir do imaginário de uma instituição que lutou contra o racismo e, por isso, se forjou como clube essencialmente popular, que novas pesquisas já apontam para outra perspectiva sobre essas marcas, ou no mínimo nos dão indícios de suas limitações, vejamos:

Os pesquisadores Victor Melo e Nei Jorge, em artigo publicado (Recrear, instruir e advogar os interesses suburbanos”: posicionamentos sobre o futebol na Gazeta Suburbana e no Bangú-Jornal (1918-1920)- artigo completo em: http://www.seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/42863 ), ao tratarem com a chamada imprensa suburbana, confirmam a tese de que os clubes de subúrbio e seus torcedores eram mal vistos pela imprensa de grande circulação e, principalmente, que o mercado de jogadores que tiravam do subúrbio seus melhores atletas gerou ao Vasco, diferentemente do que se afirma, uma imagem muito ruim, visto que os jogadores deixariam de defender os clubes locais e, numa escala maior, o próprio subúrbio para defender um clube “estranho a eles, como o Vasco…” (Op. cit. p.202).

Outro dado importante que merece ser levado em conta quando apresentamos o Vasco como representante da luta contra o racismo está na pesquisa realizada por Victor Pereira (Professor Auxiliar na Universidade de Pau et des Pays de L`Adour – França), parte publicada como capítulo do Livro Esporte, Cultura, Nação, Estado – Brasil Portugal – intitulado Futebol português nas Américas, anos 1890-1960 (2014), quando diz que:

“não era propriamente um sentimento antirracista que guiava os dirigentes do Vasco da Gama, por vezes, por influência do pensamento lusotropicalista criado por Gilberto Freire, se escreveu. Era sobretudo a vontade de ganhar, de vencer os clubes das elites que conduzia os dirigentes do Vasco…” (p. 46).

Somada a essa análise, confirmada pela ausência desse debate nos arquivos do clube, temos também a forma instrumental como o clube foi utilizado pela Ditadura de Salazar (Estado Novo – 1933-1974) como representante de uma Portugal que deu certo e representava a vitória da miscigenação levada a cabo pelos portugueses em terras colonizadas.

Além de falso, esse argumento, experimentado à época do Expresso da Vitória (famosa equipe do clube dos anos 50), forjada nas obras Gilberto Freyre, contava com a anuência dos dirigentes do clube. Na verdade, mais do que aprovação, havia um discurso efetivo de defesa da exploração Portuguesa em terras colonizadas.

Como exemplo, podemos destacar a defesa do processo exploratório de Portugal na África e, principalmente, quando estes mesmos dirigentes, em 1954, defendem a soberania lusa na Índia (2014, p.51). Ou seja, não havia, como não há, uma luta contra o racismo, contra exploração da população negra ou qualquer que seja ação contra esse movimento.

Mesmo com tudo isso, vale ressaltar que o fato do Vasco ter saído da principal Liga de futebol à época foi importante para o aprofundamento das tensões entre os clubes da elite carioca, da mesma forma que colocou em pauta, mais uma vez, a questão do negro no futebol, ainda que de forma secundária. No entanto, a questão não revela nenhuma disposição do clube em lutar pela comunidade negra, ou mesmo apresentar aproximações que pudessem gerar transformações para essa parte da população.

Enfim, A história do racismo no futebol, assim como a história do negro, ainda tem muito pra avançar. A história vive em movimento e esse post é apenas parte desse caminho. Novos desdobramentos de pesquisas realizadas podem, doravante, me fazer voltar atrás em parte ou no todo desses novos escritos. Por enquanto, aponto para essas conclusões.

Bibliografia

PEREIRA, Victor. Futebol português nas Américas, anos 1890-1960. in: MELO, Victor Andrade de, PERES, Fabio de Faria, DRUMOND, Maurício. 1 ed – Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.