O Passeio Público de Curitiba e as dinâmicas náuticas na capital paranaense da transição dos séculos XIX-XX[1]

07/05/2024

Leonardo do Couto Gomes

Inaugurou-se com grande pompa o local destinado para passeio publico desta capital, e disso já devem ter ido os telegrammas para a corte.Appladudimos a ideia, e achamos menos má a escolha do terreno, por ser um brejal que se pretende deseccar, e tornal-o util de imprestavel que antes era (O Dezenove de Dezembro. 4 de mai. 1886, p.1)

A história das primeiras experiências náuticas da capital paranaense está intimamente entrelaçada com a construção do primeiro parque público da cidade em. Nas primeiras páginas do principal jornal paranaense do período, O Dezenove de Dezembro, estampava-se a notícia da inauguração do pioneiro Passeio Público de Curitiba. Com aplausos, a mídia local aparentava apreciar com bons olhos a formação deste espaço para recreio. Destaca-se ainda, no anúncio acima, a colocação de que o local onde o passeio foi construído era um terreno pantanoso e que nada de proveitoso se tirava dali. Tratava-se, portanto, de uma construção vantajosa ao desenvolvimento material da capital paranaense.

A respeito da área onde foi edificado o Passeio Público, de fato, era um vasto terreno lamacento de 48 mil metros quadrados situado, naquele momento, ao norte da cidade (atualmente região central), banhado pelas águas do Rio Belém, que rotineiramente alagavam a região, espavorecendo os habitantes devido o odor e os miasmas provocados pelas águas paradas. Portanto, o novo ambiente emergia como um símbolo útil para a transformação urbana e que as atividades ali difundidas também estariam imbuídas deste mesmo ideário.

Fonte: Casa da memória. Curitiba/PR.
A estrela amarela indica a área do Passeio Público de Curitiba.
O retângulo roxo identifica a Praça Tiradentes, marco central da cidade.
A linha laranja trata-se da Rua 15 de novembro, logradouro onde funcionou o Teatro Hauer, espaço utilizado para a promoção de diversas festividades entre 1891 e a década de 1930.
O traço azul claro representa a Rua Aquidaban (atual Emiliano Perneta). Ponto de variados empreendimentos ligados aos divertimentos. O Colyseu Curytibano um parque de diversões famoso da década de 1900 e o Frontão Curitybano, casa especializada no jogo da pelota basca, são bons exemplos.
A linha branca trata-se da estrada da graciosa, importante trajeto que liga Curitiba ao litoral – e ao principal porto comercial, o da cidade de Paranaguá.

À frente dos projetos arquitetônicos, estava o italiano João Lazzarini, nesse momento engenheiro da câmara municipal e encarregado pela edificação. Enquanto o responsável político pela empreitada era o então presidente da província, ligado ao partido liberal, o carioca Alfredo d’Escragnolle Taunay, que acelerou a construção para finalizá-la durante seu mandato (1885-1886) – com o propósito de colher as glórias da conclusão da obra.  Em discurso o governante evidencia sua visão sobre a construção do parque:

A cidade de Curitiba ressente-se de uma grande falta, que já deveria ter sido motivo de algumas medidas por parte dessa Municipalidade: a de um passeio ou Jardim Público, que servin-do à população de ameno e freqüentado logradouro, mostrasse a quantos procuram ou visitam esta localidade que ela com-preende devidamente a importância de certos melhoramentos cuja ligação com a saúde e higiene gerais são hoje indiscutí-veis e que nos centros de aglomeração de gente se tornam até indispensáveis( Boletim do Arquivo do Paraná. v. 13, 1886, p. 40).

Notemos que, na percepção do político, a obra era uma necessidade pública indispensável para a cidade. Esse ponto de vista observava a estrutura como uma importante possibilidade de melhorias para a saúde e higiene geral da população, e que só se efetivaria por meio de reformas em uma área que até então contava com características insalubres. Sobre esses pontos a construção do Passeio de fato apresentava avanços para a higiene pública, pois a estrutura remodelaria um espaço visto como foco de pestilências. Ainda, foi por meio dos avanços da engenharia que a empreitada promoveu a condensação da vegetação e regularizou o escoamento das águas, que era o foco de preocupação com doenças.

O primeiro parque de Curitiba foi inaugurado em 1886. Entre seu leque de possibilidades, destacavam-se diversas inovações, algumas marcadas pelo controle do homem perante a natureza, como a possibilidade de caminhar por cima de pontes e jardins em uma área que até então era pantanosa e insalubre. A imagem a seguir ilustra esse feito, ao retratar sujeitos em cima de uma passarela nos primórdios do funcionamento do Passeio.

Figura 2. Passarela no Passeio Público, 1886.
Fonte: Arquivo da Gazeta do Povo. Curitiba/PR

Mas destaque mesmo ganhou o carrossel elétrico colocado no parque. Se tratava de um instrumento da maquinaria que trazia ar de tecnologia e novidade ao ambiente que proporcionava experiências singulares ligadas as percepções de velocidade e vertigem. A iluminação por meio da energia elétrica – utilização ainda pouco comum na época –, era um importante componente e símbolo de modernização também presente no ambiente, mesmo que, não raro, detecte-se o uso de lampiões no local (O Dezenove de Dezembro. 14 jan. 1887, p. 3).

Figura 3. Primórdios do Passeio Público, destaque para o carrossel a direita (1886).
Fonte: Arquivo Público do Paraná. Curitiba/PR.

O propósito delineado para o Passeio, conforme aponta Molina (2020), era tornar o espaço um bem material para a cidade, reunindo ali diversos elementos tidos como benéficos para o avançar urbano. Nesse sentido, a realização de experiências com divertimentos náuticos eram um importante sustentáculo, pois além de evidenciar todo um domínio da engenharia ao controlar a natureza, possibilitando deslizar nas águas de um ambiente até então inóspito, também proporcionava aos habitantes o contato com práticas que estavam ganhando conotação de novos tempos, como é o caso das esportivas.

A respeito do funcionamento do parque e realização de algumas atividades, conseguimos detectar que este ficava aberto todos os dias. As entradas eram francas – cobrava-se apenas o que se consumisse no ambiente. Tratava-se de um sistema de concessão de licença, a Câmara Municipal cedia aos contratantes a possibilidade de explorar comercialmente a estrutura, em troca de uma taxa do lucro. Nesse sentido, é provável que os remos e canoas disponíveis para deslizar nas águas do Passeio, inclusive, fossem cedidos pelo próprio poder público, que provavelmente cobrava alguma taxa da manutenção dos materiais. Infelizmente devido à ausência de relatos, essa é uma questão que não conseguimos identificar com maiores detalhes. Por ventura até mesmo fossem embarcações similares as retratadas em uma imagem do parque anos mais tarde.

Figura 4.  Embarcações, Passeio Público, década de 1920.
Fonte: Casa da memória. Curitiba/PR.

 Existiam horários específicos para o inverno (das 10h às 17h) e para o verão (das 10h às 19h[1]).  Os ingressos para usufruir das atrações eram cobrados e vendidos nas próprias dependências da estrutura. Uma taxa de 100 reis era necessária para desfrutar de 10 minutos no carrossel, a idade máxima permitida era 15 anos. Contudo, se levarmos em consideração o ineditismo do instrumento, não é improvável que adultos também se arriscassem em experimentar dessa curiosidade.  

Já para praticar as atividades náuticas eram cobrados uma taxa de 1$000 reis[2]. Comidas e bebidas também eram comercializadas no local. O valor cobrado[3] para deslizar sobre as águas era similar a outras atrações que vinham se conformando na cidade. O bilhete geral para as peças no Teatro Hauer custava 1$000[4]. Via de regra, eram valores acessíveis para um amplo[5] extrato da população curitibana.

Com um espaço promissor e com um público aparentemente disposto a usufruir da dinâmica, deslizar sobre a água não demoraria para ganhar contornos competitivos, conforme evidência uma nota jornalística:

REGATAS

Informam-nos que brevemente serão installadas as regatas no grande lago do Passeio Público, para cujo fim o director desde logradouro está se occupando da organização de um club especial.

Será isso um novo e grande attractivo para aquelle centro, que desde já é o rendez-vous da nossa melhor sociedade (O Dezenove de Dezembro. 25 de jan. 1888, p. 2).

Na fonte é possível observar que o desejo era organizar um clube específico para regatas. O local das disputas era o único possível na cidade: o lago do Passeio. Contudo, de acordo com Bahls (1998), a falta de verba municipal – uma característica comum durante os tempos do império – freava a tentativa. Aliás, a falta de recurso foi uma constante nos primeiros anos do passeio, mas nem por isso o espaço deixou de ser usado pela população.

As regatas começavam a angariar interesse. O jornal A República anunciava: “Domingo as quatro horas da tarde, deu princípio, as regatas no Passeio Público que estiveram animadíssimas” (A República. 12 de jun. 1892, p. 2). Apesar desse dia de disputas ter se mostrado pela imprensa como animado, misteriosamente após esse evento os jornais locais só voltariam a relatar novas performances em 1895. Antes disso, somente na cidade litorânea de Paranaguá foram encontrados registros de eventos beneficentes e da fundação de um clube de regatas[1]. Há algumas possibilidades para explicarmos tal ocorrência. Uma delas são os próprios surtos epidêmicos do período, assim como a Revolução Federalista que estava por vir e o clima e a escassez hídrica ocorrida na época, além do mais elementar: um possível baixo interesse por parte da população em relação ao novo divertimento.

Em meados de 1895 é que os primeiros relatos mais detalhados de regatas nas dependências do Passeio foram abordados pela imprensa local. A República publicava o seguinte cartaz de divulgação:

GRANDES REGATAS NO PASSEIO PÚBLICO DE CURITYBA

De hoje 18 a 21  do corrente, até as 2 horas da tarde, recebe-se, no challet do dito Passeio, inscripções para as regatas que terão lugar domingo 22 do corrente á tarde, se o tempo permitir, e que constarão do seguinte:

1º PAREO – Premio – 35$000

Canôa de um só  remo contra um bóte de dous remos; inscripção – 20$000

2º PAREO – Premio – 25$000

Botes de dous remos – inscripção – 15$000

3º PAREO – Premio – 20$000

Botes de quatro remos – inscripção – 15$000

4º PAREO – (de honra) – Premio – 40$000

Botes de dous remos, movidos e dirigidos por moças, inscripção – 25$000.

Juiz de partida – Deputado Leoncio Correia.

Juiz de chegada – Cidadão José Brito

Juiz da luta – Engenheiro Costard.

Musica exllente, botequim onde se encontrará, á preços razoaveis as melhores e puras bebidas e doces dos mais deliciosos (A República. 19 de set. 1895, p. 3).

O folhetim A tribuna também anunciava a notícia com certo entusiasmo dizendo “Feliz ideia essa, que talvez vá levar áquelle logar, mais alguma animação”[1]. Observemos detalhes importantes a respeito da divulgação: a característica ligada ao clima era um alerta importante. O trecho “Se o tempo permitir” passaria a ser constante nas chamadas para disputas. Apesar dos avanços de canalização hídrica do Passeio, os canais nesse momento não eram tão avantajados como os da Baia de Guanabara na capital federal, ou vastos como o litoral paranaense já utilizado para regatas em Paranaguá.  Na verdade, eram sinuosos, característica pouco conveniente para a prática de atividades náuticas.

Ainda assim, as disputas ocorreram em Curitiba e seguiram certos parâmetros organizacionais similares aos tradicionais clubes de regatas da capital carioca. Um desses padrões é a presença de juízes (um sinal, inclusive, pela busca de assegurar o resultado e equidade, características, aliás, preconizadas pelo Esporte moderno) esses eram estipulados para cada momento das disputas.

Houveram novas tentativas da formação de um clube de regatas na cidade que tentaria promover eventos no lago do Passeio.

CLUB DE REGATAS CURITYBANO

Domingo – 23 – Domingo

Inauguração do Club ás 4 horas da tarde.

Grandes Regatas no Lago do Passeio Publico

1º Pareo Esperança. Botes á 4 remos.

2º Pareo, Juvenal. Botes a 2 remos para um remador.

3º Pareo, Bouque. Botes a 2 remos para dois remadores;

4º Pareo, Violetas, Botes á 4 remos.

Pede-se o comparecimento dos sr.s socios ás 2 horas da tarde de Domingo no Chalet do Passeio a fim de proceder-se á eleição da directoria e tratar-se de mais negocios concernentês ao publico. (A República. 23 de abr. 1899, p. 1).

A respeito de quem eram os sujeitos dispostos a gerir tal organização, nada foi constatado. O clube, na verdade, não teve vida longa. O motivo, ao que parece, era uma dificuldade que já era sentida antes mesmo da inauguração: a ausência de água. Essa adversidade é visualizada na publicação do jornal Diário da Tarde:. “Devido a não haver agua sufficiente no lago do Passeio Público, não se realizaram alli regatas, annunciadas para hontem, que devem agora ter logar em próximo domingo”[1]. Nem mesmo conseguimos localizar se a entidade promoveu algum evento.  O que sabemos é que o desejo existiu, e uma tentativa foi planejada.

No ano seguinte os jornais relatariam um episódio beneficente que seria promovido pelo “antigo” clube de regatas que haveria funcionado no Passeio, sinal de que a empreitada já estava em desuso. “Consta-nos que o antigo grupo de regatas que funcionou no Passeio Público, vai se reorganizar afim de beneficiar o Azylo de Orphãos” (Diário da Tarde. 27 e 28 de mar. 1900, p.1).

Aconteceram outras tentativas de eventos com características similares que, inclusive, lograram algum interesse[2], como um em benefício à sociedade protetora dos animais. Entretanto, os problemas de infraestrutura e naturais, notadamente devido aos canais não serem vastos e profundos suficientemente, além do clima chuvoso pouco propício, sempre ameaçaram as experiências com as atividades náuticas em Curitiba. Todavia, mesmo com as limitações à prática, a iniciativa contribuiu para o forjar de um discurso progressista que valorizava o desenvolvimento material da cidade e dos costumes da sociedade curitibana, principalmente por meio da construção de espaços modernos de divertimentos, aliados às ideias de benefícios para a modernização urbana e melhoramento da saúde através do fortalecimento do físico.

As experiências náuticas, sobretudo as de caráter competitivo, voltariam a ser organizadas em Curitiba, especialmente na administração do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916) já que este promoveria uma ampliação dos espaços hídricos do parque e de outros ambientes da cidade. Deslizar sobre as águas do Passeio Público por meio de remos e canoas ainda seria possível quando a água existisse e o tempo permitisse até meados dos anos 1960, quando os pedalinhos entrariam como novidade.

Figura 5. Parque Passeio Público, passeio de canoa década de 1920
Fonte: Arquivo Gazeta do Povo. Curitiba/PR.

Referências

BAHLS, Aparecida Vaz da Silva. O verde na metrópole: a evolução das praças e jardins em Curitiba (1885-1916). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1998.

GOMES, Leonardo do Couto; CAPRARO, André Mendes. As atividades náuticas em Curitiba (1886-1900). Revista de História Regional, v. 27, n. 02, 2022.

MOLINA, Ana Heloisa. “Temos um Passeio Público, digno desta adiantada capital”: espaços de sociabilidades em registros fotográficos do acervo do Museu Paranaense. Curitiba. 1913-1930. História (São Paulo), v. 39, 2020.


[1] Diário da Tarde. 24 de abr. 1899, p. 1

[2] A República. 9 de set. 1902, p. 2.


[1] A Tribuna. 19 de set. 1895, p. 2.


[1] Ver, A República. 13 de out. 1894, p. 1.


[1] Ver, relatório apresentado pelo Presidente da Província do Paraná Joaquim D’Almeida Faria Sobrinho. PARANÁ, relatórios de secretários de governo, 30 de out. 1886, p. 69.

[2]A República. 17 de out. 1897, p. 4.

[3] Uma vassoura, artefato do cotidiano, custava 1$200. Ver, A Tribuna. 21 nov. 1895, p. 3; já um regador e a menor lata de erva mate custavam ambos 2$500. Ver, A República. 7 de jan. 1896, p.3; Diário da Tarde. 3 de abr. 1899, p.2. Nesse sentido, basicamente quem pudesse usufruir de artefatos básicos do dia a dia, de certo modo, poderia pagar pelos valores do carrossel e regatas.

[4] A República. 8 jan. 1896, p. 3.

[5] A título de comparação, um porteiro da câmara municipal ganhava 1:000$000 reis e um arquivista da mesma estrutura 2:400$000. Ver, A República. 29 mar. 1896, p. 2.

[1] Uma parcela significativa desse material foi publicada na Revista de História Regional. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/rhr/article/view/20260/209209217059


A Junta Central de Saúde Pública e a ginástica como questão sanitária do Império

29/04/2024

Fabio Peres e Victor Melo[i]

No último post, comentamos sobre a complexa trama de concepções, interesses e discordâncias que envolveram a proposta inicial da Imperial Casa de Saúde e Instituto Ginástico Ortopédico. O caso era revelador de um “processo de consolidação da legitimidade do saber médico na administração estatal e, por conseguinte, do papel que tal saber teria — e deveria ter na autorrepresentação dos médicos — nas avaliações e decisões sobre políticas de saúde e no desenvolvimento de práticas médicas”.  

De fato, a burocratização do saber médico sobre a ginástica no século XIX não se restringiu aos debates internos da Academia Imperial de Medicina, mas também permeou diversas esferas administrativas do Estado, refletindo-se em relatórios e outros documentos institucionais.

Indícios desse processo podem ser observados nos relatórios anuais do Ministério dos Negócios do Império. Por exemplo, diversos relatórios da Inspetoria Geral de Instrução Primária e Secundária frequentemente aventavam as relações entre ginástica e saúde no cenário escolar[ii]. Alguns cargos da estrutura governamental, inclusive, foram ocupados por médicos que concebiam a ginástica enquanto prática pedagógica indispensável, como foi o caso do Dr. Abílio Cesar Borges que integrou o Conselho de Instrução Pública da Corte, entre 1871 e 1877[iii].

Do mesmo modo, desde as décadas de 1830 e 1840 começará a melhor se estruturar na burocracia imperial setores administrativos ligados diretamente à saúde. A própria formação da Junta Central de Saúde Pública, em 1850, se insere na intensificação desse processo, que também contou com outros órgãos públicos ligados à saúde. Nesse contexto, em diversas ocasiões a ginástica e a educação física foram temas abordados nos relatórios de tais entidades. Diferente dos periódicos, as opiniões e as deliberações expressas nos relatórios supostamente estavam mais próximos de serem convertidos em iniciativas concretas do Estado imperial na vida social monárquica.

Por exemplo, no relatório de 1851 da Junta Central de Saúde Pública, quando se discute o estado sanitário da capital, observa-se a necessidade de “estabelecer a mais vigilante inspeção na educação física da mocidade”, que se encontrava marcada pelo “maior desleixo” (Cândido, 1852, p. S2-17). Naquela ocasião, era destacada a necessidade de se considerar de forma ampliada a educação física, em particular nas escolas, como estratégia de melhorar as condições de saúde na sociedade da Corte.

Em momento posterior, a ginástica ganhará maior especificidade em tais relatórios. Em algumas situações, ela aparecerá associada ao tratamento da tuberculose e de moléstias pulmonares, um problema assolava o país e que, como vimos, foi frequentemente abordado nos periódicos médicos. O relatório da Junta de 1858, no qual é apresentado considerações sobre a tísica pulmonar e sua respectiva profilaxia, insere um outro ator no combate à moléstia: o engenheiro sanitário, que seria incumbido de criar, entre outras coisas, estabelecimentos de ginástica, natação e passeios baseados nos preceitos da higiene pública[iv].

A posição de Francisco Paula Candido, que também foi presidente da Academia Imperial de Medicina, demonstra que houve poucos avanços desde o relatório que ele próprio escreveu em 1851:

“[…] nada se tem feito no sentido de melhorar a educação física de nossa mocidade: os meios materiais, os passeios, a ginástica, a natação, os exercícios, a água, o ar puro…. tudo lhes faltaria” (1859, p. A-G-11).

Em 1862, Paula Candido abordou novamente o tema, ao descrever as medidas sanitárias para o controle de outra moléstia, que atingia a corte, as febres infecciosas (Candido, 1863). Assim, ginástica também estava associada a um contexto científico mais amplo da época, no qual a teoria miasmática ainda figurava como explicação etiológica — apesar da existência de teorias concorrentes.

Na década seguinte, em 1870, as propostas relacionadas a ginástica médica aparentemente estarão mais próximas de se converterem em ações concretas. Mas essa história ficará para um próximo post.


[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494;. ISSN 2236-3459.

[ii] MELO, V.A.; PERES, F.F. O corpo da nação: posicionamentos governamentais sobre a educação física no Brasil monárquico. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 21, n. 4, p. 1131–1149, out. 2014.

[iii] Maiores informações ver MELO, V.A.; PERES, F.F. Relações entre ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX: reflexões a partir do caso do Colégio Abílio, 1872-1888. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 23, n. 4, p. 1133–1151, out. 2016.

[iv] Merece destaque que naquela época, o governo já havia autorizado e aprovado a incorporação de uma companhia, denominada Architectonica, cujo fundador era Francisco José Fialho, que tinha por objetivo adquirir ou arrendar terrenos e prédios no município do Rio de Janeiro com fim de edificar “Jardins e parques publicos com restauradores, cafés, banhos, pavilhões, e salas com os respectivos accessorios para […] exercicios saudaveis e de agilidade, como sejão equitação, gymnastica, natação, meneio de armas, & c.” (Decreto nº 1.867, de 17 de Janeiro de 1857).


COPA RIO: O PRIMEIRO CAMPEONATO INTERCONTINENTAL ENTRE CLUBES

09/04/2024

por Mauricio Drumond

No futebol, a legitimidade e a legalidade de um título são disputas de narrativas que muitas vezes ultrapassam o campo da razão e buscam argumentos no âmbito das paixões. O amor de torcedor e a rivalidade com clubes que marcam sua alteridade por vezes subjugam até mesmo o olhar de acadêmicos e estudiosos do tema, que acabam por manipular evidências e selecionar fatos e perspectivas que corroboram com o tema que buscam comprovar. Muitos dizem que o amor nos deixa cegos, e a paixão pelo esporte pode levar até o mais rankeano dos historiadores a se apoiar em Hayden White para defender seu time do coração. 

Em meio a recorrentes participações de equipes brasileiras nos campeonatos mundiais interclubes da Fifa, a mobilização por parte da imprensa e de estudiosos do futebol sobre os títulos de Palmeiras e Fluminense na Copa Rio de 1951 e 1952 certamente se encaixa nesse modelo. Defendido por uma parcela de estudiosos, que muitas vezes se denominam historiadores do futebol, o status de título mundial da competição será o tema da análise deste artigo. 

Copa Rio, um campeonato mundial?

Para iniciar o debate, é importante já deixar claro que não considero a Copa Rio um campeonato mundial de clubes. Não busco aqui o discurso da legalidade, do reconhecimento ou não da Fifa sobre o caráter de título mundial do campeão da competição. Os reconhecimentos oficiais da instituições que regem o futebol, tanto em nível local, como nacional ou internacional, são geralmente abusados em pressupostos políticos e econômicos, e não apenas nos esportivos. 

O Botafogo, por exemplo, é Campeão Carioca de 1907, juntamente com o Fluminense, desde a disputa da competição? Ou apenas a partir de 1996, quando a FERJ decidiu reconhecer o pleito de anos do Botafogo e reconhecer o título do clube? O mesmo pode ser dito do reconhecimento dos quatro primeiros títulos brasileiros do Palmeiras, ou o primeiro do Fluminense.  Pode-se perceber assim que mesmo que um título não seja reconhecido pela entidade gestora do futebol em um momento, ele pode vir a ser reconhecido posteriormente. Ou seja, no Caso da Copa Rio, seu não reconhecimento como campeonato mundial de clubes pela Fifa não deve ser o fator de nossa análise sobre seu real caráter de torneio mundial de clubes. A legitimidade de um título se dá principalmente por parte da produção de um discurso pela comunidade esportiva e da manifestação popular, que se relacionam de forma dialética.

No entanto, essa produção de discurso deve ir além do que diz a imprensa local, que possui outros interesses na afirmação. Responsável pela idealização, organização, promoção e venda da competição, jornalistas como Mario Filho buscavam enaltecer e agigantar seu produto, muitas vezes vendendo gato por lebre. Não buscarei aqui analisar o discurso produzido pela imprensa local. Para isso, sugiro o artigo de Sérgio Settani Giglio sobre a Copa Rio de 1951, “O Palmeiras tem mundial?”, publicado em três partes no Ludopédio (Parte 1; Parte 2; Parte 3). Nele, Giglio deixa transparecer, pelas crônicas de Mario Filho no Jornal dos Sports, o esforço em vender a ideia de grandiosidade do torneio. Isso fica evidente em sua argumentação para justificar a ausência das equipes espanholas:

[…] foi precisamente a significação da ‘Copa Rio’ que afugentou os espanhóis. Primeiro o campeão da Espanha, o Atlético de Madri, depois o vencedor da Copa Generalissimo Franco, o Barcelona. A vitória da Portuguesa sobre o Atlético Madri em Madri convenceu inteiramente os espanhóis da superioridade do football brasileiro. De tal forma que para os espanhóis a ‘Copa Rio’ seria apenas uma oportunidade brasileira, para reeditar, contra a Espanha, a goleada do campeonato do mundo (Mario Filho. A “Copa Rio”, verdadeiro campeonato mundial de campeões. Jornal dos Sports, 12 de junho de 1951, p. 5. Apud Sérgio Settani Giglio. O Palmeiras tem mundial? (parte 2). Ludopédio, São Paulo, v. 106, n. 9, 2018.)

Em sua retórica contorcionista, Mario Filho justifica a ausência dos campeões espanhóis Atlético de Madri e Barcelona pelo medo que teriam de vir ao Brasil se defrontar com o futebol brasileiro. O receio de uma nova entoação de “Touradas em Madri” no Maracanã, como na Copa de 1950, seria a única explicação possível para a ausência das equipes. A distância, os custos, ou mesmo a falta de interesse comercial e esportivo não eram nem ao menos aventadas como possibilidades, pois assim diminuiria a importância do evento que vendiam como a principal competição futebolística do ano. 

Mas se não iremos nos basear na imprensa local  – geralmente a principal, quando não única, fonte de pesquisadores do futebol no Brasil -, como podemos avaliar o caráter de competição mundial da Copa Rio?

Uma outra possibilidade seria investigar o olhar da imprensa internacional sobre a competição. Como ela foi repercutida na imprensa de outros países, participantes ou não do torneio. De Buenos Aires a Montevideo. De Londres a Lisboa, passando por Paris e Madri. Esses países enxergavam a competição como um mundial de clubes? 

De acordo com matéria da ESPN (link), o jornal italiano La Stampa, de Turin, enviou uma equipe liderada por Vittorio Pozzo, treinador bicampeão mundial pela Itália em 1934 e 1938, para cobrir a competição com a Juventus. O artigo aponta que em suas reportagens, Pozzo teria se referido à Copa Rio como “Torneio dos Campeões”, mas não indica que esse era o nome pelo qual a imprensa carioca, capitaneada por Mario Filho, usava para se referir ao torneio: a expressão “Torneio Mundial de Clubes Campeões” era o epíteto da competição. Nota-se também que o termo “mundial” não é evocado.

Página do jornal ‘La Stampa’ sobre a final da Copa Rio de 1951. Disponível em Francisco De Laurentiis, 2021. Link aqui.

Mas uma única reportagem não é suficiente para basearmos nossa análise. Seria necessário buscar um número significativamente maior de artigos, englobando as duas edições da competição, de um número maior de localidades, com e sem clubes próximos participando do certame. Mas isso eu vou ficar devendo. Essa pesquisa de fundo ainda está para ser realizada, e fica aqui uma indicação de um possível objeto de estudo. 

Uma análise possível.

A opção que buscarei desenvolver aqui é uma análise dos clubes participantes das duas edições do “Torneio de Campeões”, o que também poderá nos fornecer importantes elementos a serem observados. Quais são os clubes que participaram da primeira edição? Qual era sua projeção local e internacional no período? Como essa representação foi alterada na segunda edição da competição? Levando em consideração que as equipes de ponta na Europa não estariam, de fato, “afugentados” pelo medo do futebol brasileiro, como sugeriu Mario Filho, o sucesso internacional da Copa Rio em 1951 deveria resultar na maior participação de equipes de peso internacional no ano seguinte. 

Mas como determinar quais seriam “equipes de peso internacional” no futebol europeu da década de 1950?

Antes de começar, devemos lembrar da conjuntura européia do início dos anos 50. Recém saída da Segunda Guerra Mundial, a Europa começava a se reorganizar no campo esportivo. A Copa do Mundo no Brasil, em 1950, foi a primeira grande competição esportiva realizada depois do conflito, e a Copa Rio buscava dar continuidade ao sucesso da Copa no Brasil. Na Europa, o pós-guerra começa a ver a reorganização de competições esportivas supranacionais. A Copa Mitropa, uma competição entre clubes campeões dos países da Europa central criada nos anos 1920 e interrompida no período de guerra, voltava a ser organizada em 1951, não tendo continuidade nos anos seguintes. Já a Copa Latina, envolvendo equipes de Portugal, Espanha, França e Itália, começou a ser organizada em 1949. As duas competições são apontadas por muitos como a principal inspiração para a criação da Taça dos Clubes Campeões Europeus, que décadas depois foi renomeada como Liga dos Campeões da UEFA.

Benfica, campeão da copa Latina de 1950.

Assim, podemos convencionar que “equipes de peso internacional” no futebol europeu seriam times com passagens por essas competições, assim como equipes campeãs em seus países. É importante notar que clubes de países como Inglaterra e Escócia, por exemplo, não tinham o costume de participar de competições internacionais. Mesmo suas seleções evitavam a participação em copas do Mundo. A Inglaterra fez sua estreia em copas no Brasil, em 1950. Já a Escócia se recusou a disputar a competição em solo brasileiro. 

 A primeira edição, em 1951, contou com 8 equipes. Do Brasil, disputaram os campeões dos campeonatos do Rio de Janeiro e São Paulo, Vasco da Gama e Palmeiras. Não entraremos aqui no debate sobre o critério de seleção dos clubes brasileiros convidados, uma vez que não havia competição nacional nesta época. Do Uruguai, o Nacional foi a equipe convidada, campeã de 1950. 

Da Europa, equipes da Inglaterra, Espanha, Escócia e Suécia declinaram os convites. Vieram ao Brasil o Sporting, campeão português da temporada 1950/51; o Áustria Viena, da Áustria, era o terceiro colocado de seu país na temporada, mas os dois primeiros ,Rapid Viena e Wacker, declinaram o convite brasileiro para disputar a Copa Mitropa no mesmo período. Já o Estrela Vermelha, da Iugoslávia, foi a equipe indicada por sua federação e acabou se sagrando a campeã nacional daquele ano. 

O Milan, campeão italiano, decidiu disputar a Copa Latina daquele ano, da qual se sagrou campeão. Em seu lugar, veio ao Brasil a Juventus, terceira colocada na Itália, e com ampla participação internacional. É significativo notar que a equipe representante da Itália na Copa Mitropa deste ano, a Lazio, tinha se classificado atrás da Juventus no campeonato nacional de 1950-51. É possível argumentar que a Juventus deu preferência ao torneio no Brasil do que à competição centro-europeia. Mas, aparentemente, a Copa Latina era a principal competição de clubes para as equipes italianas. 

Já na França, a Copa Rio recebeu o Nice,  campeão do país na última temporada, com participação frequente nas representando o país em competições internacionais. Já na Copa Latina, o país foi representado pelo Lille, segundo lugar no campeonato francês de 50-51. Diferentemente do caso italiano, os franceses priorizam a Copa Rio e enviaram seu segundo lugar para a Copa Latina. 

Já em 1952, a Juventus recusou o convite para participar novamente da competição. A equipe, agora campeã italiana, deu preferência à Copa Latina, assim como o Milan havia feito no ano anterior. A Itália não enviou nenhuma equipe em seu lugar para essa edição. Apenas o Áustria Viena e o Sporting participaram de ambas as edições do torneio. Do Brasil, Fluminense e Corinthians eram os campeões estaduais presentes. Da América do Sul, o Penharol e o Libertad representavam o Uruguai e o Paraguai, respectivamente. O Racing, da Argentina, declinou o convite, tendo em vista que as relações esportivas entre Brasil e Argentina estavam rompidas nesse período. 

Da europa, além do Sporting e do Áustria Viena, dois clubes participaram do torneio. Da Suíça, o Grasshopper, que era o campeão nacional. O último participante europeu era uma equipe que vivia uma situação inusitada. O Saarbrücken era uma equipe alemã da região do Sarre, que no pós-guerra foi transformada em um protetorado separado da Alemanha ocidental até o ano de 1957. Proibido de participar do campeonato da Alemanha Ocidental, o Saarbrücken tinha vencido a segunda divisão do campeonato francês, e ficou afastado de competições oficiais até a temporada de 1951-52, quando pode ingressar na liga da alemanha Ocidental, junto com outras equipes do Protetorado do Saar. Neste ano, a equipe se sagrou vice-campeã do campeonato alemão, atrás do Stuttgart.

Vemos assim que, ainda que contasse com algumas equipes de renome e com títulos nacionais em seus países, a Copa Rio esteve longe de atrair para o Brasil as principais equipes europeias e de realmente representar um campeonato mundial de clubes. Sua segunda edição, em 1952, teve participação de equipes ainda menos proeminentes no cenário europeu, apesar da maior participação de equipes sul-americanas. Apesar do discurso produzido localmente por jornalistas brasileiros, a competição não era encarada pelas equipes europeias como um campeonato mundial. A participação das grandes equipes europeias era escassa, seja devido à falta de interesse comercial ou esportivo no evento. 

Isso não significa dizer, no entanto, que a Copa Rio foi uma competição sem importância. Ela foi, indubitavelmente, um empreendimento inovador e ousado para sua época. Uma tarefa hercúlea de organização que conseguia, com todas as limitações de seu tempo, unificar calendários e superar barreiras para ter em solo brasileiro equipes da Europa e da América do Sul. A Copa Rio pode não ter representado um título mundial para seus campeões, mas foi o primeiro campeonato intercontinental de clubes e deve ser lembrada com orgulho por isso. 


Imagens de Pelé na Literatura de Cordel

01/04/2024

Elcio Loureiro Cornelsen

No universo do cordel, determinadas figuras míticas servem de inspiração para a composição poética de inúmeros folhetos. Pela própria origem e difusão da Literatura de Cordel, personagens do Nordeste são as que mais habitam tal universo, entre elas, Lampião e Maria Bonita, figuras proeminentes do cangaço, o Padre Cícero Romão Batista – o carismático Padim Ciço da devoção popular, Antônio Conselheiro, líder espiritual e fundador do arraial do Belo Monte, que ficou mais conhecido pelo topônimo de Canudos, e Luiz Gonzaga – o “Rei do Baião”.

Quando pesquisamos a presença do futebol na Literatura de Cordel, constatamos que, em maior ou menor grau, algo semelhante também ocorre com figuras de destaque do futebol brasileiro, especialmente em relação a dois astros da bola, que atuaram em clubes do Sudeste e também na Seleção Brasileira: Garrincha e Pelé. São vários os folhetos de cordel que trazem imagens desses dois craques, da “Era de Ouro” do futebol brasileiro, que, por assim dizer, também colaboram para sua cristalização, como figuras míticas. Neste breve estudo, apresentaremos cinco folhetos de cordel, nos quais imagens de Pelé, “Rei do Futebol”, são construídas em versos de poetas populares: Peleja de Garrincha com Pelé (1965), de Antônio Teodoro dos Santos; A discussão de Pelé com Roberto Carlos (197-) e A despedida de Pelé (1971), ambos de José Soares; A história do Rei Pelé (1979), de Elias Alves de Carvalho; O quebra-pau entre Pelé e Maradona (2011), de Zé do Jati.

Uma “peleja” entre dois astros do futebol brasileiro e mundial

Iniciaremos nossas conjecturas acerca da construção de imagens poéticas de Pelé na Literatura de Cordel com o folheto Peleja de Garrincha com Pelé (1965), do repentista e cordelista baiano Antônio Teodoro dos Santos (1916-1981), o “Poeta Garimpeiro”, original do município de Senhor do Bonfim, que se radicou em São Paulo nos anos 1950 e se tornou um dos principais escritores que publicavam suas obras pela Editora Prelúdio. Autor de diversos folhetos, entre outros, Lampião, o rei do cangaço, João Soldado: o valente que meteu o diabo em um saco, Maria Bonita, a mulher cangaço, e Vida e tragédia do Presidente Getúlio Vargas, Antônio Teodoro dos Santos foi um dos cordelistas de grande sucesso, merecendo até mesmo atenção de um dos maiores estudiosos da Literatura de Cordel, o francês Raymond Cantel (1914-1986), diretor do Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Sorbonne, detentor de uma vasta coleção particular de folhetos que, hoje, compõem o acervo de Literatura de Cordel, na Universidade de Poitiers, certamente, o maior acervo fora do Brasil.

O folheto de cordel Peleja de Garrincha com Pelé é bem longo, possui 119 estrofes em sextilhas, métrica em redondilha maior, de sete sílabas poéticas, e rima nos versos pares, como é o padrão em termos formais. Para termos uma ideia, os chamados “folhetos noticiosos” ou “folhetos de circunstâncias”, que costumam se originar de reportagens jornalísticas sobre eventos ou celebridades que ocupam a mídia, possuem, em geral, até 32 estrofes, correspondente a 08 páginas, de acordo com a dobradura do papel, enquanto o folheto Peleja de Garrincha com Pelé possui 32 páginas. Por isso, ele estaria mais próximo do gênero “romance”, conforme pensado no universo do cordel, em que se reserva um maior espaço para determinados temas e figuras.

Um primeiro aspecto a levarmos em consideração é o ano em que esse folheto foi lançado pela editora Prelúdio, de São Paulo: 1965. Podemos, portanto, considerar que ambos os protagonistas – Pelé e Garrincha – já eram nomes destacados no universo do futebol, tanto no cenário nacional como internacional. Ambos já haviam se sagrado campeões mundiais, o jovem Pelé protagonizara a conquista do Mundial de 1958, na Suécia, enquanto Garrincha fora o grande nome da conquista do bicampeonato mundial em 1962, no Chile, quando Pelé se lesionara logo na primeira partida do torneio e desfalcara a Seleção Brasileira.

Além disso, Pelé e Garrincha eram os principais jogadores de seus clubes, o Santos Futebol Clube e, respectivamente, o Botafogo de Futebol e Regatas. Não é por acaso que a capa do folheto Peleja de Garrincha com Pelé exiba a figura dos dois, em uniforme de seus clubes, e cada um segura uma viola, enquanto colocam os pés sobre uma única bola (Fig. 1). “Peleja”, por assim dizer, forma um ciclo temático na Literatura do Cordel, em que pode aparecer na forma de “desafio”, “cantoria”, “disputa”, “duelo”, “encontro” ou “discussão”. E o futebol, em seu caráter agonístico, parece se ajustar bem a esse ciclo temático, basta vermos alguns títulos de folhetos: A discussão do corinthiano com o flamenguista, O duelo do galo e da raposa, O quebra-pau entre Pelé e Maradona, Duelo violento Vasco x Flamengo, e A discussão do pó-de-arroz com o urubu. Por os craques estarem segurando violas na capa, nota-se que há uma influência dos duelos de violeiros e repentistas no cancioneiro popular.

Fig. 1: capa do folheto Peleja de Garrincha com Pelé (disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176 )

Em Peleja de Garrincha com Pelé, o poeta se apresenta aos craques como aquele que os reverencia, e que seria “inábil” para a prática do futebol: “Licença reis do gramado/ Seu Garrincha e seu Pelé/ Perdão chutar de caneta/ Pois sou dormente do pé/ Mas o mundo é uma bola/ Todos sabemos que é” (SANTOS, 1965, p. 3). Trata-se, entretanto, de uma “peleja” “sem rivalidade” entre os craques: “Pretendo na minha trova/ Honrar a capacidade/ Dos dois craques brasileiros/ Dotados de qualidade/ Coroados, aplaudidos/ E não têm rivalidade” (SANTOS, 1965, p. 4). Trata-se, pois, de um folheto laudatório de um poeta “trovador” em homenagem a essas duas estrelas máximas do futebol: “Camões no alto poema/ O mundo sabe que é/ Em milagres só Jesus/ O astro de Nazaré/ Porém no chute da bola/ Só seu Garrincha e Pelé” (SANTOS, 1965, p. 4).

Quando o “Rei do Futebol” e o “Rei da Jovem Guarda” discutem

Nosso segundo exemplo da construção poética de imagens de Pelé na Literatura de Cordel é o folheto intitulado A discussão de Pelé com Roberto Carlos, do cordelista José Soares (1914-1981), publicado nos anos 1970. Auto intitulado como “Poeta Repórter”, José Soares é um dos cordelistas que mais colaboraram com seus folhetos para tratar do tema do futebol. Um de seus folhetos, aliás, intitulado Futebol no inferno (1975), tornou-se famoso e integra algumas antologias poéticas. Entre os vários títulos, figuram os seguintes: A carreira do Sport com medo do Santa Cruz, Brasil Campeão do Mundo 1970, e Chegou o Santa, a máquina de fazer gols.

Como o título do folheto já indica, trata-se de uma discussão entre duas personagens icônicas no cenário cultural brasileiro – o “Rei do Futebol” e o “Rei da Jovem Guarda”. Cada um a seu modo fez jus a esses epítetos. Em termos temáticos, essa discussão se estabelece como uma “batalha”, algo comum no gênero cordel, e também no âmbito da música, como no repente e na embolada, gêneros musicais que dialogam com a poesia popular. Há célebres títulos, como A batalha de Oliveiros com Ferrabráz, de Leandro Gomes de Barros, A peleja do cego Aderaldo com Zé Pretinho, de Firmino Teixeira do Amaral, A peleja do solteiro com o casado, de Antônio Carlos de Oliveira Barreto, A discussão do crente com o cachaceiro, de Vicente Vitorino de Melo, A discussão do carioca com o pau-de-arara, de Apolônio Alves dos Santos, e O quebra-pau de Pelé com Maradona, de Anchieta Dantas, o Zé do Jati.

O folheto de cordel A discussão de Pelé com Roberto Carlos é composto por 30 estrofes em sextilhas, com versos em redondilha maior, de sete sílabas poéticas. Em sua capa, figuram uma foto de Roberto Carlos tocando violão, dos tempos da Jovem Guarda, e outra de Pelé, envergando a camisa do Santos Futebol Clube, time que o consagrou para o Brasil e o mundo (Fig. 2).

Fig. 2: Capa do folheto A discussão de Pelé com Roberto Carlos (disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176 )

Logo de início, o poeta enuncia o encontro com os dois “Reis”: “Viajei para São Paulo/ Cheguei na Praça da Sé/ Entrei no Bar dos Artistas/ Para tomar um café/ Encontrei Roberto Carlos/ Discutindo com Pelé” (SOARES, s/d, p. 1). As duas personagens ilustres desse folheto estavam ali, no Bar dos Artistas, segundo os versos do poeta, “Pelé defendendo a bola/ E Roberto o iê iê iê” (SOARES, s/d, p. 1). Fazendo uso da liberdade ficcional, o poeta apresenta uma discussão inverossímil entre Pelé e Roberto Carlos, fazendo com que as duas personagens apresentem falas marcadas pelos mais diversos preconceitos, conforme os versos da seguinte estrofe: “No futebol hoje em dia/ Tem gente da alta roda/ Cabelo grande é nojeira/ Iê iê iê caiu da moda/ Você canta essa besteira/ O povo nem se incomoda” (SOARES, s/d, p. 4). Respondendo ao Rei do Futebol, o Rei da Jovem Guarda, assim replicaria nos versos de José Soares: “Roberto disse a Pelé/ Quando chego n’uma praça/ Moça bonita me beija/ Mulher casada me abraça/ No campo tu bota força/ E ainda joga de graça” (SOARES, s/d, p. 4).

Entretanto, a querela entre os dois toma um rumo de apaziguamento nas últimas três estrofes do folheto. A antepenúltima traz em seus versos a voz de Pelé: “Veja que eu viajei/ Em todo país mercantil/ Joguei e dei show de bola/ Só de gol fiz mais de mil/ Você é Rei eu sou Rei/ Viva nós e o Brasil!” (SOARES, s/d, p. 8). E na última estrofe, ao Rei da Jovem Guarda são reservadas pelo poeta as palavras finais, em que se instaura o jargão do futebol para decretar uma “peleja” sem vencedores: “Roberto Carlos lhe disse/ Aqui na Praça da Sé/ Comigo você não briga/ Briga de Rei não dá pé/ Nosso jogo foi empate/ Muito obrigado Pelé” (SOARES, s/d, p. 8).

O “Rei do Futebol” se despede da Seleção

Nosso terceiro exemplo da construção poética de imagens de Pelé na Literatura de Cordel é o folheto A despedida de Pelé (1971), também de autoria do cordelista paraibano José Soares, o “Poeta Repórter”. Ele é composto por 30 estrofes em sextilhas, com métrica em redondilha maior, de sete sílabas poéticas, e com rimas nos versos pares. O folheto apresenta em sua capa o nome do autor, o título com destaque em letras garrafais para a palavra “Pelé”, uma reprodução fotográfica do “Rei do Futebol”, aliás, o mesmo clichê da capa do folheto A discussão de Pelé com Roberto Carlos, envergando a camisa do Santos Futebol Clube, e a legenda contendo seu nome: Edson Arantes do Nascimento. Ao lado da fotografia, figura um desenho da Taça Jules Rimet flanqueada por ramos de louro, e cinco flores de cinco pétalas (Fig. 3).

Fig. 3: Capa do folheto A despedida de Pelé

(disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176 )

Conforme pudemos observar, até o presente momento, em nosso estudo sobre Literatura de Cordel, é comum que cordelistas reajam a determinados eventos que ganham ampla divulgação nos meios de comunicação de massa. Esse é o caso do folheto A despedida de Pelé, que faz alusão à despedida do “Rei do Futebol” da Seleção Brasileira. Ela ocorreu em dois amistosos realizados em julho de 1971, um no Estádio do Morumbi em São Paulo, contra a Seleção da Áustria, e outro no Estádio do Maracanã no Rio de Janeiro, contra a Seleção da Iugoslávia. Na época, Pelé estava com 30 anos de idade, despedindo-se cedo da camisa amarelinha.

Em A despedida de Pelé, o poeta popular enaltece aquele que é considerado o “Atleta do Século”. Em tom humorado e, ao mesmo tempo, religioso, seus versos configuram-se por um discurso laudatório, como podemos constatar nas duas primeiras estrofes: “Soares, Pelé e Cristo/ Nasceram pra fazer o bem/ Entre o Pelé e o Cristo/ A diferença que tem/ Pelé nasceu no Brasil/ Cristo nasceu em Belém// Soares é um atolado/ Mais não pega no alheio/ Cristo é o papai do céu/ Pelé não tem aperreio/ Soares vendeu fiado/ Lascou-se de meio a meio” (SOARES, 1971, p. 1). Os espaços do profano e do sagrado marcam a distinção entre ambos, em uma relação corrente entre religião e futebol: “No céu o Cristo perdoa/ Aqui Pelé dá esmola/ Os dois são ídolos do povo/ Um combina outro controla/ No céu Cristo faz milagres/ Aqui Pelé joga bola” (SOARES, 1971, p. 1).

Em alguns versos de A despedida de Pelé, o próprio craque ganha voz para justificar a sua decisão: “Pelé deixa a Seleção/ Porque os tempos chegaram/ Motivos sobvieram/ Recaíram e demoraram/ A decisão que tomei/ Outros atletas tomaram// […] Vou deixar a Seleção/ Mais vou deixar sem querer/ Eu vivo muito ocupado/ Tenho muito o que fazer/ A torcida do Brasil/ Deve me compreender” (SOARES, 1971, p. 3).

Por fim, não faltam os apelos do poeta popular para que o “Rei do Futebol” reconsidere sua decisão de despedir-se da Seleção: “Veja bem o Brasileiro/ Da Copa do Mundo é Tri/ Volte para a seleção/ Quem quer é o povo aqui/ Um abraço pra você/ Qualquer coisa estou aqui// Pelé disse que já fez/ Promessa com São Moisés/ Para quando ele morrer/ Levar a bola nos pés/ E em cima do caixão/ Levar a camisa 10” (SOARES, 1971, p. 4-5).

Um craque fora de série que entra para a história do futebol brasileiro e mundial

O quarto exemplo da construção poética de imagens de Pelé na Literatura de Cordel é o folheto de cordel História do Rei Pelé (1979), do cordelista pernambucano Elias Alves de Carvalho (1918-198?), entre outros, autor de folhetos como O drama de um nordestino (1982), O monstruoso crime de Montes Claros (1983), Dadá e a morte de Corisco (1983), As divindades lendárias e a vida dos mortais (1984), e Tancredo – mensageiro da esperança (1985).

O folheto História do Rei Pelé, em termos formais, se assemelha ao gênero “romance” na Literatura de Cordel, o qual se diferencia dos folhetos de “circunstância” por sua dimensão, pois é quatro vezes mais longo, o que se reflete no número total de estrofes, 127, como septilhas, e métrica em redondilha maior, com sete sílabas poéticas. Em geral, um “romance” é destinado a tratar de casos memoráveis e de figuras míticas. Esse é o caso de Edson Arantes do Nascimento, Pelé, que se consagrou no universo do futebol como o maior jogador de todos os tempos, uma história de “vida e bravuras”, como indica o subtítulo do folheto (Fig. 4).

Fig. 4: Capa do folheto História do Rei Pelé

(disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176 )

A primeira estrofe de História do Rei Pelé indica certo tom religioso como procedimento inicial de construção de um discurso epidítico de louvor e enaltecimento à figura de Pelé: “Foi ao homem que o Senhor/ deu a sua semelhança,/ inteligência, razão,/ mente, amor, perseverança,/ alma e personalidade,/ em troca de humildade,/ de fé e de esperança” (CARVALHO, 1979, p. 1). Logo em seguida, o poeta se apresenta como aquele que assume para si o desafio de decantar em seus versos tão nobre figura, digna de superlativos: “Orgulhoso e confiante/ concentro a força mental/ prá descrever o valor/ dum ídolo internacional/ considerado em seus feitos/ um dos seres mais perfeitos/ do esporte mundial” (CARVALHO, 1979, p. 1).

Sem dúvida, trata-se de um grande desafio decantar em versos a trajetória daquele que ascendeu ao panteão dos grandes nomes do futebol brasileiro e mundial. Elias Alves de Carvalho assumiu para si tal desafio e procurou apresentar as principais estações na vida do craque do Santos Futebol Clube e da Seleção Brasileira, iniciando, cronologicamente, por seu nascimento: “Foi no ano de 40/ numa cidade mineira/ chamada Três Corações,/ que duma família ordeira/ nascia para o esporte/ o personagem mais forte/ da seleção brasileira” (CARVALHO, 1979, p. 2). Ao apresentar a origem de Pelé, o poeta não deixa de mencionar as agruras de seu pai, que também fora jogador e o iniciara no futebol: “Foi Dondinho, pai de Edson/ Arantes do Nascimento,/ um jogador que no campo/ não conseguiu seu intento./ Talvez por falta de sorte/ só logrou daquele esporte/ dissabor e sofrimento” (CARVALHO, 1979, p. 2).

Na infância, Pelé nutriria um verdadeiro amor pela bola, seu precioso e inseparável brinquedo, que, mais tarde, se tornaria sua eterna companheira nos gramados afora: “Pelé desde pequenino/ era um amante da bola./ Primeiro bola de meia/ dentro da sua sacola,/ aonde quer que estivesse,/ embora a mãe não quisesse/ levava até pra escola” (CARVALHO, 1979, p. 2).

E, assim, Dico, como era o primeiro apelido de Pelé, ia crescendo e jogando no time do bairro em Bauru, cidade do interior de São Paulo para onde a família se transferira quando o futuro “Rei do Futebol” ainda era criança de colo. Jogando pelo Sete de Setembro, Pelé chamaria à atenção de todos: “No fim do campeonato,/ no jogo de decisão,/ Pelé jogou como nunca/ e o time foi campeão./ Ganhou aplausos, louvores/ e dinheiro invés de flores/ no calor da aclamação” (CARVALHO, 1979, p. 6).

Entretanto, logo os terrenos baldios e os campinhos de Bauru ficariam pequenos para a exibição daquele virtuose com a bola nos pés. Descoberto pelo ex-jogador Waldemar de Brito (1913-1979), Dico deixaria a família e o clima do interior para ganhar o mundo: “Saiu de casa Pelé/ entre soluços e prantos,/ seguiu de trem com Dondinho/ levado pelos encantos./ Em São Paulo, ao chegar/ juntou-se com Valdemar/ dali seguiram pra Santos” (CARVALHO, 1979, p. 7). O resto é história de um mito…

A celebre questão: Quem é melhor, Pelé ou Maradona?

Por fim, nosso quinto e exemplo da construção poética de imagens de Pelé na Literatura de Cordel é o folheto O quebra-pau entre Pelé e Maradona (2011), do cordelista José Anchieta Dantas Araújo, conhecido pelo nome artístico de Zé do Jati. Natural de Jati, no Estado do Ceará, Zé do Jati destacou-se, primeiramente, em um programa de humor, na TV Diário em Fortaleza. Irreverente, o poeta levaria o humor e a sátira também para seus versos, registrados em inúmeros folhetos, entre outros, A guerra contra o mosquito da dengue, Coxinha: a autarquia da falsidade, O homem animal e a geografia da mulher, e Seu Lunga, o campeão da ignorância.

Nas capas de seus folhetos, sempre há uma mensagem que alude ao humor e ao riso: “Rir ainda é o melhor remédio!”, “Pense em rir algumas horas” e “Pense em rir até umas horas!” são algumas dessas expressões que marcam o tom de seus versos. Na capa de O quebra-pau entre Pelé e Maradona há um desenho de autoria de Cláudio Bezerra, em que estão retratados, de maneira caricata, os dois protagonistas: Enquanto o “rei do futebol” sorri e exibe uma coroa em sua cabeça, o craque argentino apresenta uma expressão de desapontamento, como se tivesse sido derrotado no duelo da bola (Fig. 5). Como era de se esperar, esse folheto pauta-se justamente sobre uma questão recorrente no mundo do futebol: Quem seria melhor, Pelé ou Maradona? Aliás, essa questão foi ampliada em 2022, integrando também o craque argentino Lionel Messi.

Fig. 5: Capa do folheto O quebra-pau entre Pelé e Maradona (ARAÚJO, 2011, p. 94)

Em O quebra-pau entre Pelé e Maradona, inicialmente, o espaço da disputa se daria na Internet, em uma enquête realizada: “Mas Maradona contratou/ Com a sua assessoria/ Gente boa da internet/ Que usa de mutretaria/ Para tirar de Pelé/ De rodão de rapa-pé/ O título que ele continha” (ARAÚJO, 2011, p. 96). Aliás, conforme podemos notar nesses versos, esse folheto é composto por estrofes em septilhas, métrica em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, e rimas alternadas no 2º, no 4º e no 7º verso, e rimas paralelas no 5º e no 6º verso.

A cena inicial de O quebra-pau entre Pelé e Maradona marca, justamente, uma suposta falcatrua realizada na internet, que teria decretado um empate entre os dois na enquete. O poeta, então, se apresenta aos leitores como testemunha que iria esclarecer o ocorrido: “E o título foi dividido/ Na maior insensatez/ Mas, para o mundo, é sabido/ O que um e outro fez/ E na entrega do troféu/ Tudo o que aconteceu/ Eu vou contar pra vocês” (ARAÚJO, 2011, p. 97).

Por assim dizer, a suposta rivalidade entre Brasil e Argentina, pelo menos no futebol, se concretiza de modo acirrado nessas duas personagens, poeticamente construídas nesse folheto de cordel. Ambas as personagens são constituídas a partir de determinados atributos, sendo que o discurso epidítico elogioso é reservado a Pelé, enquanto o discurso epidítico de rebaixamento é atribuído à figura de Maradona, com expressões de preconceito mutuo. O folheto se estrutura feito um repente, em que as duas personagens duelam verbalmente, conforme podemos verificar nas seguintes estrofes que aludem ao famoso gol de mão – “la mano de dios” – marcado pelo craque argentino na Copa de 1986, em partida disputada entre as seleções da Argentina e da Inglaterra: “Maradona inconformado/ Falou pra Pelé então:/ ― Tu fez gols tão diferentes/ Que causam grande impressão/ Mas num relato profundo/ Valendo Copa do mundo/ Tu não fez um gol de mão// […] Pelé disse: ― Maradona/ Pra que tanta vibração? ― Por isso é que tua fama/ É de má reputação/ Aquela cena chocou/ E a imprensa confirmou:/ Isso é coisa de ladrão” (ARAÚJO, 2011, p. 99).

Na última estrofe de O quebra-pau entre Pelé e Maradona, para se eximir de qualquer crítica a respeito, o poeta popular se vale de um testemunho para ratificar a veracidade (inverossímil) do “quebra-pau”: “Me contou um jornalista/ Quem merece muita fé/ Que essa discussão se deu/ Com Maradona e Pelé/ E tudo aqui é verdade/ Digo com honestidade/ Acredite se quiser…” (ARAÚJO, 2011, p. 104).

Construção poética de imagens de Pelé na Literatura de Cordel – a guisa de conclusão

Neste breve estudo, trouxemos apenas cinco exemplos, dentre vários outros que poderiam servir igualmente de base para a análise da construção poética de imagens de Pelé na Literatura de Cordel. Entretanto, consideramos que esse conjunto é exemplar, pois evidenciam alguns padrões em tal construção. Em três deles – A peleja de Garrincha com Pelé (1965), A discussão de Pelé e Roberto Carlos (197-) e, respectivamente, O quebra-pau entre Pelé e Maradona (2011) –, o “Rei do Futebol” é confrontado com outras célebres personagens do futebol – Garrincha e Maradona – e com outro “Rei”, o da Jovem Guarda, que ocupava (e ainda ocupa) a mídia – Roberto Carlos. Todavia, a relação entre tais figuras se estabelece de maneira distinta, embora se configurem como enfrentamentos verbais de cunho poético, típicos da Literatura de Cordel e do cancioneiro popular: “peleja”, “discussão” e “quebra-pau”. Nesses encontros inverossímeis, frutos da inspiração dos poetas, Pelé se defronta amistosamente com seu companheiro de Seleção Brasileira e do panteão do futebol, Manoel Francisco dos Santos (1933-1983), o Mané Garrincha, mas discute de modo veemente e preconceituoso com o cantor e compositor Roberto Carlos (1941*), chegando à discussão acalorada – o “quebra-pau” – com Diego Armando Maradona (1960-2020), em torno da célebre questão sobre o direito de usar a coroa de “Rei do Futebol”.

Por sua vez, os outros dois exemplos – A despedida de Pelé (1971) e História do Rei Pelé (1979) – focam muito mais em questões biográficas, em dois momentos específicos da carreira de Edson Arantes do Nascimento (1940-2022): sua despedida da Seleção Brasileira em 1971 e, respectivamente, dos gramados, após ter deixado o clube norte-americano New York Cosmos em 1977. Sem dúvida, alguns desses folhetos se originaram de eventos específicos e expressam certo viés jornalístico no tratamento poético dos temas. Um Mestre nesse assunto foi José Soares, Patrono da Cadeira nº 37 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), que não recebeu a alcunha de “Poeta Repórter” por acaso. Já Zé do Jati é um Mestre do humor na Literatura de Cordel. Todos, a sua maneira, dedicaram versos àquele que permanece como um dos maiores atletas brasileiros de todos os tempos, senão o maior, uma figura mítica, decantada em verso, prosa, canção e imagem, que ocupa o seleto panteão do futebol.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, José Anchieta Dantas [Zé do Jati]. O quebra-pau entre Pelé e Maradona (2011). In: ARAÚJO, José Anchieta Dantas [Zé do Jati]. Seu Lunga, o campeão do mau humor e outras histórias divertidas. São Paulo: Editora Clio, 2012, p. 93-104.

CARVALHO, Elias Alves de. História do Rei Pelé. Petrópolis, RJ: Ed. do Autor, 1979.

SANTOS, Antônio Teodoro dos. A peleja de Garrincha com Pelé. São Paulo: Ed. Prelúdio, 1965.

SOARES, José. A despedida de Pelé. Recife, PE: Ed. do Autor, 1971.

SOARES, José. A discussão de Pelé e Roberto Carlos. s/l: Ed. do Autor, s/d.


A naturalização da barbárie: a cultura dos “parças” e a permissividade no âmbito hostil do futebol

28/03/2024

por Eduardo Gomes (eduardogomes.historia@gmail.com)

No último domingo, 24 de março de 2024, acordei com o efervescer das prisões de Rivaldo Barbosa e dos irmãos Chiquinho Brazão e Domingos Brazão, todos envolvidos com os assassinatos da então vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e de seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018.

Outros possíveis nomes envolvidos com esse bárbaro episódio, ainda seguem sendo investigados, tendo no mesmo domingo sido cumpridos doze mandados de busca e apreensão. Dentro de uma perspectiva em que possamos pensar o Estado Democrático de Direito, esse é um ponto de avanço importante no que tange a resolução do caso das mortes de Marielle e Anderson. Como afirmou Marcelo Freixo, ex-deputado federal e estadual pelo RJ e atual presidente da Embratur, em declaração publicada no portal Uol, “[…] a prisão dos irmãos Brasão e do Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, deixa claro quem matou, quem mandou matar e quem não deixou investigar. Esse é um ponto importante para explicar porque ficamos seis anos de angústia”.

Tal situação nos permite refletir, também, outras formas de violência contra as mulheres que ultimamente estão sendo debatidas e que ocorreram no âmbito do futebol. Os casos das condenações recentes dos ex-jogadores Daniel Alves e Robinho, tal como a condenação, agora prescrita, do atual treinador e também ex-jogador Cuca, todos relacionados a crimes de estupro contra mulheres, nos permite refletir de várias formas como o mundo do futebol ainda se caracteriza como sendo um espaço culturalmente marcado pela naturalização do machismo, do corporativismo exacerbado (a camaradagem dos “parças”) e do preconceito como pontos normalizados.

Uma demonstração dessa cultura do “passar pano” no âmbito do futebol, são as declarações já dadas por Tite (ex-treinador da seleção brasileira e atual técnico do Flamengo, ambos no futebol masculino) ao abordar o caso Daniel Alves; Dorival Júnior (atual treinador da seleção brasileira de futebol masculino), notadamente ao falar sobre o caso Robinho; e Cuca (atual treinador do time masculino do Athletico-PR) ao problematizar o próprio caso.

Em todos esses ocorridos, como veremos, é de se destacar a priori como as narrativas se basearam na diminuição e relativização dos fatos acerca dos crimes cometidos, mesmo se tratando de violências sexuais explícitas sofridas por mulheres e julgadas pela justiça dos países em que ocorreram (Espanha, no caso Daniel Alves; Itália, no caso Robinho; e Suíça, no caso Cuca e companhia). O fato de serem três nomes de considerável relevância no âmbito do futebol brasileiro e/ou mundial, fez com que tais assuntos fossem ainda mais problematizados e refletidos no contexto social atual.

Iniciando a análise pelo “caso Daniel Alves”, o badalado ex-jogador da seleção brasileira e com passagens por clubes como Barcelona-ESP, Sevilla-ESP, Juventus-ITA, Paris Saint-Germain-FRA, Bahia, São Paulo e Pumas-MEX, foi condenado por um crime cometido em Barcelona no dia 30 de dezembro de 2022, após agredir sexualmente uma mulher de 23 anos no banheiro de uma boate. Para além de diversos absurdos, como o pagamento de uma fiança que garantiu a liberdade provisória ao atleta mesmo após ser condenado a 4 anos e meio de prisão, Daniel ainda contou com uma “ajudinha dos parças”, como Neymar da Silva Santos (ou, “Neymar pai”, pai do atleta Neymar Jr., ex-companheiro de Daniel Alves no Barcelona, PSG e seleção brasileira), que o emprestou 150 mil euros e colaborou para a diminuição de sua pena. Ao portal CNN Brasil, Neymar pai afirmou que

A família nos pediu ajuda. O Daniel não tinha dinheiro para se defender, e o prazo para o pagamento da defesa estava expirando. Pense bem, em nenhum momento, eu podia negar ajuda a um amigo que está tentando se defender de uma acusação

https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/neymar-pai-confirma-auxilio-financeiro-a-daniel-alves-ajuda-a-um-amigo/

Mesmo com todas as evidências claras de um julgamento que publicamente explicitava as incoerências de Daniel Alves e sua culpabilidade no crime, Neymar pai estabeleceu que a “amizade” com o atleta valia mais que os parâmetros éticos que se relacionavam com o crime cometido pelo ex-lateral, destacando ser justificável o empréstimo de dinheiro que resultou no pagamento de uma taxa denominada pela justiça espanhola como “atenuante de reparação de dano causado”, o que consequentemente estabeleceu, também, o caminho para a diminuição da pena no veredito final posterior.

Essa permissividade no mundo do futebol é algo tão latente que, mesmo dentre aqueles que esperamos uma maior racionalização do olhar e, consequentemente, uma opinião mais crítica e com base social, vemos um mantimento desse mundo naturalizado e caracterizado pelo preconceito, solidificando uma estrutura machista e hostil que ronda os espaços desse esporte.

Um exemplo foi a declaração de Adenor Leonardo Bachi, o Tite, hoje treinador do Flamengo. Ao comentar o caso do ex-lateral, Tite destacou que só poderia comentá-lo “conceitualmente”, mesmo com a condenação de Daniel já efetivada:

[…] Eu não posso fazer julgamento sem ter todos os fatos e as informações verdadeiras a respeito. Posso falar conceitualmente. Conceitualmente, todo erro deve ser punido. Mas não sou julgador e não tenho todos os fatos. Fora que há uma etapa de um profissional que trabalhou comigo e existem outras etapas profissionais e pessoais que ele também exerce. Essas eu não conheço e não posso julgar, tenho que ter muito cuidado. Vou dizer mais: quando fui numa coletiva que houve um problema com Neymar, foram 24 perguntas, tive que responder 18 a respeito de um suposto (estupro). E eu disse a mesma coisa, que eu não tinha conhecimento aprofundado. Mas quem erra deve ser punido. Foi assim que eu fui educado. Primeiro te ensino, segundo tu é punido para que aprenda.

https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2024/02/25/tite-cita-nao-ter-todas-as-informacoes-do-caso-daniel-alves-mas-diz-todo-erro-deve-ser-punido.ghtml

Mesmo tendo se arrependido dias depois e explicitado que a comparação que fez do caso de Daniel Alves com o de Neymar era inapropriada, já que o ex-lateral foi efetivamente condenado e não se tratava apenas de uma acusação que poderia não ter fundamento, a fala a priori estabelecida por Tite explicita essa “autoproteção” existente no mundo do futebol, que faz com que muitos dos envolvidos no campo, além de pouco politizados, relativizem casos como esse e “passem pano” com base nas relações que vivenciaram. Foi fazendo referência a essas relações de trabalho, que Tite citou ter tido com Daniel, que o hoje treinador rubro-negro saiu pela tangente ao comentar o crime cometido pelo jogador. Nessa mesma linha, Dorival Júnior, treinador da seleção brasileira, também evitou aprofundar olhares sobre os casos e ainda disse, especificamente sobre Robinho, que o ex-atleta é uma “pessoa fantástica”.

Robinho foi um atacante de destaque, tendo logo em seu início de carreira alcançado grande visibilidade pelos dois títulos brasileiros conquistados atuando pelo Santos, em 2002 e 2004. Suas famosas pedaladas o levaram para diversos outros clubes de relevância nacional e mundial, como Real Madrid-ESP, Manchester City-ING, Milan-ITA, Guangzhou Evergrande-CHI, Atlético Mineiro, Sivasspor-TUR e Istanbul-TUR.

O atleta, que ainda disputou duas Copas do Mundo (2006 e 2010) pela seleção brasileira, tal como outras muitas competições, foi condenado a nove anos de prisão pela participação no estupro coletivo de uma mulher em uma boate de Milão, Itália, no ano de 2013.

Em entrevista concedida antes de sua estreia como técnico da seleção brasileira no último sábado (23), onde venceu por 1×0 a Inglaterra em amistoso disputado em Wembley, Dorival Júnior também se esquivou de respostas mais concretas e profundas ao ser questionado sobre os crimes cometidos por Robinho e Daniel Alves. Assim como Tite, se tratando de Daniel Alves, Dorival se apegou ao passado em que trabalhou com Robinho e chegou a destacar ser o ex-atacante, agora um criminoso preso por estupro, uma “pessoa fantástica”, como podemos conferir em parte de sua declaração abaixo:

Como treinador da Seleção, tenho obrigação de me manifestar. Primeiro, acho que é uma situação muito delicada. O Robinho foi meu atleta, uma pessoa fantástica, um profissional desses, dentro da nossa convivência, acima da média. Não tive oportunidade de trabalhar com o Daniel, mas a história dele dentro do futebol todos nós conhecemos. Fico, naturalmente, até… É um momento difícil para nós expressarmos toda e qualquer situação. Primeiro eu penso nas famílias das pessoas envolvidas e principalmente das vítimas envolvidas nesses episódios, que acontecem diariamente no nosso país e em todo mundo e que, de repente, não são abordados, são abafados porque as pessoas não têm voz. Se houve realmente e comprovado algum tipo de crime, ele tem que ser penalizado. Por mais que doa no meu coração falar disso a respeito de uma pessoa com quem tive um convívio excepcional

https://ge.globo.com/futebol/selecao-brasileira/noticia/2024/03/22/dorival-junior-comenta-condenacoes-de-daniel-alves-e-robinho-olho-muito-mais-pelas-vitimas.ghtml

Visões como as de Tite e Dorival Júnior, dois dos últimos três treinadores da seleção brasileira, explicam muito do porquê o mundo do futebol brasileiro ainda é caracterizado por uma estrutura que naturaliza o machismo, os preconceitos e a desigualdade de gênero e racial. Mesmo daqueles que esperaríamos um posicionamento mais refinado e crítico, dada a experiência, formação e posição de liderança que ocupam, vemos análises rasas e “em cima do muro” acerca de temas que, moralmente falando, deveríamos sempre prezar por posicionamentos mais enfáticos e combativos.

As falas de Dorival, por exemplo, ao ignorar a condenação de Robinho e o referendar como uma pessoa “fantástica”, questionando inclusive se houve ou não crime (mesmo com todas as evidências já publicamente destacadas), explicitam mais que uma ausência de opinião sobre o tema, um posicionamento conivente com o caso em si (o que se torna ainda pior).

Outro caso que podemos citar como exemplo é o de Alexi Stival, o Cuca. Atual treinador do Athletico-PR, Cuca é um profissional multicampeão, tendo dentre outros títulos ganho uma Copa Libertadores da América e dois Brasileirões. Já comandou equipes gigantes do futebol nacional, como São Paulo, Grêmio, Botafogo, Flamengo, Fluminense, Palmeiras, Santos, Atlético Mineiro, Cruzeiro, dentre outras.

Quando jogador, Cuca esteve envolvido no caso de estupro de uma jovem na Suíça, em 1987, quando seu então clube (o Grêmio) disputava uma competição amistosa na ocasião. Depois de um mês detido no país, Cuca retornou ao Brasil após pagamento de fiança e, mesmo tendo sido posteriormente condenado pela justiça suíça a 15 meses de prisão, nunca cumpriu tal pena.

Cuca foi um dos condenados no caso conhecido como “Escândalo de Berna”, por ter cometido o crime de violência sexual na Suíça.
Foto: Jornal Zero Hora, 01 de agosto de 1987.

Nos últimos anos, veio à tona no Brasil a condenação de Cuca. O treinador, a priori sempre se esquivando do tema, negava sua participação no caso. Quando assumiu o comando técnico do Corinthians em 2023, os debates acerca da temática se acirraram.

Após muita pressão, notadamente da torcida feminina do clube paulista e dos movimentos sociais, Cuca se demitiu do Corinthians com a promessa de provar sua inocência. Como, segundo a justiça suíça, sua condenação foi anulada devido a prescrição do crime, Cuca pôde retornar aos trabalhos e, finalmente, fez mea-culpa ao se pronunciar sobre o caso já como comandante do Athletico-PR:

Eu escolhi me recolher durante muito tempo, mas consegui seguir a minha vida, enquanto uma mulher que passa por qualquer tipo de violência não consegue seguir a vida dela sem permanecer machucada, carrega o impacto para sempre. Eu consegui seguir minha vida. O mundo do futebol e o mundo dos homens nunca tinha me cobrado nada, mas o mundo está mudando e eu acho que é para melhor. Não adianta eu ser um grande treinador, esposo, pai, avô, irmão, se eu não entender que o mundo é mais do que o futebol e que eu faço parte dessas coisas. Eu enxergava os problemas, mas me calei porque a sociedade permitia que eu, como homem, me calasse. Hoje entendo que o silêncio soa como covardia. Tenho buscado ouvir mais, entender mais, aprender mais. Não posso mudar o passado. Muitos homens agora me escutam e são capazes de olhar para o passado para rever suas atitudes. Sabemos que o mundo é um lugar diferente para os homens e mulheres, e quando enxergamos isso podemos até resistir, mas as coisas começam a mudar. Só que mudanças honestas e verdadeiras levam tempo, exigem dedicação, estudo, são dolorosas e desafiadoras. […] Eu pensei que eu estava livre da minha angústia quando solucionei meu problema com a anulação do processo e a indenização. Mas entendi que não acabou porque não dependia apenas da decisão judicial, mas que eu precisava entender o que a sociedade esperava de mim. O que vocês vão ver de mim daqui para frente não serão palavras, serão atitudes. Mas obrigado por me ouvirem hoje.

https://ge.globo.com/pr/futebol/times/athletico-pr/noticia/2024/03/10/o-que-a-sociedade-esperava-de-mim-cuca-faz-pronunciamento-sobre-condenacao-na-suica.ghtml

A verdade é que, mesmo louvável e necessária, a necessidade de realização da declaração acima citada só existiu pela ausência de falas sobre o tema no passado de Cuca. Independente de arrependimentos e sem desconsiderar possíveis esforços atuais, o que se percebe na fala dos três treinadores é um modus operandi que vai ao encontro da ideia, já consolidada no mundo do futebol, de não se “tocar em feridas” em casos tão polêmicos como esses.

Assim, Tite, Dorival e Cuca se esquivaram a priori de temas que são muito caros e que, nos espaços que ocupam, cada vez mais socialmente são esperados posicionamentos transparentes e que respeitem minimamente os Direitos Humanos. Não se trata de estabelecer cancelamentos, mas lembremos que, mesmo prescrito, o crime em que Cuca esteve envolvido existiu. E que nos casos de Daniel Alves e Robinho, estamos falando de condenações mais recentes em que se foram comprovadas com evidências claras as violências que ambos cometeram.

O primeiro passo para a quebra de preconceitos no mundo do futebol e, por consequência, o estabelecimento pedagógico de um olhar que lute contra preconceitos como o machismo, racismo, lgbtfobia, dentre outros que ainda ocorrem no âmbito desse esporte, é o de se estabelecer a quebra dessa cultura dos “parças” e de se tocar na ferida em temas sensíveis que muitas das vezes são colocados para debaixo dos tapetes, mas que ocorrem quase que diariamente na sociedade e devem ser abordados como forma de se estabelecer caminhos de luta e combate.

Referências

https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2024/03/23/caso-daniel-alves-mp-espanhol-entra-com-recurso-contra-liberdade-provisoria.ghtml

https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/13400572/daniel-alves-paga-fianca-consegue-liberdade-provisoria-justica-espanha

https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2024/03/02/tite-do-flamengo-pede-perdao-sobre-fala-em-caso-de-daniel-alves-comparacao-sem-sentido.ghtml

https://ge.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2024/02/25/tite-cita-nao-ter-todas-as-informacoes-do-caso-daniel-alves-mas-diz-todo-erro-deve-ser-punido.ghtml

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-brasil/2024/03/24/operacao-ajuda-a-entender-relacao-entre-crime-e-politica-diz-freixo.htm https://ge.globo.com/pr/futebol/times/athletico-pr/noticia/2024/03/10/o-que-a-sociedade-esperava-de-mim-cuca-faz-pronunciamento-sobre-condenacao-na-suica.ghtml


1920 e o raro depoimento da jogadora francesa de futebol Jeanne Brule

19/03/2024

Aira Bonfim

Março de 2024

Os registros mais antigos e documentados de partidas de futebol feminino estrangeiro, ou seja, realizados fora do Brasil, remontam ao final do século XIX, embora muitos desses marcos temporais sejam informais (não estão inscritos na documentação formal de ligas, entidades e clubes – masculinos – da época).

O Brasil também se insere numa história documental informal similar, fato que nos dificulta determinar a totalidade de eventos de futebol nas primeiras décadas do século XX. Na cena internacional, por exemplo, já há relatos de mulheres escocesas jogando futebol nas últimas décadas do século XIX, como nos eventos festivos entre as pescadoras de Musselburgh e Inveresk, em East Lothian[i].

No século XVIII, há registros de garotas escocesas brincando de jogar bola, numa condição menos institucionalizada e por isso, fora dos enfoques das pesquisas travadas na categorização da modalidade futebol como um esporte moderno, a partir do século XIX. É consensual entre os pesquisadores da área que a década de 1890 foi crucial para o desenvolvimento organizado e público das partidas de futebol feminino na Europa. Um dos marcos pioneiros remete ao dia 23 de março de 1895, quando as equipes femininas do Norte e Sul se enfrentaram no Crouch End Athletic Ground de Londres, diante de uma plateia curiosa de mais de 10 mil pessoas.

Apesar da escassez de notícias e documentação da época, o período foi caracterizado por uma maior participação feminina no cenário esportivo internacional. Em meio aos dilemas e receios masculinos costumeiramente expressos na imprensa, algumas notas indicam que, no exterior, muitas mulheres desafiaram ou questionaram os limites físicos estabelecidos em cada modalidade esportiva praticada na época.

O historiador Fausto Amaro[ii] oferece informações valiosas sobre esses grupos femininos dissidentes, revelando, por exemplo, que a recusa da participação feminina no atletismo dos Jogos Olímpicos levou anos mais tarde à organização de eventos paralelos exclusivos para mulheres em 1920 e 1921, no distrito de Monte Carlo. Esse desagravo resultou na criação da Federação Esportiva Feminina Internacional em 1917, responsável pela realização dos primeiros Jogos Mundiais Femininos[iii] em Paris, em 1922.

Na cena esportiva europeia do início do século XX, destacavam-se inclusive certames de futebol entre equipes de países como Inglaterra e França, que atraíam uma “numerosa e enthusiasmada assistência”, demonstrando o grande interesse dos torcedores pela novidade esportiva. Contudo, junto com a disseminação dessas notícias, surgiam inquietações na imprensa sobre a legitimidade do desenvolvimento do futebol feminino naqueles anos. Mas além de desafiar na prática, será que alguma atleta do futebol teve seu discurso dissidente registrado nas fontes da época?

Um exemplo desse raro tipo de expressão oriunda de uma mulher jogadora se deu na publicação espanhola Heraldo Desportivo[iv] de 1920, cujo repórter expressou preocupações com a presença de mulheres em um ambiente esportivo tradicionalmente masculino. Esses alertas provocaram a resposta de Jeanne Brule, uma atleta e jogadora de futebol francesa da época, que argumentou em defesa das mulheres praticantes do jogo.

Aqui vale dizer que é muito raro encontrar uma fonte primária que tenha registrado as palavras de personagens mulheres no esporte, e consequentemente, uma outra maneira de compreender os contextos esportivos e de lazer. Dito isso, vamos as palavras de Jeanne Brule!

A entrevista-resposta de Brule é relativamente extensa, sem cortes e recheada de ironias. Ela também faz considerações para além do esporte ao mencionar, por exemplo, o cenário vivido pelos países europeus e o papel das mulheres durante a I Guerra, questionando por que somente agora se duvidava da capacidade das mulheres para a prática esportiva.

Segundo Brule, durante a guerra, ninguém questionou na França se as mulheres tiveram seus corpos modificados ao trabalharem o mesmo tanto que alguns homens. De acordo com ela, “hoje as pessoas se perguntam se a constituição de uma mulher pode permitir atividade esportiva por uma hora por semana”.

O texto  da publicação abordava os debates em torno do suposto descompasso biológico das mulheres com os esportes coletivos e de impacto, uma ideia sugerida por médicos e educadores físicos eugenistas. Os argumentos de Brule também evidenciam o engajamento das francesas nas pautas feministas da época. A referência à I Guerra soa quase como um deboche em meio às críticas da autora sobre as preocupações descabidas e as tentativas de controle e cerceamento dos corpos através da interrupção do futebol e de outros esportes de contato físico praticados pelas mulheres naqueles anos.

Valores como liberdade, autonomia e emancipação estão presentes na resposta publicada, que reflete uma visão assertiva:

“Você vê que a autoridade não é, de forma alguma, afirmada no ponto de vista feminino, porque vocês são homens. Ainda nos [mulheres] consideramos os únicos juízes e responsáveis por nossos erros após a experimentação [do futebol]. E, por enquanto, não temos mais tempo para ensaiar. Quando as médicas adquirirem a autoridade necessária sobre a prática dos esportes, nós lhes daremos o direito de nos aconselhar.”

O texto também nos presenteia com uma pitada de ironia feminista ao desqualificar os argumentos que ridicularizavam o futebol praticado por mulheres. Esses argumentos iam desde a preocupação masculina com o surgimento de rugas até o aumento do tamanho dos tornozelos. A francesa Jeanne Brule responde de forma contundente:

“Falam do esforço obstinado, das contrações do rosto que provocam fatalmente as rugas, do desenvolvimento anormal dos tornozelos… Todas essas observações, senhores, sobre que assunto vocês as estudaram? Em sua imaginação sem dúvida, e essa convicção tomou forma em sua mente a ponto de arrastá-lo para as mais falsas declarações. Sou jogadora de futebol e atleta de primeira hora, e garanto que meus tornozelos nunca aumentaram de circunferência. Eu era uma grande fã de dança e não ponho os pés em nenhum [salão] desde que comecei a praticar esportes. Todas essas censuras que vocês fazem ao futebol podem ser aplicadas à dança. E garanto-vos que desde uma noite de contrações no baile, no meio de micróbios, a uma hora e um quarto de contrações e esforços no futebol, ao ar livre, a minha preferência dirige-se a esta última distração que considero muito mais saudável.”

Brule ironicamente aborda a necessidade de avaliação médica prévia às atividades físicas, expressando sua preferência por jogar bola ao ar livre em vez de frequentar salões de baile lotados, considerando a primeira atividade mais higiênica. Encerrando sua resposta de forma provocativa, ela convida todas as jovens a se juntarem aos times femininos franceses nos campos esportivos:

“Para encerrar, faço, ao contrário, uma chamada presunçosa a toda juventude feminina que venha ocupar os nossos campos de esportes.”

Esse tipo de relato fornece uma perspectiva única de leitura do passado e ajudam a dar voz às mulheres cujas histórias por tempos seguiram negligenciadas e até esquecidas. Permitem, dessa maneira, uma compreensão mais completa, inclusiva e até divertida do passado. Ao reconhecer a importância de narrativas como a da jogadora Brule, podemos ampliar nossa visão da história e promover uma narrativa histórica mais abrangente e diversificada.


[i] BONFIM, A. F. Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941). São Paulo: Edição da Autora, 2023.

[ii] AMARO, Fausto. O “bom feminismo”: a mulher e os Jogos Olímpicos sob os olhares da imprensa carioca (1920-1935). In. 41. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), Joinville – SC, 2018.

[iii] Os Jogos Mundiais Femininos, evento organizado majoritariamente por atletas mulheres da Europa e Estados Unidos, foram impedidos pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) de mencionar a palavra “olímpico” em seu nome. Além da primeira edição de 1922, foram realizadas novas programações em Gotemburgo, Suécia (1926), Praga, República Checa (1930) e Londres, Inglaterra (1934).

[iv] Los Deportes y La Mujer. Heraldo Desportivo, Madrid, p. 59-60, 05 fev. 1920.


Esportes, Rock, Juventude, Televisão e Cigarros Hollywood: uma combinação de sucessos

11/03/2024

André Alexandre Guimarães Couto

Olá, leitoras(es):

Durante algumas décadas, mais precisamente entre o final dos anos 1970 e os anos 1990, uma marca de cigarros era bastante popular no Brasil: a “Hollywood”. Era um produto da empresa Souza Cruz, empresa criada pelo português Albino Souza Cruz em 1903, na cidade do Rio de Janeiro.

Apesar do sucesso da marca ter atingido o ápice no final do século passado, sua criação data de 1931. O slogan “O Sucesso” veio logo a seguir, muito provavelmente em torno da associação do nome da marca com a indústria cinematográfica norte americana que tinha aberto um grande polo do entretenimento do cinema no distrito de Hollywood em Los Angeles, desde o início dos anos 1910. Os cinemas brasileiros, por sua vez, recebiam as produções de lá e os jornais do Rio de Janeiro publicavam os cartazes dos filmes, inclusive alguns eram acompanhados de crônicas e artigos sobre estas películas.

Na imagem abaixo, temos uma propaganda de 1962, na revista O Cruzeiro. Um casal branco, aparentemente de no mínimo classe média (devido aos seus trajes e cortes de cabelos e a frase “bom gosto” na peça publicitária) se divertem num jogo de cartas.

Imagem 1: Propaganda (1962). Fonte: https://museudapropaganda.com/2019/04/19/hollywood-1962/.

Todavia, apenas nos anos 1970 a marca completaria o seu slogan com “Isso é Hollywood, o Sucesso!” e se tornava aos poucos duplamente popular: era um dos cigarros mais baratos do mercado brasileiro e conseguia atingir um público cada vez mais jovem. Para tanto, as propagandas televisivas seriam fundamentais. A estratégia principal era veicular músicas em sua maioria voltadas para o rock ou pop internacional (principalmente o primeiro), todas na língua inglesa, com imagens de esportes de aventura, sempre recheadas de atores e figurantes jovens e felizes, além de paisagens exuberantes nos céus, mares e terra (ou, muitas vezes, combinando estes três elementos).

Apesar dos aparelhos de televisão no Brasil com imagens coloridas ainda ser um artigo de luxo nos anos 1970, na década seguinte o processo de produção destes equipamentos vai popularizando esta tecnologia entre as camadas menos abastadas da sociedade brasileira. Para uma parte significativa da população, a televisão era um dos principais veículos de acesso à cultura e, cabe lembrar, os anos 1980 seriam um momento de ampla divulgação de um novo formato de rock: o de arena. Para muitos jovens, o consumo do rock passava por poucas rádios dedicadas a este gênero musical (como a Fluminense FM, de Niterói) e, por vezes, nas propagandas televisivas, como as da marca Hollywood. O boom do rock nacional, com o surgimento de muitas bandas, justamente numa conjuntura de decadência da ditadura militar brasileira, cada vez mais contestada pela juventude estudantil, contribuiu bastante para aumentar o consumo de novos modelos musicais.

O fato é que propagandas de cigarros aliadas a temas esportivos não eram uma grande novidade na comunicação brasileira. Desde as primeiras décadas do século XX, algumas marcas já faziam esta associação, o que continuou a existir ao longo de todo o século seja por empresas nacionais, sejam as estrangeiras. A questão do hábito de fumar como distinção social era um elemento importante nos costumes e comportamentos e não raro podíamos ver peças publicitárias com discursos apoiados por profissionais da saúde referendando os respectivos produtos anunciados. Teríamos vários exemplos a apresentar, mas não cabe aqui tratarmos disso. Se não era uma ideia nova, por que, então, Hollywood fazia tanto sucesso a partir principalmente dos anos 1980? Acreditamos que a resposta está na combinação dos vários fatores que se apresentam no título deste post: a música do rock de arena, a imagem colada com os esportes de aventura, a ideia de uma “juventude vigorosa”, o acesso “fácil” e rápido pelo veículo da televisão (o que não excluía outras peças publicitárias, encontradas em outdoor, revistas e jornais, por exemplos, como podemos visualizar logo abaixo), tudo isso num caldeirão de contestação política, com ares de liberdade e experimentação de novos estilos musicais.

Imagem 2: Propaganda gráfica de Hollywood. Fonte: https://www.atelierecordar.com.br/single-post/2016/09/23/cigarros-hollywood.

Em nossa opinião, a fórmula deu tanto certo que o modelo foi replicado até o final dos anos 1990, mesmo em contexto histórico distinto. Inclusive, a marca patrocinou um dos principais festivais de rock no país, o Hollywood Rock (realizado no Rio de Janeiro e em São Paulo, de 1988 a 1996). E chegou a lançar 3 coletâneas de músicas veiculadas pela marca nas propagandas televisivas chamadas de “Isto é Hollywood”. No entanto, a partir daí, a propaganda de cigarros no Brasil passou cada vez mais ser contestada pelos órgãos públicos de saúde, a ponto da proibição de sua veiculação no início dos anos 2000.

Ao todo, foram aproximadamente 90 músicas/propagandas ao longo de três décadas, com destaque para nomes importantes do rock internacional como Van Halen, Whitesnake, The Police, Yes, Journey, Tina Turner, Rush e tantos outros. Para ter acesso à lista completa, sugiro dar uma olhada neste site: https://open.spotify.com/playlist/0VMZAyQ80vmDu1ZwcSVd9K?si=8990cb9962f74546&nd=1&dlsi=97c0a268aa8e4154. Nele, é possível ouvir quase todas elas.

É difícil escolher a propaganda mais interessante ou marcante (até porque, convenhamos, isso é deveras subjetivo). Mas, seguem estas aqui:

O vídeo acima é de uma banda inglesa chamada Phenomena e a canção “Did it all for love”, apresentada aqui na propaganda, apresenta as imagens de um grupo de jovens brancos (é o que podemos observar em todas as fontes que utilizamos para análise) em busca de aventura praticando rafting em um rio caudaloso. É uma típica imagem fílmica de cinema de aventura norte americano, inclusive o tipo físico dos atores reforçam estas primeiras impressões. Não temos informações suficientes sobre a produção destes clipes, mas não nos surpreenderíamos se a mesma estive por conta de agências de publicidade norte americanas. Por ora, é uma mera suposição. A letra da música, apesar do teor romântico, traz expressões que colam com as belas imagens da prática esportiva/paisagens da natureza, como, por exemplo: “Nós atiramos os dados/Jogamos o jogo/Fizemos tudo pelo amor/Faremos tudo de novo”. O sucesso (praticamente o único desta banda/projeto inglesa, que aqui contou com a participação de John Wetton, do Asia) de 1987, chegou para a maioria do público brasileiro via peça publicitária da Hollywood. Hoje, a música ainda é um marco do rock pop dos anos 1980.

Outra música importante foi “Break through the barrier”, interpretada pela norte americana Tina Turner em 1990. Aqui a propaganda entra literalmente em outra paisagem: a neve.

Percebe-se que o modelo de apresentação é mantido: grupos de jovens aventureiros em diálogo cênico com a natureza exuberante. Uma corrida de snowmobile (conhecido como moto de neve) demonstrada como uma prática esportiva emocionante e vigorosa, com direito a saltos na neve, tendo ao fundo uma bela vegetação e sob um sol brilhante. Não por acaso, um dos veículos que aparece em destaque é totalmente da cor vermelha, refletindo a principal tonalidade da marca do cigarro. A letra escrita por Andre Cymone e Gardner Cole trata de superação (não fica muito claro se é por conta de um romance), mas, mais uma vez traz uma boa sintonia com as imagens apresentadas, como no trecho: “Como uma fênix que surge/Não há nenhuma montanha muito alta/Eu continuarei empurrando até que eu penetre a barreira”. Um detalhe importante: esta canção fora gravada por Tina Turner para a trilha sonora do filme “Dias de Trovão”, que narra a história de um piloto de corridas tentando ultrapassar suas barreiras pessoais e esportivas. No Brasil, o comercial popularizou bastante a música, pois a mesma não se encontrava em nenhum álbum além da trilha sonora original. No final da peça, já percebemos a mudança na legislação brasileira, com a mensagem do Ministério da Saúde advertindo sobre os males trazidos pelo fumo. Em outro filme publicitário da marca, Tina também interpretaria “The Best” (1989).

Para finalizarmos, trazemos uma peça de 1987, que lançava o produto Hollywood Lights, um cigarro mais “leve” e sofisticado. Para tanto, a música “When I see you again”, da banda anglo-americana Fleetwood Mac foi utilizada.

A “leveza” do produto é demonstrada pela prática do balonismo combinada com a asa delta, duas modalidades que trazem a ideia de romper limites, com aventura e beleza, mas com o sempre diálogo com a natureza também aqui exuberante. Interessante é que o início do filme apresenta o grupo de aventureiros jovens em veículos esportivos terrestres como motos e jipes (com cores vermelhas, é claro) antes de escolherem o melhor local para o lançamento das práticas aéreas. Aliás, a cor vermelha também é enfatizada nas jaquetas dos atores, nos balões e nas asas delta, apesar do azul e branco também aparecerem, pois o produto também tinha estas cores. O início da peça traz um ator explicando as qualidades do cigarro, de forma quase pedagógica. Por fim, aqui temos o aviso do Ministério da Saúde mais discreto, num retângulo dentro da cena final do filme. Como já dissemo, a partir dos anos 1990, isso mudaria de forma bem peculiar, principalmente visualmente.

Enfim, a marca Hollywood, apesar de ter sido interrompida por questões de adequação comercial em 2020, deixou raízes importantes para além de um público fumante. Ou seja, conseguiu associar a divulgação da marca com músicas que deitaram raízes na memória afetiva dos que foram telespectadores nos anos 1980 e 1990. Canções que traziam a ideia de uma juventude aventureira e apreciadora de uma natureza vibrante e bela, mesmo que distante da realidade social e econômica dos brasileiros.

Observações:

A empresa Souza Cruz hoje é chamada de BAT Brasil e é subsidiária da British American Tobbaco.

Referências:

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Ascensão e queda da propaganda tabagista. (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/ascencao-e-queda-da-propaganda-tabagista/. Publicado em: 30 mai. 2011.


Colo-Colo e a organização do Campeonato Sul-Americano de clubes de 1948.

12/02/2024

Por Hugo da Silva Moraes.

No dia 11 de fevereiro comemora-se 75 anos da Copa América del Sul, competição que inspirou a Conmebol Libertadores. Principal torneio esportivo de clubes da América do Sul, a Copa Libertadores da América foi disputada pela primeira vez em 1960.[1] Dominado até meados dos anos de 1970 por clubes argentinos e uruguaios, o torneio despertava pouco interesse dos clubes brasileiros, dedicados às competições nacionais. Além disso, as tensões políticas entre as confederações brasileira e Sul-americana, os custos elevados e a falta de lisura esportiva refletida principalmente nas más arbitragens, também afastavam as equipes brasileiras da competição sul-americana.

Essa tendência mudou partir dos anos de 1980. Diante de um processo cada vez mais acelerado de mercantilização do futebol sul-americano num cenário global (RINKE, 2007, p. 206), a competição passou a atrair gradativamente a atenção do público e o interesse de clubes, imprensa e patrocinadores. Não por acaso, entre os anos de 1990 e 2000, com ascensão de clubes brasileiros, colombianos, paraguaios e equatorianos, a competição tornou-se mais competitiva.

Dominada desde os anos de 2020 pelos brasileiros, a atual CONMEBOL Libertadores é uma das competições mais populares do continente. Obsessão dos clubes sul-americanos, além da disputa pela “Glória Eterna”[2], a sua fama se estende às premiações, ao retorno comercial de clubes, empresas e confederações.

Imagem 1: Charge representando a Conquista da primeira Libertadores pelo Fluminense. Jornal Lance!, 4 nov. 2023. p.1. Disponível em: https://www.lance.com.br/institucional/ta-no-ar-faca-a-sua-capa-historica-do-lance-para-a-libertadores-2023.html
Imagem 2: Jogadores do Internacional erguendo a taça da Copa Libertadores da América. Jornal Correio da Manhã, 19 ago. 2010. p.1. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/wp-content/uploads/2024/02/647d6-bra5erg_cdp.jpg
Imagem 3: Imagem representando o continente sul-americano. Dentro, destaca-se jogadores do C.R. do Flamengo erguendo o troféu da Copa Libertadores. Jornal Extra, 24 nov. 2019. Disponível em: https://www.facebook.com/jornalextra/photos/a.208847352481556/3058880180811578/?type=3

Organizados desde a primeira década do século XX, os amistosos e torneios futebolísticos entre clubes se tornaram uma constante, inicialmente na região do Prata. Sob o ponto de vista simbólico, estes eram e ainda são significativos na construção de representações que, em geral associam a hegemonia clubística à “gloria” nacional dentro do cenário sul-americano e mundial.

Além de construir discursos que exaltavam a nação, esses torneios foram determinantes para o desenvolvimento econômico das agremiações esportivas. Diante desta perspectiva, o Colo-Colo decide organizar em 1948 um torneio inédito entre os dias 11 de fevereiro e 14 de março reunindo os campeões nacionais da América do Sul, recebendo o nome Copa America del Sur (ESTADIO. 3 de janeiro de 1948, p.5).

Desde finais dos anos de 1920, o Chile experienciou um processo de desenvolvimento socioeconômico com a expansão de demandas dos setores urbanos, principalmente a classe média e o operariado. Visando a construção de uma nova ideia de nação (PARRA, 2013, p. 25-26), os governos atuavam diretamente em questões sociais e culturais do país – como a educação e o esporte, por exemplo.

Ocorridas entre 1941 a 1962 – ano do Mundial do Chile -, o governo aprovou medidas legislativas, em apoio ao esporte profissional e amador investindo em educação, formação de profissionais de educação física e na construção de aparelhos esportivos, como o caso do estádio Nacional.

Inspirado nos governos europeus e americanos (SANTA CRUZ, 2005, p.142), o Estado atuaria como promotor do esporte para o desenvolvimento educacional, social, a saúde pública e moral da raça chilena. Dessa maneira seria possível superar o atraso nacional despontando o Chile como um país pujante, superando o isolacionismo, equiparando-se aos demais países do Prata. Todavia:

Las respuestas de los poderes públicos, al menos durante las dos primeras décadas no fueron más allá de meras declaraciones de buenas intenciones o de normativas legales que solo tenían existencia en el papel” (SANTA CRUZ, 2005, p. 143).

No que tange ao futebol, além de limitado como gestor e provedor, o Estado era pressionado por outros atores como Federações, clubes e a imprensa esportiva, igualmente importantes no desenvolvimento do esporte. Amador até os anos de 1933, o futebol tem no processo de apropriação, massificação e mercantilização, seus principais sustentáculos para a organização de uma estrutura profissional (SANTA CRUZ, 2005,  p. 139).

Neste quesito o Club Social y Deportivo Colo-Colo merece o nosso destaque. Dissidência do Magallanes, o clube foi fundado em abril de 1925 se tornando em pouco tempo um dos pioneiros no processo de profissionalização do futebol chileno ao introduzir treinamentos obrigatórios, treinadores e modelos táticos (SANTA CRUZ, 1991, p. 32). Entre os anos de 1930 a 1960, o Colo-Colo se consolidou no cenário nacional ao realizar partidas pelo interior do país, excursões ao exterior e, em especial, pequenos torneios de verão, convidando clubes e seleções de todo o mundo.

Com apoio de parte do campo esportivo, o Campeonato Sul-Americano de 1948 representou o esforço do Colo-Colo e da comunidade esportiva na (re)construção da nação chilena que, mesmo diante de suas contradições, tentava se equiparar às grandes nações sul-americanas (Manual do 1º Campeonato Sul-americano de Campeões, 11 de fevereiro de 1948). Registrado nas páginas da revista Estadio, esse empenho é referendado, dentre outras coisas, pelo esforço logístico e diplomático do Colo-Colo em reunir numa só capital todos os campeões do continente[3]. Pode-se considerar tal trabalho algo digno de um espetáculo promissor, de grande magnitude, jamais visto na América do Sul e até mesmo na Europa (ESTADIO, 3 de janeiro de 1948, p.5).

Poster do 1º Campeonato Sul-Americano de Campeões realizado em Santiago entre 11 de fevereiro a 14 de março de 1948. Disponível em:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Campeonato_Sul-Americano_de_Campe%C3%B5es_de_1948

Outro aspecto ressaltado pela revista foi o esforço empreendido pelo clube albo na aquisição de recursos financeiros para a realização do campeonato. Neste quesito, destaca-se a figura de Róbinson Álvarez Marín, advogado, empresário, político e presidente do Colo-Colo. Sua atuação viabilizou recursos através da publicidade e do patrocínio de empresas do setor de serviços, em especial hotéis, restaurantes e lojas de artigos esportivos situados na cidade de Santiago, sede do torneio (Manual do 1º Campeonato Sul-americano de Campeões, 11 de fevereiro de 1948). Com a grande afluência de público nos onze jogos, o campeonato sul-americano foi considerado um sucesso comercial, tanto para os clubes, empresários e a cidade de Santiago, promovida como a capital do desporto chileno dentro do concerto sul-americano.

Enquanto os resultados financeiros denunciavam um certo progresso das relações capitalistas no campo esportivo, os resultados esportivos não refletiram o discurso em torno do desenvolvimento do jogador chileno. A expectativa exitosa descrita pela Estadio foi imediatamente substituída pelas críticas ao fraco desempenho do Colo-Colo, equipe pentacampeã chilena, diante de equipes consideradas inferiores como o Litoral da Bolívia (ESTADIO, 28 de fevereiro de 1948, p.28).

Imagem 1: Primeiras reportagens sobre o torneio sul-americano. No centro, foto da equipe do Colo-Colo. Revista Estadio, 3 de janeiro de 1948.
Imagem 2: Balanço geral sobre o campeonato. Foto da equipe do Vasco da Gama, campeã do torneio. Revista Estadio, 27 de março de 1948.

Para o semanário, a responsabilidade de atuar como o anfitrião e o prestígio de equipes como a do River Plate da Argentina justificavam certo abalo psicológico sofrido pelos jogadores chilenos. Em outros casos, o reconhecimento da limitação técnica e tática do futebol praticado, como foi descrito no jogo contra o Vasco da Gama, clube brasileiro, foram empregados como desculpa para o insucesso colocolino. Segundo a Estadio:

Los chilenos han sido en Sudamérica abanderados de la “marcación” y hasta llegamos a creer que éramos los maestros …, hasta que no vimos la marcación de Vasco, prefecta como es. […]  (ESTADIO, 3 de janeiro de 1948, p.5).

Considerada modesta, a campanha do Colo-Colo foi a constatação de que o jogador chileno ainda era inferior às principais equipes sul-americanas. Diante dos resultados, restou a imprensa esportiva a construção de um discurso que apresentava o chileno moderno como um exemplo moral, um bom anfitrião, um bom “deportista equivalía a ser un buen esposo, padre, trabajador y ciudadano”. (PARRA, 2013, p. 10).

Bibliografia

RINKE, Stefan. Historias del fútbol em America Latina – historias de sociedades y culturas. In. RIBEIRO, Luiz (Org.). Futebol e Globalização. Jundiaí: Fontoura, 2007.

SANTA CRUZ, Eduardo. Crónicas de un encuentro: Fútbol y cultura popular. Santiago: L&M, 1991.

_____________,  Eduardo. Escuelas de identidad. La cultura y el deporte en el Chile desarrollista. Santiago: LOM, 2005.

PARRA, D. V. Del Chile de los triunfos morales al país ganador: Una historia de la selección chilena de fútbol durante la Dictadura Militar (1973-1989). Dissertação (mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Chile, Santiago, 2013. 247 f.


[1] A Copa Libertadores teve sua primeira edição em 1960, com sete equipes participantes: Peñarol e Nacional (Uruguai), Olimpia (Paraguai), Millonarios (Colômbia), Jorge Wilstermann (Bolívia), Universidad de Chile (Chile) e San Lorenzo (Argentina). 

[2] Termo comercialmente empregado pela Conmebol para se referir ao troféu da competição.

[3] Emelec (Campeão do Equador), Litoral (Campeão da Bolívia). Municipal (Vice-Campeão do Peru), Vasco da Gama (Campeão Carioca), Nacional (Campeão do Uruguai) e River Plate (Campeão da Argentina).


Bom dia, eternidade (Rogério de Moura, 2010)

06/02/2024

O post de hoje vai abordar uma produção nacional: a película Bom dia, eternidade (2010), primeira direção cinematográfica de Rogério de Moura, o qual já havia participado no roteiro de Um Homem Qualquer (Caio Vecchio, 2009) e atuado em Garotas do ABC (Carlos Reichenbach, 2003).

Trata-se de uma produção realizada por diretor e protagonistas negros: o casal principal é vivido por Zezé Mota (no papel de Odete) e João Acaiabe (Clementino). A história gira em torno de Clementino Dias da Silva, ex-craque de futebol (reserva, mas partícipe da seleção brasileira de 1958), que, envelhecido e vitimado por um derrame, parece ter perdido qualquer expectativa quanto à vida.

O desgosto de Clementino reverbera agudamente em Odete, a esposa que tem que lidar com as turras do inconsolável ex-atleta. No dia de seu aniversário, e a contragosto, Clementino é praticamente conduzido à força por antigos amigos para um passeio de carro. Vão ao bar, discutem com membros de uma torcida que passava de ônibus, assistem a uma pelada do clube que defenderam décadas atrás, o “Ressaca Futebol Clube” (Clementino é reconhecido por um policial, que lhe pede autógrafo) e acabam batendo uma bola, na rua, com um grupo de jovens. Clementino se atrasa para a pequena comemoração com familiares, porém retorna bem mais animado. E por esse ânimo, ou seja lá por qual motivo, dali em diante tem sua vida re-iniciada. Primeiro acorda milagrosamente curado; depois vai se tornando mais jovem, fisicamente mesmo. E vai retomando práticas há muito abandonadas: volta a jogar futebol, a beber, a comer o que mais lhe apetece, a ir ao samba (a paquerar e fazer conquistas, a despeito de manter o casamento)… Rejuvenesce tanto que, com o andamento da fita, volta a ser um garoto, um bebê e some…

Todo esse trajeto é acompanhado, mais ou menos à distância, por Odete, a qual também vai revivendo alguns prazeres e muitas preocupações, papéis, frustrações…

Esse curioso caso Clementino (em analogia ao Curioso Caso de Benjamin Button -EUA, David Fincher, 2009) consiste no elemento dinamizador e possibilitador da narrativa. Permite uma discussão sobre o envelhecimento, as limitações e perdas e a decorrente nostalgia. Viabiliza uma alternativa (mágica, é claro) de re-invenção da existência em suas diversas (e distintas) fases. O ponto de inflexão (e isso me parece o mais interessantemente sugestivo), no entanto, se dá de modo bem prosaico.

Clementino estava acabado (e tinha motivos concretos para se sentir mal), mas revigora-se (rejuvenesce, portanto) com a visita de amigos de longa data. Estes se esforçam admiravelmente (e sem condescendência) para proporcionar um tempo agradável para o companheiro e para si próprios. Agem como se o tempo não houvesse passado e divertem-se como crianças. Essa parece a mágica detonadora da fantasia fílmica. Ao chegar em casa, revitalizado, Clementino recebe o afago das filhas e parentes e, mais bem humorado, parece reconhecer a pujança dessa recepção/construção de uma vida. Toda a regressão temporal que daí se segue, parece-me, é expressão ficcional desse reconhecimento e dessa re-percepção de sua condição. E diante disso, cabe apenas a re-invenção (possível) dos impossíveis que o tempo/degeneração física impõem. Até o desaparecimento. O que Clementino performou, foi a re-criancice de seus últimos dias. O que a película de Rogério de Moura fez foi projetar, filmicamente, essa imperiosidade lúdica-vital.

Um ótimo carnaval e excelente 2024 para todos nós (com muita brincadeira e despedidas longínquas).

Obs (1):

Talvez valha a pena registrar a existência de uma peça teatral homônima, atualmente em cartaz, no SESC Consolação, São Paulo. Assinada por Jhonny Salaberg e encenada pelo grupo O Bonde. A dramaturgia apresenta enredo distinto, mas uma temática semelhante, envolvendo memória, envelhecimento e re-construção, sendo ainda conduzida e interpretada por artistas negros (ver https://revistaraca.com.br/teatro-bom-dia-eternidade-peca-debate-envelhecimento-de-negros-atraves-de-memorias/). Não parece mera coincidência, mas algum tipo de entrelaçamento estético-político, cujos pontos de contato fogem do escopo deste post. Mas, fica a referência.  

Obs (2):

Nesta película temos a última participação em cinema de Mário Carneiro (Diretor de fotografia, nome crucial do Cinema Novo) e dos atores Renato Consorte (1924-2009) e José Vasconcelos (1906-2011 – https://www.adorocinema.com/filmes/filme-235201/).

Ficha Técnica:

2010 | 1h 18min | DramaFantasia

Direção: Rogério de Moura

Roteiro Rogério de Moura

Elenco: João AcaiabeZezé MottaAntonio Pitanga

Disponível em: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-235201/


Apontamentos históricos sobre o surfe em Niterói: uma homenagem a Rafael Fortes

25/01/2024

Por Victor Andrade de Melo

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Na segunda metade dos anos 1960, como expressão do delineamento de uma “juventude saudável”, assim como ocorrera em outras cidades, o surfe começou a ser praticado em Niterói. As pranchas começaram a fazer parte do cotidiano de algumas praias niteroienses.

A modalidade logo passou a ser representada também como sinal de rebeldia, tanto mais por sofrer constantes tentativas de proibição por parte da polícia. Além disso, surf também denominava um ritmo jovem de dançar, como o twist, o monkey e o hully-gully.

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Surfistas na altura da Pedra de Itapuca. O Cruzeiro, 7 jan. 1967, p. 98. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/003581/159965?pesq=%22Gualter%20Mathias%22

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Rapidamente, o surfe passou a integrar a programação de alguns festivais esportivos, especialmente os promovidos na Praia de Icaraí. Foram realizados os pioneiros campeonatos. Em 1967, o Clube de Regatas Icaraí criou um Departamento para a modalidade, o que motivou ainda mais os praticantes. A despeito de seu caráter em certa medida transgressor, o surfe também foi representado como um bom exercício, uma questão que se tornou candente em Niterói.

Nos anos 1970, aproveitando a melhoria do acesso e das condições estruturais da Região Oceânica, os surfistas já estavam se deslocando para Itacoatiara, que apresenta melhores condições para a prática do esporte das pranchas.

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Surfe em Icaraí. O Cruzeiro, 7 jan. 1967, p. 97. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/003581/159964?pesq=%22Gualter%20Mathias%22

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A partir de então, número cada vez maior de campeonatos, progressivamente mais bem estruturados, foram promovidos em Niterói, cidade na qual já surgiram destaques não só na parte competitiva da modalidade, como também na área técnica, no que se refere tanto à arbitragem quanto ao uso de recursos computacionais para apuração dos resultados. Contribuiu para tal desenvolvimento a ainda ativa Associação de Surfe de Niterói, cujo trabalho sempre foi marcado por um denotado investimento na formação de jovens atletas.

Itacoatiara tornou-se um templo do surfe, lugar no qual se forjaram grandes lendas e histórias incríveis foram registradas. Atualmente, a bucólica praia de Niterói é uma das referências nacionais e internacionais no que tange a ondas grandes, acolhendo diversos eventos dessa modalidade.

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Matéria sobre prova do Circuito de Surfe disputada em Itacoatiara. Em destaque, um dos mais vitoriosos surfistas de Niterói, Ricardo Tatuí. Jornal do Brasil, 15 mai. 1988, p. 4 (caderno Niterói). Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/231633?pesq=Surfe+Itacoatiara

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Assim como o surfe na década de 1960 ajudou a configurar uma imagem para a Praia de Icaraí, também foi importante na construção de novas representações para Itacoatiara, que passou a ser encarada não só mais como lugar de descanso e repouso, procurado por gente de mais idade, mas também como espaço no qual se cultua uma prática que mexe com a emoção, buscada por pessoas mais jovens. Ainda que ambos compartilhassem o amor pela natureza e a valorização do bucolismo, a placidez de um grupo se chocava com o frenesi de outro.

Aqueles jovens que desejavam se divertir e pensar numa alternativa de vida – é bom lembrar que no mundo e no Brasil, aqui mais tardiamente, a prática do surfe se cruzou com ideias contraculturais – se constituíram também num sopro de leveza numa cidade que passava por tantas dificuldades, projetando-a nacional e internacionalmente.

“Itaquá” ou “Itacoá”, como à Praia se referem alguns niteroienses, foi se transformando em sinônimo de flertes, namoros, festas, renovados costumes. Por lá também se estruturaram outros esportes, como o windsurfe e o bodyboard, modalidades que também movimentaram a cidade e deixaram registros na memória urbana.

Nesse cenário, assim como ocorrera em outras cidades, surgiram novos hábitos alimentares. Na década de 1980, foram criados o quiosque “Onda Natural” (1984) e o “Sanduíche do Marcelo” (1988), ambos produzindo sanduíches que caíram no gosto de jovens frequentadores de Itacoatiara. O mate gelado é acompanhamento quase obrigatório.

Graças ao segundo, que na verdade começou a atuar em Camboinhas, logo a novidade se espalhou para outras praias. Na verdade, o sanduíche natural do Marcelo é vendido por toda Niterói, inspirando concorrentes que se esmeram em oferecer produtos sempre frescos e saborosos. Um deles é o sanduíche natural do Sérgio, falecido irmão de Marcelo, também muito conhecido na cidade.

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O post acima é um extrato de um livro sobre Niterói que escrevi e está para ser lançado. Quis o destino que eu fosse o responsável da semana em nosso blog logo no momento em que partiu o amigo e irmão Rafael Fortes, Rafão.

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Conheci Rafão na primeira disciplina que ministrei no PPGHC/UFRJ, lá pelo ano de 2005. Fui membro da banca de doutorado dele, seu parceiro em muitas jornadas do grupo, do campo da História do Esporte, em artigos e livros, na vida.

Algumas vezes brigamos, nos estranhamos, estivemos distantes. Mas sempre realinhamos, nos reencontramos, voltamos a declarar nossa amizade. Coisas de dois bicudos que volta e meia soltavam faíscas.

Quando chegou ao Laboratório Sport, entre outros, o niteroiense Rafa trouxe os debates sobre o surfe, tema no qual se tornou um dos grandes especialistas do Brasil. Muitas foram as profícuas discussões que tivemos com ele acerca desse e outros assuntos.

Rafa vai fazer muita falta. Deixa muitas saudades.

Missão cumprida, irmão, vá em paz. Nós seguimos aqui nossa trajetória sempre lembrando de ti. E sempre reafirmando os princípios que nos uniram e fizeram nosso grupo chegar aos quase 18 anos de trajetória: é possível ser sério no trabalho e divertido na vida.

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