UM SPORT DE REPRESENTAÇÕES: o futebol suburbano e a grande imprensa carioca

Por Nei Jorge dos Santos Junior

Os primeiros momentos do futebol no Rio de Janeiro foram marcados por uma série de interesses e representações que relacionavam o velho esporte bretão à formação de um novo modelo de cidadão. Mesmo pautado pelos valores do cavalheirismo, do fair­play, e do amadorismo, elementos indispensáveis para uma sociedade em que adotava o modelo europeu como parâmetro cultural para a recém ­instaurada República brasileira, a prática foi difundida pelos mais distintos bairros da cidade, desencadeando conflitos ao redor da imagem de distinção social desejada pelos sportsmen e pela grande imprensa da época.

Foto.Sport.1915

Fonte: Sports, ano 01, n.2, 1915, p.21.

Nesse cenário, aumentava-se o número negros, operários e indivíduos das camadas populares, que incomodava àqueles que revestiam a modalidade, pelo menos discursivamente, de um caráter “civilizacional” superior. Esses novos personagens, tanto a torcida quanto os jogadores, adotavam certos comportamentos que, no olhar dos setores sociais mais privilegiados economicamente, eram considerados lamentáveis. Essa mudança de sentidos reforçava um fator ideológico, já que as páginas dos principais periódicos da cidade deixavam de celebrar a sofisticação e a fidalguia para declarar a desmoralização e o repúdio pela prática nos centros mais pobres da cidade. Buscava-­se, portanto, no comportamento desses sujeitos, ações que diferenciassem das propostas idealizadas pelos sportsmen, reproduzindo, efetivamente, um conjunto de reações extraídos das agremiações da Zona Sul. Vejamos o que publicou o Correio da Manhã em 14 de julho de 1919, sob o título: “O encontro Bangu x S. Christovão não terminou…”

A Infelizmente o nosso football ainda não está de todo civilizado.
inda ontem no campo do Bangu A. C., por ocasião do encontro dos teams locais com os do S. Cristóvão, registraram-se factos que são tão indignos, que mais mereciam ser lamentados numa secção policial.
Faltando 22 minutos para terminar o encontro Patrich perdendo a pelota para Hugo agride este jogador no que é repelido.
Estabeleceu-se o tumulto, que teve como consequência a invasão do campo, novas agressões, pauladas, revólveres e navalhas em cena e… suspensão do jogo!
Não sabemos ainda quais os culpados de tamanha falta de educação: se os desordeiros da Favela ou se os agressores do Morro Pinto.
Francamente, srs. Sportmen. Isto nunca foi football! Acabemos com estas cenas lamentáveis, antes que a polícia prepare um lugar seguro para serem trancafiados os desordeiros que se querem impingir como sportmen! (Correio da Manhã, 14 de julho de 1919, p. 06).

Ao descrever que “infelizmente o nosso football ainda não está de todo civilizado”, o cronista parecia esquecer que o excesso desses conflitos não era uma exclusividade dos clubes sediados nas regiões mais pobres da cidade. Vendo nos seguidores dessas agremiações os principais responsáveis pela desmoralização do futebol, ele lamentava a “perniciosa” mistura social, uma perda irreparável, causada pela índole natural dos novos admiradores do jogo (PEREIRA, 2000).

Em seu estudo sobre o cotidiano das camadas populares, Chalhoub (2001) nos ajuda entender porque o registro dos conflitos entre sócios e torcedores dessas agremiações era tradicionalmente abordado sob o estigma de “desordeiros da Favella” ou de “agressores do Morro”. A pobreza, na perspectiva dos teóricos da patologia social, produziria a ausência de normas ou a falta de padrões de comportamento. Dessa forma, embora alguns torcedores reivindicassem contra “as acusações injustas” que atingiam “um povo laborioso e, sobretudo, honesto como é o Bangu”, eles eram vistos como os principais suspeitos de quaisquer desordens que viessem a acontecer em seus jogos (PEREIRA, 2000). Por isso, a cada partida marcada, a própria polícia se apressava em reforçar o patrulhamento local, na tentativa de conter os ânimos dos torcedores dessas agremiações. A liga Metropolitana, por sua vez, mandava frequentemente ofícios aos clubes da zona suburbana, pedindo que tentassem evitar o contato dos jogadores com seus torcedores, buscando proteger os visitantes da propagada fúria local.

De fato, a estigmatização fica ainda mais clara quando comparada aos conflitos causados por clubes da elite carioca. Por exemplo, um tumulto na partida realizada entre América e Botafogo, em 1914, foi apresentado como mero fruto do amor dedicado ao clube. Por vezes, até mesmo os incidentes ocorridos nos campos das equipes mais tradicionais, com a total participação dos seus sócios, eram atribuídos aos torcedores “impertinentes e mal-educados” do subúrbio (PEREIRA, 2000).

De fato, percebemos que os jornais foram agências centrais na construção de representações sociais sobre as agremiações do subúrbio da cidade. Como lembra Moscovici (2004), a representação social desponta no momento em que existe ameaça para a identidade coletiva, quando o conjunto de conhecimentos submerge as regras que a sociedade se outorgou. Foi nesse cenário que o discurso produzido por esses jornais perpassava pela objetividade e subjetividade. A grande imprensa, por exemplo, procurava estabelecer restrições às agremiações da zona suburbana. Uma das iniciativas foi a institui­ção de regulamentos que destacavam a violência e o desserviço prestado ao futebol. Tratava­-se de uma noção particular de subúrbio, enraizado por estigmas fortemente marcados pela estratificação socioespacial da cidade. A partir dessa descontextualização e recontextualização, o jornal traduzia sua visão de mundo, impregnado por estigmas que desqualificavam não só torcedores e jogadores, como também o território em que eles ocupavam e habitavam.

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