Silêncios e Olhares: algumas observações sobre o uso da imprensa como fonte na História do Esporte

No estudo da História do Esporte, a utilização de fontes provenientes da imprensa escrita é algo rotineiro. E não é por menos. A cobertura diária dos eventos esportivos, por si só, já seria de grande valia ao historiador, mas além disso, soma-se ainda o fato de os jornais serem um dos principais meios pelos quais as pessoas viveram o futebol e aos quais os historiadores têm fácil acesso – o rádio e a televisão, apesar de terem alcance mais abrangente, ainda permanecem distantes de historiadores, como misteriosos ideogramas que ainda não conseguimos decifrar sua leitura. No entanto, apesar de seu uso massivo, as fontes de imprensa ainda são, por diversas vezes, utilizadas como reconstruções do passado; como excertos de um mundo acontecido, que foram reproduzidos fidedignamente pelos valorosos e isentos jornalistas do período em questão.

Ainda que tal forma de utilização de fontes de imprensa estejam declinando dentro do campo acadêmico da História do Esporte, ela ainda pode ser encontrada com frequência em trabalhos ditos acadêmicos, e por vezes aparecem em propostas de artigos aos quais preciso dar um parecer. Dessa forma, muitos trabalhos interessantes se fragilizam devido ao uso inadequado de fontes históricas.

Neste post, gostaria de destacar brevemente dois artigos que publiquei há alguns anos e que me foram relembrados por ocaisão de um debate sobre este mesmo tema, ao falar de duas importantes – mas não únicas –  variáveis a serem levadas em consideração ao trabalharmos com fontes jornalísticas: seus silêncios e seus olhares. Por “silêncios“, me refiro a fatos não mencionados, esquecidos ou escondidos das páginas dos jornais, e por “olhares“, entende-se os diferentes pontos de vista e as posições defendidas e/ou advogadas pelos meios de imprensa.

Ao falar em silêncios, me lembrei de um artigo publicado em 2008, na revista digital argentina “Lecturas, Educación Física y Deportes“, uma das mais antigas revistas de acesso livre digital que conheço na América Latina. Nesse breve artigo artigo, intitulado “Imprensa esportiva e propaganda política no peronismo: uma comparação entre ‘El Gráfico’ e ‘Mundo Deportivo’“, fiz uma análise ligeira sobre a forma com que as duas principais publicações esportivas do período do primeiro peronismo, as revistas “El Gráfico” e “Mundo Deportivo” representaram em suas páginas a morte e o funeral de Eva Perón, uma importante figura política peronista. Demonstro então que o semanário peronista “Mundo Deportivo” dedicou um número inteiro a Evita, no qual 45 das 75 páginas são dedicadas à esposa de Perón, destacando sua participação em diversos esportes e seu papel como simbolo da nova nação que defendiam existir. Já a revista rival “El Gráfico”, uma referência do jornalismo esportivo portenho que minguava em número de páginas por pertencer a um grupo de oposição ao governo peronista, destaca apenas 3 páginas de sua edição desta mesma semana, com um curto texto na página 3 e apenas fotografias ocupando a maior parte dessa página e das páginas 4 e 5. No curto texto, se resumiam a dizer:

El sábado 26 de Julio, a las 20.25 horas, a muerto Eva Perón, esposa Del primer magistrado, general Juan Perón, y Jefa Espiritual de la Nación. El deporte siente su prematura desaparición, como la siente el pueblo entero de la Argentina, porque su actividad infatigable llegó también hasta nuestro ambiente. Creación de Eva Perón fueron los Campeonatos Infantiles, y las dos fotos que aquí reproducimos la muestran jerarquizando con su presencia esos torneos.

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El Gráfico, 01 de agosto de 1952, p. 3.

Ou seja, pesquisadores que buscassem apenas um desses dois veículos de informação teriam visões bem distintas de quem lesse apenas o outro, acerca da importância do acontecimento. Torna-se fundamental então compreender a conjuntura política do período em questão, a limitada liberdade de imprensa e os meios possíveis de divergência e oposição. Ao produzirem diferentes discursos, escolhas e esquecimentos são indicativos essenciais para que hisoriadores possam fazer uma leitura menos distanciada do passado que investigam. É evidente que isso serve para toda produção histórica, e não somente para a história do esporte, mas devido à importância e à frequência com que fontes jornalísticas são utilizadas por historiadores do esporte, essa preocuipação se torna uma questão central ao nosso campo de estudo.

O segundo elemento que optei por destacar aqui foram os diferentes olhares produzidos pela imprensa. Nesse caso, faço referência a um artigo que publiquei em 2009, no XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), entitulado “A Política no Jornalismo Esportivo: o Jornal do Brasil e o Jornal dos Sports no Dissidio Esportivo dos Anos 30”, no qual faço uma análise comparada da cobertura de dois dos principais jornais do Rio de Janeiro, o JB e o JS, sobre momentos de tensão na disputa política ocorrida entre 1933 e 1937, que dividiu a esporte carioca – e nacional – em duas correntes, o que na época ficou conhecido como o “dissídio esportivo”. Ao acompanhar as páginas dos jornais, torna-se evidente que cada veículo advogava em nome de uma corrente da disputa.

Como exemplo das posições em que colocavam esses jornais, transcrevo duas passagens envolvendo uma tentativa de pacificação ocorrida em 1934, que ao fim acaba por não funcionar, na qual o grupo que se colocava então como defensor do profissionalismo sairia com vantagem. A primeira, da corrente que defendia a CBD e o amadorismo:

A nota dominante em nossos meios esportivos é a tal “pacificação” que, segundo se afirma, os mentores profissionalistas que para a desgraça do nosso sport, ao que parece, o empolgam no momento, vão impingir aos que se tem batido com sinceridade pela verdadeira causa do sport nacional, concretizada nessa organização magnífica e sem similar no mundo inteiro, que é a Confederação Brasileira de Desportos. (Jornal do Brasil, 05/06/1934, p. 24)

Pode-se observar, por este trecho, que o Jornal do Brasil não escondia de que lado estava e em nome de quem falava. Ao se referir à CBD como uma “organização magnífica e sem similar no mundo inteiro”, não havia dúvida de que o jornal estava contrário ao grupo liderado por Arnaldo Guinle, que, de acordo com o próprio jornal, empolgavam o esporte nacional no momento, mesmo que para a suposta desgraça do mesmo.

Já o Jornal dos Sports, ligado ao grupo que defendia o profissionalismo, afirmava:

A pacificação dos sports, hontem feita atravez do pacto firmado pelos “leaders”
mais proeminentes das duas facções que lutavam sem desfallecimentos, há mais
de um anno, é, antes do mais, uma victória para o próprio sport brasileiro, seu
maior beneficiário (…). (Jornal dos Sports, 07/06/1934, p.1)

Essas e diversas outras passagens demonstram a diferença de olhares que dois veículos da grande imprensa carioca apresentavam em suas páginas. Algum pesquisador, ao ler o JB entre os anos 1933 e 1937, poderia se perguntar o que acontecera com Flamengo,  Fluminense e Vasco (este último até 1934, visto que em 1935 volta a se filiar à CBD e retorna as páginas do jornal), visto que os clubes dissidentes praticamente desapareceram das colunas esportivas do diário. Já a leitura excllusiva do Jornal dos Sports pode levar o pesquisador a enxergar os acontecimentos passados de forma tão parcial quanto o outro lado, vendo apenas a força e as benesses dos clubes ligados à Liga Carioca de Futebol. Olhares e silêncios, novamente presentes e atuantes.

Como dito anteriormente, esses cuidados não devem se restringir à história do esporte ou a períodos distantes no passado. Eles são tão fundamentais para a leitura da imprensa atual quanto são para o estudo histórico do esporte. Ainda que tais cuidados sejam elementares na prática de qualquer bom historiador, por vezes não custa nada relembrar o óbvio, que tanta gente esquece.

======= Leituras sugeridas =======

DE LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla B. (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 111-153.

MELO, Victor Andrade de; DRUMOND, Maurício; FORTES, Rafael; Santos, João. Meios de comunicação. In: ______. Pesquisa histórica e História do Esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras / Faperj, 2013, p. 113-127.

 

 

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