Os primórdios das experiências automobilística na Curitiba do início do século XX[1]

Leonardo do Couto Gomes

As invenções e seus impactos na vida em sociedade são características marcantes do conjunto de transformações ocorridas no decorrer do século XIX e XX (Sevcenko, 1998). Os novos artefatos reestruturam a forma de viver, sobretudo no que tange a uma inédita configuração do tempo social. A separação entre momento de trabalho e não trabalho foi algo típico do desenvolvimento dos modos de produção capitalista fabril, proporcionado principalmente pelos avanços da primeira revolução industrial, marcada pelo domínio da tecnologia do vapor e do ferro (Thompson,1998).

O rádio, a luz elétrica, a fotografia, o cinema, as bicicletas, os esportes e medicamentos como a aspirina, são bons exemplos que evidenciam os saltos tecnológicos desse período, possibilitando percebermos que não apenas nos espaços de trabalho melhorias eram desenvolvidas (Hobsbawm, 1988). A vida cotidiana como um todo, inclusive os momentos de diversão ganhavam novos incrementos.

Nesta esteira, os avanços da ciência e tecnologia contribuíram diretamente para a emergência de novas sensibilidades, como as de agilidade, eficiência, motricidade e fugacidade. Noções essas estimuladas e promovidas especialmente pelos países da Europa e os Estado Unidos. Conforme detalha Hobsbawm (1988), essas nações representavam os locais em que o crescimento industrial nascia, e suas presenças em outros países do globo ainda menos industrializados significavam a chegada do conquistador estrangeiro, trazendo ares de modernização, inclusive no Brasil (Sevcenko, 1998).

Efeito dos avanços do contexto em questão, em especial da segunda Revolução Industrial, o automóvel é um dos símbolos mais importante do século XX. A maquinária viria substituir e superar a força animal, sobretudo cavalar, bem como o próprio esforço humano. Tratava-se de um artefato chave para materialização de idealizações que passavam progressivamente a ser valorizadas na sociedade mundial, notadamente as de velocidade, vertigem, produtividade e mobilidade (Weber, 1988).

Entretanto, devemos levar em consideração as particularidades do contexto histórico brasileiro em relação aos momentos da industrialização europeia e estadunidense.  Nesses locais o segundo momento da industrialização já caminhava, marcada pelo domínio das técnicas de trabalho baseados na eletricidade, domínio do aço, petróleo e elementos químicos. No Brasil estava se iniciando os primórdios desse modelo de produção.

Em terras brasileiras, o primeiro automóvel, ao que tudo indica, aporta em solo nacional no porto de Santos na década final do século XIX: um Peugeot, trazido diretamente da França, de propriedade do inventor e aviador Alberto Santos Dumont (Melo, 2011). O veículo desembarcava, e trazia consigo o progresso. Seria mais uma marca fundamental para forjar o país como uma nação que seguia os preceitos dos avanços modernizadores já sentidos em países no qual a industrialização melhor se estruturava, notadamente a Inglaterra, França e Estados Unidos. Significava uma verdadeira vitória do homem sobre a natureza, uma mostra do desenvolvimento científico.

Melo (2011) se dedicou em explorar os primórdios da chegada dos automotores no Brasil. Em suas pesquisas explorou as primeiras experiências ligadas ao automóvel e o automobilismo na então capital Federal, Rio de Janeiro, e em São Paulo, cidades em que a industrialização avançava mais intensamente. Em tais urbes os achados do autor indicam que os automóveis eram úteis de diferentes maneiras, seja para o transporte de cargas e pessoas e/ou então para diversão.

No que diz respeito aos passatempos automobilísticos, os veículos motorizados, ampliavam as opções de passeios, especialmente aqueles ligados à natureza, algo amplamente valorizado no Brasil no período em questão, em virtude do crescimento das cidades. Também possibilitavam o contato com sensações de velocidade jamais atingidas, o que gerava a oportunidade de buscar por novas aventuras através de desafios e competições. A máquina era, inclusive, um contribuinte para indicar e reivindicar a necessidade de melhores infraestruturas para intensificar sua mobilidade, bem como para fortalecer certo status e distinção social. Afinal a ideia era exibir o dispositivo tão inédito na sociedade brasileira. Assim, vias, avenidas e rodovias em situação favorável para a locomoção eram essenciais. Como teria, então, se estruturado as primeiras experiências com o automóvel em outras cidades do Brasil?

Em Curitiba que, assim como outras capitais brasileiras durante a transição dos séculos XIX e XX, passava por intensas transformações ligadas a circulação de noções de modernização, o automóvel também se fez presente. Há que se pontuar que as experiências julgadas modernas na capital paranaense, nesse período, estavam sendo singularmente impulsionadas pela produção e pelo comércio de uma planta nativa: a erva-mate, que no decorrer do século XIX, ganhava produtividade em escalas industriais (Pereira, 1996).

É nesse contexto que chegam os primeiros carros da capital paranaense. O primeiro veículo aporta em Curitiba pelas mãos de um consolidado comerciante local, Francisco Fido Fontana. Membro de uma das mais importantes famílias da economia do período, os Fontana. Fido era filho de Francisco Fasce Fontana e Maria Dolores Leão. O pai, um uruguaio que se tornou um dos mais importantes industriais de mate do Brasil. A mãe, membro de outra família de destaque no cultivo de mate, os Leões, filha do desembargador Agostinho Ermelino de Leão. O casamento significava um importante laço comercial.

Em 1903 os jornais anunciavam a aquisição do primeiro carro do Estado por parte de Francisco Fido Fontana. O Diário da Tarde comunicava em primeira página: “De Paris veio nesse mesmo vapor para o sr. Francisco Fido Fontana, dessa Capital, um automovel. E’ o primeiro importado para nosso Estado” (Diário da Tarde, 10 de março, 1903, p.1).

O primeiro automóvel a transitar em Curitiba era da marca Renault, modelo La Minerve.

Figura 1. Veículo francês, o primeiro de Curitiba. Fonte: Arquivo Público do Paraná.

O piloto era Francisco Fido Fontana, o passageiro era o caricaturista Mario de Barros. Notemos a manivela na frente do veículo. Esse instrumento era usual nos primeiros carros, tratava-se de uma peça chave para o funcionamento da máquina. De uso braçal, era preciso gira-la para iniciar o circuito inicial do motor.

Expressões como espanto, admiração e principalmente atenção em relação aos cuidados que a presença da nova maquinaria nas ruas de Curitiba geraria seriam uma constante nos jornais locais. Tais termos ganhavam vazão principalmente por dois motivos que estavam interligados: o próprio ineditismo do dispositivo e o desconhecimento desse produto. Em uma breve crônica jornalística sem autoria, alguns dessas significações são reforçadas: “Nessa não caiam os reverendíssimos; o automóvel, que não é puxado nem empurrado, ainda apresenta um não sei que de diabólico!” (Diário da tarde, 19 de maio, 1903, p.1).

Um ar de diabólico. A dúvida que se apresentava para alguns era: como pode um veículo se locomover sem ajuda de tração animal ou humana? Ao que parece, o que hoje para nós é um simples elemento usual em qualquer cidade, naquele período o veículo representava tamanha inovação e avanço científico para alguns habitantes de Curitiba a ponto de ser associada ao sobrenatural.

Em uma cidade onde o cavalo e as carroças eram a principal forma de deslocamento, a presença do veículo gerava a necessidade de novas instruções para convívio com a maquinaria. O comparecimento do carro certamente era mais um elemento que passava a exigir maior atenção ao andar nas ruas, bem como estabelecia aos motoristas a aquisição de certas habilidades para trafegar.

Para aqueles que cogitavam andar pelas calçadas, e mesmo para quem buscava trafegar pelas ruas, certamente um novo conjunto de medidas precisava ser instruído. A notícia de uma eventual tragédia é uma elucidação do quanto o novo artefato gerava a necessidade de se aprender certos comportamentos.

Hoje pela manhã quando á toda velocidade passava pela rua Campos Gerais o automóvel de propriedade do sr. Fido Fontana, iam sendo vitimadas duas crianças, filhas do sr. Braga, que brincavam na porta da sua residência. As crianças á custo escaparam. Sendo, porém, morto um cachorrinho pertencente aquele sr. (A República, 18 de maio, 1903, p.2)

Se as marginais e suas calçadas eram o espaço do pedestre, as ruas ganhavam exclusividade para os carros. Contudo, as carroças, animais e seus condutores, que eram até então os únicos usuários das vias, também precisavam aprender a conviver com o novo artefato. Na mesma medida, a população precisava estar em alerta ao atravessar e usar de algum modo as vias, sendo a cautela e a atenção algumas das atitudes importantes a serem compreendidas e executadas para ambas as ações, a fim de evitar tais acidentes.

Se o automóvel era inédito, por consequência, pilotar também. Logo, se o gesto mais elementar para dirigir é saber como conduzir a máquina, e tal manuseio ainda não havia sido difundindo, não é de causar espanto, portanto, eventualidades dessa natureza.

Uma classe trabalhadora ganharia destaque para tal função, o chauffeur. Não raro, junto da compra de um veículo, os proprietários contratavam o serviço de chofer. Alguns deles vindos diretamente da capital federal Rio de Janeiro, como o caso de um contratado para servir o governo do Estado:

Deve chegar amanhã a esta capital o automóvel encomendado pelo governo do Estado, por intermédio do sr. Francisco F. Fontana, para serviço do palácio. Este veículo é um landau com espaço para 7 pessoas e possui motor de 25 cavalos. No mesmo vapor deve também vir um chauffeur contratado no Rio de Janeiro (A Notícia. 15 de fevereiro, 1907, p.3).

O fato de o chofer ser da capital federal, talvez indique que o motorista já estava “acostumado” a dirigir. O Rio de Janeiro já tinha contato anterior com a máquina. É provável, portanto, que o condutor em questão tivesse certas habilidades ao volante, visto que assumiria uma função importante, a de trabalhar para o governo.

Figura 2. Modelo comum de divulgação das empresas automobilísticas nos jornais de Curitiba. Fonte: Diário da tarde. 21 de maio, 1908, p. 3.

Ao que tudo indica, nessa altura ainda não existia em Curitiba um teste de habilidades para dirigir. Outro acidente, dessa vez causado por um chofer, reforça essa questão:

Sábado, as 5 horas da tarde quando pela Avenida Luiz Xavier, passava o automóvel n. 1, com o chauffeur Correa da Gama, deu-se uma colisão com um carro de praça, da cocheira Menegheto.

Lamentamos tal facto e apelamos para a Prefeitura que muito bem, podia sujeitar os indivíduos que se destinam ao mister de guiar carros a um exame prático. (Diário da tarde. 20 de setembro, 1911, p. 1)

Os jornais eram contundentes em reclamar da necessidade de testes práticos. A formação dos condutores era um problema, dirigir de maneira precipitada colocava vidas em risco. Ao que parece a objeção jornalística surtiu efeito. Apesar de não conseguirmos localizar ao certo em que ano medidas avaliativas de condução foram efetivadas, em 1913 elas já existiam e eram, inclusive, motivo de piada (A bomba. 10 de setembro, 1913, p.9).

Figura 3. Charge Exame de chauffeur.

Fonte: A bomba. 10 de setembro, 1913, p. 9.

            Os exames eram realizados pela prefeitura municipal. Porém, equívocos como excesso de velocidade e fatalidades como atropelamentos de pessoas e animais eram ridicularizados, ao ponto de serem debochadamente associados como elementos comuns na aprovação dos condutores. Talvez a avaliação ainda não fosse eficiente para formar motoristas. De toda forma, aqueles que se arriscavam em aventurar-se de algum modo com o automóvel, ganhavam status de automobilistas na capital paranaense.

Com essas pinceladas acerca das experiências em torno do automóvel em Curitiba, percebemos que esses elementos evidenciam que artefatos comuns do dia-a-dia podem ser ricas possibilidades para compreendermos as transformações históricas. Dessa maneira, os automóveis e as experiências automobilísticas são mais um entre tantos outros temas que nos permite perceber como os habitantes das urbes vivenciam e notavam as mudanças em curso. Os veículos motorizados são, portanto, mais uma possiblidade para lançarmos um olhar original para a histórias das cidades, dos esportes e das diversões.

Referências

Cofaigh, Éamon. Motor sport in France: Testing-ground for the world, The International Journal of the History of Sport 28, 2011.

Hobsbawm, Eric. A era dos impérios. São Paulo: Paz e Terra, 1988.

Melo,Victor Andrade de. Before Fittipaldi, Piquet And Senna: The Beginning Of Motor Racing In Brazil. The International Journal of the History of Sport, 2011.

Pereira, Magnus Roberto de Mello. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: UFPR, 1996.

Sevcenko, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In. (Org.). A história da vida privada no Brasil: da Belle Époque à era do rádio, São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Thompson, Edward Palmer. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial. In: Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Weber, Eugene. França Fin de Siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.


[1] Uma parcela significativa desse material foi publicada na Revista Tempos Históricos. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/article/view/29843

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