O Futebol na Trégua de Natal de 1914

Há 104 anos, o primeiro 25 de dezembro da Primeira Guerra Mundial ficou marcado como a Trégua de Natal. O evento é um dos mais rememorados momentos da “Guerra para Acabar com Todas as Guerras”, de forma geral motivado pelo sentimento antibelicista e pelo idealismo romântico de paz e civilidade em um dos mais dramáticos e brutais conflitos da história.

Apesar de ser um dos mais simbólicos momentos da guerra, a Trégua de Natal não foi movimento oficial estabelecido pelos Estados beligerantes e não foi estabelecida em todos os campos de batalha. Estatísticas oficiais declaram que o dia de natal de 1914 contabilizou a morte de quase cem soldados ingleses nas trincheiras da França e de Flandres. Ainda que esse número seja significativamente mais baixo do que em outros períodos da guerra, ele demonstra que batalhas foram travadas em alguns setores e que a trégua não foi uma regra seguida em toda a frente ocidental.

Na maior parte do front, os relatos de tréguas são variados, tanto de ingleses como de alemães. Herbert Smart, atacante do Aston Villa que servia no exército britânico, descreveu assim o evento:

No Dia de Natal, fui [até os alemães] e troquei alguns cigarros por charutos. O alemão que conheci tinha trabalhado como garçom em um bar de Londres e podia falar um pouco de nossa língua. Ele disse que eles não querem lutar. É engraçado que um alemão aperte sua mão como se estivesse tentando esmagar seus dedos, e que alguns dias depois esteja tentando te apagar. Não sei bem o que pensar, mas acho que eles estão preparando um grande esquema. Mas nossos rapazes estão preparados.

Herbert SmartFonte: http://wartimeheritage.com/storyarchive1/story_christmas_truce.htm

Dentre os relatos da trégua, ganharam destaque na imprensa eventuais jogos de futebol realizados entre tropas britânicas e alemães na terra de ninguém (região entre as trincheiras inimigas). Tais relatos capturaram a imaginação popular e são frequentemente retratados em menções jornalísticas e especializadas – como sites de história com fins educacionais – e geralmente reproduzem o evento como jogos organizados entre times das diferentes tropas, quase que um amistoso internacional em meio aos escombros da batalha.

O discurso construído ao redor do esporte, exaltando sua suposta capacidade de unir os indivíduos se estabelece aqui como um de seus mais extremados exemplos. Não é acidente que o caso seja lembrado na homepage do movimento internacional Football for peace, para definir sua visão: “Sabemos que o futebol pode realizar feitos incríveis. Lembra-se do natal de 1914, onde muitos soldados britânicos e alemães baixaram suas armas e se conectaram como companheiros humanos em um jogo de futebol armado na terra de ninguém? (…) Nossa visão é que cada país no mundo use a diplomacia do futebol para criar sociedades mais pacíficas e tolerantes”.

Mas até que ponto essa imagem pode ser confirmada através das fontes disponíveis sobre o evento? Em primeiro lugar, podemos descartar as imagens normalmente exibidas em artigos sobre o evento como fontes iconográficas. Jogos de futebol eram um passatempo popular entre tropas afastadas do front, e em geral essas imagens são fruto de momentos de lazer entre oficiais e outros soldados, como nas imagens abaixo.

Fontes: https://www.worldhistory.biz/photos-and-videos-world-war-i/4398-1.html; https://www.iwm.org.uk/collections/item/object/205234299.

Informações sobre jogos de futebol na Trégua de Natal são em sua maior parte provenientes de cartas enviadas por soldados no front para suas famílias nos dias subsequentes. Muitos desses relatos foram publicados em jornais do período e ganharam grande popularidade. O futebol, já visto em 1914 como um elemento de amizade e congregação, virava um símbolo de esperança na guerra que colocava em campos opostos jovens que estariam tentando se matar nos dias seguintes.

No entanto, devemos ter o cuidado ao tratar esses relatos como representações inequívocas do passado. É difícil determinar a veracidade de todos esses relatos. Estariam eles descrevendo o que vivenciaram durante a trégua, ou apenas reproduzindo os rumores e histórias que ecoavam pelas trincheiras? Um dos maiores exemplos foi o relato publicado no jornal The Times no dia 1 de janeiro de 1915, no qual um soldado anônimo relatou que “o regimento disputou um jogo de futebol contra os alemães, que os derrotaram por 3-2”. O mesmo placar foi mencionado por fontes alemães. O tentente Johannes Niemann, do 133° Regimento de Infantaria da Saxônia, escreveu:

Nosso regimento e os Seaforth Highlanders escoceses estavam fraternizando ao longo do front. Peguei meus binóculos olhei com cuidado sobre o parapeito [da trincheira] e vi a incrível imagem de nossos soldados trocando cigarros, schnapps e chocolates com o inimigo. Depois, um soldado escocês apareceu com uma bola de futebol. Os escoceses marcaram seus gols com seus quepes estranhos e fizemos o mesmo com os nossos. Não era fácil jogar no campo congelado. Grande parte dos passes foram muito errados, mas todos jogaram com grande entusiasmo.

Nós alemães nos divertimos muito quando uma rajada de vento revelou que os escoceses não usavam roupa por baixo de seus kilts. Mas depois de uma hora de jogo, nosso Oficial em Comando enviou uma ordem de que deveríamos parar. O jogo terminou com o placar de três gols contra dois a favor dos Fritz contra os Tommy.

Fonte: http://www.telusplanet.net/public/prescotj/data/other/letterstrenches.html

Apesar de se referirem ao mesmo placar, os relatos são de regiões muito distantes no front, impossibilitando a referência ao mesmo jogo. Nada impede que dois jogos com o mesmo resultado tenham sido disputados nos diversos pontos de confraternização ao longo da frente ocidental, mas isso não pode ser encarado como uma certeza. Em outra carta, de acordo como a BBC, um soldado teria relatado: “mandamos um ciclista encontrar uma bola de futebol. Em seu retorno jogamos uma partida contra eles, ganhando facilmente por 4-1”.

Mais do que jogos organizados, de “nós” contra “eles”, há também relatos de jogos mais espontâneos, com dezenas de soldados chutando a bola, sem gols ou times definidos. Esse é um dos poucos casos mencionados por mais de uma fonte provenientes do mesmo local. Frank Naden, em uma entrevista ao jornal Evening Mail, de Newcastle, no dia 31 de dezembro de 1914, afirmou:

No dia de natal um dos alemães saiu das trincheiras com as mãos para cima. Nossos rapazes imediatamente levantaram as suas e nos encontramos no meio, e pelo resto do dia confraternizamos, trocando comida, cigarros e presentes. (…) Os escoceses tocaram suas gaitas de fole e tivemos uma rara festa, que incluiu futebol, no qual os alemães participaram.

Fonte: http://www.christmastruce.co.uk/christmas-truce-football-match/

Em 1983, em entrevista para um canal de televisão na Inglaterra, Ernie Williams, que fizera parte do mesmo batalhão de Naden (6° Cheshires), reafirmou o relato do companheiro em suas memórias, mas com maiores detalhes. Segundo Williams,

a bola apareceu de algum lugar, não sei de onde, mas veio do lado deles – a bola não veio do nosso lado. Eles fizeram uns gols e um rapaz foi para o gol e então começou um bate-bola generalizado. Acho que havia umas duzentas pessoas jogando. Chutei a bola uma vez. Eu jogava bem na época, com 19 anos. Todos pareciam estar se divertindo. (…) Não tinha juiz nem placar, nenhuma disputa. Era somente uma brincadeira – nada como o futebol que assistimos na televisão.

Fonte: http://www.christmastruce.co.uk/christmas-truce-football-match/

É provável que a maior parte dos encontros futebolísticos da trégua de natal tenha seguido esse modelo. Levando-se em consideração que em diversos pontos a terra de ninguém estava devastada pelos meses de confronto anteriores, com corpos em decomposição, a organização desses confrontos não era algo tão simples. Um simples jogo sem times e sem regras seria algo muito mais prático para o encontro. Além disso, a possível repreensão de oficiais de comando também podem ter frustrado iniciativas mais organizadas. Frank Naden, na entrevista ao Evening Mail, também menciona que “no dia seguinte recebemos uma ordem de que toda comunicação e interação amigável com o inimigo deveria terminar”. E documentos oficiais comprovam que no dia 2 de janeiro de 1915 foi emitida a ordem de que “tréguas informais com o inimigo deveriam terminar e qualquer oficial  ou [oficial não comissionado] que inicie uma seria julgado pela Corte Marcial”.

Há pouca dúvida que jogos de futebol ocorreram nessa imprevisível trégua de natal. No entanto, ainda nos resta questionar a forma com que os jogos ocorreram. Segundo as evidências disponíveis, não é possível afirmar que jogos com placar contado e duas equipes de diferentes nacionalidades se enfrentando tenham de fato sido organizados na terra de ninguém, ainda que alguns relatos possam ser elencados. Devido às condições do momento e à informalidade das tréguas ao longo das trincheiras, jogos desorganizados, sem equipes definidas, com soldados chutando a bola de um lado para o outro, parecem ter sido mais prováveis. No entanto, além da forma que tais disputas adquiriram, é interessante observar  o fato desses confrontos terem se tornado um dos elementos mais simbólicos dessa trégua, ganhando predominância sobre outros símbolos mais próximos ao natal, como a troca de presentes (cigarros e bebidas, principalmente). O futebol, nos mais diversos contextos, é visto como símbolo de confraternização e união. Ainda que nem sempre seja esse o caso.

 

 

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