A burocratização do saber médico sobre a ginástica no século XIX: o caso da Imperial Casa de Saúde e Instituto Ginástico Ortopédico

Fabio Peres e Victor Melo[i]

No último post, comentamos sobre a tentativa de se estabelecer, no início da década de 1840, um instituto ginástico ortopédico na Corte.

O projeto da Imperial Casa de Saúde e Instituto Ginástico Ortopédico foi submetido — a pedido da Secretaria de Estado dos Negócios do Império — à avaliação da Academia Imperial de Medicina. O parecer inicial da comissão escolhida pela academia enalteceu a iniciativa.

Um dos pontos destacados era que a casa de saúde não seria ligada às ordens terceiras, ampliando o acesso de diversas pessoas a serviços médicos, incluindo ginástica e ortopedia, independente da crença ou afiliação:

A necessidade do título de católico, e de afiliação à ordem, tornando esses pios estabelecimentos inacessíveis para um grande número de pessoas, e limitando singularmente sua utilidade, uma Casa de Saúde que aberta fosse a todos os homens, e a todas as crenças, fazia-se, no estado atual da nossa civilização, urgentemente necessária.  Enfim, a ortopedia e a ginástica, que entram no projeto como partes integrantes, acabam de o tornar digno de toda a solicitude do Governo (1841, p.97)[ii].

 O acesso à ginástica médica e ortopédica não parecia ser, pelo menos na perspectiva da comissão da Academia Imperial de Medicina, um aspecto de menor importância: 

É com vivo sentimento de prazer que nós vos anunciamos que o Rio de Janeiro vai possuir um estabelecimento de ortopedia e de ginástica. Só esta circunstância nos bastava para rogar-vos que deis vosso sufrágio ao projeto, cujo exame nos incumbistes. Quantas vezes, senhores, cada um de nós se não viu obrigado a lançar o desespero no coração dos pais de filhos desgraçados, anunciando a insuficiência dos meios possuídos pela arte neste país, para curar esses desvios da coluna vertebral, que destinam a uma mais ou menos tarda, mas certa morte, os desgraçados que deles se acham afetados? […] Quantos meninos caquéticos e incapazes, quando chegam à virilidade, de serem úteis à pátria e de preencherem os deveres de cidadão, deixarão de ser pesados a sua família pelo benefício dos exercícios ginásticos! (p. 1841, p.97-98).

 A única ressalva que o parecer aponta em relação à ginástica trata da sugestão de trazer um professor da Europa, uma vez que, segundo a comissão, seria imprudente confiar em “homens inábeis” os exercícios ginásticos. De certa forma, essa avaliação apontava a distância entre a ginástica médica preconizada pelos membros da comissão, isto é, a ginástica europeia, e a ginástica ensinada ou praticada em terras nacionais.

Contudo, alguns meses depois, o Dr. José Maurício Nunes Garcia fez um discurso com severas críticas ao relatório produzido pela comissão, que deixou— segundo ele — de cumprir com as suas responsabilidades com o governo[iii]. Tais críticas abordam tanto questões médicas como administrativas, legais e financeiras (entre as quais está a oneração do tesouro público, em face da pequena contrapartida dada pelo estabelecimento de saúde).

No que tange ao instituto ginástico ortopédico, Nunes Garcia argumentava que este não deveria dividir o espaço com a casa de saúde, uma vez que a proximidade entre os estabelecimentos poderia ser nociva.  De acordo com o médico, a ginástica poderia ser ensinada no Colégio Pedro II, e a ortopedia na escola de medicina, desde que fossem oferecidos os instrumentos e aparelhos necessários.

As críticas de Nunes Garcia parecem ter surtido efeito, já que a Academia Imperial de Medicina reviu sua apreciação, emitindo parecer contrário ao projeto da Imperial Casa de Saúde e Instituto Ginástico Ortopédico. Mesmo considerando de “primeira necessidade e utilidade pública” o estabelecimento de casas de saúde na Corte, a Academia concluiu que estas não deveriam seguir o modelo proposto no projeto devido a uma série de problemas identificados.

Este episódio aponta que, mesmo em relação à ginástica, não existia um consenso entre os médicos da instituição. Embora uma das principais preocupações de Nunes Garcia e, posteriormente, da própria Academia, fosse o impacto financeiro no cofre público sem as devidas garantias, as sugestões de separar, primeiro, a casa de saúde do instituto ginástico ortopédico e, depois, o ensino da ginástica do estabelecimento ortopédico, revelam a existência de perspectivas diferentes sobre o tema. 

A revisão do parecer pela Academia Imperial de Medicina não apenas reflete a dinâmica interna de debates e divergências na instituição, mas também ilustra o papel e a responsabilidade percebidos por seus membros no âmbito do Estado que se conformava naquele período. Esta situação sinaliza, em certa medida, um processo de consolidação da legitimidade do saber médico na administração estatal e, por conseguinte, do papel que tal saber teria — e deveria ter na autorrepresentação dos médicos — nas avaliações e decisões sobre políticas de saúde e no desenvolvimento de práticas médicas.

Outros indícios da inserção do saber médico sobre a ginástica na estrutura administrativa do Estado podem ser vistos nos relatórios anuais do Ministério dos Negócios do Império. Mas essa história ficará para um próximo post.


[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494;. ISSN 2236-3459.

[ii] Revista Medica Brasileira, Junho de 1841, p. 92-99

[iii] Revista Medica Brasileira, Agosto de 1841, p.189-203.

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