O velejar como lazer e sua representação na pintura de August Macke

Elcio Loureiro Cornelsen

O pintor alemão August Macke (1887-1914) é considerado um dos grandes expoentes do Expressionismo nas Artes Plásticas. Em estudo iniciado em 2021, que se pauta pela análise de um conjunto de 30 obras selecionadas a partir do acervo digital disponível no portal Kunst für Alle (Arte para Todos), é possível constatar que algumas atividades de lazer e entretenimento ganham expressão em suas obras, entre elas, o banho de mar e também em lagos, o passeio em parques e alamedas, o convívio em locais de alimentação, a visita a locais de entretenimento, e o ato de velejar. A maioria dessas atividades, no início do século XX, já se relacionava tanto com o turismo, quanto com o mercado de entretenimento.

Em seu belíssimo estudo intitulado Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos (2009), o historiador Victor Andrade de Melo assim caracteriza o Expressionismo:

“O rótulo ‘expressionista’ é aplicado a um conjunto de artistas do Norte europeu, reunidos, em linhas gerais, em torno da crença de que a produção deveria expressar plenamente suas sensações interiores. Preconizavam um engajamento sentimental e físico intenso. Do ponto de vista formal, percebe-se uma distorção da forma e exagero no uso de cores, quebra-se com a da figura e caminha-se para a abstração. Havia nos seus intuitos uma visão de rebeldia contra a sociedade burguesa, ainda que conectada com a concepção de progresso.” (MELO, 2009, p. 142)

Lidarmos, analiticamente, com obras de Auguste Macke nos possibilita reconhecer que sua pintura apresenta elementos de transição entre o Impressionismo e o Expressionismo. Se, por um lado, evidencia-se em suas obras certa distorção da forma e emprego de cores vivas, sem se enveredar para o total abstracionismo, por outro, há elementos que apontam para traços característicos do Impressionismo nas Artes Plásticas, entre eles, a luminosidade e a pintura ao ar livre. De acordo com Neusa Cavalcante,

“[l]uz e movimento, obtidos por meio de pinceladas soltas, tornaram-se os principais elementos da pintura impressionista, feita geralmente ao ar livre para que o artista pudesse capturar melhor as variações de cor. Muitas vezes um mesmo tema era pintado em diferentes horas do dia de modo a reter os múltiplos matizes cromáticos produzidos pelas variações da luz natural.” (CAVALCANTE, 2018, p. 14)

Neste artigo, analisaremos seis obras de August Macke que apresentam o velejar como atividade de lazer, pintadas entre 1910 e 1914, que expressam também a passagem do estilo impressionista para o expressionista. Todas elas se relacionam com dois topônimos que tiveram grande significado na vida do pintor: o Tegernsee (Lago Tegern) e o Thuner See (Lago de Thun), locais de veraneio visitados por August Macke no início do século XX, sendo que o pintor chegou a residir em Hilterfingen às margens do Lago de Thun no outono de 1913, e também por alguns meses, em 1910, em Tegernsee (CORNELSEN, 2021). O primeiro deles, o Lago Tegern, se localiza na Baviera e pertence a um ciclo de estação de águas, que inclui às suas margens cidades e vilarejos como Egern, Staudach, Rottach, Bad Wiessee e Tegernsee. Já o segundo topônimo, o Lago de Thun, é um lago aos pés dos Alpes, situado no cantão suíço de Berna, que tem às suas margens os vilarejos de Oberhofen, Gunten, Merligen, Darligen, Hilterfingen, entre outros. Ainda em nossos dias, ambos os lagos são locais de veraneio, atraindo muitos turistas (CORNELSEN, 2021).

A profunda ligação de Auguste Macke com a natureza parece ter a ver com a própria origem do pintor, que nasceu em 03 de janeiro de 1887 na pequena cidade de Meschede, na região montanhosa de Sauerland, na Renânia, e que cresceu na cidade de Bonn (WALTHER; IMWOLDE, 2014). Além de ser possível constatar que proliferam imagens da natureza nas obras desse pintor, paisagens urbanas marcadas pelo mundo fabril e de inovações técnicas nas primeiras décadas do século XX, ao contrário, são pouco frenquentes, não obstante o fato de Auguste Macke, já adulto, ter viajado e conhecido a efervescência de outras cidades europeias, como Paris, e ter residido em 1908, em Berlim, no período de sua formação no ateliê do pintor impressionista alemão Lovis Corinth (1858-1925). Aliás, percebe-se que Corinth influenciou Macke decisivamente em sua produção artística, que apresenta traços do estilo impressionista. Além da predominância de luz e cor, cenas lúgubres são raras em suas obras. A mais marcante de todas, aliás, é a pintura em que Macke apresenta o tema de sua despedida, ao ser convocado para a guerra, em 08 de agosto de 1914, a última que pintara e deixara exposta no cavalete, em seu ateliê:

Abschied

(1914; A despedida)

Material: óleo sobre tela, 130,0 x 101,0 cm

(AUGUST MACKE, s/d) (https://www.augustmacke.org/Leave-Taking-Abschied-1914.html )

Diferindo de outros contemporâneos, como o pintor Franz Marc (1880-1916) e o escritor Alfred Döblin (1878-1957), August Macke não se voluntariou como soldado para ir ao front, mas sim foi convocado, por ter servido ao exército em 1909 e pertencer à reserva, a integrar o Regimento de Infantaria nº 160 na patente de oficial adjunto, aos 27 anos de idade. Pouco menos de dois meses da convocação, Macke foi uma das primeiras vítimas da guerra, morto ao ser atingido por um tiro na cabeça em 26 de setembro de 1914, em batalha travada ao sul da cidade de Perthes-lès-Hurlus, na região francesa de Champagne. Aliás, seis dias antes de morrer, foi promovido a oficial e recebeu a Cruz de Ferro, condecoração por atos de bravura. Coube a Elisabeth Gerhardt, sua esposa, atribuir o título de Abschied (“Despedida”) ao último quadro pintado (WALTHER; IMWOLDE, 2014).

Retomando o tema deste breve estudo, a primeira obra a ser analisada é o quadro Segelboot am Morgen (1910; Barco à vela de manhã), em que se destacam a luminosidade e as formas geométricas das imagens:

Segelboot am Morgen

(1910; Barco à vela de manhã)

Material: óleo sobre tela, 55,6 x 49,7 cm

(MEISTERDRUCKE, s/d) (https://www.meisterdrucke.de/kunstdrucke/August-Macke/824637/Segelboot-am-Morgen,-1910.html )

Sem dúvida, trata-se de uma apresentação pictórica dos preparativos para velejar ao amanhecer, em que dois homens içam e amarram a vela em um barco, às margens de um lago. Pela datação, pressupõe-se que se trate do Lago Tegern, onde August Macke residira por alguns meses, em 1910. A imagem da vela amarela atrelada ao mastro, que será tema de outra obra, se destaca no do quadro. Além das águas calmas do lago, vê-se em primeiro plano a margem parcialmente recoberta com grama e, do lado esquerdo, as copas de duas árvores frondosas. Ao fundo, têm-se as imagens da margem oposta do lago, aparentemente com montanhas e vegetação, e um céu que vai clareando e revelando no horizonte um tom avermelhado do nascer do sol. Além de transmitir um tom harmonioso para a cena, o quadro alude ao prazer de velejar ao amanhecer e ao desfrutar da natureza. As duas figuras humanas, que se ocupam dos preparativos para singrar as águas do lago ao vento, não recebem maiores detalhes, como em outras pinturas que contemplam esse tema, algo que será possível constatar em exemplos posteriores. Pressupõe-se que sejam ou barqueiros trabalhando, que locam suas embarcações para passeio turístico, ou que estão, eles próprios, desfrutando das águas calmas do lago para poder velejar enquanto lazer.

O segundo quadro de August Macke, selecionado para análise, é Ansicht vom Tegernsee (1910; Vista do Lago Tegern). Desta feita, trata-se de uma paisagem panorâmica, como que captada de um ponto elevado, uma encosta, em que somos convidados a contemplar a vegetação, as montanhas, o vilarejo, o lago e dois barcos à vela:

Ansicht vom Tegernsee

(1910; Vista do Lago Tegern)

Material: óleo sobre tela, 47,5 x 54,5 cm

(KUNST FÜR ALLE, s/d)

(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/132332/ansicht-vom-tegernsee/index.htm )

Pintado no mesmo ano que o quadro Segelboot am Morgen (Barco à vela de manhã), Ansicht vom Tegernsee (Vista do Lago Tegern), como o próprio título indica, ambienta-se no Lago Tegern, na Baviera, tendo, provavelmente, ao fundo, o vilarejo de Tegern, uma das localidades de veraneio pertencente ao ciclo de águas. Nele, o elemento humano está ausente, mas pressuposto nos dois barcos à vela que se movimentam no lago. Mais uma vez, o tom harmonioso se faz presente entre os elementos que o compõem. Pode-se dizer que a imagem é um desfrute para quem a contempla, mas também para quem está velejando nas águas calmas do lago. Este quadro, aliás, evidencia a influência do Impressionismo sobre a pintura de Macke, que nos remete a paisagens pictóricas de nomes famosos, como Claude Monet (1840-1926) e Pierre-Auguste Renoir (1841-1919).

Por sua vez, o terceiro exemplo selecionado para análise é Segelboot auf dem Tegernsee (1910; Barco à vela no Lago Tegern), com traços e cores vivas, distintas da pintura anterior, desta feita, mais próxima do Expressionismo:

Segelboot auf dem Tegernsee

(1910; Barco à vela no Lago Tegern)

Material: óleo sobre madeira, 72,3 x 50,7 cm

(KUNST FÜR ALLE, s/d)

(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/120754/segelboot-tegernsee/index.htm )

Conforme pode ser observado na pintura, o foco se distingue das duas anteriores, pois, desta feita, estão em destaque as figuras humanas, dois homens e uma mulher, todos trajados à moda burguesa no início do século XX, sendo que um dos homens está sentado na proa e conduz o leme, enquanto o casal está junto, sentado na lateral do barco, homem e mulher parecem contemplar pontos distintos da paisagem. Não há maiores detalhes da embarcação em primeiro plano, com seu casco e proa em tom marrom e sua vela amarela. Já no plano médio da pintura visualiza-se a representação pictórica das águas do Lago Tegern e mais um barco à vela, nas mesmas características que o primeiro: casco marrom e vela amarela. Ao fundo, predomina a imagem da paisagem, com montanhas e vegetação. Esse quadro exemplifica o tema do lazer praticado por um casal, que desfruta de momentos passeando de barco à vela pelas águas do lago e, igualmente, evidencia certo lugar social, tanto pelas vestes, quanto pelo acesso a um local de veraneio como Tegern. Assim como os demais quadros, Segelboot auf dem Tegernsee transmite uma ideia de harmonia, não só em termos estéticos, como também em relação às figuras humanas e à natureza.

Outra obra de August Macke que contempla o tema do velejar como lazer é a aquarela Am Thuner See Picknick nach dem Segeln (1913; Piquenique junto ao Lago de Thun após velejar):

Am Thuner See Picknick nach dem Segeln

(1913; Piquenique junto ao Lago de Thun após velejar)

Material: Aquarela sobre papel, montada em cartão, 27,0 × 39.6 cm

(AKG-IMAGES, s/d)

(https://www.akg-images.com/archive/On-Lake-Thuner–Picnic-after-Sailing-2UMDHUQ1OMYW.html )

Se os dois últimos quadros analisados são associados, através do título em relação de paratextualidade, com o topônimo “Tegernsee” (Lago Tegern), a aquarela Am Thuner See Picknick nach dem Segeln traz, conforme apontado anteriormente, outro topônimo significativo para o pintor Auguste Macke: “Thuner See” (Lago de Thun), localizado aos pés dos Alpes Suíços, no cantão de Berna, em cujas margens fica Hilterfingen, lugarejo de veraneio onde o pintor residiu por alguns meses em 1913. Por seus traços, cores e material, bem ao estilo expressionista, essa aquarela evidencia ser um estudo preliminar para uma pintura. Diferindo dos demais quadros analisados até o presente momento, ela se compõe, predominantemente, a partir de três cores: preto, verde e amarelo, com gradações variando de acordo com a intensidade do traço. Em primeiro plano, estão representados pictoricamente dois casais, também vestidos à moda burguesa do início do século XX, sem detalhes precisos, sendo que um dos homens e uma das mulheres estão em pé, enquanto os demais estão sentados no chão. Os homens trajam ternos e chapéus, e as mulheres também trajam chapéus com arranjos (visualmente, pouco definidos), blusas e saias longas, denotando certa formalidade social, não obstante a cena se referir a um momento de lazer: o desfrute de um piquenique às margens do Lago de Thun, após terem velejado. Alguns objetos pouco definidos estão sobre o chão, parecendo ser uma toalha sobre a qual jaz um jarro e, a seu lado, uma cesta. Também em primeiro plano, do lado esquerdo, figura a embarcação sem maiores detalhes, com vela em contornos verdes e casco em tons pretos e verdes. O entorno é representado com poucos traços, com as águas do lago, a vegetação e as montanhas. Mais uma vez, Am Thuner See Picknick nach dem Segeln reforça o caráter social relacionado ao ato de lazer, com certa formalidade evidenciada pelas vestes das pessoas, e também reitera o tom harmonioso que se estabelece entre as figuras humanas e a natureza.

O quinto exemplo da presença temática do velejar enquanto atividade de lazer na obra do pintor expressionista alemão August Macke, selecionado para análise neste breve estudo, é a aquarela Gelbes Segel (1913; Vela amarela):

Gelbes Segel

(1913; Vela amarela)

Material: aquarela sobre lápis em papel de desenho, 25,0 x 16,0 cm

(KUNST FÜR ALLE, s/d)

(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/120039/gelbes-segel/index.htm )

Mais uma vez, um detalhe presente em outros quadros analisados recebe destaque especial a partir do título da aquarela: a vela da embarcação, em cor amarela. Embora não haja nenhuma informação paratextual ou visual que indique isso inequivocamente, pela datação, trata-se de cena pictórica no Lago de Thun. Nela, identifica-se quatro figuras humanas, sendo dois barqueiros que se ocupam do içamento da vela e um casal posicionado do lado esquerdo, em primeiro plano, que está na margem do lago, sem que se possa afirmar que está contemplando a natureza ou aguardando o barco à vela para embarcar. Enquanto os traços que expressam os barqueiros são pouco definidos, com predominância da cor vermelha, o casal possui traços mais definidos do corpo, que os distingue dos barqueiros pelas vestes à moda burguesa, reiterando o sentido de lazer como evento social em um local de veraneio. Mais próxima do Expressionismo, essa aquarela de Auguste Macke reitera o gesto de representação pictórica da paisagem idílica de um lago rodeado de montanhas e de vegetação, em que se destaca o ato de velejar enquanto possibilidade de lazer, mas também de trabalho, no caso dos barqueiros que, supostamente, locam seu barco para passeios turísticos. A aquarela Gelbes Segel é marcada por sua luminosidade e por traços fortes no destaque das copas das árvores às margens do lago e também das montanhas ao fundo, predominando o tom harmonioso.

O último exemplo de obras do pintor August Macke, selecionado neste estudo, é a aquarela Hilterfingen am Thuner See (1914; Hilterfingen às margens do Lago de Thun):

Hilterfingen am Thuner See

(1914; Hilterfingen às margens do Lago de Thun)

(Material: aquarela sobre lápis em papel de desenho, 22,5 x 25,8 cm)

(KUNST FÜR ALLE, s/d)

(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/562538/hilterfingen-at-lake-thuner/index.htm )

Conforme mencionado anteriormente, Auguste Macke residiu em Hilterfingen, nos pés dos Alpes Suíços, por alguns meses em 1913. A aquarela Hilterfingen am Thuner See, embora em seu título não faça nenhuma menção ao ato de velejar, traz em destaque, no centro, uma embarcação à vela, uma “chalupa”, contendo um mastro e duas velas triangulares, atracada na margem do lago, em que está uma figura humana, provavelmente um barqueiro que controla o leme, pois as velas estão içadas. Em seu estilo expressionista, essa aquarela é marcada por traços fortes, cores vivas e luminosidade, sem que haja definição nítida dos elementos componentes da paisagem. Em primeiro plano, figuram troncos de árvore em um chão arenoso da margem do Lago de Thun. O plano de fundo é dominado pela composição da paisagem, com traços fortes em tom verde, representando pictoricamente a vegetação, além de elementos em formato de cubo que, supostamente, aludem a edificações na encosta ao redor do lago, referindo-se a Hilterfingen e sua importância como local de veraneio ao qual acorrem turistas em busca de descanso, lazer e entretenimento. Como traço predominante desse conjunto de obras analisadas destaca-se o tom harmonioso. A figura humana, mais uma vez, não recebe maiores contornos.

Considerado um grande mestre das cores, Auguste Macke expressa em seus quadros e aquarelas um mundo colorido e alegre. Nos primeiros anos de sua produção artística, aos quais pertencem as três primeiras obras analisadas neste breve estudo – Segelboot am Morgen (1910; Barco à vela de manhã), Ansicht vom Tegernsee (1910; Vista do Lago Tegern) e Segelboot auf dem Tegernsee (1910; Barco à vela no Lago Tegern) – seu estilo evidenciava traços do Impressionismo, marcante em sua formação artística na primeira década do século XX. Entretanto, tais traços seriam atualizados, nos anos seguintes, com elementos do futurismo, do cubismo e do fauvismo, sobretudo na crescente simplificação das formas (BORNEMANN, 2017), algo perceptível nas três últimas obras analisadas – Am Thuner See Picknick nach dem Segeln (1913; Piquenique junto ao Lago de Thun após velejar), Gelbes Segel (1913; Vela amarela) e Hilterfingen am Thuner See (1914; Hilterfingen às margens do Lago de Thun).

O fato de Auguste Macke ter visitado e residido em localidades de veraneio como Tegern, na Baviera, e Hilterfingen, na Suíça, ambos localizadas à beira de lagos, possibilitou ao pintor o contato com esses lugarejos idílicos e, ao mesmo tempo, com uma das atividades de lazer predominantes: o ato de velejar. Certamente, essas localidades não deixam de ser um refúgio turístico e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de se estar em meio à natureza e desfrutar de momentos de harmonia, em que predominam as belas paisagens. Os lagos com suas pequenas embarcações à vela transportando figuras da burguesia nas primeiras décadas do século XX, certamente, incluindo o próprio Macke, serviram de inspiração para o pintor. Nesse ponto, reitera-se um aspecto apontado pelo historiador francês Alain Corbin ao associar o lazer ao tempo livre, citado por Victor Andrade de Melo: “O burguês aparece ‘em grande medida como o homem com tempo livre’. E isto, mais uma vez, não quer dizer que se trate de um ocioso, longe disso: ele tenta, como os seus contemporâneos, evitar o vazio das horas.” (CORBIN apud MELO, 2009, p. 17). Conforme pudemos observar, a pintura de Auguste Macke revela o poder da arte em incorporar e produzir imagens de uma dada atividade específica, em um momento de emergência e valorização do lazer: o ato de velejar como modo de não só preencher o “tempo livre” e de “evitar o vazio das horas”, como também de estar em espaços idílicos, em meio à natureza. Tal perspectiva reitera a afirmação de Carlos Gonçalves Terra, ao argumentar que “[o] ‘prazer do lazer’, em diversas épocas, pode ser conhecido pela observação de várias obras da pintura, em que a realidade fica materializada pela mão de um determinado artista” (TERRA, 2010, p. 78). Podemos considerá-las também registros artísticos da relação entre turismo e lazer, no sentido que o historiador Bernardo Lazary Cheiub emprega: “O turismo, historicamente e enquanto fenômeno contemporâneo, apresenta-se como uma das mais atraentes e distintivas manifestações de lazer, motivada pela ‘quebra’ da rotina, na busca pela mudança de paisagens, hábitos e ritmos de vida e o contato com diferentes tradições e costumes.” (CHEIUB, 2019, p. 219) As estadas de Auguste Macke em locais de veraneio podem ser pensadas como atividades de turismo e de lazer e como fuga da rotina que, ao mesmo tempo, lhe inspiravam artisticamente.

Portanto, seus quadros e aquarelas evidenciam o anseio por imagens positivas de um mundo intacto, em que se expressa a harmonia das pessoas com as coisas que as cercam, conforme o próprio pintor certa vez definiu sua arte: um “canto à beleza das coisas” (Gesang von der Schönheit der Dinge) (citado in DEUTSCHE WELLE, 2015). Em um curto espaço de tempo, de 1910 a 1914, o conjunto de quadros e aquarelas analisados reitera essa visão do pintor, talvez ainda pautado por lampejos de otimismo frente a um contexto que, cada vez mais se tornava ameaçador, e que o vitimaria, em 26 de setembro de 1914, em uma das inúmeras trincheiras no front ocidental. Como bem aponta Victor Andrade de Melo,

“[n]aquelas duas primeiras décadas [do século XX], os conflitos materiais e simbólicos da sociedade capitalista se acirraram e a ‘Belle Époque’ caminha para seu fim com a chegada da Primeira Grande Guerra. A suposta ideia, mais fortemente estabelecida na França, de que se vivia uma época de beleza, diversão e paz, movimentada pelo grande progresso, que paulatinamente tornava mais confortável a vida de alguns, vai entrar em crise pelas próprias contradições pelo modelo econômico gestado desde o século XVIII.” (MELO, 2009, p. 113)

Naquele último quadro pintado por Macke, intitulado por sua esposa postumamente como Abschied (Despedida), deixado em seu cavalete, é o oposto dessas representações pictóricas de lazer ao velejar em lagos, em estações de veraneio, sob o signo de “uma época de beleza, diversão e paz”. Nele, longe das paisagens de Tegern e de Hilterfingen, o que nos é apresentado é uma cena de rua, algo não tão comum na pintura de Macke, em que figuram dez adultos, duas crianças e um cachorro, à noite. A escuridão que se abateria sobre a Europa Central se faz presente nessa cena, em que as pessoas parecem não estar flanando ou fazendo compras. Todas trajam vestes escuras, de luto, evocando não harmonia, mas apreensão pelo o que está por vir. Um dos mestres do Expressionismo alemão, August Macke nos deixou obras primas de uma época em que, não obstante seu caráter sombrio, se fazia expressar em sua pintura marcada por luminosidade e pelo dourado do sol, pelo tom amarelo das velas das embarcações, do azul celeste e suas variações nas águas dos lagos, da vegetação e das montanhas na Baviera e nos Alpes Suíços, e de figuras humanas, membros da burguesia europeia do início do século XX, que buscavam o lazer ao velejar e ao contemplar paisagens idílicas em estações de veraneio como as de Tegern e de Hilterfingen.

Referências Bibliográficas

AKG-IMAGES. s/d. Disponível em: https://www.akg-images.com/archive/On-Lake-Thuner–Picnic-after-Sailing-2UMDHUQ1OMYW.html. Acesso em: 15 fev. 2022.

BORNEMANN, Sandra. August Macke. In: Portal Rheinische Geschichte. 2017. Disponível em: http://www.rheinische-geschichte.lvr.de/Persoenlichkeiten/august-macke/DE-2086/lido/57c9469241d290.28232784 . Acesso em: 06 dez. 2021.

CAVALCANTE, Neusa. Do Impressionismo à arte abstrata: a influência da fotografia e das teorias da percepção. Paranoá – Cadernos de Arquitetura e Urbanismo. Brasília, DF, n. 21, p. 1-18, jul./dez. 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/paranoa/article/view/24054. Acesso em: 17 fev. 2022.

CHEIUB, Bernardo Lazary. Turismo social e mediações: problematizando um projeto de extensão da Universidade Federal Fluminense. In: GOMES, Christianne Luce; DEBORTOLI, José Alfredo Oliveira; SILVA, Luciano Pereira da (orgs.). Lazer: práticas sociais e de mediação cultural. Campinas, SP: Autores Associados, 2019, p. 219-235.

CORNELSEN, Elcio. Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog Estudos do Lazer. 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 15 fev. 2022.

DEUTSCHE WELLE. Rheinischer Expressionismus in Bonn: Museum August-Macke-Haus eröffnet. 2015. Disponível em: https://www.dw.com/de/rheinischer-expressionismus-in-bonn-museum-august-macke-haus-eröffnet/a-41630757. Acesso em: 06 dez. 2021.

MEISTERDRUCKE. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.meisterdrucke.pt/artista/August-Macke.html. Acesso em: 15. fev. 2022.

TERRA, Carlos Gonçalves. O prazer no jardim. In: MARZANO, Andrea; MELO, Victor Andrade de (orgs.). Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 75-95.

WALTHER, Lutz; IMWOLDE, Janca. August Macke. In: LeMO – Lebendiges Museum Online. 14 set. 2014. Disponível em: https://www.dhm.de/lemo/biografie/august-macke . Acesso em 06 dez. 2021.

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