Os Desaparecidos do Racing Club. Um registro histórico de paixão e resistência

A questão da memória dos desaparecidos políticos durante os regimes militares no Cone Sul é muito mais investigada e registrada por pesquisadores argentinos do que brasileiros independentemente da gravidade do tema em ambos os países.

Desde o final do famigerado regime do “Processo” (1976-1983), as Comissões de Direitos Humanos no país lutam por Justiça e a condenação dos envolvidos nos crimes contra os militantes políticos,  apoiados por movimentos da sociedade civil como as Madres de Mayo que surgiu de forma corajosa no auge da repressão do regime e cuja notoriedade e representação simbólica transcendem a esfera política argentina. O drama de  mães, avós, irmãs, filhas vem comovendo as pessoas minimamente sensíveis desde o final dos anos setenta apesar de terem sido chamadas de “Loucas” pelos defensores da ditadura no país.

No campo futebolístico é possível verificar também essa presença/resistência. Pude perceber na maioria dos estádios argentinos que conheci, grafites nos muros, bandeiras e   homenagens com faixas à desaparecidos políticos em diversas situações. Destaco belas pinturas no Estádio Ilhas Malvinas do All Boys que exaltam os sócios torcedores que sumiram pela barbaridade do regime militar no país. Em um post aqui do nosso blog o amigo André Couto que junto com Rafael Fortes me acompanharam em uma interessante partida nesta “cancha” relata a esperiência. Ver https://historiadoesporte.wordpress.com/2018/12/03/uma-partida-para-la-de-quente-na-argentina/

Outra homenagem muito bacana foi realizada recentemente pelo Club Banfield que criou a modalidade de título para sócio detido-desaparecido resgatando a história de onze sócios do clube que sumiram durante o nebuloso período. Sobre o tema ver https://notasperiodismopopular.com.ar/2019/10/04/banfield-11-memoria/

            Uma importante obra que acabei de ler e que resolvi apresentar como tema do presente post foi o livro “Los Desaparecidos de Racing” muito bem escrito pelo sociólogo, cientista político e torcedor do tradicional Racing Club de Avellaneda, Julián Scher.

            O autor descreve a vida de 11 torcedores da “Academia” que se envolveram com distintos grupos de resistência (FREJULI, JUP, GOR, PRT, etc) em diferentes períodos ditatoriais no país, apresentando minibiografias que tem como eixos principais: trajetória familiar, envolvimento pessoal com a militância e a paixão pelo Racing Club.

Acá lo que hay es simple: 11 textos de 11 hinchas de Racing construídos a partir de los testimonios de quienes fueron testigos de sus andanzas dentro y fuera de las canchas de fútbol y militância. ( SCHER:2017, P.13)

            Alejandro Almeida, Diego Beigbear, Jorge Cafatti, Álvaro Cárdenas, Jacobo Chester, Dante Guede, Gustavo Juárez, Alberto Krug, Osvaldo Maciel, Roberto Santoro e Miguel Scarpato formam uma equipe de corajosos militantes de distintos movimentos de resistência, com diferentes origens sociais apesar de muitos serem de famílias operárias alinhadas com o Peronismo, e que exerciam diferentes profissões: jornalista, advogado, bancário, poeta, etc.

ROBERTO SANTORO – EL POETA DE LA POPULAR

         

Todas as histórias pessoais são relatadas com uma riqueza de detalhes biográficos (ethos), com uma seriedade acadêmica ao descrever as diferentes conjunturas históricas políticas (logos) e com uma paixão cativante de torcedor (Pathos). A importância do Racing Club para a vida de cada um dos membros do escrete é demonstrada com habilidade e emoção pelo autor, bem como o envolvimento dos desaparecidos com a luta pela liberdade e os direitos civis na Argentina.

            O mitológico Estádio Presidente Perón mais conhecido como “El Cilindro” é um local de Memória fundamental e simbólico nas trajetórias de vida dos onze torcedores/militantes. Alberto Krugger por exemplo, mesmo sendo perseguido politicamente continuava frequentando o estádio para poder também rever companheiros queridos.   

Ni siquiera la comprobación cotidiana del apetito asesino del enemigo logró que Alberto dejara de pensar en Racing. Tan certo es que el andar de Academia distaba mucho del passado de gloria como que Alberto encontraba en las idas ao Cilindro um atajo a la felicidade. La forma para acordar la cita con los suyos era infalible. Un llamado a Rosa para saludar y um aviso entre líneas para que Carlos y Frederico supieran que el domingo él iba estar en la popular, en el logar de siempre aguardando por ellos. Como las oportunidades para encontrarse escaseaban, la cancha funcionaba como um segundo hogar, como un espacio proprio que quedaba fuera de la orbita del poder genocida. (SCHER:2017, P.226)

            Além do estádio, ao longo do livro também é feito um acionamento da memória de partidas emblemáticas, dos títulos conquistados como o primeiro Intercontinental de Clubes de uma equipe argentina diante do Celtic da Escócia em 1967 em uma terceira partida no Estádio Centenárioem Montevidéu e de importantes jogadores que marcaram tanto a História do clube, quanto dos torcedores desaparecidos. Um jogador brasileiro que faleceu recentemente aparece como grande artilheiro e ídolo de um dos “hinchas” em um dos relatos:

Todo hincha reconoce que hay partidos que no se olvidan. El 4 de mayo de 1969,Álvaro fue a la cancha como de costumbre, com su papá, com su hermano más chico y com sus amigos. El equipo de José ya integraba el pasado memorable pero em Racing jugaba un tipo que no necesitó ganar campeonato para ser un emblema. Walter Machado da Silva, nacido en 2 de Enero de 1940 en Ribeirão Preto, cerca de São Paulo, había llegado desde Flamengo con la promesa de hacer goles. Y cumplío. De  hecho, en el Metropolitano de 1969 convirtío 14 tantos y fue el máximo goleador del torneo. Fue el primer y único brasileiro en la história del fútbol argentino en conseguirlo. Y al Alvaro lo cautivó de entrada la elegancia de ese delantero infernal que lograba suspenderse en el aire como si la gravedad no o empujara a bajar (SCHER:2017,112)        

ÁLVARO CÁRDENAS – EL QUE SABÍA CANTAR EN LA TRIBUNA

            A reverência ao atacante Silva, o Batuta um goleador nato, um nômade do futebol brasileiro e sul-americano, uma grande figura humana que trabalhava como funcionário do clube do Flamengo foi confirmada recentemente por ocasião do falecimento do atleta com homenagem prestada pelas redes sociais do Racing ao ex-jogador brasileiro.

            A história dos desaparecidos do Racing comprova que àqueles que ainda acreditam que a paixão pelo futebol e o engajamento político não podem se misturar, que o  Esporte deve ser um campo neutro, isento de posicionamentos políticos e ideológicos estão completamente equivocados.

            Os Desaparecidos do Racing conta as trajetórias pessoais de 11 torcedores/ militantes, apaixonados por um clube de futebol: cores, estádio, ídolos, hino e todos os símbolos clubísticos. Essa equipe que se envolve também emocionalmente com a causa de lutar contra regimes autoritários e uma sociedade mais justa quebra paradigmas preconceituosos que ainda existem tanto nos meios acadêmicos, quanto entre jornalistas e torcedores de que Esporte e Política tem que estar separados. A paixão por um clube ou um esporte não cega um cidadão consciente com relação a sua postura enquanto animal político.

            Um belo livro, muito bem escrito que emociona torcedores/cidadãos e que ajuda a compreender tanto a história de períodos nebulosos da política argentina, quanto a paixão por uma equipe de futebol. Um registro sério de um acadêmico apaixonado pela “Academia” do futebol argentino e consciente dos tempos sombrios que foram  enfrentados por tantos militantes no país.

REFERÊNCIA: SCHER, Julián. Los Desaparecidos de Racing. 2.a Ed. Cidade Autônoma de Buenos Aires: Grupo Editorial Sur, 2017.

Comentários encerrados.