“Taça Flamengo”: primeira competição esportiva periódica entre militares da Marinha do Brasil e do Exército Brasileiro

por Karina Cancella

Nas primeiras décadas do século XX, militares da Marinha do Brasil (MB) e do Exército Brasileiro (EB) iniciaram o processo de institucionalização da prática esportiva com a criação da Liga de Sports da Marinha (LSM) e a Liga Militar de Football (LMF), ambas no ano de 1915. Inicialmente, as duas ligas organizavam competições apenas entre seus quartéis, batalhões e navios, promoviam treinamentos e mediavam a participação de seus militares em competições organizadas por instituições civis na condição de convidados. Eventos esportivos envolvendo as duas forças ainda não eram um ponto de interesse nos primeiros anos de atividade das ligas.

A primeira competição planejada exclusivamente para envolver militares da MB e do EB foi patrocinada pelo Clube de Regatas Flamengo. No mês de junho de 1917, a LSM e a LMF receberam a doação de uma taça que iniciou a disputa de uma competição específica entre Marinha e Exército que se prolongou até a década de 1920. Na sessão da Diretoria de 27 de junho de 1916, registrou-se “officio de 19 do corrente, recebido a 24, do Clube de Regatas Flamengo (C.R. Flamengo), declarando oferecer uma taça para ser disputada annualmente entre Exercito e Marinha, e pedindo o comparecimento de um representante da Liga no dia 21, para fixar as fases da disputa”.[1]

A disputa da chamada “Taça Flamengo” é a primeira competição organizada pelas LSM e LMF, em parceria com o C.R. Flamengo, onde há referência direta à cobrança de ingressos para espectadores:

Com relação ao jogo contra o Exercito, em disputa da taça offerecida pelo C.R. Flamengo, com consta a acta da sessão de 27 de junho do anno passado, o Director Secretario communica que fixou com o 1o Secretario da Liga Militar de Football, ao referendum das respectivas directorias, as seguintes bases para a disputa deste anno: 1o. Os teams serão de praças; 2o. O arbitro será indicado pelo Club do Flamengo e aceito por ambas as Ligas; 3o. Si o jogo terminar em empate o desempate será feito em outro dia segundo o modo que se combinará; 4o. A renda liquida dos portões será dividida assim: 50% do Club offertante; 25% a cada uma das Ligas; 5o. Os secretários das duas Ligas ficaram com poderes plenos das duas Directorias para combinarem os detalhes de encontro e as fixarem com o C.R. Flamengo. Foram unanimente approvadas estas bases. Resolveo-se mais com relação ao mesmo assumpto: convocar o Conselho Director para o dia 22, as 4 ½ pm, com o fim de solicitar autorisação de organisar um scratch team para jogar contra o Exercito, visto que de tal não cogitar os Estatutos; e, apos a autorisação referida, convidar o Cap. Tenente Soares de Pinna para organisar o scratch team, e dar os mais passos necessários com relação ao caso.[2]

A primeira disputa da Taça Flamengo foi realizada em 29 de abril de 1917 e seu resultado divulgado na sessão da Diretoria da LSM de 02 de maio do mesmo ano.

Venceo o team da Liga de Sports da Marinha, que bateo o do Exercito por 4×1. No torneio de cabo de guerra, que se fez no mesmo dia entre teams de Exercito e Marinha, tomaram parte, pela Marinha, Batalhão Naval, Bahia, Benjamin Constant e Flotilha de Submersíveis. Nas eliminatórias da Marinha venceo o C. Bahia, que jogou a final contra o team do 2o. Reg. de Infantaria, vencedor nas finaes, alias, eliminatórias do Exercito. Foram na mesma occasião executados exercício de gymnastica sueca, pela C. Minas Geraes e um de esgryma de bayoneta, pelo Batalhão Naval. Compareceram a festa os Srs. Presidente da Republica, Ministro da Marinha e varias pessoas de posição official convidadas. Todas as demais pessoas pagaram entrada.[3]

Este evento gerou uma discussão intensa entre Exército e Marinha na organização da segunda edição, no ano de 1918. Nas sessões de Diretoria da LSM dos dias 12 de março, 22 de março e 25 de março de 1918 registraram-se os debates sobre a disputa. Em 12 de março, foi recebida autorização para a realização da Taça Flamengo, contra o Exército, nos mesmos termos da competição do ano anterior, a ser realizado no campo do Flamengo. Na ata de 22 de março, foi registrado que a Diretoria, em comunicação telefônica com o Capitão Castelo Branco, 1o. Secretario da Liga Militar de Football, soubera que a LMF tinha a intenção de não enviar seu time para o campo do Flamengo no dia combinado para realizar a disputa da Taça. As justificativas eram as más condições do campo e que a LMF não conseguiu reunir um bom time para a competição. Havia, por parte da liga do EB, a pretensão de adiar o jogo e publicar notícias nos jornais informando o cancelamento da partida. A Diretoria da LSM, na mesma comunicação, disse ao representante da LMF que seria melhor não noticiar nos jornais, por achar que seria o caso de uma comunicação direta entre as Ligas e porque o jogo deveria sim ser realizado, já que as combinações e convites oficiais já haviam sido feitos, inclusive ao Presidente da República. No entanto, mesmo sendo solicitada a não comunicação na imprensa sobre o cancelamento do jogo, em 21 de março de 1918, na página 9 do jornal “O Imparcial”, foi divulgada uma nota da LMF informando que não seria mais realizada a disputa da Taça Flamengo daquele ano.[4]

Após discussão com os diretores da LSM presentes na reunião, ficou aprovada a manutenção da realização do jogo e não aceitar o adiamento proposto pela LMF, mandando o time a campo na data combinada. O Diretor-Presidente da LSM ainda informou que iria tomar providências para desfazer os convites oficiais realizados e que, em comunicação com o C.R. Flamengo, foi confirmada a disponibilidade do campo para a realização do evento no dia 24. Em 25 de março, registrou-se que os diretores da LSM e seu time compareceram no dia anterior ao campo do Flamengo para o torneio agendado. O time da Liga Militar de Football não compareceu e foi registrado um atestado pelo C.R. Flamengo sobre o fato. Resolveram, então, enviar ofício para a liga do EB informando que a LSM enviou seu time no dia 24 para o torneio acompanhado de uma fatura de sua parte das despesas contraídas em comum pelas duas Ligas para a realização da disputa da Taça Flamengo.[5]

Nas atas seguintes não há retorno de debate sobre a competição não realizada, mas os episódios relatados demonstram certa animosidade entre as duas Ligas Militares no processo de organização da disputa de 1918. No entanto, um aspecto interessante foi a manutenção do evento, mesmo sabendo da intenção de não comparecimento declarada pela Liga do EB, em vista dos custos já contraídos para a preparação da competição. Além disso, mesmo com a não realização, a cobrança, ao menos em tese, da parcela que seria de obrigação do Exército pode ser compreendida como uma forma de penalidade financeira pelo não cumprimento de um compromisso esportivo (CANCELLA, 2014).

A Taça Flamengo foi disputada, segundo os registros localizados, até 1924. No ano de 1919, no entanto, não há registro de realização da competição por conta da ocorrência da Primeira Grande Guerra. A LSM paralisou a organização de atividades esportivas durante o período de mobilização e atuação da Divisão Naval de Operações de Guerra (DNOG).[6]

Em junho de 1919, a LSM retomou suas atividades com a organização de uma “festa sportiva militar” em homenagem à tripulação da DNOG que regressava ao Brasil. A proposta era a realização do evento no C.R. Flamengo e o programa envolvia “jogo de bola”; corrida da serpente; jogo de dado; cabo de guerra para marinheiros, navais e reserva; corrida de obstáculos; esgrima de baioneta; ginástica sueca; match de futebol entre marinheiros e navais e a execução do hino nacional.[7]

A revista Careta publicou, nas edições de 14 de junho, 21 de junho e 28 de junho de 1919, fotografias de diferentes aspectos da recepção da Divisão Naval. Uma das imagens retratava os militares que a integraram, fazendo referência na legenda ao Capitão-Tenente Lemos Basto, que se afastou da diretoria da LSM pela convocação para esta comissão; imagens das crianças das escolas municipais que estiveram presentes no evento; fotografias da festa sportiva promovida pela LSM aos marinheiros que regressaram da guerra com as partidas de futebol realizadas entre os marinheiros nacionais e o Batalhão Naval e os diferentes grupos presentes na festa a bordo do Encouraçado Minas Gerais.[8]

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Fotografias publicadas na Revista Careta retratando as competições esportivas realizadas no festival em homenagem ao retorno da Divisão Naval de Guerra. Fonte: Revista Careta 21 de junho de 1919, p. 23.

 

A revista Careta também divulgou aspectos das competições da Taça Flamengo nos anos de 1920 e 1921.

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Fotografias publicadas na revista Careta da Festa Esportiva Militar realizada entre Exército e Marinha no campo do Clube de Regatas Flamengo – Taça Flamengo 1920. Fonte: Revista Careta 30 de outubro de 1920, p. 20.

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Fotografias publicadas na revista Careta da Festa Esportiva Militar realizada entre Exército e Marinha no campo do Clube de Regatas Flamengo – Taça Flamengo 1921. Fonte: Revista Careta 15 de outubro de 1921, p. 22.

 

A Taça Flamengo também fez parte do programa de competições dos Jogos do Centenário, realizados no Rio de Janeiro em 1922.[9] A imagem abaixo faz parte do acervo do Museu de Desporto do Exército e apresenta uma imagem do estádio durante a realização da disputa.

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A Taça Flamengo inaugurou esse sistema de competições esportivas periódicas entre membros das Forças Armadas brasileiras. Ao longo do século XX, inúmeras outras competições foram organizadas entre Marinha e Exército e, a partir de sua criação, também Força Aérea Brasileira. Os eventos envolviam times de quartéis, batalhões, navios e escolas de formação. Ano a ano, um intenso calendário de competições foi se construindo e se estende até os nossos dias, sendo atualmente gerenciado pelas Comissões Desportivas de Marinha, Exército e Aeronáutica (CDM, CDE e CDA) e pela Comissão Desportiva Militar do Brasil (CDMB).

 

Referências:

CANCELLA, Karina. O esporte e as Forças Armadas na Primeira República: das atividades gymnasticas às participações em eventos esportivos internacionais. Rio de Janeiro: BibliEx, 2014.

 

Notas:

[1] “Sessão da Diretoria de 27 de junho de 1916”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[2] “Sessão da Diretoria de 19 de janeiro de 1917”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[3] “Sessão da Diretoria de 02 de maio de 1917”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[4] O Imparcial 21 de março de 1918, p. 9.

[5] “Sessão da Diretoria de 12 de março de 1918”, “Sessão da Diretoria de 22 de março de 1918”, “Sessão da Diretoria de 25 de março de 1918”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[6] “Sessão da Diretoria de 23 de abril de 1918”, “Sessão da Diretoria de 25 de fevereiro de 1919”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[7] “Sessão da Diretoria de 02 de junho de 1919”. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha – Volume I – Anexo I.

[8] Revista Careta 14 de junho de 1919, p. 16; Revista Careta 21 de junho de 1919, p. 23; Revista Careta 28 de junho de 1919, p. 16.

[9] Para saber mais sobre esse evento, veja o post “E o Rio de Janeiro já foi quase ‘olímpico’”. Link: https://historiadoesporte.wordpress.com/2016/08/15/e-o-rio-de-janeiro-ja-foi-quase-olimpico/

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