Fabio Peres e Victor Melo[i]
No post anterior, abordamos como a ginástica tornou-se cada vez mais uma questão relacionada à educação e à infância nos periódicos científicos da década de 1840. Este processo, que começou nas décadas anteriores, estava inserido em um campo de disputas em que diferentes agentes, práticas e saberes buscavam se legitimar.
Como sinalizamos, o Dr. Francisco Paula Candido mencionou a ginástica no discurso da comemoração do 12º aniversário da Academia Imperial de Medicina[ii].
Nesse discurso – realizado em sessão pública com a presença do imperador no Palácio Imperial da Cidade -, a prática corporal serviu como exemplo, entre os antigos, da relação desejável entre conhecimento especializado e o Estado:
Em última análise fica incontestável a influência, que a ginástica, a sobriedade, e outros preceitos higiênicos erigidos em leis, adaptados à índole e necessidade dos Lacedemônios, exerceu na educação daqueles, que essas mesmas leis transformarão em heróis (1841, p.144).
O presidente da Academia Imperial de Medicina deixava, desse modo, manifesta a posição da entidade: uma autorrepresentação da medicina enquanto portadora de um saber sobre a saúde física e coletiva, que deveria prevalecer sobre a vida social e política do Império. Não será coincidência que posteriormente Paula Candido ocupará a presidência da Junta Central de Higiene Pública (1850-1864).
O futuro do país e da sociedade como um todo dependeria, segundo Candido, do diagnóstico proveniente da ciência e, em particular, da medicina:
[..] no apogeu da civilização o legislador deve chamar a contribuição todos os ramos dos conhecimentos humanos sob pena de ficar atrás do século em que vive (p.1841, p. 143).
Tal perspectiva fica mais evidente nas atribuições que a Academia, segundo Paula Candido, deveria exercer na educação brasileira, difundindo o saber médico entre a população. Como vimos, esse saber, conforme parte dos médicos da entidade defendiam, incluiria a introdução da prática da ginástica nas escolas do país. Tal posição seria depois consolidada oficialmente pela Academia Imperial de Medicina, ao se pronunciar a favor da necessidade do ensino da ginástica nas escolas de instrução primária[iii].
Aliás, não se sabe ao certo o papel que a Academia Imperial de Medicina teve na introdução dos exercícios ginásticos no Colégio Pedro II, que ocorrera em 1841, que foi defendida por Emilio Maia com veemência no ano anterior. Contudo, naquela ocasião, o mestre de ginástica contratado foi justamente Guilherme Luiz de Taube, que quase 10 anos antes solicitou um parecer da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro sobre o seu breve tratado sobre ginástica.
Em todo caso, parece-se nos adequado afirmar que, na perspectiva dos esculápios, a ginástica materializaria (assim como os demais preceitos da educação física e da higiene, as quais ela estava articulada) a medicalização do cotidiano escolar.
Um exemplo da defesa de tal perspectiva pode ser identificado na RMF, na qual foram publicados os preceitos de higiene estabelecidos pelo decano da Faculdade de Medicina de Paris e adotados nas escolas públicas francesas[iv]. Além de diversas recomendações referentes a alimentos e bebidas, vestuário, banhos etc., a prática de exercícios, incluindo a ginástica, constitui uma orientação que deve ser seguida no meio escolar.
A educação voltada para a infância se constituiria, assim, em locus por excelência do saber médico sobre a ginástica. Essa, porém, seria uma das faces, entre outras, da ginástica médica; embora, talvez, a que os médicos dedicariam maior atenção a partir daquele momento.
Nesse cenário, avançará também a discussão sobre os métodos, bem como sobre os mecanismos fisiológicos e terapêuticos envolvidos na prática corporal, reforçando e, em alguns casos, ampliando o rol de enfermidades tratadas ou prevenidas pela ginástica. O parecer do Dr. Rego Cesar a um opúsculo sobre “ginastica médica sueca”, apresentado a pedido da Academia Imperial de Medicina, pode ser entendido como uma forma de melhor compreender os efeitos e os possíveis usos da prática corporal[v]. Rico em detalhes sobre as ações fisiológicas promovidas pela ginástica, a enumeração das moléstias que poderiam ser combatidas dá uma dimensão da possível importância atribuída a tais exercícios pelas ciências médicas: paralisia, apoplexia, problemas na coluna vertebral, catarro nos pulmões, tísica tuberculosa, asma, hiperemia abdominal, constipação, hemorroida, ingurgitamento do fígado, gota, reumatismo, escrófula, moléstias nos genitais e na bexiga, entre outras.
Adicionalmente, de acordo com Rego Cesar, a prática corporal também acostumaria o cidadão à disciplina, à obediência, tornando-o útil à defesa pátria. A ginástica ficava, assim, também associada ao corpo do (inclusive, do futuro) soldado[vi]. Contudo, na visão do médico, a difusão e as condições para sua prática ainda seriam bastante deficientes no país, inclusive nas associações estrangeiras, se constituindo em mero divertimento ou passatempo, e no Colégio Pedro II, cujo curso seria incompleto, imperfeito e facultativo. Ao mesmo tempo, haveria falta de professores devidamente habilitados para ensiná-la adequadamente.
O parecer do Dr. Rego Cesar apresentava, portanto, indícios dos desafios enfrentados, ainda na década de 1870, na longa e sinuosa trajetória da implementação da ginástica nas escolas, apesar dos “avanços” em relação à legitimação do saber médico sobre a prática. Anos depois outro médico defenderá que a ginástica se constituísse como fundamento de toda “educação individual e coletiva”. Mas essa história ficará para o próximo post.
[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494>. ISSN 2236-3459.
[ii] Revista Medica Brasileira, v.1, n.3, julho de 1841, p. 140-149.
[iii] Embora não tendo acesso a tal documento, o parecer do Dr. Corrêa de Azevedo sobre a ginástica médica sueca faz referência a esse episódio. Provavelmente se refere ao relatório Da Utilidade da Gymnastica nas Escolas de Ensino Primário, apresentado pelos médicos José Pereira Rego Filho, João Pinto Rego Cesar e João Batista dos Santos.
[iv] Revista Medica Brasileira, Abril de 1842, p. 679-684.
[v] Annaes Brasilienses de Medicina, Novembro e Dezembro de 1876, p. 240-245.
[vi] Deve-se lembrar que tal tema foi abordado no relatório De-Simoni sobre o tratado de Taube e, posteriormente, na memória Contribuições para o Estudo das Moléstias da Guarnição da Corte escrita pelo Dr. Manoel José de Oliveira, membro titular da Academia Imperial de Medicina (Annaes Brasilienses de Medicina, Julho a Setembro de 1883, p.35-95).
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