Um contista de futebol bissexto

Por Edônio Alves

O futebol é sabidamente um jogo entranhado na vida brasileira. Queremos dizer com isso que o jogo de bola aos pés, cuja trajetória em nossa história cultural e literária procuramos explicitar nos textos publicados nesse blog, a partir de sua efetivação por meio do concurso mútuo do campo do jornalismo com o da literatura, já se firmou como mote especulativo de abrangência e legitimidade tais que os autores brasileiros de ficção têm facilmente como justificar, com a eficácia própria dos seus trabalhos literários, o investimento direcional que essa produção tem feito no assunto.

 Tal motivo literário é hoje – podemos dizer junto com o que dizem alguns textos aqui já analisados – um meio riquíssimo (dentre outros já canônicos e estabelecidos) através do qual a nossa arte literária vem eficazmente discutindo a condição humana específica do homem brasileiro, considerado na sua vinculação a uma cultura e ambiente próprios.

Assim é que, isolado o homem por trás da bola, como queria conceber Nelson Rodrigues, ou percebido na sua relação visceral com esta, como tentam apanhá-lo na condição de jogador outros tantos autores, a motivação especulativa do futebol tem gradativamente se firmado em nossa literatura como uma demanda geral a que não escapa nenhum olhar atento de escritor verdadeiramente imbuído de propósitos analísticos quanto a nossa realidade social.

Há, portanto, integrados na grande constelação de grandes autores de nossas letras, uns que tem dedicado mais atenção ao tema do futebol e outros menos. Uns até que tomaram o tema como fato motor de suas carreiras literárias e outros que só tangenciam o assunto esporadicamente; aproveitando o vai-e-vem das ondas de imput e output dos recortes emergentes em tais ou quais momentos da nossa vida cultural em ebulição.

Esse segundo caso é precisamente a situação do escritor Lourenço Diaféria quanto à ligação da sua literatura com o tema do futebol, nas letras nacionais.

Nascido em São Paulo, a 28 de agosto de 1933, Diaféria morreu na mesma cidade em 16 de setembro de 2008. Foi contista, cronista e jornalista brasileiro. Sua carreira jornalística começou em 1956 na Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo. Como cronista, o início foi mais tardio, em 1964, quando escreveu seu primeiro texto assinado. Permaneceu no periódico paulista até 1977, quando foi preso pelo regime militar por causa do conteúdo da crônica, Herói. Morto. Nós, considerada ofensiva às Forças Armadas. A crônica comentava o heroísmo do sargento Sílvio Hollenbach, que pulou em um poço de ariranhas no zoológico de Brasília para salvar um menino. A criança se salvou, mas o militar morreu, vencido pela voracidade dos animais. A crônica também citava o duque de Caxias, o patrono do Exército, lembrando o estado de abandono de sua estátua no centro da capital de São Paulo, próximo à estação da Luz. Diaféria só seria considerado inocente em 1979. Durante algumas semanas, a Folha deixou em branco o espaço destinado ao colunista, em repúdio à sua prisão. Depois da Folha, levou suas crônicas para o Jornal da Tarde, o Diário Popular e o Diário do Grande ABC, além de quatro emissoras de rádio e a Rede Globo de Televisão. Católico, escreveu A Caminhada da Luz, livro sobre dom Paulo Evaristo Arns, a quem admirava. Outra “religião” era o futebol: muitas de suas crônicas falavam desse esporte — e de seu time, o Corinthians.

Nas histórias curta, no entanto, o tema do futebol só comparece em dois contos escritos sob encomenda de uma editora de São Paulo, fato que o torna um típico dentre muitos dos escritores bissextos do assunto futebol na literatura brasileira. Vamos conferir sua escrita futebolística, nas análise desses dois contos que empreendemos para este blog, a seguir:

  •  Urgente, em mãos

Lourenço Diaféria

Escrito especialmente para a coleção Toque de Letra, série Lazuli, da Companhia Editora Nacional, organizada por Miguel de Almeida, com a coletânea intitulada, “A vez da bola”, publicada em 2004, este conto se insere no campo daquelas narrativas de ficção que flagra o futebol como uma arena em que seus personagens cumprem um destino trágico, a despeito – e mesmo por isso – de terem sido vazados numa atmosfera de ligeiro heroísmo.

Mutilado do braço esquerdo por causa de um acidente de trem quando voltava para o subúrbio onde morava, Reinaldo, que trabalhava de servente (sic) no jornal onde o narrador escreve, era, entretanto, um excelente jogador de futebol de várzea.

Parece que ancorado na observação do narrador que a certa altura diz, se contrapondo a um ditado popular não aplicável à circunstância em que ambos foram apresentados na vida – narrador e personagem – : “A gente tem que usar a mão que resta na vida”, ao invés de: “Uma mão lava a outra e ambas lavam o rosto” ­- que seria mais plausível para a situação de duas pessoas que vão se precisar mútua e profissionalmente (Reinaldo era uma espécie de officeboy do jornal) -, o personagem compensa nos campos de futebol, com a excelência de sua maestria com a bola, a deficiência física que carrega na vida.

Conduzida com uma ironia simétrica ao destino do personagem, a narrativa pretende leva ao leitor a ideia de que o jogo da vida, também composto de lances inesperados e traiçoeiros, assim como o jogo de futebol, é bem mais difícil de ser jogado. Vide o desfecho que é dado à trama:

 “Consta ter sido uma batida seca, definitiva. Nenhuma mancha de sangue tingiu o asfalto. Atirado ao longe, no chão, junto ao corpo ainda morno, o envelope gordo onde se lia: Urgente, em mãos”.

A radicalidade irônica da expresão “Urgente, em mãos”, diz tudo numa situação em que, sem as duas mãos, ferramentas de resto sempre necessárias ao enfrentamento da vida entre os humanos (ainda mais nesse caso em que o personagem era entregador de documentos), também não lhe valeram os pés, ainda que exímios na condução do jogo da bola.

Se, como dizem, o mundo é uma bola, o personagem deste conto de Lourenço Diaféria sequer teve a chance de trocar as mãos pelos pés, no seu particular enfrentamento do mundo.

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  • A rã misteriosa

Lourenço Diaféria

Também escrito especialmente para a coleção Toque de Letra, da Companhia Editora Nacional, organizada por Miguel de Almeida, com a coletânea intitulada, “A vez da bola”, publicada em 2004, este conto é bem mais simplório do que “Urgente, em mãos”. Tanto do ponto de vista da situação da trama, mais propensa a ter melhor rendimento estético no gênero crônica, porque se assenta naquelas veredas por onde costumeiramente se captam as coisas do cotidiano, quanto da resolução que é dada a ela, através de um texto fluido em que se quer expor, a partir do mote dos esporte (aqui, de novo o futebol), o lado mais uma vez irônico e também risível dos contrastes da vida.

O personagem central é Petronilho, um senhor aposentado que ainda “bate sua bolinha com amigos”, mas ao invés de envergar, na foto, algum troféu por alguma façanha nos campos de pelada, esse nosso senhor do bizonho, é flagrado, nesse texto quase-crônica, com um anuro nas mãos.

O tempero do texto, que não apresenta novidade alguma em termos de procedimentos estéticos aplicados ao conto, nesse caso só digno desta classificação por causa do desfecho criado com ligeira inventividade, fica por conta do seu tom jocoso e da novidade da situação criada. “Na mão direita, segura uma bola de futebol usada; na mão esquerda o anuro ainda vivo”. Talvez se não tivesse antecipado ao leitor o que significa o vocábulo “anuro”, e, portanto, enfraquecido a sua função diegética para o caso, o texto rendesse mais em termos de efeito de sentido, conforme certamente nos asseguraria o mestre das estórias curtas, Julio Cortàzar.

PARA LER MAIS:

As histórias curtas do autor, acima, estão em: DIAFÉRIA, Lourenço; PIZA, Daniel; ANGELO, Ivan. A vez da bola: crônicas e contos do imaginário esportivo brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004. p. 7-9. (Coleção t

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