Cinema e Futebol: representações o processo de redemocratização brasileiro através do documentário Democracia em Preto e Branco: futebol, política e Rock n’Roll (2014).

Por: Hugo da Silva Moraes

Cartaz do filme Democracia em Preto e Branco: futebol, política e Rock n’Roll (2014). Disponível em: <https://www.adorocinema.com/filmes/filme-228112/&gt; Acesso em: 09 jun. 2024.

Lançado em 2014, o documentário Democracia em Preto e Branco: futebol, política e Rock ‘Roll[1] narra a trajetória da Democracia Corinthiana entre 1981 e 1984. Inserido num contexto marcado por importantes mobilizações sociais e culturais, a película apresenta uma proposta de roteiro articulando futebol, política e Rock n’Roll, tendo a Democracia Corinthiana um movimento aglutinador desses elementos.

Ocorrido num período marcado pela ascensão dos movimentos sociais à vida pública brasileira, o movimento propunha, num primeiro momento, a luta dos jogadores pelo reconhecimento de seus direitos trabalhistas. Paulatinamente, estas reivindicações extrapolaram o campo esportivo, assumindo outras pautas como o direito ao voto e a retomada da democracia no Brasil. Não por acaso, em relação à ambientação histórica, a película tem como marco inicial a ascensão das mobilizações pela Anistia em 1975, culminando nas Diretas Já!, movimento que reivindicou a eleição direta para presidente em 1984.

Por meio de uma montagem em continuidade,a película constrói uma narrativa dinâmica e intensa, articulando diferentes elementos estéticos – imagens, fotografias e uma trilha musical com grandes sucessos do movimento Brock – seguidos de documentos, recortes de jornais e depoimentos de atores sociais. Repleta de figuras de linguagem, a narrativa nos convida a uma reflexão em torno dos elementos históricos descritos anteriormente, construindo uma lógica de apresentação e solução de problemas (NICHOLS, 2010, p. 55), sempre articulando o campo esportivo e a realidade histórica representada.

Imbricado ao contexto social, o futebol é apresentado enquanto um drama social, tratado não com um fim em si, e sim como uma chave de interpretação da sociedade brasileira. Com isso, o espetáculo esportivo é empregado apenas como uma experiência estética, – com os seus lances, jogadas e gols – aparecendo em momentos pontuais ao longo de toda trama, aproximando o filme do público aficionado pelo esporte, especialmente o torcedor corinthiano. Em determinadas sequências, a prática esportiva também aparece como recurso para a apresentação dos atores sociais e como estratégia de passagem do tempo, dramatizando àquilo que se passava fora e dentro de campo – principalmente as conquistas e os percalços vividos pela Democracia Corinthiana.

De certa forma, a película desenvolve em sua retórica as tensões no interior do futebol brasileiro, em especial a Democracia Corinthiana, como metáfora de um processo de “transição, não tão clara, entre a ditadura e o que se pretendia, que era uma redemocratização”[2].  Para isso, com uma trilha sonora instrumental dramática, o filme apresenta imagens do cortejo presidencial em Brasília por ocasião da posse do general João Batista Figueiredo. Semelhante ao contexto político brasileiro, essa relação entre o poder e a regulação dos dispositivos autoritários foi aplicada ao campo esportivo. Também descrito como “ditador”, o presidente corinthiano Vicente Mateus aposta na continuidade de sua gestão ao apoiar a eleição de Waldemar Pires, apontado ao longo da narrativa como uma espécie de fantoche político. Em oposição ao cenário político, a película discorre sobre a Democracia Corinthiana, apresentando-a como um espaço alheio às velhas práticas autoritárias presentes nos clubes, e alinhado às demandas presentes nos movimentos sociais naquele contexto. O início do movimento democrático corinthiano ocorre durante um momento crítico do futebol alvinegro dentro das quatro linhas. Como solução, os dirigentes contratam Adilson Monteiro para o cargo de diretor de futebol do clube. Descrito pela voz em off como o “sociólogo garotão”, o “bucha”, o novo diretor de futebol torna explícita a proposta de ruptura sugerida pela película:

Acho que futebol não é desse jeito, mas eu não sei como é. E gostaria que a gente descobrisse juntos uma maneira de fazer futebol, jogar futebol, de viver futebol e, principalmente, de participar da sociedade, participar do momento que o Brasil tá vivendo, o país “tava” num momento, era final de 81, muito duro. E nós estamos, vocês, vocês futebol, estão assistindo. Nenhuma participação, nenhuma opinião. Sendo que, qualquer coisa que vocês digam, é muito importante (DEMOCRACIA EM PRETO E BRANCO, 2014,  12’16” – 13’45”, grifo nosso).

Essa argumentação em torno da Democracia Corinthiana proposta pela película se assemelha às reflexões de José Paulo Florenzano em sua obra Democracia Corinthiana: práticas de libertação no futebol brasileiro. Para o autor, havia uma contradição de projetos de gestão, representados pelo modelo empresarial proposto pela diretoria e a experiência de autogestão representado pelo departamento de futebol.

Faixa estendida pelos jogadores da Democracia Corinthiana antes da final contra o São Paulo F.C. em 1983. <https://ludopedio.org.br/arquibancada/ganhar-ou-perder-mas-sempre-com-democracia-a-torcida-corinthiana-e-o-processo-de-redemocratizacao-da-sociedade-brasileira/ > Acesso em: 09 jun. 2024.

Ainda em torno das reflexões propostas por Florenzano, o documentário associa a Democracia Corinthiana aos movimentos sindicais dos anos de 1980, em especial ao Novo Sindicalismo. Para isso, o jogador Wladimir, capitão corintiano e presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo – SAPESP. Descrito pela voz de Deus como “operário da bola” e “líder sindical” Wladimir é considerado personagem importante no “processo de conscientização do atleta brasileiro.” (DEMOCRACIA EM PRETO E BRANCO, 2014, 11’09” – 20’11”).

Mesmo diante da dificuldade de mobilização da classe de jogadores, a aproximação da Democracia Corintiana ao sindicato de atletas de São Paulo correspondeu a um contexto marcado por um intenso processo de mobilização da classe operária, incorporando ao seu discurso a luta por direitos trabalhistas e uma crítica às instituições autoritárias – como os clubes, federações e o próprio Estado.

Outro aspecto foi a utilização do movimento Brock como um elemento estético/simbólico da juventude da época, também presente na Democracia Corinthiana. Para isso, o documentário explora a imagem do jogador Walter Casagrande, atacante de 19 anos, apontado como uma das figuras mais controversas do movimento. Sua apresentação é feita mediante uma sequência de imagens que destacavam o seu estilo diferenciado de se vestir e de se comportar que, segundo o seu diferente de todos os outros jogadores de futebol. Segundo Casão “Não era de pandeiro, pagode, nada disso. Era Rock’n Roll mesmo.”   Para a película, esse estilo distinto aos demais jogadores era uma marca de uma nova juventude que emergia na cena cultural brasileira dos anos 1980:

Todo dia eu tinha uma contestação. Todo dia eu tinha uma polêmica. Todo dia eu tinha um questionamento. O motor era obrigado a ficar questionando. Não é só gostar de rock. Era ser livre, você viver a vida, você contestar. O Rock n’ Roll significa isso. “Ih, esse cara é Rock’n Roll”, “ih, esse cara é louco”, “ih, esse cara é vagabundo”, “ih, esse cara é contestador, é rebelde” (DEMOCRACIA EM PRETO E BRANCO, 2014, 11’09” – 22’29”).

Em seu momento derradeiro, o movimento das Diretas Já! descreve a esperança de um novo momento político através do resgate da democracia com a reconquista do direito ao voto direto para presidente. Acompanhada pela música Pro dia Nascer Feliz, a sequência de imagens de época destaca a presença maciça e plural da sociedade civil[1] ocupando o Palácio dos Três poderes carregando juntos uma bandeira do Brasil, uma alusão à retomada dos símbolos nacionais pelo povo após anos de Ditadura Civil-Militar.

Somando-se aos demais movimentos sociais do período, a atuação da Democracia Corinthiana extrapola as quatro linhas, com destaque para a sua participação nas manifestações em defesa da aprovação da Emenda Dante de Oliveira. Entre avanços e retrocessos, a atuação de Sócrates assume um destaque maior na campanha pelas Diretas Já! marca o clímax do filme e, consequentemente, o auge da trajetória do doutor na película. Descrito como uma “final de campeonato”, diante de um palanque montado na Praça da Sé, acompanhado pelos principais nomes da Democracia Corinthiana, o documentário apresenta o momento em que Magrão assume o seu papel de militante político ao discursar – ao lado do radialista e apresentador das Diretas Já!, Osmar Santos – formalizando o seu compromisso de permanecer no Brasil caso a Emenda fosse aprovada.

Sócrates ao lado de companheiros da Democracia Corinthiana discursando na campanha das Diretas Já! em 1984. <https://medium.com/@Corinthians/s%C3%B3crates-e-o-movimento-das-diretas-j%C3%A1-4885f5785da2> Acesso em: 09 jun. 2024.

A derrota da Emenda Dante de Oliveira marca o último ato do povo brasileiro que, naquele contexto fílmico, era representado por Sócrates. Descrito como um ato de ingenuidade, a atitude de Magrão representou a frustração e o sentimento de traição do povo brasileiro em relação àqueles que decidiriam de decidir sobre o tema: os políticos. Numa espécie de anticlímax, acompanhada por uma trilha musical,imagens do jogador debaixo de forte chuva em seu jogo de despedida contra o São Paulo encerra de forma melancólica a sua trajetória. Cumprindo a sua promessa, Sócrates é inevitavelmente vendido para a Fiorentina, algo determinante para o malogro da Democracia Corinthiana (DEMOCRACIA EM PRETO E BRANCO, 2014, 1:18’38”-1:26’02”).

Bibliografia:

FLORENZANO, J. P. A Democracia Corinthiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro. São Paulo: Ed. Academia Ludopédio, 2021, p. 624.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, Ed. Papirus, 2010, 5ºed.

 MARTINS, M. Z. Democracia Corinthiana: sentidos e significados da participação dos jogadores. 2012. 206 f. Dissertação (mestrado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.

MORAES, H. S. Cinema, Futebol e Memória: um estudo comparado sobre as representações das ditaduras e democracias no Brasil e no Chile através do cinema documentário (2004–2014). Tese (doutorado em História Comparada) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.

NAPOLITANO, M. Representações políticas no Movimento das Diretas-Já! Revista Brasileira de História, São Paulo, v.15, nº29, p.207 – p.219, 1995.

SARMENTO-PANTOJA, A. Mais branco do que preto na ditadura militar brasileira: a Democracia Corinthiana, o sindicalismo, a rebeldia e o rock and roll. Revista FuLiA, Belo Horizonte, v. 4, n. 3, set. /dez. 2019.


[1] DEMOCRACIA EM PRETO E BRANCO: FUTEBOL, POLÍTICA E ROCK N’ROLL.  Direção: Pedro Asberg. Produção Tv Zero. Rio de Janeiro: 2014. 1 documentário (90 minutos). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ydj0Wb4ylLo&gt;. Acesso em: 21 jul. 2021.

[2] DEMOCRACIA EM PRETO E BRANCO, 2014 (07’55”).

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