A moda da corrida de rua

Cleber Dias

cleberdiasufmg@gmail.com

Milhares de pessoas começaram a correr pelas ruas, estradas, praias e parques ao longo da década de 1970. Como quase sempre, havia antecedentes, claro, pois antes disso, homens corriam já médias ou longas distâncias como forma de exercício físico. Todavia, depois de 1970, o alcance e as características desse costume assumiram feições bastante originais.

Em escala global, uma vez que afetou simultaneamente vários países, grupos antes excluídos da órbita das prescrições médicas em favor da atividade física foram plenamente integrados como parte de seu público-alvo. Era o caso das mulheres e dos homens com mais de 40 anos. A recomendação médica de práticas regulares de atividades físicas já não estava confinada apenas aos homens jovens e saudáveis. Até portadores de doenças cardíacas passaram a ser incentivados a realiza-los. Assim, ampliou-se muitíssimo o universo potencial de adeptos da corrida de rua e de outras formas de exercícios. O resultado logo se fez notar.

“As calçadas de Copacabana, Ipanema, Leblon e Lagoa [bairros do Rio de Janeiro] estão repletas de cultores da nova mania”, dizia reportagem do Jornal do Brasil, em 1979. “Os primeiros chegam às 5 da manhã e os últimos só saem tarde da noite. Os homens com mais de 40 anos são a esmagadora maioria, vindo logo depois alguns jovens e uma pouco eficiente – mas muito colorida – minoria feminina […] Homens e mulheres andam e correm motivados pelos mais diversos desejos e ansiedades, que podem ser resumidas num objetivo: melhorar o corpo e a cuca. Lá pelas 7 da manhã há quase congestionamento nas calçadas”.

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Capa da Revista Veja noticiando o significativo e abrupto aumento do número de praticantes de corrida. Fonte: Veja, 26 jul. 1972, n. 203.

Além da prática esportiva propriamente dita, essas transformações também afetaram um amplo mercado de produtos e serviços, que ia desde equipamentos sonoros para uso durante a corrida, até marcador de batidas do coração, passando por pedômetros, cronômetros, cintos com luzes para corrida noturna, bastão para afugentar cachorros, anel para marcar o número de voltas, bebidas especiais para hidratação corporal, chicletes contra a sede, vitaminas, revistas, livros, filmes, calçados, calções e camisetas para o frio ou para o calor. Afora os muito propalados benefícios para a saúde, a corrida também ia produzindo muito dinheiro.

Imagem 1 - JB, 25 mai. 1979, n. 47, p. 4, Caderno B

Propagandas de produtos, geralmente norte-americanos, ofertados no e para o contexto da ampliação do número de adeptos da corrida de rua. Fonte: Jornal do Brasil, 25 mai. 1979, n. 47, p. 4, Caderno B.

Em 1978, os organizadores da Semana de Moda de Nova York dedicaram o Coty Award, importante prêmio da alta costura, a Charles Suppon, estilista que confeccionara toda uma coleção inspirada nos esportes. A estilista Monika Tilley, já desde antes reputada por desenhar roupas para esportes, também ganhou destaque naquele desfile. Sua coleção apresentava roupas colantes e com cores vibrantes, declaradamente inspiradas nos esportes. Segundo ela, “se as pessoas gostam de si mesmas, gostam de moda. E se gosta de si, gostam de cuidar do corpo, de fazer esportes”.

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Estilistas inspiravam-se nos esportes para suas coleções, quando não confeccionavam especificamente para sua prática. Fonte: Jornal do Brasil, 27 jun. 1978, n. 80, p. 4, Caderno B.

Nas coleções de verão ou de inverno, em Paris ou em Nova York, a moda do fim dos anos 1970 foi fortemente marcada pelos esportes. O uso da malha ou de outros tecidos tecnologicamente mais sofisticados, como o jeans elástico ou os couros falsos, era frequentemente associado a influências ou inspirações vindas dos campos de esporte. Até cortes de cabelo foram associados ao “jogging”, como era chamado a corrida de rua na época. Simplicidade, praticidade e funcionalidade seriam algumas das principais características destes estilos, não por acaso, resumidas pelos especialistas da época como “jovem, comercial e usável”.

Imagem 2 - JB, 2 out. 1979, n. 177, p. 5, Caderno B

Fonte: Jornal do Brasil, 2 out. 1979, n. 177, p. 5, Caderno B.

Na esteira do novo entusiasmo com a prática de esportes, as novas tendências da moda também se fizeram notar no Brasil. Mais que isso, em meio a uma crise financeira que afetava o setor, itens de vestuário inspirados ou destinados à prática de esportes lideravam as vendas e garantiam o lucro de fabricantes, logo convertendo-se, segundo palavras de uma colunista de moda do Jornal do Brasil, na “grande fonte de tostões para os costureiros”. Destacavam-se nesse cenário os chamados “conjuntos training”, com blusões e calças de malha para a corrida ou outros esportes.

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Fontes: (esquerda) Jornal do Brasil, 27 jun. 1978, n. 80, p. 5, Caderno B; (direita) Jornal do Brasil, 11 ago. 1979, n. 125, p. 8, Caderno B.

Geraldo Assunção, por exemplo, era um dos estilistas que tentava explorar comercialmente a tendência, confeccionando macacões, camisetas, shorts, blusões, blazers e calças de malha inspiradas na imagem saudável e jovem dos praticantes de corrida, tênis ou iatismo. Perspicaz, Geraldo Assunção notara, à sua maneira, que os esportes eram mais que simples práticas; eram também poderosos e massificados símbolos cultuais, socialmente disponíveis a muitos fins, incluindo a articulação de identidades coletivas ou apresentação individual de si mesmo, o que os tornavam particularmente úteis para a indústria da moda, que soube então aproveitá-los com muita sagacidade. Conforme ele mesmo explicava, “não é moda para quem quer emagrecer, ou evitar o enfarte. É estilo criado por quem tem dezoito anos, e quer sair de tênis colorido, em dois números acima do seu pé e calça apertada na barra. Nem todos querem se cansar andando de bicicleta em volta do quarteirão, mas todo mundo gosta de aparentar dezoito anos”.

O traje “esporte-fino” talvez seja um dos vestígios mais persistentes, reveladores e corriqueiros das peculiares relações históricas entre o universo da moda e o dos esportes. Pois sintomaticamente, tudo a que este modo de vestir-se não se presta é a prática de esportes.

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