OLAVO BILAC E A FESTA DA PENHA

Por Nei Jorge dos Santos Junior

A festa da Penha, instituída no bairro do mesmo nome, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, teve seu início no final do século XVIII. Organizada num primeiro momento pela comissão de festejos da Irmandade da Penha, transformou-se rapidamente numa das principais alternativas de divertimento popular, com “missa solene, as cerimônias de bênção e as barraquinhas de prendas, jogos e comidas, a que se juntaria o ritual e o espetáculo do cumprimento de promessas que faziam penitentes infatigáveis subir os 365 degraus que levam ao santuário”[1].

Ao passar dos anos a festa tomava ares e manifestações socioculturais distintas – rodas de samba, as batucadas, danças, capoeiristas, as barracas montadas pelas chamadas tias –, sobretudo pelo grande número de negros, operários, capoeiras e músicos que compunham os festejos. No entanto, o componente religioso não se contrapunha à profana, pelo contrário, visto como um canal de comunicação privilegiado entre diversos segmentos sociais, o cronista do periódico O Paiz descreve a romaria como “um espetáculo maravilhoso pela completa fusão de todas as classes sociais, numa só leva de peregrinos, impelida pelos sentimentos religiosos”[2].

festapenha

Fonte: Revista O Malho, 5 de novembro de 1910, p.42.

Em contraposição, alguns intelectuais da época, em especial Olavo Bilac, acreditavam que essa manifestação popular e religiosa em nada acrescentaria à modernização da cidade, pois compreendiam que a cada ano a festa tornava-se ainda mais brutal. Para Bilac, a celebração era “tão desordenada, e assinalada por tantas vergonhas e por tantos crimes” que poderia ser facilmente comparada a “um folguedo da idade moderna, no seio de uma cidade civilizada, mas uma daquelas orgias da idade antiga ou da idade média, em que triunfavam as mais baixas paixões da plebe e dos escravos”[3].

Consciente que “atacar as tradições (e principalmente as tradições religiosas)” seria um “ato de ousadia”, Bilac não se intimidou. Para ele, “há tradições grosseiras, irritantes, bestiais, que devem ser impiedosa e inexoravelmente demolidas, porque envergonham a Civilização”, entre elas, “a ignóbil festa da Penha, que todos os anos, neste mês de outubro, reproduz no Rio de Janeiro as cenas mais tristes das velhas saturnais romanas, transbordamentos tumultuosos e alucinados dos instintos da gentalha”[4].

Carregado de adjetivos, na tentativa de construir uma imagem pejorativa para tais manifestações, Olavo Bilac expõe um dos inúmeros exemplos dos contrastes do Rio de Janeiro na primeira década do século XX: o velho e bárbaro — carroções enfeitados com tecido barato, puxados por burros arreados com flores e folhagens entrelaçados com fitas e carregando gente embriagada — e o novo, civilizado e moderno — a bela Avenida Central, maior símbolo dessa metropolização, a passarela de asfalto polido, com fachadas ricas dos prédios altos e automóveis que desfilavam sua beleza. Além disso, Bilac também “associa” essa gente incivilizada à violência. Nas palavras do poeta parnasiano, ir à festa da Penha seria “caminhar para o Martírio!”[5]. Mais do que isso, “ir à Penha é afrontar mil vezes a morte, — porque todos os desordeiros da cidade se encontram ali, nos quatro domingos da clássica festa, e transformam o arraial numa arena, em que se travam batalhas sangrentas”[6].  Dessa forma, aos olhos do autor, a cidade deveria ser civilizada e moderna, e para que esse desejo pudesse ser concretizado os trabalhadores de baixa renda não poderiam coabitar esses espaços, pois a civilização estaria ligada aos hábitos europeizados, distante das práticas de lazer vivenciadas por trabalhadores braçais de uma camada social desfavorecida.

Em outras passagens, Olavo Bilac dá indicações ainda mais claras quanto aos desserviços prestados por tais manifestações populares. Ao falar de hábitos característicos de uma cidade colonial, como os “abomináveis cordões”, resquícios culturais de um Rio de Janeiro ainda folclórico, o autor traz consigo uma cidade de “aspecto fatigado e triste, um ar de quem passou a noite na orgia”[7]. Para o autor, mesmo após o período de festas “ainda havia nas ruas, como remanescentes do folguedo carnavalesco, alguns confetes, esquecidos pelas vassouras da limpeza pública”[8].

De fato, Bilac expunha a ambiguidade de quem experimenta o próprio processo de metamorfose, fomentando uma modernização estabelecida através de uma intensa distinção hierárquica, na tentativa de assegurar prerrogativas de classe no universo urbano. Adepto do cosmopolitismo e da civilização como um símbolo de aspiração lato, Olavo Bilac acreditava que outros aspectos também conjurariam em prol da evolução urbana e profilática da cidade e, consequentemente, da nação. Na verdade, o poeta parnasiano buscou nas questões do cotidiano ações que pudessem estabelecer um melhor desenvolvimento social da população, não restritos as melhorias na infraestrutura, mas, sobretudo, na higienização das práticas de lazer da população pobre da cidade do Rio de Janeiro.

No entanto, embora ojerizada em seus escritos, as práticas populares representavam, além de festas e celebrações, momentos de ruptura e transgressão, pois estabeleciam novas manifestações identitárias, não somente por diferentes performances, mas, sobretudo, por novas políticas culturais e diferentes estratégias de consumo. E por isso, enquanto porta-voz da modernidade, o autor impulsionará valores sociais próprios de uma elite citadina, corroborando um desejo de cidade profícua para os passeios fidalgos, a vida de requinte. Assim, a narrativa proposta pelo autor possibilitou a composição de um conjunto de “realidades sociais”, permitindo, cotidianamente, por conta do caráter eloquente do boletim mensal, filtrar e tratar os fatos a serem publicados. Afinal, como afirma Nogueira, a revista Kosmos não estava no cenário para proclamar os ambientes populares e simplórios — que eram a “pedra no sapato” de uma elite ansiosa por um verniz cosmopolita — e ainda abundantes para uma elite que se queria branca, civilizada e europeizada[9].

[1] MOURA, R. M. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1995, p.156.

[2] O Paiz, 8 de outubro de 1906, p.2.

[3] Kosmos, ano III, n.10, outubro de 1906.

[4] Kosmos, ano III, n.10, outubro de 1906.

[5] Kosmos, ano III, n.10, outubro de 1906.

[6] Kosmos, ano III, n.10, outubro de 1906.

[7] Kosmos, março de 1904. p. 3

[8] Kosmos, março de 1904. p. 3.

[9] NOGUEIRA, C. M. A. Cronistas do Rio: o processo de modernização do Rio de Janeiro nas crônicas de Olavo Bilac (Kosmos, 1904-1908) e Lima Barreto (Careta, 1915-1922). Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012.

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