Periódicos militares em defesa do esporte: os casos da “Revista Marítima Brasileira” e “Revista Militar” no início do século XX

por Karina Cancella

A prática esportiva nas Forças Armadas brasileiras (FA) foi intensificada na virada do século XIX para o XX sob o entendimento de que seria uma atividade favorável ao desenvolvimento físico do pessoal militar. Desde meados do século XIX, atividades físicas haviam sido introduzidas no cotidiano das FA por meio de medidas normativas que incluíram essas práticas no currículo das escolas de formação militar tanto no Exército Brasileiro (EB) como na Marinha do Brasil (MB). Atividades como aulas de tiro, ginástica, equitação militar e “hipiátrica”, natação e esgrima passaram a fazer parte do currículo dessas instituições de ensino.[1] Percebe-se a aproximação dos militares não somente das atividades ginásticas mas também de práticas que possibilitassem o desenvolvimento de habilidades fundamentais para o exercício militar no período, como tiro, natação, esgrima e equitação. Essas práticas, posteriormente, passariam a ser também realizadas em caráter esportivo.

A defesa pela ampliação dessas atividades para todos os militares era reforçada pelas observações das atenções que Forças Armadas estrangeiras dedicavam aos processos de preparação do corpo dos combatentes, considerando os exercícios físicos como importantes instrumentos para a manutenção da forma e da disciplina das tropas. (SILVA; MELO, 2011)

Essas preocupações com o preparo técnico e físico dos militares brasileiros ganharam maior projeção com o advento da República e seus projetos de modernização para as Forças Armadas. Esses projetos envolviam renovações materiais e também ações ligadas à formação dos militares brasileiros. Os problemas estruturais das instituições eram constantemente destacados em relatórios dos Ministérios da Guerra e da Marinha submetidos ao governo federal naquele período enfatizando as dificuldades de materiais e as defasagens na preparação de soldados e marinheiros. (CANCELLA, 2012)

O relatório do Ministério da Marinha do ano de 1892 defendia, por exemplo, que a má organização das escolas de aprendizes e a falta de navios para as instruções práticas dificultava aos jovens a aprendizagem da “arte do marinheiro e [de] adquirirem as qualidades physicas e moraes indispensáveis ao homem do mar”.[2] Como solução para o problema, defendia-se a reforma das escolas e estabelecimento de viagens de instrução.

Para divulgar essas novas formas de treinamento e os projetos de modernização em pauta naquele momento, Exército e Marinha utilizaram seus principais veículos de comunicação institucional: os periódicos Revista Militar (RM) e Revista Marítima Brasileira (RMB).[3]

O Exército também defendia a necessidade de viagens para a melhor preparação de seus militares. Em edição da Revista Militar do ano de 1900, foram publicadas informações sobre a primeira viagem de instrução do Estado-Maior do Exército em serviço de campanha. O artigo “Uma viagem do Estado-Maior no Chile” apontava como necessidades do EB naquele momento:

1o.) Habituar officiais ao serviço de guerra, collocando-os em situações idênticas as que se apresentam em campanha e fazendo-os applicar sobre o terreno os methodos e soluções dos problemas tácticos, que aprenderam teoricamente; […]

3o.) Nestas expedições o estado-maior experimenta a robustez physica e o preparo intellectual dos officiaes. [4]

Acompanhando as preocupações com os conhecimentos táticos e técnicos da guerra, destacava-se também a busca por métodos para o aprimoramento físico dos militares. As observações sobre como os exércitos estrangeiros realizavam seus processos de preparação e organização eram temas recorrentes nas edições da Revista Militar. Por meio dos estudos da estrutura dessas instituições, projetava-se a renovação das FA brasileiras. Como exemplo, em artigo publicação na Revista Militar em 1901, o Major Engenheiro Dias de Oliveira tratou sobre as ações do Exército Alemão, destacando as principais vantagens deste exército:

o official d’estado-maior não deve somente desenvolver o espírito, completar a instrucção, já pelo útil jogo da guerra, a resolução de themas tácticos, conferencias, já pelos trabalhos d’ inverno ou de viagens d’ estado-maior. É-lhe igualmente necessário desenvolver as qualidades physicas, tonificar e robustecer o organismo, para supportar com vantagem a inclemência da vida em campanha, como convem a um homem de guerra. Por isso o official alemão, alem das grandes manobras do outomno, dedica-se com paixão aos diversos gêneros de exercícios physicos, como a gymnastica, o cyclismo, a equitação, as marchas de guerra e as demais úteis e atraentes diversões creadas pelo sport moderno.[5]

A defesa da utilização de práticas esportivas como instrumentos de preparação para a atividade militar também ganhou destaque na MB. Militares da Marinha do Brasil participaram ativamente do processo de organização de entidades esportivas de remo na sociedade carioca. Os interesses em destacar os benefícios desta prática, no entanto, não se restringiam aos argumentos em torno da saúde e da modernidade, característicos da época. O entusiasmo dos militares em divulgar as atividades pode ser ilustrado com as ideias apresentadas pelo Capitão-Tenente Santos Porto no artigo “O sport náutico no Brazil”, publicado na RMB em 1901. O artigo traz elementos que nos ajudam a compreender os interesses da Marinha em defender maior desenvolvimento do remo, associando esta prática aos seus ideais de “cidadão” para a República brasileira naquele momento inicial do século XX:

[…] Em boa hora, felizmente, sentiu a nossa mocidade que no sport náutico encontraria as melhores e mais salutares distracções e, impulsionada por admirável enthusiasmo começou a fundar ao longo do littoral novos clubs, centros de animação e actividade. […]

Diante dos crescentes dispêndios com a manutenção das forças de mar e terra permanentes, cujo objetivo é garantir a paz, espíritos bem intencionados teem inscripto na sua bandeira, que se deve educar o povo de modo a transformal-o em legiões de soldados na hora, em que possa perigar a integridade da nação.

A situação do Brazil não é, porem, a dos estados europeos. Lutas futuras, si infelizmente tivermos, terão que se liquidar sobre o mar ou ao longo de nossas costas, e para que os futuros voluntários, a nação em armas prompta a defender os seus lares, o possam fazer com segurança e vantagem, é preciso que o povo se eduque sob este ponto de vista, no amor das cousas do mar, seguros os nossos estadistas de que, todo o auxilio prestado é um elemento de trabalho da defesa nacional.

Não basta que <<cada cidadão seja um soldado>> é preciso que <<cada cidadão seja um marinheiro, na mais lata accepção d’essa palavra>>.[6]

Os militares da MB buscavam evidenciar suas perspectivas sobre a necessidade de maior preparação do cidadão, que deveria ser acima de tudo um soldado-cidadão ou, como defendeu o autor, um cidadão marinheiro. A necessidade de formação de indivíduos para a defesa da nação que estivessem habituados ao mar foi o principal argumento utilizado ao longo do artigo para destacar os benefícios que a prática do remo poderia trazer para o país como um todo. Esse argumento fica evidente na afirmação sobre as diferenças entre o Brasil e os países europeus no que se refere à possível ocorrência de conflitos. Ao evidenciar estes aspectos dos esportes náuticos, o artigo não somente buscou aproximar seus militares dessas atividades mas também a juventude em geral. Os argumentos foram elaborados com objetivo de enfatizar a necessidade do “amor das cousas do mar” na tentativa de atrair a juventude para as atividades militares, já que as FA enfrentavam sérios problemas quanto ao número de integrantes, estando seus efetivos sempre abaixo das necessidades expressas nos planejamentos anuais (ALMEIDA, 2010; NASCIMENTO, 2010). Atrair os jovens para suas fileiras era imperativo e inúmeras estratégias foram utilizadas, inclusive por meio da prática esportiva.

A RMB voltou a publicar um artigo sobre a necessidade da juventude brasileira se aproximar das práticas náuticas em 1902. A matéria sem autoria “Campeonato de 1902 – Clube de Natação e Regatas” trazia inúmeros argumentos sobre os grandes benefícios da prática do remo e a satisfação para os oficiais da Marinha ao perceber a ampliação da atividade entre os civis, destacando os clubes de remo como um “celeiro” de homens fortes, preparados para a defesa nacional e habituados ao mar, atendendo aos interesses militares navais. Esses clubes seriam, portanto, “viveiro abundante de moços fortes, habituados ao mar, e aos trabalhos, no dia em que a Pátria ameaçada chame a postos seus filhos para defenderem-na”.[7] O esporte, nessa interpretação, seria um importante instrumento preparatório para as funções militares em batalhas marítimas.

Revista Marítima Brazileira. Campeonato de 1902. 2o. Semestre de 1902, p. 383.

Revista Marítima Brazileira. Campeonato de 1902. 2o. Semestre de 1902, p. 387.

Os projetos de modernização para o EB espelhavam-se nos modelos de organização das Forças estrangeiras, como já destacado. Na edição de 1906 da Revista Militar, o Capitão do Estado-Maior de Artilharia Liberato Bittencourt destacou no artigo “Princípios geraes de organização dos exércitos” os 12 temas que deveriam ser levados em conta nesse processo de modernização. Entre os princípios elencados pelo autor, destaco o de número 10:

 […] Principio de educação physica, intellectual e moral: organisar os exércitos de modo a serem elles grandes escolas de educação physica, intellectual e moral da mocidade […].[8]

O destaque para a função de ser “grandes escolas de educação physica, intellectual e moral da mocidade”, atribuídos ao EB, enfatiza os ideais sobre a necessidade de uma sociedade envolvida com as atividades militares. Essa perspectiva do Capitão acompanhava, em grande parte, as discussões sobre a necessidade de um novo formato para o EB, mais operativo e menos teórico, seguindo os modelos adotados por potências militares como França, Alemanha e Estados Unidos. (CANCELLA, 2012)

A prática esportiva foi defendida entre os militares inicialmente como forma de treinamento do corpo para melhoria do desempenho em suas atividades funcionais. No entanto, ao longo do final do século XIX e início do século XX, essas práticas passaram a ser também indicadas para os jovens civis em publicações de revistas institucionais das FA com objetivo de aproximar a juventude de suas atividades e preparar, por meio do esporte, grupos de “soldados-cidadãos” ou “cidadãos-marinheiros”.

Referências:

ALMEIDA, S. A modernização do material e do pessoal da Marinha nas vésperas da revolta dos marujos de 1910: modelos e contradições. Estudos Históricos, v. 23, n. 45, p. 147-169, jan. – jun. 2010.

CANCELLA, K. A defesa da prática esportiva como elemento de preparação dos militares por meio das publicações institucionais “Revista Marítima Brasileira” e “Revista Militar”. In: Encontro Regional de História da ANPUH-Rio, 2012, São Gonçalo. Anais do XV Encontro Regional de História da ANPUH-Rio. São Gonçalo: ANPUH-Rio, 2012.

NASCIMENTO, F. Militarização e Nação: o serviço militar obrigatório na Argentina e no Brasil em uma perspectiva comparada (1900-1916). Revista Brasileira de História Militar, ano I, n. 1, p. 1-18, abr. 2010.

SILVA, C.; MELO, V. Fabricando o soldado, forjando o cidadão: o doutor Eduardo Augusto Pereira de Abreu, a Guerra do Paraguai e a educação física no Brasil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 18, n. 2, p. 337-353, jun. 2011.


[1] BRASIL. Decreto n° 2.116, de 01 de março de 1858. Aprova o Regulamento reformando os da Escola de aplicação do Exército e do curso de infantaria e cavalaria da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, e os estatutos da Escola Militar da Corte. Coleção de Leis do Império de 1858; BRASIL. Decreto n° 2.163, de 01 de maio de 1858. Reorganiza a Academia de Marinha em virtude da autorização concedida no parágrafo 3º. Do artigo 5º. da Lei n. 862 de 30 de julho de 1856. Coleção de Leis do Império de 1858.

[2] BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha, 1892, p. 40.

[3] Essas publicações eram utilizadas como instrumento de divulgação de informações e propostas sobre as mais diversas temáticas de interesse das instituições militares, inclusive assuntos esportivos. A RMB é uma publicação oficial da MB, editada desde 1851 com periodicidade trimestral com artigos de autores nacionais e estrangeiros sobre assuntos históricos, técnicos e estratégicos, sendo publicada até os dias atuais. A Revista Militar é a sucessora do primeiro periódico científico oficial do EB, criado em 1882 com o nome de Revista do Exército Brasileiro e circulou entre 1882-1888, sendo interrompida a publicação e reiniciada em 1899 com o título de Revista Militar entre 1899-1908. Em 1911, a publicação foi retomada com o nome de Boletim Mensal do Estado Maior do Exército, circulando até 1923. (CANCELLA, 2012)

[4] Revista Militar, Uma viagem do Estado-Maior no Chile, ano II, 1900, p. 48.

[5] OLIVEIRA, Dias de. O Exercito Alemão. Revista Militar, ano III, 1901, p. 188-189.

[6] PORTO, Santos. O sport náutico no Brazil. Revista Marítima Brazileira. 2º. Semestre de 1901, p. 11.

[7] Revista Marítima Brazileira. Campeonato de 1902. 2o. Semestre de 1902, p. 381-388.

[8] BITTENCOURT, Liberato. Princípios geraes de organização dos exércitos. Revista Militar, ano VIII, p. 341-348.

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