“Travaram um grande rolo, a pau”: carreiras, jogo do osso e a Porto Alegre que deveria se civilizar

por Cleber Eduardo Karls (cleber_hist@yahoo.com.br)

E um jogo brabo, pois não é? Pois há gente que se amarra o dia inteiro nessa cachaça, e parada a parada envida tudo: os bolivianos, os arreios, o cavalo, o poncho, as esporas. O facão nem a pistola, isso, sim, nenhum aficionado joga.

(João Simões Lopes Neto – Jogo do Osso)

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João Simões Lopes Neto, possivelmente o maior literato regionalista do Rio Grande do Sul, inicia o seu conto Jogo do Osso (1912) enfatizando: “eu já vi jogar-se uma mulher num tira de taba (sic). Foi uma parada que custou vida… mas foi jogada!” Mesmo considerando-se a licença poética do autor, não é impensável que jogatinas como essa relatada pelo pelotense tenham, realmente, acontecido nos mais distintos rincões do sul do Brasil entre os oitocentos e o início do século passado. No conto de Lopes Neto um pouco do gaúcho rural, arredio, violento, criado no lombo do cavalo é exposto. Personagens literários, mas que em Porto Alegre se materializavam e faziam parte do cotidiano da cidade, dividindo espaço com refinados comerciantes ingleses ou letrados alemães.

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A Porto Alegre do final do século XIX e início do XX era uma cidade de contrastes, um tanto dicotômica. Por um lado, a capital mais meridional do Brasil era um exemplo de modernidade e integração com seus vizinhos platinos. Local de amplo desenvolvimento comercial e cultural. De acordo com os viajantes do Velho Mundo que pelo sul do Brasil aportavam, este destaque era especialmente promovido pela grande quantidade de imigrantes europeus que na capital do Rio Grande do Sul fixavam moradia e desenvolviam suas atividades.

O francês Saint-Hilaire, que esteve no Brasil em parte do primeiro quartel do século XIX, anotou que “aqui (Porto Alegre) lembramos o sul da Europa e tudo quanto ele tem de mais encantador”. Outro ponto destacado é a capacidade associativista, lembrada pelo germânico Reinhold Hensel, que desembarcou no sul do Brasil em 1865 e relatou que os clubes de Porto Alegre reúnem “todos aqueles que tem a educação como exigência e ao mesmo tempo sentem necessidade de entretenimento e sociabilidade”.

Se Porto Alegre era reconhecida como um modelo de desenvolvimento e civilização, levando-se em consideração os aspectos eurocêntricos que balizavam esses conceitos, outras características relacionadas às origens históricas do local apontavam traços de “atraso”, “selvageria”, retratados por viajantes e pela própria imprensa. Esses atributos deveriam ser eliminados, substituídos. Dois exemplos de atividades que são marcantes nessa jornada em busca da “civilização” são as carreiras e o jogo do osso, também conhecido como tava. De uma forma bem simplificada, as “carreiras” eram corridas de cavalo, geralmente realizadas em cancha reta, sem regras muito definidas ou elaboradas. Já a tava é jogada com uma peça homônima. É um osso retirado do calcanhar do boi cujo nome é astrágalo. Basicamente, é um jogo de arremesso, onde a pontuação varia de acordo com a posição da tava após o lançamento.

A exemplo de muitas vozes que buscavam contribuir para que a capital do Rio Grande do Sul se modernizasse, a imprensa da época se posicionava militando por novos hábitos, preferencialmente europeus. A Gazeta de Porto Alegre, em 15 de maio de 1880, destacava que “as carreiras entre nós são em geral por sistema muito primitivo, isto é, corredores em manga de camisa, com o lenço amarrado na cabeça e em cavalos não encilhados”. Era necessária a modernização, a adequação da prática tão comum entre os sul-rio-grandenses ao modo europeu. Conciliar a habilidade do cavaleiro gaúcho, que foi comparado a um centauro, às técnicas e aos cavalos europeus puro sangue seria um fator fundamental para o sucesso do hipismo em Porto Alegre, esse sim, um hábito civilizado. Seguindo a sua campanha, o periódico se colocava destacando que “a civilização tem suas exigências; os usos do século passado não servem para o nosso século; uma populosa cidade, como a nossa, deve possuir um clube de corridas, em que o estrangeiro possa reconhecer o sistema usual em todos os países”.

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Já com relação ao jogo do osso, os registros indicam uma forte perseguição a prática. Em 31 de maio de 1895 a Gazeta da Tarde relatou uma busca numa “tavolagem” no Café e Bilhar situado a Praça da Alfândega. Ainda o artigo denunciou outros locais de jogatina na Rua do Rosário e Ladeira, onde, de acordo com o jornal, “o jogo continua com grande perigo para a tranquilidade doméstica de muita família”. A opinião do periódico fica clara quando ele destaca que “as consequências desse vício são terríveis” ou, ainda, quando aponta que o jogo é o “inimigo da sociedade”.

Relatos de confusões por conta de impasses no jogo do osso não eram raros. O Le Petit Journal de 28 de junho de 1905 relatou que “em uma cancha do jogo da tava (osso) dentro de um cercado, no Arraial da Baroneza, alguns indivíduos que ali se achavam e por questão de paradas, travaram um grande rolo, a pau”. O mesmo jornal, mas agora em 14 de outubro do mesmo ano, destacou que “no pátio existente ao lado da Igreja das Dores, vários vagabundos costumavam jogar o osso, cartas, etc”. O periódico ainda apontou que a polícia compareceu ao local mas conseguiu prender apenas um dos indivíduos envolvidos.

Como fica claro, essas práticas, apesar de comuns, eram marginalizadas e colocadas em um status de inferioridade perante uma Porto Alegre que estava se desenvolvendo. Diversões tradicionais do Rio Grande do Sul como as carreiras e o jogo do osso estavam perdendo espaço para outras atividades estrangeiras, vistas como civilizadas/civilizadoras. É o caso do turfe, das regatas e do ciclismo, por exemplo, que representavam o avanço, a tecnologia e colocavam a capital dos gaúchos em consonância com as grandes metrópoles mundiais.

Cabe destacar que essas práticas não desapareceram por completo. Ainda é comum no interior do Rio Grande do Sul a realização das tão afamadas carreiras, assim como de partidas do jogo do osso. É importante ressaltar que esse último, assim como outros divertimentos tidos como tradicionais como o truco cego, truco de amostra, a bocha campeira, entre outros, foram regulamentados pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) como forma de “preservar e divulgar os hábitos, os costumes, as tradições e o folclore rio-grandense”. Ganharam status de “Esportes Tradicionalistas do Estado do Rio Grande do Sul” e possuem competição de caráter nacional. No entanto, uma série de normas enquadraram os contemporâneos participantes. De acordo com o regulamento do MTG, está proibida a premiação em bebida alcoólica, apostas diretas envolvendo dinheiro ou outros quaisquer valores. Até mesmo esses jogos foram afetados pela moralizante modernidade…

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