O dia em que o Maracanã reverenciou o “maior atleta do mundo”: histórias das (des)construções de uma identidade nacional

por Fabio Peres[i]

A história é fascinante e cheia de nuances. No dia 19 de março de 1955, o leitor do jornal O Globo era informado sobre uma exibição prevista para ocorrer em abril no Maracanã. O evento se daria antes de uma partida de futebol, o match entre Rio-São Paulo. A ocasião não parecia ser trivial. Uma medalha de ouro, inclusive, estaria sendo cunhada especialmente para a ocasião.

O “grande campeão” a ser homenageado, porém, não era ligado (pelo menos diretamente) ao “mundo” do futebol; já na época o esporte mais popular do Brasil. Mas sim ao atletismo. O triplista Adhemar Ferreira da Silva, campeão olímpico em 1952 (Helsinque), havia conquistado mais uma façanha: bateu o recorde mundial no salto triplo nos Jogos Pan-americanos da Cidade do México com a marca de 16,56m – uma diferença de 33 centímetros a mais, que os periódicos buscavam quase sempre registrar, do seu rival russo Leonid Scherbakov. Diante do contexto da época não parece casual o reforço da suposta rivalidade entre Brasil e Rússia (algo que merece ser melhor investigado).

O Globo fez questão de publicar uma matéria especial, de página inteira, similar aos infográficos atuais, com vários dados sobre Adhemar (ver figura 1)[ii].

Figura 1: O Globo, 19/3/1955, segunda seção, p.1.

 

Na perspectiva do periódico carioca não se tratava de um feito que seria rapidamente esquecido, mas sim um marco histórico do atletismo. Uma das manchetes destacava que “OS TÉCNICOS E OS LIVROS EM 16 M 48 O MÁXIMO A SER ALCANÇADO POR QUALQUER ATLETA – FEITO SUPERIOR A [Roger] BANNISTER[iii] AO ULTRAPASSAR A ‘BARREIRA DO SOM’ NA MILHA”. Até mesmo uma charge brincava com a ideia da necessidade de nomear uma avenida com o nome do atleta (ver figura 2).

Figura 2: Charge de Constantino, O Globo, 19/3/1955, 2ª Seção, p.1. No texto superior à direita lê-se: Quando Bob Mathias ganhou o decatlo dos Jogos Olímpicos [o decatleta ganhou ouro nas Olímpiadas de 1948 (Londres) e de 1952 (Helsinque)] , a pequena cidade norte-americana de Tulare – onde nasceu Mathias – resolveu mudar o nome em MATHIASVILLE.
Abaixo da imagem lê-se: TURISTA – Ó mister guarda, pode me indicar a Avenida Ademar Ferreira da Silva?

 

A conquista, porém, não se dera sem um tom dramático. Dias antes, Adhemar havia sido desclassificado no salto em distância (Última Hora, 15/3/1955, p.12). Certa expectativa cercava, então, o desempenho do triplista. Talvez por isso, a notícia de sua vitória ganhou um colorido de catarse. Os jornais não apenas destacavam que aos “soluços” o atleta dissera que poderia ter saltado mais, como “ninguém parecia acreditar no que a fita métrica afirmava”.  A manchete do Última Hora refletia e, ao mesmo tempo, reforçava os sentimentos de orgulho, identidade e pertencimento compartilhados pela “comunidade imaginada” (Anderson, 2008) ao dar destaque a fala do “grande campeão do mundo”: “VENCI NÃO PARA MIM; MAS PARA O BRASIL” (Última Hora, 17/3/1955, p.12). A importância ao feito era tão grande que o jornal publicou a sequência de fotografias que resultou recorde (ver Figura 3).

Figura 3: Última Hora, 17/3/1955, p.12

 

Dias depois, o Última Hora fazia questão de publicar a opinião do técnico americano Don King que afirmava que o Brasil nas Olímpiadas de 1960 só ficaria atrás dos Estados Unidos e da Rússia; expressando assim que tal sentimento de nacionalidade também passava pelo reconhecimento do olhar do outro, não qualquer estrangeiro, mas o estrangeiro “qualificado” (Última Hora, 19/3/1955, 2º Caderno, p.1).

Isso não significava, por sua vez, que esse sentimento não era alvo de críticas. Uma coluna não assinada destacava em seu título: “BRASIL ENVERGONHA NO MÉXICO”. O texto destacava:

O noticiário aí está diário, doloroso, triste para todos os brasileiros. Nós, que temos a péssima moda de achar que nosso avanço esportivo em determinados setores é ultra espetacular, somos forçados a reconhecer que ainda não atingimos a expressão de outras nações, que somos discípulos, ainda, em esportes que nos julgávamos senhores de primazia (Mundo Esportivo, 25/3/1955, p.2).

O desempenho dos atletas brasileiros, de acordo com a análise, não correspondia às expectativas, à “propaganda” que se torna “ruinosa”, mostrando para nós e – vale destacar – principalmente para o mundo “a nossa inferioridade esportiva” que “mais se acentua entre os países que lá estão representados” (op. cit.). A coluna não deixava de sublinhar a decepção com os resultados dos demais atletas brasileiros, ainda que enfatizasse a importância de Adhemar e do boxeador Luiz Ignácio, responsáveis pelas únicas medalhas de ouro que o Brasil conquistou no México:

Tiremos o chapéu ao fabuloso Adhemar Ferreira da Silva. Saudemos Luiz Ignácio, do boxe, outro campeão, que forma, com o campeão do salto triplo, a dupla que se recomenda na delegação brasileira. Estes dois falam bem do Brasil. […] Verdade dura, duríssima, fruto único da ilusão criada de que nossos índices são compatíveis com o avanço internacional no terreno esportivo. […] Nossas equipes envergonham no México. (Mundo Esportivo, 25/3/1955, p.2).

 

As matérias, por conseguinte, acabavam por reforçar os méritos de Adhemar como também por valorizar as competições internacionais como forma de projeção nacional. Por outro lado, as colunas no jornal Mundo Esportivo contrastam com um sentimento ufanista presente em determinadas coberturas sobre a atuação dos atletas brasileiros. Isso se deu, inclusive, no bicampeonato olímpico de Ademar no ano seguinte em Melbourne (1956). Poucos dias após a notícia de sua vitória, uma pequena nota no jornal esportivo já chamava atenção para apropriação política em torno da exaltação exagerada da nação. Na seção Galeria Branca e Negra, em que eram apresentados os piores e melhores da semana, a “pior coisa” escolhida pelo periódico eram os “urubus e demagogos”; “abutres” que revestiam a conquista de Adhemar com “frases ocas, enfeitadas, demagógicas, estarrecedoras falando em bandeiras, patriotadas etc.” (Mundo Esportivo, 30/12/1956, p.13). De fato, não foram poucas as manifestações, inclusive de políticos, exaltando o feito.

Em todo caso e a despeito de alguns contrastes, prevaleceu um tom festivo e celebratório ao redor do herói e, por associação, da nação. A popularidade e o prestígio de Adhemar, não é demais assinalar, se tornaram bastante expressivos no intervalo entre as duas Olimpíadas. Além da repercussão das conquistas de 1952 e no Pan-americano de 1955, seu nome era frequentemente citado como o maior esportista do Brasil, inclusive por atletas de outras modalidades como o futebol[iv]. Matérias e colunas de jornais sobre “famosos”[v], vi] e “personalidades”[vii], mesmo fora do campo esportivo, se referiam a ele.

Figura 4: Vitória de Luiz Ignácio no boxe (Última Hora, 28/3/1955, p.1).

 

O retorno do triplista ao Brasil não poderia ser menos noticiado. A capa do Última Hora do dia 31/3/1955 saudava o campeão que chegara no dia anterior na cidade do Rio de Janeiro, dando mais um destaque à fala daquele que “abalou os meios esportivos do mundo inteiro, pondo em dúvida até o princípio da lei da gravidade”: “NÃO PODIA FALTAR À CONFIANÇA DO MEU POVO”.

Figura 5: capa do Última Hora do dia 31/3/1955.

 

O Globo, por sua vez, destacava que “O BRASIL AGRADECE AO SEU CAMPEÃO” estampando uma fotografia do então presidente Café Filho apertando a mão do triplista. A recepção foi marcada por uma solicitação do atleta ao presidente, que o tratava o triplista por “meu herói”, de que o governo “ajude o esporte cada vez mais”.

Figura 6: O Globo, 1/4/1955, p.10.

 

Não se sabe ao certo o que aconteceu com a exibição do salto de Adhemar, que seria organizado pelo O Globo. Vale lembrar que o atleta se tornou também repórter do Última Hora. De todo modo, Adhemar de terno deu (talvez a primeira) volta olímpica do Maracanã na final do torneio Rio-São Paulo:

Nem tudo foi tristeza para os cariocas, na noite de football no Maracanã. A presença de Ademar Ferreira da Silva, que fez a volta olímpica sob a ovação da assistência, foi uma nota marcante do espetáculo de ontem. Foram torcedores, cariocas e paulistas, irmanados na homenagem ao grande recordista mundial do salto triplo (O Globo, 1/4/1955, p.12).

Figura 7: O Globo, 1/4/1955, p.12.

 

As construções dos sentimentos de nacionalidades através do esporte é cheia matizes. Passaram também por outras modalidades, além do futebol, merecendo ser melhor investigadas, assim como o uso político do esporte e o uso esportivo da política. Mas esse debate ficará para um próximo post.

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EM TEMPO: esse post é dedicado à memória de Oswaldo Sérvulo de Faria, que não nos deixava esquecer – mesmo diante das adversidades – de mantermos sempre a esperança, e que possuía grande orgulho de Adhemar ter vestido as cores de seu time, o Clube de Regatas Vasco da Gama.

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[i] Uma pequena parte dessa história foi escrita com Victor Melo e está inserida no capítulo “Adhemar Fereira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero” do livro organizado por Antonio Sotomayor e Cesar Torres, que será lançado em breve.

[ii] O Globo, 19/03/1955, segunda seção, p.1.

[iii] Por exemplo, no Mundo Esportivo a coluna Perguntas e Respostas – dedicada a entrevistar personalidades esportivas, em sua maioria do futebol – comumente perguntava “qual é a maior expressão esportiva do Brasil?”. Com frequência os atletas escolhiam o nome de Adhemar, às vezes seguido de termos como “indiscutivelmente” (ver edições de 23/3/1956, p.2; 27/4/1956, p.2; 11/5/1956, p.2; 25/5/1956, p.15; 15/6/1956, p.3).

[iv] O Cruzeiro, 12/05/1956, p.118.

[v] Última Hora, 12/10/1956, Caderno 2, p.3.

[vi] A Noite, 31/08/1956, 2º Caderno, p.2.

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