Tudo que é ópio desmancha na bola

A ideia do presente post cujo metafórico título estabelece uma alusão a superficial visão de que o futebol é o ópio do povo surgiu a partir da leitura do instigante ensaio “Tudo que é ar desmancha no sólido: Eurocopa 2012, quixotismos e crise espanhola” de Germán Labrador Mendez, professor do Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Princeton publicado na Revista Piauí na edição número  71 do mês de agosto e disponível na página http://sergyovitro.blogspot.com.br/2012/08/tudo-que-e-ar-desmancha-no-solido.html .

A presença de uma “aura” marxista no texto com a referência direta ao ótimo trabalho de Marshall Bermann sobre o Manifesto Comunista e suas metáforas, e as relações contemporâneas estabelecidas pelo autor entre a economia espanhola em crise, o futebol praticado pela seleção campeã mundial e as construções identitárias denominadas quixotescas no imaginário nacional do país transformam o texto em uma leitura agradável para todos que se interessam pelos assuntos abordados.

Todavia, apesar de ter ficado encantado com a clareza e beleza do texto, de aprender muito com a profusão de informações sobre a atual situação econômica espanhola, concordar com as diversas críticas estabelecidas de forma irônica e rebuscada ao neoliberalismo, citando a especulação imobiliária, as grandes multinacionais, a força do discurso publicitário, o resgate junto a União Européia para salvar os bancos; confesso que a forma como o autor escreve sobre o futebol e mais precisamente a respeito da seleção espanhola me incomodou enquanto pesquisador da área.

A corriqueira metáfora do futebol enquanto espelho da sociedade é utilizada inadvertidamente pelo autor que em seu discurso simplifica as próprias partidas da Eurocopa a meros reflexos da situação política e econômica do país e do continente, esquecendo as especificidades do jogo em si. A vitória sobre a Croácia, por exemplo, que classificou a seleção espanhola para a segunda fase da competição em primeiro lugar no seu grupo, foi descrita da seguinte forma:

            “Logo se viu que a seleção de futebol não era estranha à temporalidade da crise. Passada certa dúvida inicial, o fato foi confirmado de vez por uma partida horrorosa contra a Croácia, ainda na fase de classificação. Porque não se tratava de ganhar, e sim de jogar bem, e essa mais-valia estética era a única coisa que podia reerguer a miragem da compensação moral simbólica do material político. “ Somos os únicos que não nos abraçamos ao passar para as quartas de final”queixou-se o técnico amargamente. Invocando o fantasma da desunião nacional, esse homem que prefere ser chamado de Del Bosque queixava-se das críticas recebidas pelo jogo conservador da Espanha, estilo mesquinho, jogo austero, como as próprias medidas do governo. E na sequência sublinhou: “Passamos de pobres a ricos muito rápido e não damos valor ao que temos”(grifos nossos)

            Ou seja, as dificuldades encontradas na partida pela equipe espanhola estão restritas aos problemas econômicos e sociais do país? O fato da Croácia ser uma equipe forte e estar fazendo uma boa Eurocopa, alguns jogadores estarem desgastados pelo fim da temporada em seus clubes e o torneio ser disputado pelas principais seleções do continente não são levados em consideração pelo autor.

Na referência a semifinal disputada entre as duas nações ibéricas, o discurso metafórico e a associação aos modelos econômicos nos países em crise é ainda mais contundente:

Uma das partidas mais nefastas da Eurocopa confrontou duas versões da mesma crise europeia: Espanha e Portugal. Lá reapareceram todos os fantasmas do jogo ruim. A política de austeridade esportiva resultou em paralisia: não havia boa movimentação em campo, o que dificultava o entrosamento dos jogadores, a criação de oportunidades, trocas, economia. A falta de posse de bola, ou seja, de crédito, ameaçava levar o sistema tático espanhol ao colapso. Por fim, as eliminatórias de uma das duas economias deficitárias da zona do euro foi decidida nos pênaltis, e a atuação resoluta dos espanhóis decidiu o encontro a seu favor”

Decisão nos pênaltis num boteco em Madri – Arquivo Luiz Carlos Sant’ana

Novamente o autor fala de uma partida de futebol utilizando elementos extrínsecos ao jogo, desconsiderando as rivalidades futebolísticas, os atletas e a própria conjuntura emocional que envolve uma semifinal de Eurocopa.       

Curiosamente, o vistoso futebol praticado pela seleção espanhola na partida final em que aplica uma incontestável goleada de 4 x 0 sobre a Itália recebe pouco espaço no último item do ensaio que possui o sugestivo título “ A final não é o final”. A volta de uma equipe vitoriosa que pratica um estilo de jogo técnico e tático exuberante parece não ter agradado ao autor que demonstra preocupação com a possível utilização do triunfo pelas autoridades políticas do país e que segundo observação de um colega sociólogo parece não entender nada de futebol. O trecho que menciona a acachapante vitória da “Fúria” ou “Roja” é curto e utiliza como referência diversas manchetes de jornais como se o real fascínio exercido pela seleção fosse apenas uma construção midiática:

           “A elegância da partida final, em que é reativada a magia estética da seleção, acabou rendendo a população resistente diante do retorno quixotesco de sua equipe campeã do mundo. Assim ficou cristalizado nas manchetes de jornais e revistas …”

Em seu ensaio Germán Mendez se coloca como um flanneur, um emigrante distante de seu país faz seis meses, que anda pelas ruas de Madri e observa as consequências da crise em meio à atmosfera das ruas e celebrações em torno do principal evento futebolístico continental.

O autor observa a onipresença dos turistas nas cidades. Segundo Zigmunt  Bauman em “O Mal-estar da pós modernidade”, turistas e vagabundos seriam respectivamente heróis e vilões da pós-modernidade em uma fronteira muito tênue:

Sugiro-lhes que a oposição entre os turistas e os vagabundos é a maior, a principal divisão da sociedade pós-moderna. Estamos todos traçados num contínuo estendido entre os pólos do turista perfeito e o vagabundo incurável – e os nossos respectivos lugares entre os polos são traçados segundo o grau de liberdade que possuímos para traçar nossos itinerários de vida” (BAUMAN:1998, 118)

A partir desta perspectiva decidi estabelecer um contraponto com o autor a partir do meu pós-moderno amigo Luiz Carlos. Integrante do laboratório e participante deste blog Luiz encontrava-se em Madri neste período com uma bolsa-sanduíche para finalizar sua pesquisa de doutorado. Acompanhou as partidas da seleção em bares, viu as comemorações e observou também nas ruas de Madri como um turista/flanneur a atmosfera da crise. Fiz algumas perguntas sobre suas impressões e reproduzo abaixo algumas das suas percepções que possibilitam um outro olhar sobre o assunto.

Sobre a atual crise econômica espanhola:

Para um quase turista vindo de um país com tamanhas diferenças sociais, graus inacreditáveis de violência urbana e tantos problemas básicos por equacionar, a crise espanhola chega a ser difícil de se visualizar. Desde o meu primeiro dia, porém, e até o último, esse assunto esteve presente, invariavelmente, na imprensa (escrita, televisionada) e nas conversas mais ou menos corriqueiras. Também se fazia presente quando me descobriam brasileiro. A melhora econômica e financeira, além da boa propaganda realmente parecem ter mudado parte da opinião internacional sobre o Brasil. Na Espanha e Portugal, então, o que mais me perguntavam era… Como está no Brasil? Vocês estão crescendo, não? Há bastante emprego…?   Esse foi um ponto de contato com a crise, certamente. Tanto pela curiosidade como pelo viés da mesma. Sem perguntas sobre samba, futebol, papagaios, mas, sintomaticamente, sobre oportunidades de trabalho.  Esse é um problema. A Espanha lidera esse quesito nada honroso com o espantoso índice de 24,6% de desocupação”

A respeito da relação entre futebol e Nação:

Falando em campeonatos e tabelas, fiquei de escrever algumas palavras sobre futebol e crise. Tive a sorte de vivenciar, em terras hispânicas, uma final de Liga (com o Real Madrid se sagrando campeão), uma final de Super Copa com a vitória do Atlético de Madrid e , é claro, o bicampeonato da Eurocopa, com a conquista do selecionado espanhol. Isso além de conhecer os estádios e museus do Vicente Calderón (Atlético de Madrid), Santiago Bernabeu (Real) e o Camp Nou (Barcelona).  Fosse nos bares ou telões ou nos estádios, ou ainda em cada canto para turista (que perfaz uma boa parte das cidades desse país), esse é (também) o país do futebol.  O Real Madrid e o Barça são instituições nacionalmente respeitadas e reciprocamente odiadas, é bem verdade. Mas vou deixar essa rivalidade para uma outra ocasião.  Acompanhando com vivo interesse as seleções da Espanha e de Portugal no certame continental, foi com alguma satisfação que presenciei a movimentação em torno dos jogos do selecionado. Cada disputa elevava as expectativas e mobilizava multidões.  Novamente se formos comparar com a nossa própria paixão futebolística, as coisas são mais amenas e mais sóbrias, mas a paixão é real e, para um turista, consistiu na prova viva de uma linguagem internacional que me pôs em contato com espanhóis, portugueses, holandeses, brasileiros, argentinos, todos pelo encanto da bola.  Se houve alguma exploração política e mercadológica por conta da boa campanha da Fúria?  Evidentemente que sim. Qual governo e qual setor da propaganda comercial não buscaria um quinhão nesse movimento de afirmação de cores nacionais.  LUIZ CARLOS SANT’ANA

Neste sentido, e refletindo em cima das últimas palavras do pesquisador Luiz Carlos, é óbvio que as vitórias expressivas da seleção espanhola podem servir como elemento de manipulação política pelo regime neoliberal no país como aponta de forma ostensiva Germán Mendez em seu ensaio, mas minimizar o esporte e a forma de uma equipe jogar a reprodução mimética de um regime político e de uma postura econômica é na minha visão resgatar a velha e ultrapassada teoria do futebol como ópio do povo sob uma nova roupagem. Como bem relatou o autor do ensaio e também ressaltou Luiz Carlos, diversas manifestações sociais continuam ocorrendo independentemente do bicampeonato europeu como, por exemplo, a marcha dos mineiros que ocupou o famoso ponto turístico Porta do Sol uma semana após o desfile da equipe campeã.

Além disso o estilo de jogo da excepcional equipe espanhola não parece ter sido afetado pela crise no país, até mesmo pelo fato de que para jogadores de futebol da grandeza de Iniesta, Xavi, Fernando Torres, Piquet, etc os percalços econômicos vividos no país não afetam suas contas bancárias.

Protesto de centrais trabalhistas na Porta do Sol- Acervo Luiz Carlos Sant’ana

 Referências

BAUMAN – O mal-estar da pós modernidade – Rio de Janeiro:Jorge Zahar ED. 1998. 

Revista Piauí – N.71

Agradecimentos especiais a Luiz Carlos Sant’ana pelo registro e por ceder as imagens do seu acervo pessoal.

 

  

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