1920 e o raro depoimento da jogadora francesa de futebol Jeanne Brule

Aira Bonfim

Março de 2024

Os registros mais antigos e documentados de partidas de futebol feminino estrangeiro, ou seja, realizados fora do Brasil, remontam ao final do século XIX, embora muitos desses marcos temporais sejam informais (não estão inscritos na documentação formal de ligas, entidades e clubes – masculinos – da época).

O Brasil também se insere numa história documental informal similar, fato que nos dificulta determinar a totalidade de eventos de futebol nas primeiras décadas do século XX. Na cena internacional, por exemplo, já há relatos de mulheres escocesas jogando futebol nas últimas décadas do século XIX, como nos eventos festivos entre as pescadoras de Musselburgh e Inveresk, em East Lothian[i].

No século XVIII, há registros de garotas escocesas brincando de jogar bola, numa condição menos institucionalizada e por isso, fora dos enfoques das pesquisas travadas na categorização da modalidade futebol como um esporte moderno, a partir do século XIX. É consensual entre os pesquisadores da área que a década de 1890 foi crucial para o desenvolvimento organizado e público das partidas de futebol feminino na Europa. Um dos marcos pioneiros remete ao dia 23 de março de 1895, quando as equipes femininas do Norte e Sul se enfrentaram no Crouch End Athletic Ground de Londres, diante de uma plateia curiosa de mais de 10 mil pessoas.

Apesar da escassez de notícias e documentação da época, o período foi caracterizado por uma maior participação feminina no cenário esportivo internacional. Em meio aos dilemas e receios masculinos costumeiramente expressos na imprensa, algumas notas indicam que, no exterior, muitas mulheres desafiaram ou questionaram os limites físicos estabelecidos em cada modalidade esportiva praticada na época.

O historiador Fausto Amaro[ii] oferece informações valiosas sobre esses grupos femininos dissidentes, revelando, por exemplo, que a recusa da participação feminina no atletismo dos Jogos Olímpicos levou anos mais tarde à organização de eventos paralelos exclusivos para mulheres em 1920 e 1921, no distrito de Monte Carlo. Esse desagravo resultou na criação da Federação Esportiva Feminina Internacional em 1917, responsável pela realização dos primeiros Jogos Mundiais Femininos[iii] em Paris, em 1922.

Na cena esportiva europeia do início do século XX, destacavam-se inclusive certames de futebol entre equipes de países como Inglaterra e França, que atraíam uma “numerosa e enthusiasmada assistência”, demonstrando o grande interesse dos torcedores pela novidade esportiva. Contudo, junto com a disseminação dessas notícias, surgiam inquietações na imprensa sobre a legitimidade do desenvolvimento do futebol feminino naqueles anos. Mas além de desafiar na prática, será que alguma atleta do futebol teve seu discurso dissidente registrado nas fontes da época?

Um exemplo desse raro tipo de expressão oriunda de uma mulher jogadora se deu na publicação espanhola Heraldo Desportivo[iv] de 1920, cujo repórter expressou preocupações com a presença de mulheres em um ambiente esportivo tradicionalmente masculino. Esses alertas provocaram a resposta de Jeanne Brule, uma atleta e jogadora de futebol francesa da época, que argumentou em defesa das mulheres praticantes do jogo.

Aqui vale dizer que é muito raro encontrar uma fonte primária que tenha registrado as palavras de personagens mulheres no esporte, e consequentemente, uma outra maneira de compreender os contextos esportivos e de lazer. Dito isso, vamos as palavras de Jeanne Brule!

A entrevista-resposta de Brule é relativamente extensa, sem cortes e recheada de ironias. Ela também faz considerações para além do esporte ao mencionar, por exemplo, o cenário vivido pelos países europeus e o papel das mulheres durante a I Guerra, questionando por que somente agora se duvidava da capacidade das mulheres para a prática esportiva.

Segundo Brule, durante a guerra, ninguém questionou na França se as mulheres tiveram seus corpos modificados ao trabalharem o mesmo tanto que alguns homens. De acordo com ela, “hoje as pessoas se perguntam se a constituição de uma mulher pode permitir atividade esportiva por uma hora por semana”.

O texto  da publicação abordava os debates em torno do suposto descompasso biológico das mulheres com os esportes coletivos e de impacto, uma ideia sugerida por médicos e educadores físicos eugenistas. Os argumentos de Brule também evidenciam o engajamento das francesas nas pautas feministas da época. A referência à I Guerra soa quase como um deboche em meio às críticas da autora sobre as preocupações descabidas e as tentativas de controle e cerceamento dos corpos através da interrupção do futebol e de outros esportes de contato físico praticados pelas mulheres naqueles anos.

Valores como liberdade, autonomia e emancipação estão presentes na resposta publicada, que reflete uma visão assertiva:

“Você vê que a autoridade não é, de forma alguma, afirmada no ponto de vista feminino, porque vocês são homens. Ainda nos [mulheres] consideramos os únicos juízes e responsáveis por nossos erros após a experimentação [do futebol]. E, por enquanto, não temos mais tempo para ensaiar. Quando as médicas adquirirem a autoridade necessária sobre a prática dos esportes, nós lhes daremos o direito de nos aconselhar.”

O texto também nos presenteia com uma pitada de ironia feminista ao desqualificar os argumentos que ridicularizavam o futebol praticado por mulheres. Esses argumentos iam desde a preocupação masculina com o surgimento de rugas até o aumento do tamanho dos tornozelos. A francesa Jeanne Brule responde de forma contundente:

“Falam do esforço obstinado, das contrações do rosto que provocam fatalmente as rugas, do desenvolvimento anormal dos tornozelos… Todas essas observações, senhores, sobre que assunto vocês as estudaram? Em sua imaginação sem dúvida, e essa convicção tomou forma em sua mente a ponto de arrastá-lo para as mais falsas declarações. Sou jogadora de futebol e atleta de primeira hora, e garanto que meus tornozelos nunca aumentaram de circunferência. Eu era uma grande fã de dança e não ponho os pés em nenhum [salão] desde que comecei a praticar esportes. Todas essas censuras que vocês fazem ao futebol podem ser aplicadas à dança. E garanto-vos que desde uma noite de contrações no baile, no meio de micróbios, a uma hora e um quarto de contrações e esforços no futebol, ao ar livre, a minha preferência dirige-se a esta última distração que considero muito mais saudável.”

Brule ironicamente aborda a necessidade de avaliação médica prévia às atividades físicas, expressando sua preferência por jogar bola ao ar livre em vez de frequentar salões de baile lotados, considerando a primeira atividade mais higiênica. Encerrando sua resposta de forma provocativa, ela convida todas as jovens a se juntarem aos times femininos franceses nos campos esportivos:

“Para encerrar, faço, ao contrário, uma chamada presunçosa a toda juventude feminina que venha ocupar os nossos campos de esportes.”

Esse tipo de relato fornece uma perspectiva única de leitura do passado e ajudam a dar voz às mulheres cujas histórias por tempos seguiram negligenciadas e até esquecidas. Permitem, dessa maneira, uma compreensão mais completa, inclusiva e até divertida do passado. Ao reconhecer a importância de narrativas como a da jogadora Brule, podemos ampliar nossa visão da história e promover uma narrativa histórica mais abrangente e diversificada.


[i] BONFIM, A. F. Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941). São Paulo: Edição da Autora, 2023.

[ii] AMARO, Fausto. O “bom feminismo”: a mulher e os Jogos Olímpicos sob os olhares da imprensa carioca (1920-1935). In. 41. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), Joinville – SC, 2018.

[iii] Os Jogos Mundiais Femininos, evento organizado majoritariamente por atletas mulheres da Europa e Estados Unidos, foram impedidos pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) de mencionar a palavra “olímpico” em seu nome. Além da primeira edição de 1922, foram realizadas novas programações em Gotemburgo, Suécia (1926), Praga, República Checa (1930) e Londres, Inglaterra (1934).

[iv] Los Deportes y La Mujer. Heraldo Desportivo, Madrid, p. 59-60, 05 fev. 1920.

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