Mulheres forçudas: o circo, o ringue, o octógono…

por Silvana Vilodre Goellner

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A controvérsia em torno da participação das mulheres em atividades que exigem demasiada força física tem perpassado diferentes contextos e temporalidades. O desconcerto mediante sua inserção em um universo aparentemente identificado como violento, viril e, portanto, masculino tem desestabilizado  representações normalizadas de corpos, gêneros e sexualidades, sobretudo, quando relacionadas à feminilidades.

 2013 tem se tornado produtivo para refletirmos sobre essa temática dada a visibilidade que as lutas entre mulheres adquiriu em função da disputa travada em fevereiro  entre Randa Rousey e Liz Carmouche pelo cinturão dos pesos galos do UFC 157  na Califórnia  (EUA).  Ainda que não fosse a primeira vez que lutadoras participassem desta modalidade específica, o reconhecimento dessa luta como integrante oficial da competição, fez com que a mídia se debruçasse sobre o tema colocando em  circulação uma série de imagens, vídeos e reportagens sobre essas e outras  atletas conferindo certo destaque a essa participação.

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Randa Rousey e Liz Carmouche

Randa Rousey e Liz Carmouche

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Tenho recorrentemente afirmado que silêncio não significa ausência! A adesão das mulheres à atividades que envolvem força física sejam de competição ou de demonstração não é recente e acompanha os primórdios do esporte moderno. Em estudo anterior, analisei as mulheres forçudas, termo que conferi àquelas que no final do século XIX e início do século XX, desafiavam convenções sociais e representações de gênero ao exibirem seus corpos e performances em situações nas quais a força era imperante e destruidora do mito da fragilidade feminina.  Athelda, Minerva, Athleta, Gertrudes Leandros, Madame Montagna, Vulcana, Lilian Leitzel, Louise Armando, Mademoiselle Aini, Miss Herta, Madame Stark, Elvira Sansoni, entre outras, tornaram-se figuras populares a aparecer, também, nos jornais e revistas que circulavam nesta época.  Seus espetáculos percorriam a Europa e os Estados Unidos  e neles cada uma, a seu jeito, inventava diferentes formas de exibir sua arte e, assim, adquirir prestígio e respeito em um tempo no qual a maternidade, o recato e a feminilidade grácil eram atributos que designavam ser uma “boa mulher”.

Revisitar os feitos de algumas dessas mulheres significa aqui afirmar que, em que pese muitas das conquistas que tiveram no campo esportivo, ainda são recorrentes algumas representações que não identificam o ringue, o tatame e o octógono como um lugar próprio também para a mulheres. Vejamos algumas  delas:

Minerva (Josephine Blatt, 1869-1923)

Americana de Nova Jersey atuou em diversos espetáculos de levantamento de peso fazendo apresentações que incluíam arrebentar ferraduras de ferro, erguer pessoas  (homens adultos em especial ) com um só braço ou balas de canhão e outros objetos pesados.  No dia 15 de Abril de 1895, protagonizou um espetáculo que lhe capacitou a entrar para o Guinness Book of Records: levantou do solo uma plataforma de madeira onde  subiram 23 homens,  totalizando 1.650 quilos.

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Minerva, final do século XX

Minerva, final do século XX

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Vulcana (Kate Roberts, 1883-)

Nascida na Inglaterra,  Vulcana fazia várias apresentações em circo e music halls cujo espetáculo mais conhecido era o de levantar homens acima da cabeça apenas com um dos braços. Conhecida, ainda por realizar uma performance que consistia em apoiar as mãos e pernas no solo de modo que sobre seu abdômen fosse colocado uma plataforma na qual subiam dois cavalos e o adestrador. Uma vez posicionados os animais, Vulcana erguia e abaixava essa plataforma utilizando-se apenas dos  quatro apoios. Além dessas exibições manifestava-se publicamente  contra o uso do espartilho pois identificava que esse acessório restringia as mulheres do ponto de vista físico e psicológico.

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Vulcano, 1896

Vulcano, 1896

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Madame Ali-Bracco

Era conhecida em 1875 como “A mulher canhão” porque suas performances incluíam além de diferentes acrobacias dois números específicos: carregava sobre um dos ombros um canhão  e, pendurada de cabeça para baixo em um trapézio o levantava do solo apenas com os dentes sem o auxílio das mãos.

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Ali Bracco, 1875

Ali Bracco, 1875

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Sandwina (Catherine Brumbach, 1884-1952)

  Uma das mais conhecidas de sua época Kate Brumbach  nasceu em Viena e era filha de artistas de circo sendo, por muitos anos, a protagonista de um espetáculo no qual desafiava homens e mulheres em um ringue montado no picadeiro. Sua anatomia lhe permitia muitas vitórias: em 1910 media 1,82cm, pesava quase 100 quilos e exibia bíceps de mais de 40 cm de diâmetro. Apresentava-se como a mulher mais forte do mundo e fez exibições em vários países europeus e na América, local para onde se transferiu juntamente como marido na década de 1920. Foi nos Estados Unidos que vivenciou uma  experiência que lhe conferiu notoridade: em um pequeno clube atlético de Nova York  participou de um desafio de força com Eugene Sandow  no qual sagrou-se vencedora ao levantar 136 quilos acima de sua cabeça enquanto o conhecido fisiculturista não conseguir erguê-la além da altura do peito. O nome Sandwina, o duplo feminino de Sandow, é inventado neste dia.

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Sandwina, 1910

Sandwina, 1910

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Eugene Sandow era uma figura popular desde o final do século XIX, não só na Europa como também nos Estados Unidos. Além de participar de inúmeras exibições públicas de força física criou um sistema de treinamento físico voltado para o desenvolvimento muscular, arregimentando vários alunos e seguidores.

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Sandow, final século XIX

Sandow, final século XIX

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A vitória de Sandwina é aqui rememorada com um único objetivo: evidenciar que a força física não é atributo localizado apenas no corpo masculino e, por conseguinte, um demarcador do gênero masculino. Uma vez treinados, homens e mulheres podem adquirir tal capacidade e essa aquisição não as/os faz mais ou menos masculinos/femininos.

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Sandwina, início século XX

Sandwina, início século XX

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Enfim, essas mulheres e outras tantas invisibilizadas pela oficialidade dos discursos normalizadores da medicina, da pedagogia e da religião contrariavam os  ideais de graça e delicadeza identificados como femininos. A robustez de suas  anatomias subvertiam essa representação colocando à olhos vistos a inconsistência das identidades fixas que tentavam (e tentam) estabelecer as fronteiras da feminilidade normal e desviante.

Suas aparições também geravam controvérsias colocando em xeque sua autenticidade como mulheres. Afinal, se não eram homens, o que eram então: meio-homem, ou ainda, uma espécie de mulher pela metade?

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Passado mais de um século tal polêmica se mantém e  revigora não apenas com a presença das mulheres em atividades como, por exemplo, as lutas  de MMA (Artes Marciais Mistas) mas ainda e especialmente com a  participação de atletas transexuais em diferentes modalidades esportivas.  Os corpos que borram fronteiras e ultrapassam os binarismos instituídos pela biologia continuam a inquietar e, por vezes, ainda são  considerados como “sem lugar”.  A polêmica em torno da participação ou não da lutadora transexual Fallon Fox é exemplar dessa afirmação na medida em que argumentos de cunho biologicistas e psicológicos são chamados para  dizer que ela não pode ali estar. Será?

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Fallon Fox, 2013

Fallon Fox, 2013

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Bibliografia:

FRAGA, Alex e GOELLNER, Silvana. Antinos e Sandwina: encontros e desencontros na educação dos corpos brasileiros. Revista Movimento, vol 9. n.3, p. 58-82, dez. 2003

TODD, Jan e TODD, Terry. A legacy of strength: the cultural phenomenon of the professional strongwoman.. North American Society for Sport History. Proceedings & Newsletter, 1987, p. 13-14.

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