MACHADO DE ASSIS E O FUTEBOL

Por Edônio Alves

Até onde sei – e confesso que sei um pouco, uma vez que estudei o tema para uma tese de doutorado -, o grande escritor brasieliro Machado de Assis nunca escreveu tendo como tema, seja de longe ou de perto, o futebol.

Até porque, no ano de sua morte (1908), no fim da primeira década do século 20, o jogo de futebol estava apenas ganhando fôlego no Rio de Janeiro para se espalhar como um rastilho de pólvora incotornável, só na década seguinte, a década de 20, pelo Brasil afora.

Foi a partir dos anos 20 do século 20, portanto, que o jogo de futebol se consolidou no Rio de Janeiro já como um esporte popular e avassalador no gosto do desportista carioca, posteriormente se espalhando pelo Brasil e iniciando uma trajetória de influência na cultura nacioanal a que os escritores tiveram que dar atenção, embora que inicialmente apenas o envolvendo numa polêmica renhida entre os que o defendiam e os que o atacavam enquanto uma novidade estrangeira que, então, forçava instalação na nosssa terra.

Para se ter uma ideia, nos primeiro anos da década de 1910 apenas o jornalista e escritor João do Rio deu atenção, nos seus escritos, ao futebol, tomando-o como ocupação novidadeira da elite carioca que o importara da Europa e o adotara como forma de esporte, lazer e festejo social.

Na ficção, por exemplo, o tema sequer existia por essa época.

Não é de se estranhar, portanto, que um escritor sisudo – embora sarcasticamente irônico com as ditas coisas sérias do mundo, (à maneira de um Voltaire), como era nosso Machado de Asisis -, fosse perder tempo com um tema tão sem importância e banal, estigma que até hoje parece cercar a matéria, a ponto de um dos seus maiores cultores nas nossa letras, o dramaturgo, jornalista e escritor, Nelson Rodrigues, o ter resumido assim ao redimensionar  essa circunstância que ainda hoje cerca o assunto: “Das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante”, asseverou certa vez.  

Pois bem!

Não escreveu sobre futebol, o nosso Machado de Assis, mas criou (ou mais apropriadamente, tomou de empréstimo também dos ingleses tal qual fizemos com o esporte bretão) um tipo de narrador que deu uma inflexão geral (sapecou um grande drible) no campo da literatura brasileira, algo que  até hoje causa espanto e certa novidade na maneira de se narrar ou contar histórias com finalidade estética ou artística.

Trata-se do chamado “defundo autor”, aquele que já bateu as botas e partiu dessa para a melhor, podendo, assim, “viver e contar também melhor” as coisas da vida e da morte, já que não lhe resta mais compromisso algum com nada ou com ninguém, contingência que só a “indesejada das gentes” pôde lhe conceder de benefício final e definitivo, espécie de lincença poética radical e libertadora.

Então! Como se costuma afirmar nos meios acadêmicos de literatura – e algumas teorias da narrativa parecem confirmar -, a condição de morto sempre confere a um narrador-protagonista que opere a partir de uma primeira pessoa atuante ou testemunhal, uma espécie de salvo-conduto ou imunidade para que possa intervir como queira na vida dos entes com os quais conviveu e que, por este recurso técnico de verossimilhança, ainda conviverá para todos os efeitos do bem e do mal.

Este, pois, é precisamente o caso em questão do narrador Mindinho, o do conto de futebol que analisaremos nesse pequeno ensaio para o Blog, ou seja: aquele que não só conta, mas até autonomeia a própria história.

Talvez daí, dessa circunstância de olhar para o mundo dos vivos por cima do nariz (afinal, ele já está morto mesmo!), é que esse tipo de personagem-narrador ou narrador-personagem, como queiram, se comporte perante a existência dos que ficaram quando de sua partida desta para a melhor com uma arrogância que diria judicante, nas suas histórias exemplares.

É uma dessas histórias, portanto,  que o leitor vai acompanhar a seguir, a qual deixo como minha homenagem à relação de Machado de Assis com o futebol, algo que sei que não houve, mas que também sei que houve, conforme todos perceberão, na análise do conto em tela.

Desçamos ao texto, pois:

 ***

Mindinho

      Conto de José Cruz Medeiros

Narrativa em que, à maneira de um narrador machadiano, aquele que escreve com a pena da galhofa e da melancolia, nos é contada a curiosa história da vingança de um jogador de futebol já falecido sobre o seu companheiro de clube ainda vivo. E tudo isso por causa de uma “desfeita moral” que o narrador habilmente faz transformar-se numa espécie de traição em que o jogo da bola entra como elemento de conteúdo e significação.  Noutras palavras: o ponto culminante de uma trama onde tudo pode ser resumido no emblemático aforisma: sorte no amor, azar no jogo. Ou vice-versa. Principalmente, vice-versa, como o leitor verá ao ler essa literalmente fantástica estória curta de futebol.

Escrito numa prosa elegante e deliciosamente corrente; fluida até, no seu intuito narrativo, este conto de José Cruz Medeiros, pra início de conversa, inscreve-se entre aqueles dos melhores do gênero, a exemplo de “O jogo encoberto”, de Aécio Consolin, já analisado aqui e que também trata de uma traição entre companheiros de time e de jogo de bola.

Desta vez, com efeito – mas, com efeito mesmo, o artifício literário para tratar do tema é bem mais sofisticado, uma vez que o narrador-protagonista só age na trama a partir da sua condição de morto, coisa que solertemente vai logo avisando ao leitor: “A turma prefere o domingo, que é o dia da vitória. Eu não; comigo é na quarta-feira. É quando me levanto contente, satisfeito da vida. Tudo muito claro, os passarinhos vêm comer as migalhas de pão que eu atiro no quintal… Ou será ilusão? Porque foi, justamente, numa tarde de quarta-feira, belíssima, que eu morri”.

Uma outra de suas característica marcantes, também, é o passar a considerar as coisas humanas a partir dali, da saída do mundo dos vivos, através de um prisma em que se acentuam drasticamente o seu lado risível, melancólico, profundamente cômico no seu paradoxo fundante. Como se a pobre condição humana dos vivos não fosse além de um ajuntamento de fatos aleatórios, circunstâncias imperativas e disposições alógicas, sem finalidade última ou sentido algum. Aquilo que na sentença lapidar do poeta se resumiria assim: “Uma agitação feroz e sem finalidade”, a própria vida.

Então, porque já fixada a sua condição de morto na narrativa, lá vai agora o nosso Mindinho contar episódios do seu enterro, oportunidade que aproveita para ir perfilando para o leitor um amontoado de pareceres seus sobre eventos comezinhos que agora e antes esclarecem um pouco da sua trajetória de vivente e agora de defunto. “Mas eu estava ‘pesado” mesmo, nessa minha dolorosa trajetória: uma das cordas escorregou e o caixão, embicando perigosamente para baixo, foi jogado violentamente contra o raso da cova, e assim fiquei à espera dos vermes. Algumas pessoas assustaram-se, outras acharam graça, e eu, em tudo isso, percebi que meu enterro, que sempre esperei ser cristão e ameno, virou palhaçada pura”.

Note-se aí o tom sarcástico e irônico com que o narrador vai encaminhando as coisas da vida, aparentemente sempre balizadas por algum sistema moral ou ético, para um patamar de relatividade que, lá na frente, no momento crucial da sua narrativa, vai justificar teoricamente a sua atitude de vingança frente ao amigo. Essa travessia é feita por um trecho exemplar em termos de procedimentos formais de textualidade. Um momento em que, depois de ter sido largado definitivamente no cemitério, deixa patente o personagem-narrador, ao nível de um sintagma textual de sugestão, essa sua possibilidade de vingança:

Sentia falta de um companheiro, de uma palavra amiga. Os que ali permaneciam eram estranhos. Os coveiros de enxada às costas, deixavam o serviço, e eu me via só e triste, imerso numa profunda desolação. Queria ver os meus, falar-lhes, mas o certo é que uma força poderosa tolhia-me os movimentos. Luzes estranhas davam conta de que me encontrava no limiar de uma nova existência, sem nada compreender desse mundo fantástico e irreal, feito do impossível e do imponderável”.

Pois esse mundo fantástico e irreal, feito do impossível e do imponderável, tanto pode ser, no caso, o além mundo do personagem; o nosso mundo real mesmo, que todos nós sabemos dotado de toda essa imponderabilidade e fantasia, ou o mundo textual da literatura onde tudo é possível e justificável, desde que as instâncias sejam inscritas sob a plausibilidade da sua coerência narrativa interna. Assim é que o narrador vai esclarecendo melhor as coisas: “Esse isolamento deveria ser motivado por mim mesmo. Certamente. Eu não seria coisa muito boa, vista que uma chusma de diabinhos andava sempre a me cercar”.

Em seguida, a confirmar certa epigonia de retórica machadiana, mas uma louvável epigonia do tipo, o narrador faz surgir na história um personagem esclarecedor da sua nova condição existencial, mas funcionalmente irônico: “Quem tentou me esclarecer um pouco foi um velho de nome Camargo, falecido em 1868. Dizia-se filósofo. Outro dia me encontrou aqui e foi perguntado:

“- Rapaz, que tristeza é essa?

  – (…) Como se chama?

  – (…) Mindinho! – exclamei com ênfase.

  – (…) E o que fazia, antes de vir pra cá?

  – (…) Futebol – respondi com certo desalento. O senhor sabe, sou o Mindinho – insisti.”

A ironia em questão, a se depreender das considerações que seguem, por parte do filósofo de cova e de caixão, o senhor Camargo, decorre do fato do escritor José Cruz Medeiros servir-se justamente dele, um sábio, para firmar, na sua história, a repercussão no âmbito literário, da representação social do futebol como uma ocupação menor, um ofício que por privilegiar os pés e não a cabeça na sua execução, opõe também o trabalho intelectual ao manual, com todas as significações socais depreciativas daí decorrentes.

Não sou contra o futebol”, diz ele. “Nem contra qualquer exercício físico, à exceção do boxe, que é digno do tempo das cavernas. Ou dos circos romanos. Mas o amigo deve convir que o futebol deixa o cérebro assim (com o indicador e o polegar configurou uma bola, pequeníssima…) e o pé deste tamanho! (e abriu os braços para mostrar um pé de metro e meio)”.

Cite-se também aqui a resposta do personagem-narrador, por ser absolutamente necessária ao caso em questão.

“- O senhor fala assim porque naturalmente nunca ouviu falar da célebre dupla Mindinho-Piúca, os ‘backs’ mais famosos do continente, declarei, imprimindo, agora, um tom irônico às minhas palavras. Piúca é o meu companheiro de vitória, o meu grande amigo. Criamos um sistema de defesa que é um assombro. Verdadeiramente. O senhor não se lembra do notável embate com os argentinos, em 1950? Que dia!

Aplanado o terreno situacional, em que o leitor já sabe quem conta a história, a partir de que circunstância, sobre que tipo de atividade humana, e desta, sobre que aspecto vai tratar a narrativa, o narrador, ajudado por seu colega filósofo, descobre que pode pensar e agir de novo como qualquer homem vivo, apesar de morto. A partir daqui, inicia-se o final da sua história. Descobre que dia é hoje na sua vida de defunto, e esse dia é dia de Vasco e Flamengo, o seu time de coração e de ofício profissional. E descobre também que pode voltar a encontrar os seus:

Vi então que podia me locomover à vontade. Comecei a flutuar como um tapete mágico, ao sabor do meu desejo. Como uma criança que principia a andar. Dentro de breves instantes, eis-me a rever as paisagens de minha predileção: Laranjeiras, Cosme Velho, a Barra da Tijuca, de onde guardo as recordações de uma excelente pequena”.

E eis também que de repente Mindinho se vê diante dos seus entes mais queridos, momento-chave de sua história:

E fui entrando, de mansinho. Atravessei a porta como um raio-X, e vi-me na sala. Nada se modificara. Tudo era silêncio. Minha filha de oito anos tinha ido até à casa da vizinha e o menino, de dois, brincava pelo chão com uma bola. E minha mulher? Foi quando lhe ouvi o riso, gostoso e cristalino. A sua voz era a mesma: doce como o melado de Campos. Não, não posso dizer o que presenciei então…”

Em seguida a esta visão perturbadora para os seus olhos de jogador-defunto, ou melhor, de defunto jogador, para melhor entendermos o que se sucede, o nosso Mindinho presenteia seus ouvintes-leitores com uma das mais criativas e inusitadas jogadas já perpetradas no campo de jogo das narrativas de estória curta. Uma vingança espetacular pra cima do seu colega de time e de zaga, a qual só o tema do futebol poderia possibilitar. Pra entender tudo, vá o leitor a esse excelente texto de José Cruz Medeiros que, através das palavras de Mindinho, termina deliciosamente assim:

Você lembra dessa lavagem do Flamengo? A gente não esquece. Todo mundo botou a culpa no Piúca, uma desmoralização completa. Que continue a viver com minha mulher. E dizia-se meu amigo, o miserável! Mas está frito: Lea não dá pelota para quem não for cartaz… E, se der, agora já não tem importância”.

O AUTOR DO CONTO:

José Cruz Medeiros nasceu no dia 19 de setembro do ano de 1909, em Curitiba, Paraná, e morreu em 9 de setembro de 1982. Estreou como contista com o livro, Bicho carpinteiro, em 1959, e a partir daí desenvolveu uma boa carreira de escritor de histórias curtas e ensaísta. Foi membro da União Brasileira de Escritores-UBE e responsável, durante muito tempo, pelo “Boletim Bibliográfico Brasileiro”, revista mensal que prestou importantes serviços ao pensamento da literatura brasileira. Tem publicado ainda, fechando a sua obra, os livros de contos, Pinheiros (1956); Uns contos por aí (1969) e A hora nona (1981). Seu conto, “Cavalo Miranda”, foi incluído na antologia “Contos Brasileiros de Bichos”, publicada em 1970 e organizada por Cyro de Matos e Hélio Pólvora. Já o conto de futebol, Mindinho, que segue, venceu o Concurso de Conto Desportivo do Rio de Janeiro, em 1958, integrando a comissão julgadora Paulo Mendes Campos, Antonio Olinto e Henrique Pongetti. Esta narrativa aí analisada está publicada na coletânea, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005 por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília.

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