Autogol – Tragédias pessoais entre a ficção e a realidade

O tema do presente post é uma obra literária inspirada em fatos reais que tem como cenário a eliminação da seleção colombiana de futebol do mundial realizado nos Estados Unidos e o assassinato em Medellín, do zagueiro Andrés Escobar Saldarriaga,  poucos dias após o retorno ao seu país.

Autogol é um romance do colombiano Ricardo Silva Romero, importante escritor, poeta e jornalista que atualmente possui colunas nos jornais El Tiempo colombiano e El País espanhol. Trata-se de uma narrativa densa onde futebol, política, cultura e sociedade na Colômbia são abordados a partir do drama pessoal de dois personagens, um fictício, o locutor esportivo Pepe Calderón Tovar que teria perdido a voz, todas as suas economias, seu emprego com a eliminação da seleção colombiana ainda na primeira fase e o zagueiro Escobar, capitão do Atlético de Medellín que ficou marcado por fazer um gol contra na segunda partida contra os Estados Unidos durante a Copa de 1994 e acabou sendo executado na saída de uma boate poucos dias depois de regressar para sua cidade natal.

Na primeira parte do romance ou o primeiro tempo como estabelece o autor, a narrativa é feita com diversas referências futebolísticas a partir da experiência profissional e da memória esportiva do personagem central, o narrador “El Gordo” Pepe que além de ser uma figura carismática era um apaixonado por futebol com grande conhecimento memorialístico e referência na locução esportiva do país.

Pepe estava acompanhando a seleção colombiana que tinha feito uma ótima campanha nas eliminatórias, tendo inclusive goleado a seleção argentina em Buenos Aires por 5×0, e descreve a passagem de um clima de euforia e festa para tristeza e indignação entre jornalistas, jogadores, dirigentes esportivos, apostadores, traficantes, torcedores que estavam nas partidas, hotéis, centros de imprensa e treinamento junto com a equipe dirgida por Francisco Maturana. Uma equipe cheia de estrelas como Carlos Valderrama, Faustino Asprilla, Fredy Rincón que teria chegado ao torneio como uma das favoritas, mas acabou decepcionando seus compatriotas.

O autor consegue contrapor muito bem a paixão pelo futebol com as críticas ao que seria o lado sujo do futebol: apostas, juízes comprados, vaidade entre os jogadores, exploração de atletas por empresários são alguns temas que aparecem bastante ao longo do romance como realidades veladas a partir do discurso de Pepe. Observem o trecho a seguir:

“ Colombia no era un equipo a esas alturas de la vida. Todo estaba en contra de nosotros como en una tragedia hecha por griegos. Se movían, que se supieran quatro mil milliones de pesos em apuestas. Y el equipo había entregado línea por línea, desde la notícia de las amenazas de muerte. Pero y si de pruento en un descuido del destino, el Pibe Valderrama le metía uno de esos pases a Freddy Rincón? Y si como había sucedido tantas veces, los jugadores habían superado la resaca de la noche pasada justo a tiempo de jugar la mejor partida de sus vidas?

Así es el fútbol. Yo no me lo inventé. Se puede conocer todo lo que pasa en los camerinos, que tal marcador de punta no sabe leer, ni escribir, que el puntero derecho le pelaba las naranjas a la hijita de Pablo Escoobar, que el técnico metió el volante peruano porque es el dueño de la mitad de su pase, que la nariz del goleador naufragaba en cocaína el sábado anterior al partida, bla, bla, bla, pero a la hora del partido como a la hora de uma obra de teatro no se anda pensando que eses tipos solo son actores que pagan cuentas en las tras escena, la realidad nos deja en paz, creemos ciegamente como en el cine, que lo que vemos es lo que está pasando”( ROMERO,pg 103)

Pepe apesar da inquestionável paixão pelo futebol simbolizada por coleções de autógrafos de jogadores, imortalizada na lembrança da escalação e dos resultados de diversas seleções da História, com uma vida inteira dedicada ao jornalismo esportivo no rádio e na televisão sofre uma decepção enorme com a eliminação precoce da seleção colombiana envolta em diversos boatos de ameaças dos cartéis de drogas a alguns jogadores, interesses de casas de apostas, brigas entre atletas e a culminância psicológica seria justamente o gol contra de um atleta que a princípio teria um comportamento como cidadão exemplar, Andrés Escobar.

“El Gordo” está revoltado com sua situação. Além de ser obeso e ter problemas de saúde, tinha sido abandonado pela esposa dois anos antes, é demitido da emissora GDL, acusado de assédio a uma camareira no hotel dos Estados Unidos, e está na miséria pois apostou suas economias na passagem da seleção colombiana para a segunda fase. Seu ódio acaba sendo canalizado para o gol contra. Sua fúria é muda mas serve de combustível para planejar um assassinato.

O segundo tempo do romance é passado na Colômbia. Enquanto na primeira parte o futebol era o eixo central do enredo, a narrativa neste ponto passa a focar em questões sociopolíticas e características culturais do país.

Pepe retorna para Bogotá onde encontra com os filhos antes de pegar um carro e sem avisar ninguém viaja para Medellín para executar seu plano. No retorno para o país junto com a delegação tinha conseguido marcar um encontro com Andrés Escobar em um bar em Medellín. A própria descrição da viagem de Bogotá para a capital da Antioquia e as memórias de Pepe que são narradas muitas vezes com diversos flashbacks são muito interessantes para compreendermos um pouco mais sobre esse país fascinante que tive a oportunidade de visitar três vezes.

Desde a influência dos cartéis de drogas tanto no futebol, quanto na política e na sociedade com a referência direta à corrupção dos políticos e a eleição do presidente Ernesto Samper em 1994 que teria recebido dinheiro do Cartel de Cali para sua campanha até a descrição das paisagens dessa importante região do país, de hábitos culinários e de vestimenta a segunda parte é um grande mergulho na História contemporânea colombiana a partir de dois dramas pessoais impostos pelo futebol o de Pepe e o de Escobar.

O encontro fictício se dá no dia 02 de julho de 1994 em que Andrés Escobar realmente foi assassinado em uma discoteca na periferia de Medellín por Humberto Muñoz  Castro que estava com um grupo de amigos e era guarda-costas e motorista de um cartel de drogas. Até hoje existem diversas teorias sobre a execução do zagueiro que já estava vendido para o Milan da Itália. A principal delas é de que sua morte teria sido encomendada por apostadores que perderam muito dinheiro com a eliminação da seleção colombiana assim como o personagem Pepe Calderón Tovar. Uma briga com torcedores bêbados também é uma hipótese apresentando, entretanto de qualquer forma a trágica morte de Escobar está associada a uma falha em uma partida de futebol, a um simples gol contra, a uma decisão errada em um milésimo de segundo.

Nesse sentido, o romance Autogol para mim é brilhante por se utilizar de uma tragédia real que abalou o futebol mundial para criar uma ótima ficção com um drama pessoal de um personagem apaixonado por futebol que assim como o zagueiro sofre  consequências trágicas na sua vida em função da paixão por esse esporte. E ainda tem uma empolgante prorrogação no relato dramático de “El Gordo Dom Pepe”.

ROMERO, Silva Ricardo. AUTOGOL. Madrid: La Navaja Suiza Editores, 2018.

PS: O livro foi lançado primeiro em 2009 pela Editora AlfaguaraFOTO AUTOGOL

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