Go for Gold [i] ! Os primeiros Jogos Olímpicos do Hemisfério Sul

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    Jorge Knijnik 

O esportologista australiano Daryl Adair sempre reafirma em seus escritos o amor incondicional e apaixonado que, segundo ele, os australianos devotam ao Esporte. Este amor seria uma das razoes pelas quais a Austrália sempre manteve uma relação “duradoura e prolongada” com o Movimento Olímpico e com os Jogos, sendo este um dos cinco países que enviaram representantes a todas as edições dos Jogos de Verão.  Adair, em seu mais recente post sobre os Jogos de Londres (Australia plays on the world stage at the Olympics) constrói uma teoria muito interessante sobre as razões deste triangulo amoroso envolvendo o Esporte, a Australia, e os Jogos Olímpicos. A teoria de Adair esta alicerçada em dois pontos:

Em primeiro lugar, a competição esportiva foi um excelente palco para que os Australianos pudessem mostrar o seu real valor em face de seus ex-colonizadores britânicos e da Europa como um todo. Ao contrario de outras atividades humanas, tais como as artes, o teatro e a literatura, nas quais as subjetividades culturais sempre colocavam as produções australianas como de “segunda classe” em face da tradição cultural historicamente constituída das “metrópoles”, a arena esportiva, obviamente, se apresentava como um lugar em que as qualidades dos embatedores podiam ser, literalmente, medidas. Este e’ o caso da famosa competição de cricket The Ashes (cf Quando as cinzas renascem , post que publiquei aqui no Historia(s) do Sport ha algum tempo), que sempre forneceu um motivo de orgulho e reafirmação nacional para um pais com uma historia recente e uma população relativamente pequena (22 milhões atualmente).

O segundo ponto da teoria de Adair para enfatizar a ligação da Austrália com o fenômeno esportivo e com os Jogos Olímpicos é o fato de que, ate hoje, todas as edições dos Jogos Olímpicos de Verão foram realizadas no Hemisfério Norte, a exceção de duas, ambas na Austrália[ii]: uma delas grande parte d@s leitores do blog se lembra (Sydney 2000); a outra, que foi a primeira edição dos Jogos no Hemisfério Sul, ocorreu em Melbourne, em 1956. Para Adair, naquele tempo, quando a população Australiana ainda não atingia a marca de 10 milhões de pessoas, as medalhas olímpicas representavam mais do que nunca um motivo de “orgulho nacional” para este pais-continente. Receber uma edição dos Jogos, então, e ter a possibilidade de torcer ao vivo pelos seus atletas, e conquistar uma posição de destaque no “quadro de medalhas”[iii], representou uma chance de ouro (sorry pelo trocadilho…) para a população Australiana…

Os primeiros Jogos Olímpicos do Hemisfério Sul, entretanto, foram palco de disputas politicas e também de acontecimentos esportivos extremamente interessantes e curiosos, alguns dos quais eu relato neste artigo.

Primeira curiosidade: como @ leitor atento já reparou na imagem acima, os Jogos de Verão de Melbourne foram realizados no…verão! Isso mesmo, nos meses de novembro e dezembro, obviamente o verão no hemisfério Sul…Isto causou uma polemica danada, os delegados europeus do COI reclamaram muito, uma vez que esta época, o inverno deles, seria o período de descanso dos seus atletas…Mesmo assim, e ganhando de Buenos Aires na quarta rodada eleitoral por apenas um voto, em 1949 Melbourne conquistou o direito de sediar os Jogos. Os Estados Unidos, dividido entre 6 cidades que pleiteavam a sede, e mesmo o México, não foram páreo para Melbourne.

Logo de saída, entretanto, um problema. As leis de quarentena animal australianas, ainda mais rigorosas naqueles dias, não permitiriam a entrada de cavalos estrangeiros, impedindo assim que o pais sediasse as competições equestres[iv]. O que fazer? Mesmo em contradição com a propalada “união da família olímpica”, os eventos equestres dos Jogos foram realizados em Estocolmo (Suécia) em junho do mesmo ano, cinco meses antes do inicio das competições em Melbourne – caso alguém se interesse em consultar o sitio do Comitê Olímpico Internacional, ate’ hoje os jogos de 1956 são denominados como Melbourne/Stockholm 1956.

Mesmo assim, e em meio a muitas dúvidas sobre a capacidade da cidade em finalizar as construções necessárias a realização dos Jogos, 3.314 atletas (sendo 376 mulheres e 2.938 homens) provenientes de 72 países fizeram historia nos Jogos de Melbourne, competindo em 145 eventos e transformando estes Jogos em palco não apenas de ótimas disputas esportivas, mas também de incríveis fatos políticos – e de mudanças, para melhor, em algumas “tradições” olímpicas. Como diria meu saudoso Mestre Clodoaldo Mesquita[v], comecemos pelo começo.

A)     Ladies first: alguns feitos esportivos de destaque em Melbourne

Impossível destacar tudo o que ocorre em uma competição tão grandiosa como os Jogos. Então, entre inúmeras possibilidades, relato quatro realizações esportivas que me chamaram a atenção nos Jogos de 1956

–          Betty Cuthbert – Em uma época na qual a participação esportiva da mulher ainda era restrita, esta garota de Sydney, então com 18 anos, ganhou três medalhas de ouro em Melbourne: foi primeira nas provas de 100 e 200 metros rasos, e como membro da equipe de revezamento 4×100 da Austrália. Ela ainda viria a ganhar seu quarto ouro olímpico nos Jogos de 1964, Tóquio, na prova de 400 metros. Mas lindo mesmo é ver esta atleta muitos anos depois, então uma senhora em cadeira de rodas, participando da abertura dos Jogos de Sydney em 2000, quando, celebrando os 100 anos de participação feminina nas Olimpíadas[vi], ela e outras mulheres atletas ajudaram a carregar a tocha e no acendimento da pira olímpica durante a cerimonia;

–          O fator ‘home ground’ : Mostrando que jogar em casa pode ter um peso significativo para alguns países, a Austrália faturou 13 ouros nestes Jogos, mais do que havia ganhado em uma única Olimpíada até então;

–          A primeira vez  de uma lenda Olímpica: O Norte-Americano Alfred Oerter Jr. iniciava em Melbourne a sua coleção de quatro ouros na prova do arremesso de disco. Ele ganharia ainda mais três títulos olímpicos em sequência (1960, 64,68);

–          Mais mulheres: Houve 33 provas na competição de atletismo em Melbourne, das quais 24 foram disputadas por homens, e nove por mulheres. Apenas a titulo de comparação, em Atenas 2004, a competição de atletismo teve 46 provas, sendo 24 masculinas e 22 femininas… Até a década de 1960, as mulheres não competiam em provas com distancias maiores do que 200 metros…Apenas nos Jogos de Londres, 2012, todos os países participantes apresentaram delegações femininas também… É uma longa trajetória para a emancipação esportiva feminina…

B)     Política nos Jogos? Imagina…

–          Guerra Fria. 1956  era uma época de escalada e ascensão dos impérios que pautaram a cena politica internacional por muito tempo. Naquele mesmo ano, a então União Soviética invadiu a Hungria, massacrando a Revolução Húngara. Em virtude dos sangrentos massacres decorrentes desta invasão, e em protesto contra a participação soviética nos Jogos de Melbourne, Espanha, Holanda e Suíça desistiram de participar dos Jogos de 1956;

–          Aguas sangrentas. Esta invasão também esteve na raiz na batalha travada em um jogo de polo-aquático entre a Hungria e a URSS em Melbourne[vii]. Os húngaros, que haviam sido forçados a aprender russo na escola quando crianças, tinham por estratégia provocar e xingar os russos e suas famílias. Socos, pontapes e narizes sangrando – e uma pequena invasão da piscina por torcedores contidos pela policia foram as consequências deste jogo politicamente “eletrizante”;

–          Mais boicotes. A Republica Popular da China boicotou os Jogos de Melbourne porque a Republica da China pode competir sob o nome de “Formosa”; Egito, Líbano e Iraque também boicotaram os Jogos por conta da invasão do Canal de Suez promovida por Israel, Inglaterra e Franca;

–          Um pouco de paz: Em uma grande articulação politica, atletas das duas Alemanhas (leste e oeste) competiram sob uma mesma bandeira – time unido da Alemanha. Esta união desapareceria nos Jogos de 1968

 

C)      Tradições Olímpicas. Uma tradição acabava nos Jogos de Melbourne, para outra, bem mais impactante, ter inicio: inspirada por uma carta anônima enviada aos Comitê Olímpico Internacional algumas semanas antes do inicio dos Jogos, a cerimonia de encerramento das Olimpíadas de Melbourne colocou todos os atletas de todos os países desfilando lado a lado,  ao invés de separados pelas bandeiras de seus países, em uma clara demonstração de união dos povos. Apenas 30 anos mais tarde, um individuo de ascendência chinesa identificou-se como autor desta ideia transformadora. John Ian Wing, que tinha 17 anos quando escreveu aquela carta, foi então agraciado com uma medalha olímpica por sua histórica contribuição ao Movimento Olímpico.

Brasil em Melbourne

O nosso Brasil varonil ganhou uma única medalha em Melbourne, um ouro com o triplo saltador Adhemar Ferreira da Silva (“estrelas amarelas na camisa tricolor!”[viii]). Com a marca de 16,35 metros, nosso bicampeão olímpico (havia sido campeão na edição anterior, em Helsinque) cravou um recorde nos Jogos, o qual perdurou nada menos que 48 anos… E mais: ganhar duas vezes a medalhinha dourada em Jogos foi um feito que, entre os brasileir@s, foi conquistado novamente apenas em Atenas 2004, pelos voleibolistas Giovane e Mauricio, e pelos velejadores Torben Grael e Robert Scheidt. Nada fraca esta turminha bi! Mas legal mesmo, histórica e esportivamente profunda foi a relação que se criou entre o Brasil e a Austrália, em virtude de um encontro que Adhemar manteve durante os Jogos de Melbourne – vale a pena ver neste pequeno video aqui.

Apos ver o vídeo, fiquei imaginando que tipo de encontro mágico poderá acontecer nos Jogos do Rio 2016, que resulte em uma aproximação ainda maior entre os dois países? Uma menina brasileira, visitando as provas de atletismo, e de repente vendo pela primeira vez algum espécime raro da Austrália – um canguru? E disso resultando um belíssimo trabalho social, diversos saltos sobre oceanos… Just my imagination…?

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NOTAS

[i] Go for Gold (Vamos ganhar Ouro!) é um dos slogans que patrocinadores empregam em pecas publicitarias, para incentivar o Aussie Team (Time Austrália)para os Jogos de Londres. Uma pena que esta empolgação se traduza apenas com o ouro…e o Aussie Team vem ganhando pratas incríveis! Como no Brasil, um bom debate atravessa a sociedade Australiana, sobre o valor do ouro, da prata, do bronze e da participação olímpica e esportiva. Apos os “tradicionais” excessos e acusações sobretudo na primeira semana, quando os esperados e ja ‘contabilizados’ ouros na natação não apareceram, o debate continua caliente, com manchetes absurdas do tipo “um pais nos ombros de um atleta” que pode ganhar ouro, etc…Mas ha também gente bastante equilibrada, e inclusive alguns  comentaristas televisivos destacando e incentivando não apenas a participação dos Aussies, mas também de países “desfavorecidos” da África, por exemplo. Valores como a participação e o esforço tem encontrado um eco interessante entre as pessoas e a mídia.  (ah, sempre tem aqueles que conhecem o caminho para o ‘pote de ouro olimpico’ -e não é o final do arco-iris… claro, ‘mais esporte na escola!’ eles bradam…ja ouviram isso antes?)

[ii] Rio 2016 será a terceira no hemisfério Sul! Avanti South America!

[iii] Coloco entre aspas porque vejo muitas coisas bacanas nos Jogos, mas também enxergo outras tantas muito prejudiciais. No rol das coisas perversas das Olímpiadas, vejo o “quadro de medalhas” como uma das piores: sem levar em conta condições históricas e sociais e, pior, sem considerar que cada competição e’ um campeonato mundial a parte, o quadro equipara e compara coisas que são em essência incomparáveis, tal qual a dita “performance” de países. E pior, ao colocar o primeiro lugar, o ouro, como o maior valor, comete um erro absurdo e que contradiz inclusive a filosofia olímpica: por que cargas d’agua um pais com uma única medalha de ouro (digamos, conquistada por um erro de arbitragem ou por um milésimo de segundo em uma corrida qualquer) fica a frente de um outro com nenhum ouro mas com 47 pratas? Enfim, um debate que valeria ser feito com a devida profundidade, quem sabe o  Luiz Rojo ou o Otavio Tavares não me ajudam nisso…

[iv] Para mais detalhes desta e de outras historias aqui citadas, cf. Allen Gutmann (2002), The Olympics – A History of the Modern Games, University of Illinois Press.

[v] Que saudades! Tó Veleirinho, quando mudarão as 17 imutáveis regras do futebol?

[vi] Mais sobre a participação feminina nas Olímpiadas e no Esporte em geral em meu próprio livro A Mulher Brasileira e o Esporte: Seu corpo, sua historia  publicado pela editora Mackenzie em 2003.

 [vii] Cf. Rinehart, R. “Fists flew and blood flowed”: Symbolic Resistance and International Response in Hungarian Water Polo at the Melbourne Olympics, 1956. Journal of Sport History, Vol. 23, No. 2 , 1996.

[viii] Escute esta e outras preciosidades musicais-são-paulinas no cd do Hélio Ziskind, Coracao de 5 pontashttp://www.mcd.com.br/spfc/

 

EM TEMPO E SUPER IMPORTANTE – Obrigado Laercio.cev.org.br pelo apoio de sempre!

EM TEMPO E SUPER IMPORTANTE II – Parabens ao meu papai, Dr. Carlos Knijnik por mais um dia dos pais ai no Brasil! Saude e felicidade!

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