O ESPORTE EM TEMPOS DE PANDEMIA: LIÇÕES DA GRIPE ESPANHOLA DE 1918-1919.

por Maurício Drumond

Vivemos um momento de exceção. Acompanhando a declaração da Organização Mundial de Saúde (OMS) no dia 11 de março de 2020 da pandemia de Covid-19, causada pelo novo cornonavírus (Sars-Cov-2), diversos países e organizações internacionais, dentre elas as esportivas, passaram a adotar medidas enfáticas visando sua contenção e combate.

Em um país onde o Presidente da República afirma, indo contra todas as indicações de organizações e especialistas nacionais e internacionais da saúde, que a pandemia não passaria de uma “gripezinha” ou de um “resfriadinho” para ele, que teria um suposto “histórico de atleta”, faz-se mister analisarmos o impacto da pandemia em atletas e no mundo do esporte.

Na contramão do que afirma o presidente, é grande a lista de atletas profissionais, estes sim com real “históricos de atleta”, que contraíram o Covid-19 e sentiram seus efeitos. No futebol, diversos jogadores já testaram positivo para a doença, como Paulo Dybala e Blaise Matuidi, da Juventus, assim como o ex-jogador Paolo Maldini, agora dirigente do Milan. O Valência, da Espanha, informou que 35% de sua equipe contraiu a doença, preservando o nome dos atletas. Já no basquete, entre outros astros da NBA, o nome de Kevin Durant se destaca. MVP das finais por dois anos seguidos (2017-2018), o atleta encontra-se atualmente em quarentena, se recuperando em sua casa. No vôlei masculino, o jogador Earvin Ngapeth, da seleção francesa, chegou a ser hospitalizado devido ao vírus. Em suas redes sociais, o jogador declarou: “Eu testei positivo para # covid19 há uma semana. A parte mais difícil ficou para trás, passei 3 dias complicados, mas agora acabou, vou sair do hospital em uma semana. Todos vocês, fiquem em casa, isso não acontece apenas com os outros”

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Imagem 1: Pùblicação de Earvin Ngapeth em rede social.

Um dos casos mais impactantes de atletas afetados pela covid-19 até o momento, no entanto, deve ser o do medalhista olímpico de natação sul-africano Cameron van der Burgh. O recordista mundial de 50m nado peito declarou em suas redes sociais: “É, de longe, o pior vírus que já encarei, apesar de ser um indivíduo saudável com pulmões fortes (não fumar/praticar esporte), viver um estilo de vida saudável e ser jovem”.

O impacto nas competições esportivas não foi diferente. Até mesmo os Jogos Olímpicos de Tóquio, originalmente agendados para ocorrer entre julho e agosto de 2020, foram adiados para o mesmo período de 2021. No futebol, os impactos começaram com a realização de jogos sem público, medida que foi rapidamente suplantada pela suspenção de jogos das principais competições nacionais e internacionais do planeta. No Brasil, os campeonatos estaduais e regionais foram suspensos, com o campeonato mineiro sendo o primeiro a parar, no dia 15 de março, e o roraimense o último, no dia 20. Os campeonatos nacionais, como a Copa do Brasil, o Campeonato Brasileiro Sub-17 e a Copa do Brasil Sub-20, no futebol masculino, e os Campeonatos Brasileiros Femininos A1 e A2, foram suspensos. Os Campeonatos Brasileiros Masculinos, ainda não iniciados, também estão suspensos. As principais ligas ao redor do mundo também foram interrompidas. Libertadores da América, Liga dos Campeões da Europa, os campeonatos nacionais europeus, todos suspenderam suas atividades, em uma ação que só teve paralelo na Segunda Guerra Mundial, se olharmos para a Europa. No caso dos países americanos, a ação é inédita.

Em outros esportes, o mesmo pode ser observado. Na Fórmula 1, os Grande Prêmios da Austrália e de Mônaco foram cancelados, enquanto os GPs de Barein, Vietnã, China, Holanda, Espanha e Azerbaijão foram adiados, e novos adiamentos devem ocorrer com o tempo. No basquete, a NBA suspendeu sua temporada indefinidamente no dia 11 de março. O mesmo ocorreu com hóquei sobre o gelo e outras competições.

Partindo da premissa de Heinrich Heine, de que o historiador é o profeta que olha para trás, podemos buscar exemplos na história que iluminem as ações que estão sendo tomadas, a fim de julgar sua relevância. E como em muitas outras áreas ligadas a essa nova pandemia, a comparação mais próxima a ser feita é com o caso da gripe espanhola, ocorrida nos anos de 1918 e 1919.

O impacto da gripe espanhola sobre o futebol já foi muito bem abordado no artigo do professor Elcio Cornelssen, publicado aqui na semana passada. No entanto, pretendo me ater não aos impactos da gripe no futebol, mas a diferentes competições esportivas organizadas no período.

A gripe espanhola teve como elemento central em sua difusão pelo mundo os momentos finais da Primeira Guerra Mundial. Por conta da Guerra, as principais competições esportivas internacionais já estavam suspensas desde 1914, especialmente na Europa. Na América do Sul, o Campeonato Sul-Americano de futebol masculino (que mais tarde seria renomeado como Copa América), foi adiado de 1918 para 1919 devido à pandemia. A competição programada para o Rio de Janeiro seria realizada no mês de maio de 1919, envolvendo apenas as seleções do Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. O torneio se tornou célebre por ter sido o primeiro título internacional da seleção brasileira. O jogo final, contra o Uruguai, foi homenageado com a popular música de Pixinguinha, um a zero, celebrando o gol de Arthur Friedenreich.

Para além do futebol e da América do Sul, os Estados Unidos também mantiveram seu calendário esportivo inalterado durante a Grande Guerra. E por lá os esportes também sentiram o impacto da pandemia. Em muitos estados, os campeonatos escolares e universitários foram interrompidos e eventos com aglomerações públicas foram proibidos. No baseball, a final do campeonato nacional, chamada de “World Series”, foi disputada entre o Boston Red Sox e o Chicago Cubs no início de setembro, devido ao esforço de guerra (que só terminaria oficialmente em novembro daquele ano), o que a antecipou ao pior momento da pandemia. Em estados onde ainda se realizavam eventos esportivos, pode-se encontrar registros de jogadores utilizando máscaras durantes os jogos e de confrontos de equipes universitárias realizados com estádios vazios. Um caso curioso foi a proibição temporária, nos jogos de baseball, da chamada “spitball” (bola cuspida, em uma tradução livre), onde o arremessador cuspia na bola para alterar seu peso e sua resistência ao ar, dificultando assim a ação do rebatedor.

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Jogadores de baseball utilizando máscaras durante jogo em 1919.

A competição que sentiria mais a ação da Gripe Espanhol, no entanto, foi a disputa do principal troféu de hóquei no gelo, a Stanley Cup. O confronto ocorreria em formato de “play-off”, com até cinco encontros entre as equipes campeãs das principais ligas do esporte na América do Norte. Pela Pacific Coast Hockey Association (PCHA), jogaram os Seattle Metropolitans, e pela National Hockey League (NHL), os Montreal Canadiens.

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Equipe do Seattle Metropolitans.

Vale lembrar que algumas regras diferiam entre as duas Ligas, assim os jogos 1, 3 e 5 seriam disputados com as regras da PCHA e os jogos 2 e 4 com as regras da NHL. Todos os jogos foram disputados no estádio de Seattle, e os Metropolitans saíram na frente, vencendo o jogo 1 por 7-0. No jogo 2, os Canadiens empataram a série, mas viram o time de Seattle voltar à liderança no jogo 3. O jogo 4, com regras da NHL, foi um épico empate em zero a zero, o que levou a decisão para o jogo 5, e com ela o debate sobre quais regras deveriam ser utilizadas. Ao final do debate, ficou decidido que utilizariam as regras da NHL, uma vez que o jogo era visto como um desempate do jogo 4. Ao final da prorrogação do jogo 5, o time de Montreal empatou a série com duas vitórias e um empate, o que levaria à realização do jogo 6. Esse jogo, no entanto, nunca foi realizado.

A pandemia de Gripe Espanhola atingiu as duas equipes e diversos jogadores foram hospitalizados. Com cinco jogadores da equipe de Montreal hospitalizados, o jogo 6 foi cancelado horas antes de seu início. Afirma-se que os dirigentes do Montreal Canadiens chegou a oferecer o título à equipe do Seattle Metropolitans, mas ao final das contas, foi decidido que nenhuma equipe seria declarada campeã naquele ano.

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Publicação do cancelamento do jogo extra da final. 

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Placa comemorativa na Stanley Cup referente à temporada de 1919

Quatro dias depois, no dia 8 de abril de 1919, Joe Hall, um dos atletas de Montreal hospitalizados, faleceu no hospital em Seattle, decorrente de pneumonia ocasionada pela gripe. Mesmo com seu histórico de atleta, Hall não resistiu à enfermidade. George Kennedy, técnico da equipe, também foi internado e temia-se o pior. Sua esposa veio de trem para acompanha-lo e ele acabou se recuperando.

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Joe Hall

Ainda que a história não se repita, e que as precauções adotadas hoje em dia sejam muito mais eficazes do que as de 1918-1919, podemos tirar uma desse evento uma lição. Só nos resta torcer para que fiquem todos bem.

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