Marte um (Gabriel Martins, 2022)


Eunice – Deivinho quer participar de uma missão que se chama Marte Um – colonizar o planeta.
Wellington (pai) – E como faz pra participar disso aí? Custa caro?
Deivinho – Milhões de dólares, pai…
Wellington – Uai, a gente dá um jeito.

Marte um desenvolve os percalços de uma família mineira negra, de classe média baixa. Esse protagonismo fílmico ainda pouco comum não é casual. A obra foi possível a partir do primeiro edital para negros do audiovisual no Brasil (Longa BO Afirmativo 2016), o qual viabilizou ainda Um dia com Jerusa, de Viviane Ferreira e Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso (MATHIAS, Roberta. O espaço é aqui. Disponível em: https://apostiladecinema.com.br/marte-um/. Consultado em 05/12/2022).

O enredo se desdobra pelos conflitos e dificuldades muito cotidianas da família Martins. O prenúncio que as coisas podem piorar parece ser anunciado, logo no início da película, pelo áudio em off da eleição de Jair Bolsonaro. Pois bem, o núcleo familiar é composto pelo porteiro Wellington (Carlos Francisco), sua esposa, a diarista Tercia (Rejane Faria) e seus dois filhos: o pequeno Deivinho (Cícero Lucas) e sua irmã, Eunice (Camila Damião). Wellington é dependente de álcool, mas ostenta uma medalha de quatro anos de abstinência. Tercia trabalha em casas de família, mas a oferta é incerta. Eunice está estudando direito e Deivinho é a grande aposta do seu pai: joga um bolão e parece ter futuro como futebolista. É aqui que entra o gancho para este post. Como já vimos muitas vezes (neste blog e pela literatura especializada), há múltiplas formas do esporte (no caso, o futebol) compor a trama narrativa de uma película. Neste caso, não se trata de um papel central, mas é importante o suficiente para estabelecer os termos de um sério dilema para Deivinho e Wellington e constituir-se em parte estruturante dos vários subtemas da trama. Por isso, talvez, tenha sido exibido no último cinefoot, inclusive na data significativa de 20 de novembro (https://cinefoot.org/filme/marte-um/).

Sumariando bastante, somos paulatina e seguidamente conduzidos a um conjunto de situações conflitivas. Wellington trabalha há anos em um prédio de classe alta. É considerado em seu local de trabalho, mas não ganha o suficiente e tem que lidar com favores não remunerados para a síndica do edifício (situação que vai acabar se tornando trágica). Eunice quer independência. Começa a namorar uma menina (de melhor condição) e conseguem viabilizar as condições para morarem juntas. Inicialmente, Eunice só se sente à vontade de falar sobre seu namoro com o irmão. Tem receio da oposição dos pais. Deivinho também tem seus problemas. É craque, joga com os mais velhos e é disputado pelos times amadores locais. No decorrer da história vai acabar ganhando a chance de entrar em uma “peneira”, com indicação de ninguém mais que Juan Pablo Sorin, ídolo do Cruzeiro, time do coração de seu pai. Sorin (o jogador, que interpreta a si mesmo) se muda para o prédio do zelador e as coisas são arranjadas. Mas, tem um problema. Apesar de gostar da bola, Deivinho quer mesmo é ir pra Marte… Aqui entra uma alusão a uma possível colonização do planeta vermelho até o ano 2030, pela NASA, em uma missão conhecida como Humans to Mars, ou Marte um. Deivinho é inteligente, estudioso e fã de Neil de Grasse Tyson, o astrofísico pop-star americano (HONORATO, Roberto. Um pouco de otimismo em tempos sombrios. Disponível em: https://www.planocritico.com/critica-marte-um/. Consultado em 05/12/2022).

Dona Tercia, por sua vez, vai passar por uma experiência ruim e, aparentemente, entrar ou pensar entrar em um período “carregado”. Vai a médicos e também procura ajuda espiritual.

A dinâmica dos acontecimentos vai ser contundente. A mudança de Eunice e sua relação com uma moça vão gerar resistências; a peneira de Deivinho vai bater com uma palestra de Neil de Grasse Tyson, para a qual o garoto, com a ajuda da irmã, fez de um tudo para conseguir ir e Wellington vai perder o emprego e, claro, ter uma recaída no vício. Mas, chega de spoiler.

Eu destacaria uma ou duas coisas. O conjunto das interpretações é convincente. É intimista e gera uma espiral (descendente, aparentemente) que incomoda (e, nesse sentido impacta). Há também o emprego de um conjunto de recursos narrativos e imagéticos que antecipam ou sugerem o rumo dos desdobramentos, além de claras intenções metafóricas. Colonizar Marte é o tamanho das possibilidades que essa família, com todas as dificuldades, não se permite estabelecer como um interdito. Deivinho poderia vir a brilhar como astro de futebol (um caminho raro, posto que difícil, mas já enfronhado na expectativa de possibilidades de um menino negro, habilidoso), mas ele também pode brilhar nas estrelas. Nem o céu é mais o limite. Daí o traço de otimismo e, diria eu, de militante e potente auto-estima, já assinalado por comentaristas (HONORATO, Roberto. Um pouco de otimismo em tempos sombrios. Disponível em: https://www.planocritico.com/critica-marte-um/. Consultado em 05/12/2022). Deivinho é bom de bola, mas também é bom de ciências. Monta um telescópio, com materiais do ferro velho e com uma lente, herança de seu avô (o qual também era engenhoso). Os Deivinhos podem fazer o que quiserem fazer, é o que nos é dito, filmicamente. E isso vale para os demais membros da família Martins, apesar dos duros empecilhos cotidianos e sociais.

E se os Deivinhos podem ir para marte, por que esse filme não pode ganhar o Oscar? Marte Um é o representante do Brasil na corrida para o Oscar de melhor filme internacional. Nesses tempos de Copa, fica mais essa torcida.

Até a próxima!

Ficha Técnica:

Marte Um – Brasil, 25 de agosto de 2022
Direção: Gabriel Martins
Roteiro: Gabriel Martins
Elenco: Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião, Cícero Lucas, Ana Hilário, Russo APR, Dircinha Macedo, Tokinho e Juan Pablo Sorin.

Disponível em: https://www.planocritico.com/critica-marte-um/. Consultado em 05/12/2022.

Comentários encerrados.