O SUPLÍCIO DO LICENCIAMENTO: O CASO DA SOCIEDADE DANÇANTE CLUB DOS MANGUEIRAS

Por Nei Jorge dos Santos Junior

Como já fora registrado em outros pôsteres no blogue, as dificuldades em adquirir a autorização da Secretaria de Polícia do Distrito Federal para garantirem a realização de bailes e festas suburbanas não era algo objetivo. Pelo contrário, os critérios para obtê-las eram definidos pelo Chefe da Polícia. Não eram critérios precisos, de fácil aplicação. Tampouco, totalmente eficazes do ponto de vista policial, sendo anualmente revistos e modificados. No primeiro registro, as associações deviam apresentar seus estatutos, os nomes dos dirigentes e o local da sede. Posteriormente, um policial era enviado para comprovar as informações fornecidas nos documentos, como também recolher dados sobre o cotidiano das associações e de seus sócios. Após essa investigação, o policial emitia um parecer, no qual poderia ser favorável ou não ao que havia sido requerido. Em caso de mudança de endereço, todo esse processo era repetido, havendo a necessidade de uma nova autorização.

 

Além de toda a burocracia citada, outros fatores contribuíam para dificultar ainda mais a abertura de clubes nos subúrbios da cidade. Questões como a estruturação dos espaços, por exemplo, ganhavam corpo frente ao cenário moderno apresentado em alguns pontos específicos da cidade. Aos olhos da grande imprensa carioca era inadmissível uma sede recreativa sem condições de higiene e segurança.

 

Na tentativa de enquadrar os divertimentos suburbanos dentro das estreitas expectativas do cosmopolismo, os clubes deveriam ser submetidos a um processo de investigação feito pelo Chefe de Polícia. Logo, aqueles clubes que reuniam entre seus associados sujeitos considerados incivilizados e desordeiros, eram alvos de perseguição, dificultando a autorização de funcionamento.

Brigas em anos anteriores, cobrança de ingressos para os bailes e sócios com antecedentes criminais subtraiam significativamente as chances de conquistar a sonhada permissão.   O caso da Sociedade Familiar Dançante e Carnavalesca Club dos Mangueiras”, com “sede” na Vila proletária Marechal Hermes, subúrbios da cidade, talvez seja um caso explícito de tal repressão. Vejamos.

Vila Operária Marechal Hermes

Vila Operária de Marechal Hermes, 1913. Fonte: Arquivos de Alfredo Cesar Tavares de Oliveira.

Em março de 1915, o então presidente Cypriano José de Oliveira fez o pedido de licenciamento para sair às ruas e promover bailes internos naquele ano, conforme propunha seu estatuto: “festejar todos os anos a data de sua fundação, assim como também o Carnaval externo por meio de préstito com críticas e alegorias pela maneira resolvida em assembleia, dentre os preceitos e normas policiais”[1]. Todavia, a negativa foi incisiva.

A Careta.1913

 Inauguração da “Vila Proletária” junto à estação. Fonte: A Careta, 10 de maio de 1913.

Mesmo tendo enfatizado os “preceitos” e “normas” estabelecidas pela força policial em seus estatutos, a Sociedade suburbana, cujo objetivo era “proporcionar aos associados e suas famílias divertimentos lícitos”[2], não teve a licença aprovada.  De acordo com o Delegado da Circunscrição Suburbana, o clube “tem a sua sede em um botequim à avenida 1° de maio, n. 6, na Vila Marechal Hermes”[3]. Ademais, havia um atenuante que complicaria ainda mais a aquisição do licenciamento, tratava-se do próprio presidente, Cypriano José de Oliveira, o qual “figura nesta seção registrado em prontuário como grevista, e como tal já foi processado”[4]. A Sociedade ainda contava com Caralampio Trille como sócio; indivíduo, que segundo a polícia “é agitador, revolucionário e perigoso, pois, em 1904, esteve envolvido e tomando parte saliente nas greves e acontecimentos ocorridos neste ano”[5]. Por fim, a “sindicância apurou que os demais associados deste clube são negociantes, operários e empregados da estiva”[6].

Semanas depois, o 23° Distrito Policial enviou um manuscrito que complementaria alguns dados sobre a composição do quadro social do clube. O presidente “grevista”, Cypriano José de Oliveira, era carregador no cais do porto. Foi fiscal geral e, anos depois, em 1923, assume também a presidência da “Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café”, cargo que exerceu forte militância no cais. Já os secretários eram funcionários dos Correios e os demais cargos ocupados por operários da Estrada de Ferro Central do Brasil e um funcionário da Escola Politécnica[7].

Outro membro que compunha o dossiê enviado era o sócio “agitador e revolucionário, Caralampio Trille, espanhol anarquista com um longo histórico de militância em seu país[8]. No Brasil, ajudou a fundar jornais libertários como “A Greve”, em 1903, e participou de várias sociedades operárias, chegando a presidir, em 1910, a Sociedade Operária Fraternidade e Progresso da Gávea[9]. Com uma diretoria potencialmente “perigosa”, cujo o desfecho certamente caminhou para uma negativa, destacamos o esforço policial em estabelecer relações que transcendem o campo da diversão. Para além da sede em um botequim, a busca por questões políticas e comportamentos considerados subversivos geraria um motivo ainda maior para esquivar-se de transgressões que pudessem ocorrer no interior desses grêmios.

Aos olhos daqueles que pregavam a “moral” e a “civilidade”, agremiações como a Sociedade Familiar Club dos Mangueiras representavam o verdadeiro perigo. Formados por um grupo de trabalhadores de baixa renda, estas pequenas sociedades, assim como seus pares, tornavam-se alvo de constantes cuidados e permanente repressão, fosse pelo extenso número de circulares e processos de concessão ou cassação de licenças para funcionamento, ou até mesmo pela infinidade de notícias nas páginas policiais dos grandes jornais da cidade[10]. No caso específico do clube citado, que tinha no movimento grevista uma preocupação clara, as autoridades policiais o tratavam ainda com mais rigor, pois reconheciam o ato como fruto da manipulação que alguns militantes anarquistas exerciam sob a maioria dos trabalhadores cariocas, buscando legitimar assim os discursos que defendiam o controle e repressão ao movimento operário e a própria greve[11]. Nesse caso, fechar os olhos aos clubes que tinham militantes em suas fileiras era legitimar um espaço de certa forma considerado por eles subversivo, um local potencializador para futuras manifestações.

[1] Estatutos da Sociedade Familiar Club dos Mangueiras de 1915.

[2] Pedido de Licença da Sociedade Familiar Club dos Mangueiras de 1915

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] Ibid.

[6] Pedido de Licença da Sociedade Familiar Club dos Mangueiras de 1915.

[7] CUNHA, M. C. P. Ecos da folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[8] A Época, 19 de setembro de 1913; A Época, 3 de outubro de 1913.

[9] Ibid.

[10] COSTA, M. B. C. Entre o lazer e a luta: o associativismo recreativo entre os trabalhadores fabris do Jardim Botânico (1895-1917). Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

[11] PEREIRA, L. A. de M. E o Rio dançou. Identidades e tensões nos clubes recreativos cariocas (1912-1922). In: CUNHA, M. C. P. (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Campinas, SP: Editora Unicamp/ Cecult, 2002, p. 419-444.

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