Os Jogos Interaliados de 1919: primeira competição multiesportiva internacional para militares

por Karina Cancella

Em 1918, após o fim da Primeira Grande Guerra, o Comandante das Forças Expedicionárias Americanas (FEA) General John Pershing apresentou uma proposta aos comandantes das forças aliadas de realização de um evento esportivo para celebração do fim dos conflitos.

As negociações para a organização de tais Jogos foram estabelecidas entre a FEA e a Young Men’s Christian Association (YMCA), que atuou ao longo da guerra na promoção de atividades recreativas para militares no front europeu, já nos meses finais de 1918. As duas instituições debatiam as bases para a definição das atribuições de responsabilidades com relação aos eventos e também os programas e calendários de atividades. Foi estabelecido que a participação das delegações seria efetivada por meio de convites diretos do comandante-em-chefe da FEA aos comandantes-em-chefe dos exércitos aliados. Do ponto de vista organizacional, seria estabelecido um comitê geral da FEA para os Jogos que atuaria em conjunto com os Diretores Atléticos da YMCA. Esse comitê seria a entidade decisória e a autoridade final em todos os assuntos relativos ao evento. Para compor a comissão, seriam ainda convidados dois delegados de cada exército participante para a formação de um Conselho Consultivo com função de apresentar as propostas ao Comitê organizador e dar toda a assistência geral possível visando ao sucesso das competições. [1] (CANCELLA, 2016).

Uma problemática, no entanto, foi identificada quanto à liderança dos EUA na organização dos Jogos em Paris:

O comandante-em-chefe estava em forte simpatia com as propostas dos Jogos a partir do dia em que a ideia foi apresentada pela primeira vez. Mas ele foi confrontado com uma dificuldade. Se ele aceitar as sugestões da YMCA e convidar as nações aliadas a entrar com seus atletas militares nos Jogos como comandante-em-chefe de um exército americano na França, ele estaria na posição de uma pessoa que convida seus amigos a uma festa na casa de outro homem sem primeiro garantir que esse recebimento seria aceitável para o proprietário. Antes que qualquer um desses convites possa ser estendido, […] tornou-se necessário verificar se tal procedimento seria aceitável para o exército francês e para o Governo […][2]

Foram então realizados contatos com entidades e autoridades sobre o caso. A YMCA se comunicou com o Comite Nationale d’Education Physique, Sportive et de 1’Higiene Social solicitando que verificasse com o Marechal Pétain seu parecer sobre a realização do evento. Em carta enviada ao militar, a entidade defendeu que via com bons olhos a proposta uma vez que auxiliaria na “difusão da prática saudável da educação e da higiene física, que é a base do seu programa para a regeneração da raça francesa”. Destacaram, ainda, que favoreceria o desenvolvimento de “irmandade pelo desporto” com os demais países e uma rivalidade saudável entre as unidades militares, com atividades que manteriam a forma física e seriam “uma excelente influência moral para os soldados, a quem a cessação das hostilidades transferiu de repente da vida intensa da batalha para o período de espera da desmobilização”. [3] A entidade francesa ainda pontuou que seria vantajoso, já que todos os custos seriam cobertos pelos EUA e o estádio construído e utilizado durante os Jogos “ficaria sem custo à disposição da juventude francesa, como um testemunho permanente da amizade indelével unindo as duas democracias”. [4] Sobre essa questão, foi enviado ofício datado de 07 de janeiro do Comite Nationale ao Diretor do Departamento Atlético da YMCA informando o aceite por parte do governo francês e do comandante-em-chefe das tropas francesas, Marechal Pétain, para a organização do evento nos termos propostos pela YMCA e pela FEA. (CANCELLA, 2017).

Todo o processo de organização e realização do evento foi documentado e publicado em forma de relatório, composto por 554 páginas, com informes detalhados sobre os Jogos Interaliados. No documento, foram apresentadas as participações dos países aliados convidados nas provas e ações administrativas. O General Pershing, conforme os acordos, enviou convite às 29 nações, colônias e territórios integrantes das Forças Aliadas na Primeira Guerra para participação no evento. (CANCELLA, 2017).

Os critérios para participação no evento definiam que somente seriam elegíveis aqueles homens, integrantes das Forças Armadas Aliadas, que tivessem participado em qualquer momento da guerra entre 04 de agosto de 1914 e 11 de novembro de 1918. Não foi levada em consideração a discussão sobre esportistas amadores e profissionais. (CANCELLA, 2017).

Das nações convidadas, 16 delegações de países compareceram, além de indivíduos provenientes da Polônia e da Grã-Bretanha, uma vez que as autoridades militares não teriam atendido formalmente aos convites para participação. As recusas vieram, em grande parte, de países da América Central, da Ásia e da África, possivelmente pela distância geográfica e pela pouca presença de soldados na Europa no período de realização dos Jogos. (TERRET, 2006).

Nas propostas iniciais, os Jogos deveriam ocorrer no mês de abril ou maio, mas só se realizaram de fato entre junho e julho de 1919 devido ao tempo necessário para o preparo de toda a estrutura do evento. Foi também considerada a possibilidade de utilizar o estádio Colombes, palco principal dos Jogos Olímpicos de 1900 em Paris, como sede. No entanto, foi decidido pela construção de um novo estádio para os Jogos Interaliados. O espaço de Colombes foi utilizado como campo de treinamento e realização de competições internas da FEA e somente para as partidas de rúgbi durante os Jogos Interaliados. (CANCELLA, 2017).

Aguardava-se a participação de cerca de 1.500 esportistas militares nos eventos[5] e a capacidade do novo estádio, que recebeu o nome de “Pershing Stadium”, era de receber 27.500 pessoas que poderiam participar gratuitamente dos Jogos retirando ingressos em locais pré-definidos. Os militares tinham livre acesso caso estivessem fardados. [6] (CANCELLA, 2017).

Houve certa preocupação com o processo de escolha das modalidades a serem disputadas. No relatório sobre os Jogos, registrou-se que, sendo uma competição promovida pela FEA, seria sua prerrogativa, segundo os costumes estadunidenses, selecionar o programa para o evento. No entanto, havia o pensamento de que, por haver um conjunto de esportes muito bem conhecidos nos Estados Unidos e talvez não tanto em outros países, pudesse ocorrer certa injustiça. Levando esse aspecto em consideração, iniciaram-se as discussões sobre o programa para o evento. Chegou-se a levantar o ponto de que, se este era o primeiro encontro esportivo exclusivamente para militares, seria interessante organizar um programa somente com “esportes militares”. (CANCELLA, 2017). Sobre essa colocação, considerou-se o seguinte:

Mas o que são os esportes militares? Todo esporte conhecido pode ser facilmente rastreado de volta a um tempo em que era um exercício em que um guerreiro deveria primar e a excelência na maioria deles é tão útil a um soldado na guerra moderna como foi em qualquer momento no passado. Parecia não haver maneira de fazer do torneio um torneio militar distintamente. [7]

A compreensão, naquele momento, era de que todo esporte poderia ser benéfico para o desenvolvimento de habilidades militares, logo todos poderiam ser “esportes militares”. Posteriormente, Forças Armadas em diferentes partes do mundo foram responsáveis por criar modalidades específicas que envolvem técnicas exclusivas dos exércitos, marinhas e forças aéreas como pentatlo naval, pentatlo militar e pentatlo aeronáutico. Já nos Jogos de 1919, foi inserida no quadro de modalidades a competição de lançamento de granada, prática exclusivamente militar. Esse “evento esportivo mais jovem”, como foi categorizado pelos organizadores, garantiu seu espaço no programa, segundo os autores do relatório, pela grande importância atribuída pelos militares às granadas de mão no desenrolar da Primeira Guerra. (CANCELLA, 2017). Sobre esse ponto, argumentaram que:

Quando o lançamento de granada de mão começou a desempenhar um importante papel na Grande Guerra, as bombas eram arremessadas normalmente a partir dos limites estreitos de uma trincheira profunda. A forma ideal para tal lançamento foi pensada para ser um longo movimento de braço varrendo, com o cotovelo quase rígido, tanto para proteger o braço como para evitar o perigo de a granada não sair da trincheira. Quando os Estados Unidos entraram na guerra, os soldados americanos foram ensinados a jogar a granada desta forma, mas eles tinham suas próprias fortes opiniões sobre a matéria e, eventualmente, provaram que eles poderiam jogar com precisão de longa distância das profundezas de uma trincheira com o movimento do braço tão comumente associado com o beisebol. Tendo em conta esta controvérsia por parte dos soldados americanos, as regras que regiam o evento de lançamento de granada de mão permitiam a utilização do braço e qualquer forma preferida pelo concorrente. A granada utilizada foi a francesa F-1, pesando 600 grs. carregada. Os concorrentes foram autorizados a correr para a linha de lançamento se eles preferissem. O arremesso foi feito a partir do campo e a granada não foi lançada sobre qualquer obstáculo. [8]

Diante desses enunciados, pode-se considerar que a competição de lançamento de granada nos Jogos Interaliados de 1919 seria a primeira prova de esporte exclusivamente militar registrada. (CANCELLA, 2017).

Entre 22 de junho e 06 de julho, então, os Jogos Interaliados foram oficialmente realizados em Paris. O Estádio Pershing recebeu as cerimônias de abertura e de encerramento, exibições especiais e as provas de diversas modalidades, havendo ainda outros locais de prova, como o estádio de Colombes recebendo o rúgbi e a Lagoa de Saint James com as provas de natação e polo aquático. [9]

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Imagem publicada na revista “La vie Au Grand Air” em 15 de julho de 1919, página 35. Na imagem, no canto inferior direito, é possível ver o seguinte texto: “Em 22 de junho, foi inaugurado o Estádio Pershing. A sessão inclui apenas os desfiles dos atletas e tropas. Nossa foto representa a passagem da equipe americana, ganhadora dos Jogos, em frente à tribuna presidencial. No medalhão, o General Pershing, o Presidente da República e M. Leygues, Ministro da Marinha”. (Tradução da autora).

Referências:

CANCELLA, K. Os Jogos Interaliados de 1919: o papel das Forças Armadas estadunidenses na promoção do esporte no contexto da Primeira Grande Guerra. Navigator, v. 12, p. 33-48, 2016.

______. Para reforço do moral e desenvolvimento físico do pessoal: a prática do esporte nas Forças Armadas estadunidenses e brasileiras em perspectiva comparada (1914-1922). 2017. Tese (Doutorado em História Comparada) – Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.

TERRET, T. The Military “Olympics” of 1919: sport, diplomacy and sport politics in the aftermath of World War One. Journal of Olympic History, v. 14, n. 2, p. 22-31, ago. 2006.

[1] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 24-25.

[2] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 25-26. Tradução da autora.

[3] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 26. Tradução da autora.

[4] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 26. Tradução da autora.

[5] Les Jeux Interalliés. L’Auto, 19 de junho de 1919, p. 3.

[6] Une visite au Stade Pershing. L’Auto, 15 de junho de 1919, p. 3.

[7] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 77. Tradução da autora.

[8] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, p. 83. Tradução da autora.

[9] The Inter-Allied Games – Paris 22nd June to 6th July 1919 – Published by the Games Committee, Program June 22 – July 6, 1919.

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