Duas vezes junho: duas Copas do Mundo, dois momentos de uma Ditadura brutal

O presente post tem como tema a obra de ficção do escritor argentino Martín Kohan “Dos vecess Junio”, aonde a memória de duas copas do mundo se relaciona com uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, o “Processo” argentino (1976-1983) em momentos distintos.

A maior parte do enredo acontece em junho de 1978, quando o personagem  principal e narrador da história, um jovem recruta das Forças Armadas argentinas procura se adaptar a função mesmo sem demonstrar muito entusiasmo pela instituição.

O rapaz acaba se envolvendo profissionalmente, mas também afetivamente com um importante médico militar, o Doutor Messiano, estabelecendo um certo vínculo de amizade com seu superior,  pois acaba sendo escalado para ser o motorista  dele e passa a conviver regularmente com o senhor e sua família.

A história começa com uma simples frase escrita em um caderno de notas em cima de uma mesa de uma caserna: “A partir de que idade pode-se começar a torturar um menino”. A partir daí a trama se desenvolve nos porões da ditadura argentina abordando de forma bem contundente, apesar da frieza do discurso do narrador ao relatar os fatos, um dos temas mais trágicos do período do terror que foi o sequestro de bebês das prisioneiras consideradas subversivas.

O caráter macabro da pergunta provoca uma imersão em um universo militar sombrio e irracional no qual a violência e a burocracia predominam no processo de tomada de decisões.

Paralelamente a descrição das diligências de soldados, prisioneiros e celas que remetem ao horror dos centros de detenção semelhantes à famosa ESMA (Escola Superior de Mecânica  da Armada), o ambiente da realização da Copa do mundo aparece como pano de fundo de uma história surreal onde a catarse da paixão pelo futebol me parece um elemento acessório à trama que acentua a brutalidade da cegueira coletiva com relação às atrocidades cometidas com os prisioneiros. Dentre elas uma das mais torpes que é a negação da maternidade para satisfazer desejos de famílias abastadas e protegidas pelo regime.

Um dos capítulos mais interessantes nessa perspectiva é quando o jovem soldado/motorista tem que procurar seu superior no estádio Monumental de Nuñez durante a terceira partida da seleção argentina no torneio contra a Itália, justamente quando sofreu sua única derrota no torneio. Acredito que a escolha do autor não foi por acaso, pois a descrição da saída dos torcedores do estádio para mim espelha simbolicamente o triste momento histórico vivido pelo país por tantos se calarem contra os milhares de presos, torturados e desaparecidos. A metáfora do silêncio dos torcedores argentinos após uma derrota do selecionado nacional parece se estender para toda Nação como uma crítica a passividade de muita gente diante do autoritarismo de um regime que promovia uma festa esportiva.

“ En filas desparejas se desconcentró la multitud callada. Era una larga procesión de cabizbajos, que no mostraban llanto por no ceder el gesto del que es bien hombre, pero que tampoco hablaban ni levantaban la vista. Se oía tan sólo el rasgado del andar sobre el pavimento o sobre las baldosas de las veredas, porque los pies tampoco los levantaba nadie, y al arrastrarlos se arrastraban los papeles rotos, la mugre general de los dias de partido, los pedazos de cualquier cosa.

No había semblante en que faltara la pesadumbre, En el desfile contínuo de las caras sin sosiego se veia la tristeza multiplicarse por milles, Yo iba viendo, también Callado,la manera em que pasavan incessantes los desconsolados: tanta gente, tantos milles y nadie tenía palabra alguna que decír. (PG 74)

No segundo junho quando ocorre o desfecho da obra, a narrativa é passada em  outra conjuntura da vida pessoal do narrador, e da própria ditadura argentina e o paralelo é feito com outra Copa do mundo de futebol.

O jovem não era mais militar e havia ingressado na faculdade de Medicina de certa forma como um desdobramento da sua relação pessoal com o Doutor Messiano, com quem se encontra depois de muitos anos para fazer uma visita de pêsames no dia em que está acontecendo uma nova partida da seleção contra a Itália.

A ditadura argentina do Processo caminhava para seu fim. Estava claudicante. Leopoldo Galtiéri havia renunciado após a trágica derrota nas Guerras das Malvinas que deixou centenas de jovens argentinos mortos e o sentimento patriótico destroçado.

Na Copa da Espanha, a então campeã do mundo com a grande estrela que havia se transferido para o Barcelona “El Pibe Maradona” não consegue demonstrar um bom futebol e acaba eliminada na segunda fase justamente após ser derrotada pela campeã Itália e o Brasil.

“En la radio emplean la palabra milagro. Los analista coinciden en juzgar a Brasil como el candidato por excelencia a obtener el campeonato. Consideran por tanto, que las chances de que la Argentina pueda derrotarlo en el próximo partido son muy pocas, para no decir nulas”. PG 184.

Neste sentido o futebol argentino não aparece também como esperança, mas sim como símbolo de derrota de um país que está esfacelado por uma guerra absurda ocorrida pelo destempero e desespero de uma ditadura falida.

Assim sendo, “Dos veces Junio” é um livro muito interessante que aborda através de uma complexa construção literária, intercalando passagens sombrias de uma história de roubo de bebê pelo Estado com uma genuína paixão pelo futebol do povo argentino um triste período da história do país que esperamos que não se repita nunca mais nem lá e nem aqui.

 

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