A Junta Central de Saúde Pública e a ginástica como questão sanitária do Império

29/04/2024

Fabio Peres e Victor Melo[i]

No último post, comentamos sobre a complexa trama de concepções, interesses e discordâncias que envolveram a proposta inicial da Imperial Casa de Saúde e Instituto Ginástico Ortopédico. O caso era revelador de um “processo de consolidação da legitimidade do saber médico na administração estatal e, por conseguinte, do papel que tal saber teria — e deveria ter na autorrepresentação dos médicos — nas avaliações e decisões sobre políticas de saúde e no desenvolvimento de práticas médicas”.  

De fato, a burocratização do saber médico sobre a ginástica no século XIX não se restringiu aos debates internos da Academia Imperial de Medicina, mas também permeou diversas esferas administrativas do Estado, refletindo-se em relatórios e outros documentos institucionais.

Indícios desse processo podem ser observados nos relatórios anuais do Ministério dos Negócios do Império. Por exemplo, diversos relatórios da Inspetoria Geral de Instrução Primária e Secundária frequentemente aventavam as relações entre ginástica e saúde no cenário escolar[ii]. Alguns cargos da estrutura governamental, inclusive, foram ocupados por médicos que concebiam a ginástica enquanto prática pedagógica indispensável, como foi o caso do Dr. Abílio Cesar Borges que integrou o Conselho de Instrução Pública da Corte, entre 1871 e 1877[iii].

Do mesmo modo, desde as décadas de 1830 e 1840 começará a melhor se estruturar na burocracia imperial setores administrativos ligados diretamente à saúde. A própria formação da Junta Central de Saúde Pública, em 1850, se insere na intensificação desse processo, que também contou com outros órgãos públicos ligados à saúde. Nesse contexto, em diversas ocasiões a ginástica e a educação física foram temas abordados nos relatórios de tais entidades. Diferente dos periódicos, as opiniões e as deliberações expressas nos relatórios supostamente estavam mais próximos de serem convertidos em iniciativas concretas do Estado imperial na vida social monárquica.

Por exemplo, no relatório de 1851 da Junta Central de Saúde Pública, quando se discute o estado sanitário da capital, observa-se a necessidade de “estabelecer a mais vigilante inspeção na educação física da mocidade”, que se encontrava marcada pelo “maior desleixo” (Cândido, 1852, p. S2-17). Naquela ocasião, era destacada a necessidade de se considerar de forma ampliada a educação física, em particular nas escolas, como estratégia de melhorar as condições de saúde na sociedade da Corte.

Em momento posterior, a ginástica ganhará maior especificidade em tais relatórios. Em algumas situações, ela aparecerá associada ao tratamento da tuberculose e de moléstias pulmonares, um problema assolava o país e que, como vimos, foi frequentemente abordado nos periódicos médicos. O relatório da Junta de 1858, no qual é apresentado considerações sobre a tísica pulmonar e sua respectiva profilaxia, insere um outro ator no combate à moléstia: o engenheiro sanitário, que seria incumbido de criar, entre outras coisas, estabelecimentos de ginástica, natação e passeios baseados nos preceitos da higiene pública[iv].

A posição de Francisco Paula Candido, que também foi presidente da Academia Imperial de Medicina, demonstra que houve poucos avanços desde o relatório que ele próprio escreveu em 1851:

“[…] nada se tem feito no sentido de melhorar a educação física de nossa mocidade: os meios materiais, os passeios, a ginástica, a natação, os exercícios, a água, o ar puro…. tudo lhes faltaria” (1859, p. A-G-11).

Em 1862, Paula Candido abordou novamente o tema, ao descrever as medidas sanitárias para o controle de outra moléstia, que atingia a corte, as febres infecciosas (Candido, 1863). Assim, ginástica também estava associada a um contexto científico mais amplo da época, no qual a teoria miasmática ainda figurava como explicação etiológica — apesar da existência de teorias concorrentes.

Na década seguinte, em 1870, as propostas relacionadas a ginástica médica aparentemente estarão mais próximas de se converterem em ações concretas. Mas essa história ficará para um próximo post.


[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494;. ISSN 2236-3459.

[ii] MELO, V.A.; PERES, F.F. O corpo da nação: posicionamentos governamentais sobre a educação física no Brasil monárquico. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 21, n. 4, p. 1131–1149, out. 2014.

[iii] Maiores informações ver MELO, V.A.; PERES, F.F. Relações entre ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX: reflexões a partir do caso do Colégio Abílio, 1872-1888. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 23, n. 4, p. 1133–1151, out. 2016.

[iv] Merece destaque que naquela época, o governo já havia autorizado e aprovado a incorporação de uma companhia, denominada Architectonica, cujo fundador era Francisco José Fialho, que tinha por objetivo adquirir ou arrendar terrenos e prédios no município do Rio de Janeiro com fim de edificar “Jardins e parques publicos com restauradores, cafés, banhos, pavilhões, e salas com os respectivos accessorios para […] exercicios saudaveis e de agilidade, como sejão equitação, gymnastica, natação, meneio de armas, & c.” (Decreto nº 1.867, de 17 de Janeiro de 1857).


A burocratização do saber médico sobre a ginástica no século XIX: o caso da Imperial Casa de Saúde e Instituto Ginástico Ortopédico

08/01/2024

Fabio Peres e Victor Melo[i]

No último post, comentamos sobre a tentativa de se estabelecer, no início da década de 1840, um instituto ginástico ortopédico na Corte.

O projeto da Imperial Casa de Saúde e Instituto Ginástico Ortopédico foi submetido — a pedido da Secretaria de Estado dos Negócios do Império — à avaliação da Academia Imperial de Medicina. O parecer inicial da comissão escolhida pela academia enalteceu a iniciativa.

Um dos pontos destacados era que a casa de saúde não seria ligada às ordens terceiras, ampliando o acesso de diversas pessoas a serviços médicos, incluindo ginástica e ortopedia, independente da crença ou afiliação:

A necessidade do título de católico, e de afiliação à ordem, tornando esses pios estabelecimentos inacessíveis para um grande número de pessoas, e limitando singularmente sua utilidade, uma Casa de Saúde que aberta fosse a todos os homens, e a todas as crenças, fazia-se, no estado atual da nossa civilização, urgentemente necessária.  Enfim, a ortopedia e a ginástica, que entram no projeto como partes integrantes, acabam de o tornar digno de toda a solicitude do Governo (1841, p.97)[ii].

 O acesso à ginástica médica e ortopédica não parecia ser, pelo menos na perspectiva da comissão da Academia Imperial de Medicina, um aspecto de menor importância: 

É com vivo sentimento de prazer que nós vos anunciamos que o Rio de Janeiro vai possuir um estabelecimento de ortopedia e de ginástica. Só esta circunstância nos bastava para rogar-vos que deis vosso sufrágio ao projeto, cujo exame nos incumbistes. Quantas vezes, senhores, cada um de nós se não viu obrigado a lançar o desespero no coração dos pais de filhos desgraçados, anunciando a insuficiência dos meios possuídos pela arte neste país, para curar esses desvios da coluna vertebral, que destinam a uma mais ou menos tarda, mas certa morte, os desgraçados que deles se acham afetados? […] Quantos meninos caquéticos e incapazes, quando chegam à virilidade, de serem úteis à pátria e de preencherem os deveres de cidadão, deixarão de ser pesados a sua família pelo benefício dos exercícios ginásticos! (p. 1841, p.97-98).

 A única ressalva que o parecer aponta em relação à ginástica trata da sugestão de trazer um professor da Europa, uma vez que, segundo a comissão, seria imprudente confiar em “homens inábeis” os exercícios ginásticos. De certa forma, essa avaliação apontava a distância entre a ginástica médica preconizada pelos membros da comissão, isto é, a ginástica europeia, e a ginástica ensinada ou praticada em terras nacionais.

Contudo, alguns meses depois, o Dr. José Maurício Nunes Garcia fez um discurso com severas críticas ao relatório produzido pela comissão, que deixou— segundo ele — de cumprir com as suas responsabilidades com o governo[iii]. Tais críticas abordam tanto questões médicas como administrativas, legais e financeiras (entre as quais está a oneração do tesouro público, em face da pequena contrapartida dada pelo estabelecimento de saúde).

No que tange ao instituto ginástico ortopédico, Nunes Garcia argumentava que este não deveria dividir o espaço com a casa de saúde, uma vez que a proximidade entre os estabelecimentos poderia ser nociva.  De acordo com o médico, a ginástica poderia ser ensinada no Colégio Pedro II, e a ortopedia na escola de medicina, desde que fossem oferecidos os instrumentos e aparelhos necessários.

As críticas de Nunes Garcia parecem ter surtido efeito, já que a Academia Imperial de Medicina reviu sua apreciação, emitindo parecer contrário ao projeto da Imperial Casa de Saúde e Instituto Ginástico Ortopédico. Mesmo considerando de “primeira necessidade e utilidade pública” o estabelecimento de casas de saúde na Corte, a Academia concluiu que estas não deveriam seguir o modelo proposto no projeto devido a uma série de problemas identificados.

Este episódio aponta que, mesmo em relação à ginástica, não existia um consenso entre os médicos da instituição. Embora uma das principais preocupações de Nunes Garcia e, posteriormente, da própria Academia, fosse o impacto financeiro no cofre público sem as devidas garantias, as sugestões de separar, primeiro, a casa de saúde do instituto ginástico ortopédico e, depois, o ensino da ginástica do estabelecimento ortopédico, revelam a existência de perspectivas diferentes sobre o tema. 

A revisão do parecer pela Academia Imperial de Medicina não apenas reflete a dinâmica interna de debates e divergências na instituição, mas também ilustra o papel e a responsabilidade percebidos por seus membros no âmbito do Estado que se conformava naquele período. Esta situação sinaliza, em certa medida, um processo de consolidação da legitimidade do saber médico na administração estatal e, por conseguinte, do papel que tal saber teria — e deveria ter na autorrepresentação dos médicos — nas avaliações e decisões sobre políticas de saúde e no desenvolvimento de práticas médicas.

Outros indícios da inserção do saber médico sobre a ginástica na estrutura administrativa do Estado podem ser vistos nos relatórios anuais do Ministério dos Negócios do Império. Mas essa história ficará para um próximo post.


[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494;. ISSN 2236-3459.

[ii] Revista Medica Brasileira, Junho de 1841, p. 92-99

[iii] Revista Medica Brasileira, Agosto de 1841, p.189-203.


Medicina, ginástica e a “saúde da mulher” no Rio de Janeiro do século XIX

12/06/2023

Fabio Peres e Victor Melo[i]

Nos últimos posts, contamos um pouco sobre como se construiu a relação entre ginástica, educação e medicina no decorrer do século XIX. Embora desde a década de 1840, médicos ligados à Academia Imperial de Medicina defendessem a introdução dessa prática nas escolas – expressão de como a medicina procurava, literal e simbolicamente, ganhar corpo no cotidiano escolar -, na década de 1870 ainda eram identificados diversos desafios para a sua implementação nas escolas.

No decorrer dessa enredada história, merece destaque a publicação de um artigo, em 1878, redigido pelo médico José Pereira Rego Filho[ii], no qual apresentava uma síntese do parecer de Rego Cesar sobre a ginástica sueca, lido na Academia Imperial de Medicina em 29 de março 1876, conforme mencionado no post anterior. O médico, todavia, não se limitou apenas a fazer um resumo das ideias de Rego Cesar. Apresentou, além disso, o “estado da arte” sobre o tema, de maneira a mapear a produção hodierna da época, como Alexis Sluys, Braun, Browerse Docx, Jaeger, Gallard, Schmitz, Fonssagrives, entre outros, destacando que:

Acreditamos suficientes as reflexões expostas para demonstrar as vantagens da ginastica, que sem contestação, deve figurar como base de toda a educação coletiva e privada […] parece ser hoje incontestável […] que o trabalho muscular regularizado é um excelente meio de tratamento em muitas moléstias. Não só pode-se desenvolver as forças, combater a anemia ou a diabetes e diminuir a obesidade, mas ainda chega-se a regularizar as funções digestivas, a desenvolver o apetite, e mesmo a imprimir maior atividade à circulação geral. (1878, p. 347-348).

Vale destacar que durante as décadas de 1870 e 1880, outras formas ou técnicas de ginástica também serão aventadas pelo saber médico: ginástica hidroterápica[iii], cinesioterápica[iv], respiratória[v], entre outras.  Mas, além do tratamento das diversas moléstias (físicas, mentais, morais e intelectuais) e de estar voltada também para adultos, a prática corporal será igualmente abordada quando o assunto é a saúde da mulher, cuja importância, em geral, estava ligada as condições físicas e morais da futura mãe. No decorrer do século XIX, não era raro a ideia de que a educação física da nação dependia da educação física das mães (seja enquanto reprodutoras, seja como responsáveis pela saúde da família e, respectivamente, de seus filhos).  

Em discurso pronunciado, em 30 de junho de 1872, na Academia Imperial de Medicina[vi], por exemplo, o Dr. Corrêa de Azevedo chama a atenção que os preceitos da higiene do corpo e da educação das meninas do país se encontram negligenciados, “[…] de onde sairão, um dia, essas caras criaturas da pátria, filhas apoucadas, esposas incompletas, mais perigosas ou indolentes” (1872, p.100). De acordo com Azevedo, comumente não é permitida às mulheres a ginástica “dos músculos” que melhoria sua saúde física e, consequentemente, sua saúde moral:

Não se admite que a ginastica dos músculos avigora as vísceras e o organismo inteiro, que dá ao coração uma impulsão mais energética, e que, portanto, os órgãos da respiração são assim postos em movimento mais fisiológico. Uma vez essa força física estabelecida, atua o moral de uma maneira mais metódica; o caráter toma a si impulsos determinados e positivos; e a inteligência inquieta e ávida procura no estudo e no Evangelho mais luz e mais vida. (1872, p.100)

Porém, em 1874, os já citados médicos José Pereira Rego Filho e João Pinto do Rego Cesar no artigo Da utilidade da gymnastica nas escolas de ensino primário, salientavam algumas ressalvas. Argumentavam que a ginástica deveria ser ensinada e praticada de forma diferenciada entre os sexos:

Passando à aplicação a ginastica em relação aos sexos diremos que se a natureza deu à mulher e ao homem uma organização diferente e disposta a missão que cada um tem de exercer na terra, é claro que nem a mesma educação e nem os mesmos exercícios convêm a ambos; a ginastica ativa, conveniente ao homem, que a Providência dotou de força e coragem para proteger a família e defender a pátria não pode convir à mulher. Para ser bela e ser amada a mulher não deve afastar-se do caminho que lhe é traçado; é a graça não a força que a torna querida e poderosa; entretanto o hábito das ocupações sedentárias lhe é tão nocivo como ao homem, e a ginastica, convenientemente dirigida pode, mantendo uma certa harmonia entre o sistema sensitivo e o sistema locomotor conjurar grande número de moléstias que muitas vezes abreviou sua fraca existência. (1874, p.74)

Em outra ocasião[vii], a ginástica e outras “distrações” também figurariam como profilaxia de determinados sintomas vinculados especificamente ao “temperamento nervoso” da mulher, funcionando como atenuante dos efeitos da “reclusão”, da vida sedentária, da “natureza das suas paixões”, das modificações da puberdade etc.:

[…] sendo a moléstia [albumíno-pymeluria] muito frequente no Rio de Janeiro, e atacando aí principalmente as mulheres, devem estas merecer alguma atenção mais. O temperamento nervoso é o seu apanágio; e a vida sedentária, a natureza das suas paixões e a influência destas sobre elas, são todas as modificações que o seu organismo ressente nas diversas épocas da puberdade, e muitas outras causas que lhes dão esse temperamento. Sendo o temperamento nervoso uma das causas que mais concorrem para a reprodução da moléstia, achamos conveniente, portanto, que se procure o mais possível modificá-lo. Por isso, pois, aconselho que se lhes conceda mais alguma liberdade, que sejam tiradas um pouco dessa vida de reclusão, e que se lhes permita, em parte ao menos, a prática dos preceitos recomendados pela higiene, para a modificação desse temperamento. Assim os passeios os exercícios ginásticos, as distrações deverão ser-lhes concedidas. (1870, p. 229)

Esse processo de multiplicação de saberes médicos sobre a ginástica (ou melhor, ginásticas) será acompanhado, como veremos nos próximos posts, por um conjunto de circunstâncias que favoreceram a inscrição do conhecimento sobre a prática corporal na burocracia imperial.


[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494;. ISSN 2236-3459.

[ii] Annaes Brasilienses de Medicina, Fevereiro de 1878, p. 340-350.

[iii] O Progresso Medico, 1878, p. 337-350.

[iv] Annaes Brasilienses de Medicina, Janeiro e Fevereiro de 1882, p. 231-312.

[v] União Medica, Abril de 1882, p. 147-152.

[vi] Publicado posteriormente nos Annaes Brasilienses de Medicina, Agosto de 1872, p. 93-102.

[vii] Annaes Brasilienses de Medicina, Novembro e Dezembro de 1877, p. 170-237.


Medicina, ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX: a infância e a escola como objetos e espaços sociais de intervenção (parte 2)

27/02/2023

Fabio Peres e Victor Melo[i]

No post anterior, abordamos como a ginástica tornou-se cada vez mais uma questão relacionada à educação e à infância nos periódicos científicos da década de 1840. Este processo, que começou nas décadas anteriores, estava inserido em um campo de disputas em que diferentes agentes, práticas e saberes buscavam se legitimar.

Como sinalizamos, o Dr. Francisco Paula Candido mencionou a ginástica no discurso da comemoração do 12º aniversário da Academia Imperial de Medicina[ii].

Nesse discurso – realizado em sessão pública com a presença do imperador no Palácio Imperial da Cidade -, a prática corporal serviu como exemplo, entre os antigos, da relação desejável entre conhecimento especializado e o Estado:

Em última análise fica incontestável a influência, que a ginástica, a sobriedade, e outros preceitos higiênicos erigidos em leis, adaptados à índole e necessidade dos Lacedemônios, exerceu na educação daqueles, que essas mesmas leis transformarão em heróis (1841, p.144).

O presidente da Academia Imperial de Medicina deixava, desse modo, manifesta a posição da entidade: uma autorrepresentação da medicina enquanto portadora de um saber sobre a saúde física e coletiva, que deveria prevalecer sobre a vida social e política do Império. Não será coincidência que posteriormente Paula Candido ocupará a presidência da Junta Central de Higiene Pública (1850-1864).

O futuro do país e da sociedade como um todo dependeria, segundo Candido, do diagnóstico proveniente da ciência e, em particular, da medicina:

[..] no apogeu da civilização o legislador deve chamar a contribuição todos os ramos dos conhecimentos humanos sob pena de ficar atrás do século em que vive (p.1841, p. 143).

Tal perspectiva fica mais evidente nas atribuições que a Academia, segundo Paula Candido, deveria exercer na educação brasileira, difundindo o saber médico entre a população. Como vimos, esse saber, conforme parte dos médicos da entidade defendiam, incluiria a introdução da prática da ginástica nas escolas do país. Tal posição seria depois consolidada oficialmente pela Academia Imperial de Medicina, ao se pronunciar a favor da necessidade do ensino da ginástica nas escolas de instrução primária[iii].

Revista Medica Brasileira, v.1, n.3, julho de 1841.

Aliás, não se sabe ao certo o papel que a Academia Imperial de Medicina teve na introdução dos exercícios ginásticos no Colégio Pedro II, que ocorrera em 1841, que foi defendida por Emilio Maia com veemência no ano anterior. Contudo, naquela ocasião, o mestre de ginástica contratado foi justamente Guilherme Luiz de Taube, que quase 10 anos antes solicitou um parecer da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro sobre o seu breve tratado sobre ginástica.

Em todo caso, parece-se nos adequado afirmar que, na perspectiva dos esculápios, a ginástica materializaria (assim como os demais preceitos da educação física e da higiene, as quais ela estava articulada) a medicalização do cotidiano escolar.

Um exemplo da defesa de tal perspectiva pode ser identificado na RMF, na qual foram publicados os preceitos de higiene estabelecidos pelo decano da Faculdade de Medicina de Paris e adotados nas escolas públicas francesas[iv]. Além de diversas recomendações referentes a alimentos e bebidas, vestuário, banhos etc., a prática de exercícios, incluindo a ginástica, constitui uma orientação que deve ser seguida no meio escolar.

A educação voltada para a infância se constituiria, assim, em locus por excelência do saber médico sobre a ginástica. Essa, porém, seria uma das faces, entre outras, da ginástica médica; embora, talvez, a que os médicos dedicariam maior atenção a partir daquele momento.

Nesse cenário, avançará também a discussão sobre os métodos, bem como sobre os mecanismos fisiológicos e terapêuticos envolvidos na prática corporal, reforçando e, em alguns casos, ampliando o rol de enfermidades tratadas ou prevenidas pela ginástica. O parecer do Dr. Rego Cesar a um opúsculo sobre “ginastica médica sueca”, apresentado a pedido da Academia Imperial de Medicina, pode ser entendido como uma forma de melhor compreender os efeitos e os possíveis usos da prática corporal[v]. Rico em detalhes sobre as ações fisiológicas promovidas pela ginástica, a enumeração das moléstias que poderiam ser combatidas dá uma dimensão da possível importância atribuída a tais exercícios pelas ciências médicas: paralisia, apoplexia, problemas na coluna vertebral, catarro nos pulmões, tísica tuberculosa, asma, hiperemia abdominal, constipação, hemorroida, ingurgitamento do fígado, gota, reumatismo, escrófula, moléstias nos genitais e na bexiga, entre outras.

Adicionalmente, de acordo com Rego Cesar, a prática corporal também acostumaria o cidadão à disciplina, à obediência, tornando-o útil à defesa pátria. A ginástica ficava, assim, também associada ao corpo do (inclusive, do futuro) soldado[vi]. Contudo, na visão do médico, a difusão e as condições para sua prática ainda seriam bastante deficientes no país, inclusive nas associações estrangeiras, se constituindo em mero divertimento ou passatempo, e no Colégio Pedro II, cujo curso seria incompleto, imperfeito e facultativo. Ao mesmo tempo, haveria falta de professores devidamente habilitados para ensiná-la adequadamente.  

O parecer do Dr. Rego Cesar apresentava, portanto, indícios dos desafios enfrentados, ainda na década de 1870, na longa e sinuosa trajetória da implementação da ginástica nas escolas, apesar dos “avanços” em relação à legitimação do saber médico sobre a prática. Anos depois outro médico defenderá que a ginástica se constituísse como fundamento de toda “educação individual e coletiva”. Mas essa história ficará para o próximo post.


[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494&gt;. ISSN 2236-3459.

[ii] Revista Medica Brasileira, v.1, n.3, julho de 1841, p. 140-149.

[iii] Embora não tendo acesso a tal documento, o parecer do Dr. Corrêa de Azevedo sobre a ginástica médica sueca faz referência a esse episódio. Provavelmente se refere ao relatório Da Utilidade da Gymnastica nas Escolas de Ensino Primário, apresentado pelos médicos José Pereira Rego Filho, João Pinto Rego Cesar e João Batista dos Santos.

[iv] Revista Medica Brasileira, Abril de 1842, p. 679-684.

[v] Annaes Brasilienses de Medicina, Novembro e Dezembro de 1876, p. 240-245.

[vi] Deve-se lembrar que tal tema foi abordado no relatório De-Simoni sobre o tratado de Taube e, posteriormente, na memória Contribuições para o Estudo das Moléstias da Guarnição da Corte escrita pelo Dr. Manoel José de Oliveira, membro titular da Academia Imperial de Medicina (Annaes Brasilienses de Medicina, Julho a Setembro de 1883, p.35-95).


Medicina, ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX: preocupações com o sedentarismo em “regiões tropicais”

18/07/2022

Fabio Peres e Victor Melo[i]

No último post, contamos um pouco da história de como a ginástica começou a se legitimar como campo de saberes e práticas médicos no Rio de Janeiro do século XIX.

Um dos marcos nessa história ocorreu em 1839, quando um médico publicou um artigo sobre os benefícios da ginástica, especificamente, no Brasil; talvez o primeiro que – diferente dos publicados anteriormente por seus colegas – considerou as relações entre a prática e os aspectos ambientais e demográficos brasileiros.

O texto Longevidade Brasileira, publicado em julho de 1839, na Revista Medica Fluminense[ii] defende que entre os fatores principais que contribuem para a longevidade e a manutenção da saúde está a prática de exercícios (sobretudo, ginásticos). A inação é vista como origem principal de diversas doenças, inibindo funções corporais que favorecem o prolongamento da vida. 

O artigo aponta como consenso científico que a longevidade está necessariamente associada ao cumprimento das regras higiênicas, entre as quais está prática de exercícios.

Um aspecto importante do texto é a tentativa de adequar as teorias existentes, algo que se tornaria comum em parte da comunidade médica nacional, às condições climáticas brasileiras, ao mesmo tempo em que caracteriza melhor os requisitos básicos do que deve ser entendido como exercício:

Se o exercício é necessário ao homem em todos os climas, ele torna-se da maior necessidade ao que habita as regiões tropicais; ali a elevada temperatura da atmosfera abatendo naturalmente a energia de todos os órgãos, faz com que eles para se reanimarem precisem de uma maior atividade. […] Todavia cumpre dizer, que o verdadeiro exercício e o mais útil, é o que põe em jogo todas as partes do corpo, e o que se faz ao ar livre, e de maneira alguma se deve dar este nome as doces oscilações de uma sege, ou de uma cadeirinha […]. As pessoas que tem uma vida sedentária, devem sempre ter presente, que nada é tão próprio no nosso país para reanimar todos os órgãos e excitar agradavelmente o sistema nervoso, como o exercício a pé e ao ar livre (1839, p.140-141).

No ano seguinte, em 1840, foi publicado um texto integralmente dedicado à ginástica na mesma revista médica[iii]. Sob o título Utilidade e necessidade da ginástica, o médico Emilio Joaquim da Silva Maia argumentará, logo na primeira frase, que a prática corporal é uma parte da medicina, ligada a “restabelecer a saúde”, definindo-a:

[…] segundo os autores modernos, “a arte que tem por objeto exercer com método o todo ou parte do sistema locomotor, tanto para aumentar a esfera da ação dos músculos, como para conservar e restabelecer a saúde, e favorecer assim o aumento das faculdades físicas e morais do homem” (1840, p.473).

De acordo com análise do médico, embora sua difusão e desenvolvimento encontravam-se bastante atrasados no país, a ginástica seria um dos mais poderosos recursos da higiene e da terapêutica, o que justificaria não somente a presença de algumas páginas dedicadas a ela na Revista Medica Fluminense como de certa forma evidenciaria que naquele momento existiam resistências à prática; no campo médico e nas diversas instituições sociais no Império.

Após uma descrição pormenorizada sobre os diversos efeitos locomotores, fisiológicos, intelectuais etc., inclusive utilizando para isso autores antigos e modernos da medicina como fundamento de suas assertivas, Maia advogará a generalização da prática corporal nos colégios brasileiros, em geral, e particularmente no Colégio Pedro II. Era o indício de uma relação, que se tornaria cada vez mais consistente naquele e no século seguinte, entre ginástica, educação e medicina. O campo da “ginástica médica” adquiria novos contornos. Mas essa história ficará para o próximo post.


[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494> ISSN 2236-3459.

[ii] Revista Medica Fluminense, ed.4, Julho de 1839, p. 139-146.

[iii] Revista Medica Fluminense, ed.10, Julho de 1840, p. 473-481.


Medicina, ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX

28/03/2022

Fabio Peres e Victor Melo*

Em posts anteriores1, 2, 3, contamos um pouco sobre a história do processo de legitimação, institucionalização e difusão do saber médico a respeito das práticas corporais, em especial a ginástica, no Rio de Janeiro do século XIX.

Uma das premissas principais dessa história é que a relação entre exercícios corporais e saúde não era a princípio tão óbvia e muito menos incontestada. Tratou-se de uma construção que se deu de forma lenta, paulatina e muitas vezes pouca harmônica entre agentes, instituições, práticas e saberes que configuravam o campo médico-científico nos oitocentos. Uma relação que se consolidou no decorrer daquele século, apesar de inúmeras controvérsias. Não apenas a comunidade médica teve que “lutar” pela legitimação de suas práticas e saberes junto ao Estado e à sociedade, como também teve que lidar internamente com a regulação dos conflitos e dilemas dessa mesma comunidade pari passu em que o campo científico também mudava.

Os primeiros indícios desse processo se deram nos anos 1830, conforme apresentado nos posts anteriores. Porém, ainda na década de 1830, é possível identificar algumas modificações no trato do tema nos periódicos médicos científicos.

Novos objetos, abordagens e legitimidades

Mesmo que ainda persistissem alguns traços identificados no Semanário de Saúde Pública (1831-1833), a abordagem sobre a ginástica ganhou maior especificidade. Diferente do caráter mais geral e informativo, começou-se a publicar estudos mais detalhados, ao mesmo tempo em que a autoridade e a legitimidade médica se expandiram para outras esferas.

Embora se perceba a permanência de textos com características ensaísticas – um padrão narrativo no qual há, em geral, uma mistura entre opiniões, reconstrução histórica, julgamentos morais e projetos políticos -, alguns artigos já apresentavam feições, consideradas hoje, por assim dizer mais científicas, cuja audiência principal seria a própria comunidade médica[1]. Tais escritos abordaram de maneira mais detalhada os benefícios da ginástica, sejam eles biológicos ou sociais.

O processo de institucionalização da ginástica passou a progressivamente contar com importantes fundamentos e alicerces das ciências médicas. Isso, todavia, não significou que no interior do campo médico havia consenso absoluto. Valerá prospectar os debates publicados na Revista Médica Fluminense (1835-1841) e na Revista Médica Brasileira (1841-1843), ambas editadas pela antiga SMRJ, já transformada em Academia Imperial de Medicina[2], bem como em outros periódicos médicos da ocasião.

Importa assinalar que naquele momento começaram a circular, em alguns jornais da Corte, algumas matérias sobre a ginástica, nas quais há referências a sua importância para a saúde. Um exemplo é o artigo “Da Ginástica”, publicado em duas ocasiões: no Diário do Rio de Janeiro[3] e no Museu Universal[4]. Além do destaque ao estabelecimento de ensino dirigido por Francisco Amoros[5], na França, o texto salienta que, em 1780, o médico Tissot escreveu a obra Ginástica Medica, em que estabeleceu regras e métodos para os exercícios corporais. De acordo com o artigo, a prática contribuiria para educar homens vigorosos, revertendo a má dirigida educação física da primeira infância, que formaria “arlequins” e “afeminados”.

Em abril de 1836, a Revista Médica Fluminense publica um pequeno trecho da obra Essai general d’education physique, morale et intellectuelle, escrito por Jullien de Paris[6].  O autor, ao defender a necessidade de o médico conhecer o homem físico e moral, sugere que a ginástica é uma estratégia eficiente para manter o equilíbrio do corpo humano.

Mesmo não sendo médico, a preocupação do autor francês com as relações entre saúde e educação acabava por reiterar a importância da medicina no que tange à instrução da infância e da juventude. Na Revista Médica Fluminense já houvera antes uma aproximação entre a ginástica e a formação de crianças e da “mocidade”. Nesse caso, todavia, se tratava de uma obra reconhecida no campo educacional, aprovada e adotada pelo Conselho Real de Instrução Pública francês. O periódico, nesse sentido, procura endossar a autoridade do saber médico a partir do reconhecimento da legitimidade que outras áreas lhe conferem.

Alguns anos depois, em 1839, um artigo sobre pneumonia tuberculosa, de autoria de Mr. Fourcault, é publicado na Revista Médica Fluminense[7]. Ao tratar da influência do clima e dos lugares nas afecções ligadas à doença, o autor destaca o problema da falta de exercícios (passeios, corridas, ginástica, dança e esgrima):

É sobretudo na segunda infância, e ao tocar a época da puberdade, que se deve prevenir a incubação lenta e graduada das moléstias tuberculosas; desditosos os meninos débeis e linfáticos, cuja inteligência prematura se cultiva à custa das forças físicas! Os estudos porfiados, a falta de exercício ao ar livre, alteram sua constituição, e os dispõe às mais graves afecções. Os passeios frequentes, as carreiras, a ginástica, a esgrima, a dança etc., são pois indispensáveis na tenra idade para manter o equilíbrio de uma importante função (p. 112).

A ginástica – entendida como um conjunto específico de técnicas corporais ou como sinônimo de qualquer exercício – passaria, no decorrer do século XIX, a ser citada em diversos estudos associados ao tratamento de moléstias de diferentes naturezas: enxaqueca[8], anemia[9], tísica[10],[11], paralisia[12], ortopedia[13], alienação mental[14], doenças crônicas do coração[15] etc.

Ainda em 1839, um médico publicaria um artigo sobre os benefícios da ginástica em terras brasileiras. Mas essa história ficará para um próximo post.


* Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494&gt;. ISSN 2236-3459.

[1] A linguagem, o formato, a análise de dados, a citação de referências e pesquisas acadêmicas no corpo do texto, entre outros, são aspectos que os diferem do gênero ensaio.

[2] Brasil. Decreto de 8 de Maio de 1835. Converte a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro em Academia, com o titulo de Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro; e dá-lhe estatutos. Na ocasião, a Academia passou a receber recursos do Tesouro público.

[3] Diário do Rio de Janeiro, 09/03/1838, p. 1.

[4] Museu Universal, ed. 43, 28/04/1838, p. 341.

[5] Além de diretor do Ginásio Normal de Paris, Francisco Amoros (Valência, 1770 – Paris, 1848) é considerado um dos precursores da Educação Física moderna e um dos difusores do ensino da ginástica na França. Para mais informações, ver Sirvent (2005) e Arnal (2009).

[6] Revista Médica Fluminense, ed. 1, vol. II, abril de 1836, p. 237-243.

[7] Revista Médica Fluminense, ed. 3, junho de 1839, p. 103-112.

[8] Arquivo Médico Brasileiro, dezembro de 1846, p. 89.

[9] Arquivo Médico Brasileiro, janeiro de 1848, p. 73-77.

[10] Arquivo Médico Brasileiro, abril de 1847, p. 175.

[11] O Progresso Médico, 1877, p. 449-457.

[12] Annaes Brasilienses de Medicina, abril de 1852, p. 172-177.

[13] Annaes Brasilienses de Medicina, outubro de 1853, p. 13-16.

[14] Annaes de Medicina Brasiliense, julho de 1848, p. 12-16

[15] O Brasil Médico, setembro de 1888, p. 266-269.


As ideias de Jahn na sociedade da Corte: Deutscher Turnverein

24/11/2019

Fabio Peres e Victor Melo[i]

 

Em 1859, se estruturou, no Rio de Janeiro, a Sociedade Alemã de Ginástica (nos jornais também, por vezes, chamada de Clube Ginástico Alemão), a pioneira agremiação dessa natureza na América do Sul. Sua primeira sede se localizava na Praia de Santa Luzia[ii], no centro da cidade, provavelmente na residência de um dos membros da diretoria, H.W. Reimer[iii].

Em 1861, o clube foi convocado a se ajustar ao decreto 2.711, de 19 de dezembro de 1860[iv]. Deveria solicitar tanto autorização para funcionamento quanto a aprovação de seus estatutos, para que não incorresse no artigo 5º do decreto 2.686, de 10 de novembro de 1860[v]. Quase um ano depois, em outubro de 1862, a agremiação recebeu a licença para continuar a funcionar[vi].

Seus estatutos, contudo, sofreram alterações, claramente indicações do exercício do controle governamental. Uma das exigências estabelecidas é que fosse suprimido o artigo que indicava que a Sociedade seria regida pelas regras germânicas. Exigia-se ainda que o uniforme do clube somente fosse “usado dentro dos edifícios, e lugares sociais, e não nas ruas, ou praças públicas”[vii]. No futuro, o mesmo não será solicitado de outros grupos ginásticos. Tal decisão, naquele momento, pode ter algumas razões: a preocupação com a exibição pública de símbolos de outras nações; ou mesmo simples mudanças de critérios, que, de fato, nem sempre foram muitos claros.

Devemos lembrar que a Alemanha somente concretizou o seu processo de unificação em 1871. Esse aspecto deve ser levado em conta para melhor entendermos o perfil das agremiações germânicas no Brasil instaladas, inclusive o caso da Sociedade Ginástica Alemã. Ajuda a compreender, por exemplo, a força com que certos símbolos eram cultuados, um sinal de desejo de fortalecimento de uma identidade que, embora de construção bastante antiga, ainda estava se estruturando como Estado-Nação[viii].

Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro (RJ), 1867, p.378.

Nos estatutos, estabeleceu-se um nome alemão de referência junto a sua denominação (“Deutscher Turnverein, Sociedade Ginástica Alemã”), bem como o idioma germânico como o que deveria ser adotado nas reuniões. Além de deixar claros os vínculos com a Alemanha, esses artifícios estabeleciam um perfil desejado de associado.

Havia três categorias de sócios: ativos, aqueles que participavam dos exercícios ginásticos; passivos, que não participavam dessas atividades; e alunos de ginástica, categoria destinada aos menores de 18 anos. Somente aos primeiros era concedida a prerrogativa de deliberar nas assembleias, sinal de que a prática era mesmo considerada de importância na agremiação.

Os intuitos do clube eram assim explicitados:

a) Cultivar as forças físicas e intelectuais dos seus membros;

b) Estabelecer relações entre todos os Alemães existentes no Brasil[ix].

Sua fundação tinha motivações semelhantes às que levaram à criação de outras congêneres alemãs, como a Sociedade Germânia, fundada em 1821 e até hoje existente[x]. Era a materialização do desejo de um grupo de estrangeiros de estabelecer laços de sociabilidade ao redor de hábitos culturais de seu lugar de origem. Deixava-se claro nos estatutos que “Cada novo membro é considerado como irmão e amigo”.

Estabeleceu-se como divisa “Frisch, Fromm, Froehlirh, Frei (Fresco, bom, allegre, livre)” e como saudação “Gut Heil (boa ventura)”[xi]. Tratava-se de uma clara vinculação com as ideias de Friedrich Jahn, principal líder do movimento alemão de ginástica, no qual a prática era concebida como uma escola de vida, com regras morais muito bem definidas[xii]. Nas Turnverein, que no Brasil foram muito atuantes em outras cidades (como São Paulo, Juiz de Fora e cidades da região sul do país), concebia-se que os exercícios deveriam estar a serviço da aquisição de determinados comportamentos[xiii].

Essas concepções manifestavam-se claramente na dinâmica cotidiana da sociedade. Os estatutos procuravam garantir de forma rigorosa o seu bom funcionamento. O presidente gozava de grande poder, mas tinha que se reportar, em muitos casos, ao Conselho, uma diretoria formada por 11 membros. Entre os cargos, percebe-se a valorização de algumas atividades: além da ginástica, o canto e a leitura.

Muitos eram os itens destinados a regulamentar a prática da ginástica. Havia indicações sobre a manutenção dos espaços e aparelhos, bem como sobre a dinamização dos ensaios/aulas, dirigidos pelos que melhor desempenho demostrassem: “Os ensaiadores serão escolhidos entre os membros da primeira divisão[xiv]. Superioridade na execução dos exercícios e vivo interesse para a Sociedade decidem a escolha”[xv]. Mais ainda, previa-se: “Os ensaiadores executam os exercícios uma vez por semana na presença do Presidente”[xvi].

Vejamos, portanto, que, a princípio, não se previra a contratação de professores. Os ensaiadores eram escolhidos entre os sócios, considerados personalidades de grande importância. Todos deveriam seguir suas determinações nas aulas/ensaios. Previa-se que:

“Ao ensaiador é lícito excluir da sua divisão qualquer membro que não se portar convenientemente; deverá, porém findos os exercícios, comunicá-lo ao Presidente, cuja resolução determinará mais especialmente as providências que se devem dar”.

Com o decorrer do tempo, houve professores contratados? Não conseguimos identificar. De fato, das sociedades ginásticas que existiram no Rio de Janeiro, o clube dos alemães foi o mais discreto. Nas fontes consultadas, somente eventualmente se vislumbra algo de suas atividades. Por exemplo, em um relatório publicado na Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, a respeito do funcionamento do Jardim Botânico, ficamos sabendo que, em 1884, a colônia alemã organizou uma festividade em honra do Príncipe da Prússia, composta por um banquete, música, canto, ginástica e dança”[xvii]. Não muito mais do que isso. Vejamos que a informação sequer foi publicada em um periódico de grande circulação.

De toda maneira, é possível perceber que o clube se manteve bem ativo no decorrer do século XIX, não só no que se refere aos exercícios ginásticos, como também promovendo atividades sociais, como bailes, saraus, passeios, reuniões de associados[xviii].

Mais conhecida e ativa na vida social da Corte foi a Sociedade Francesa de Ginástica, fundada em 1863. Mas essa história ficará para um próximo post.

 

[i] Texto foi publicado originalmente em MELO, Victor Andrade de; PERES, Fabio de Faria. A gymnastica no tempo do Império. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2014. (Coleção Visão de Campo).

[ii] Em 1874, o clube já estava instalado na Ladeira do Castelo. Em 1884, transferiu-se para a rua do Riachuelo (na Imperial Fábrica de Cerveja Nacional, de Henrique e Leon Leiden). Dois anos depois se localizava na rua da Misericórdia (próxima ao Castelo); em 1888, na rua da Ajuda (nas redondezas da atual Cinelândia).

[iii] Almanak Laemmert, 1862.

[iv] Brasil. Decreto nº 2.711, de 19 de dezembro de 1860. Contém diversas disposições sobre a criação e organização dos Bancos, Companhias, Sociedades anônimas e outras (Coleção de Leis do Império do Brasil – 1860, p. 1125, v. 1, pt II). Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-2711-19-dezembro-1860-556868-publicacaooriginal-77043-pe.html>. Acesso em: 26 mai. 2013.

[v] Brasil. Decreto nº 2.686, de 10 de Novembro de 1860. Marca o prazo dentro do qual os Bancos e outras Companhias e Sociedades anônimas, suas Caixas Filiais e agências, que atualmente funcionam sem autorização e aprovação de seus Estatutos, devem impetra-las (Coleção de Leis do Império do Brasil – 1860, p. 1061, v. 1, pt II). Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-2686-10-novembro-1860-556835-publicacaooriginal-77005-pe.html>. Acesso em: 26 mai. 2013.

[vi] Brasil. Decreto nº 2.980, de 2 de Outubro de 1862. Concede á Sociedade Alemã de Ginástica autorização para continuar a exercer as suas funções, e aprova os respectivos Estatutos (Coleção de Leis do Império do Brasil – 1862, p. 348, v. 1, pt. II). Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-2980-2-outubro-1862-555720-publicacaooriginal-75087-pe.html>. Acesso em: 26 mai. 2013.

[vii] Brasil, 1862, op. cit.

[viii] Para mais informações, ver Andrade (2007).

[ix] Brasil, 1862, op. cit.

[x] Para mais informações sobre a Sociedade Germânia, ver <http://cidadesportiva.wordpress.com/2011/08/27/germania-o-mais-antigo-clube/>. Acesso em: 26 mai. 2013.

[xi] Brasil, 1862, op. cit.

[xii] Para mais informações sobre as propostas de Jahn, ver estudo de Quitzau (2011).

[xiii] Na verdade, a ideia de turnen, que em sentido literal se refere à ginástica (como verbo ou substantivo), também incluía jogos, caminhadas, teatro e coral (TESCHE, 2000).

[xiv] Havia um ensaiador para cada divisão, turma formada por nível de desempenho.

[xv] Brasil, 1862, op. cit.

[xvi] Entre os ensaiadores, sabemos, por exemplo, por uma homenagem pelo clube realizada, que um dos mais ativos foi o dinamarquês Adolphe Jorge Guilherme Hamann. Em 1866, quando a Sociedade era presidida pelo mestre de ginástica H. Frey, um professor de esgrima é admitido no Conselho (M. Sturzenecker).

[xvii] Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, março de 1884, p. 123.

[xviii] Para um olhar sobre a presença de alemães na sociedade da Corte, ver Lenz (1999) e Kelli (2011).


Francisco Pontes, o “Manolete” do Brasil

28/07/2019

por Cleber Eduardo Karls
cleber_hist@yahoo.com.br

Em recente visita a um importante centro de prática e estudos sobre as touradas no mundo, a cidade de Córdoba, região da Andaluzia, na Espanha, pude sentir de perto toda a fascinação que os espanhóis possuem pela prática, assim como toda a sua significação histórica e identitária. Os toureiros, assim como os touros, são admirados e elevados a celebridades carregadas de virtudes. Nesse contexto, se destaca um personagem no cenário local, Manuel Laureano Rodríguez Sánchez, mais conhecido como Manolete, nascido em Córdoba em 1917 e falecido em Linares, também na Espanha, em 1947, com apenas 30 anos de idade após um golpe fatal de um touro Miura.

Sua morte comoveu país inteiro, sendo que, na época, o próprio ditador Franco ordenou três dias de “luto nacional”, durante os quais hinos fúnebres eram ouvidos no rádio. Em 2007 foi realizado um filme sobre a sua vida, “Manolete – Sangue e Paixão”. Tanto no Museu Taurino de Córdoba, quanto pelas ruas estreitas da cidade histórica, são inúmeras as referências a este, que pode ser considerado o mais celebrado toureiro de todos os tempos.

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Busto de Manolete – Museu Taurino de Córdoba

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No entanto, não foi somente no velho continente que esta admiração pelos astros da tauromaquia pôde ser notada. Guardadas as devidas proporções e o cuidado com as anacronias, o Brasil também teve o seu astro dos redondéis, o português Francisco Pontes, um dos mais notáveis toureiros a atuar no Brasil. Seu destaque se deu em grande parte do território brasileiro onde comandava um circo de touros itinerante. No Rio de Janeiro, se tornara um dos grandes responsáveis pela popularização da tauromaquia no século XIX, por sua notável performance nas arenas, por sua capacidade de organizar espetáculos de qualidade e por seu constante envolvimento com a filantropia. Pontes era considerado o maior artista tauromáquico a visitar o Brasil.

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Francisco Pontes
O Toureiro, 1877

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Em Porto Alegre, Pontes tornou-se, também, renomado. Na temporada de 1881, chegou a receber de presente uma valsa, “Primavera”, composta por João Fernandes de Souza Lima, a ele oferecida como prova de simpatia e admiração pelos seus méritos artísticos.

O toureiro sempre procurava retribuir o carinho do público. Por exemplo, nas corridas de 11 de agosto de 1889, tanto os bilhetes de sol como os de sombra foram acompanhados de seu retrato, que poderia ser retirado pela pessoa que os comprar antes de entrar para a corrida. Explicitamente desejava agradecer o público e a imprensa da capital sulina, pela maneira generosa que o acolhera, revelada nos abundantes aplausos prodigalizados à sua companhia e na valiosa proteção que lhe foi dispensada.

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Arena de touradas, Porto Alegre, 1909 (ver fundo da imagem)
Disponível em: https://lealevalerosa.blogspot.com/2010/05/circo-de-touros-em-porto-alegre.html

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Ainda que em algumas ocasiões houvesse ressalvas à atuação da companhia de touros, em geral os toureiros, além de Pontes, receberam grande destaque, ressaltando-se sua destreza e coragem. Lourenço Delgado, por exemplo, tornou-se um ídolo por sua capacidade de realizar técnicas muito distintas e arrojadas. Geminiano de Carvalho ganhou fama por ser um “artista ginástico”. Isso tinha relação com o fato de que tinha força para suspender um touro, bem como porque aceitava desafios de luta romana, realizados em plena arena.

Nas corridas de Porto Alegre houve mulheres lidando com os touros. Em 1889, atuaram Petrona Nogueira, Maria Soares e, com muito destaque, a espanhola Maria Dolores, considerada “valente e corajosa heroína”. Ela chegou a enfrentar um touro com “aspas nuas”, além de encarar o quase onipresente Tigre Rochedo, afamado touro.

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Arena de touradas, Porto Alegre, 1901 (ver fundo da imagem)
Disponível em: https://lealevalerosa.blogspot.com/2010/05/circo-de-touros-em-porto-alegre.html

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Já na temporada de 1875, se apresentara Julia Rachel, casada com o afamado toureiro Miguel Tranzado, anunciada como a única neste difícil trabalho em toda a América do Sul. Suas proezas eram anunciadas com grande alarde, o mesmo que ocorreu com outra pioneira, que atuara nas corridas de 1881: Zulmira da Conceição.

Como era usual em outras cidades, também em Porto Alegre foram organizadas touradas com fins beneficentes, uma iniciativa que ajudava a aumentar o reconhecimento social para com a prática. No caso das corridas que promoveu Pontes, era também uma forma de expressar sua vinculação a certas causas políticas, como as abolicionistas, por exemplo.

No Rio de Janeiro, o toureiro se envolveu profundamente com a luta contra a escravidão. Na capital gaúcha, uma das ocasiões em que isso se manifestou foi em uma sessão dedicada à Sociedade Floresta Aurora, uma ativa agremiação de negros.

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Em tudo o que pudemos verificar nas touradas do século XIX no Brasil, nenhum outro “artista” tauromaquico logrou tanto sucesso quanto Francisco Pontes. Manolete na Espanha ou Pontes no hemisfério sul, o fato é que este desafio entre o homem e o animal, entre a força e a habilidade, aflorava sentimentos extremos por onde fora praticado. Na capital do império ou na Província de São Pedro, o toureiro conquistou o seu público, sua fama e está marcado na História. Afinal, o Brasil também tem o seu Manolete.

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Para mais informações:

* Tradição e modernidade: as touradas na Porto Alegre do século XIX
Cleber Eduardo Karls, Victor Andrade Melo
História Unisinos, v. 18, n. 2 (2014)
http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2014.182.11


A História de uma Policronofonia (parte 2): apontamentos sobre a educação física e a ginástica no Rio de Janeiro do século XIX

23/06/2019

Fabio Peres

No dia 27/09/1876, o jornal O Globo, em sua seção de Espetáculos, publicava um anúncio (de tamanho expressivo) do Circo Chiarini. O Circo se apresentaria em São Cristóvão às 20h daquela noite.

Logo abaixo de uma imagem de animais que se assemelhavam a zebras, o anúncio destacava “10 razões incontestáveis” para visitar o circo. Entre elas, argumentava-se que o espetáculo era:

*popular

* composto por artistas enciclopédicos;

* um divertimento para todas as inteligências;

Além desses motivos, por mais inusitado que possa parecer, o anúncio elencava como a 10ª razão para o público comparecer ao espetáculo o fato de o Circo Chiarini ser a verdadeira escola de educação física.

Afinal, desde a década de 1830 (ou seja, cerca de 40 anos até o espetáculo que seria realizado em São Cristovão), a família Chiarini se apresentava no Rio de Janeiro em circos de sua propriedade (como o Círculo Olímpico, inaugurado em 1837, no Largo da Ajuda, atual Cinelândia), depois renomeado Circo Olímpico).

O espetáculo era constituído de exercícios de força, ginástica e equilíbrio, bem como de saltos, lutas e apresentações equestres. Além também de malabarismo, dança, teatro, palhaços, entre outras performances.

E não poucas vezes a família usou a denominação “escola” para designar as práticas corporais de seu estabelecimento.

Por outro lado, cerca de 3 anos antes, em 1873, o renomado editor Alambary Luz do periódico A Instrução Pública, um dos primeiros periódicos brasileiros voltado especificamente para o campo da educação, não apenas defendia e celebrava a união das “vozes” da medicina e da pedagogia quando o assunto era a educação física e a ginástica (19/10/1873, p.385), como também demonstrava sua repugnância com a possibilidade de confusão entre “esta arte fundada nos sãos preceitos das sciencias médicas [isto é, a verdadeira ginástica] e o acrobatismo”. E conclui o seu texto: “ninguém espera saltimbancos”.

Mas afinal, quem era, naquele momento, portador legítimo da “verdadeira” educação física, da ginástica ou de outras práticas corporais?

 

Fantasmas e anacronismos

Um anacronismo comum na história da educação física e, em geral, das práticas corporais se refere a tentação de dotar certos protagonistas e instituições sociais do conhecimento do que aconteceu depois: como se aqueles atores sociais (investigados) antecipassem ou tivessem conhecimento do que eles se tornariam no futuro (NOVAIS, 2000). O historiador muitas vezes esquece que ele conhece a história, mas os personagens da história não.

Esse “pecado dos pecados, o pecado dentre todos imperdoável”, como o denominou Lucien Febvre (2009, p.33), embora nem sempre fácil de se desvencilhar no cotidiano da pesquisa[1],  consiste em “vestir” determinados atores  e contextos “com as roupas talhadas em outras épocas” e em outros lugares (ALENCASTRO, 1991).

Ainda caímos no contrassenso de pensar certos atores e instituições sociais com “roupas” de outras épocas e de outros lugares.

No caso da ginástica e da educação física, alguns estudos sugerem que era fraca sua manifestação no Rio de Janeiro do século XIX (MORENO, 2001), bem como enfatizam uma matriz médica e pedagógica na sua conformação (PAIVA, 2003; GONDRA, 2004).

Com frequência a história narrada sobre as práticas corporais não leva em consideração que as instituições relacionadas à educação, à medicina e às “forças” armadas no século XIX não eram nem como elas se auto representavam naquele momento, nem o que elas se tornariam posteriormente e tampouco que eram exatamente equivalentes às que existiam na Europa.

Ainda que discursivamente os agentes estatais, os médicos, bem como os militares e os educadores dissessem o contrário, as instituições a que pertenciam estavam longe de ser, pelo menos no século XIX, o que certas leituras apontam.

A questão não reside no fato da ginástica e da educação física terem sido incorporadas enquanto saber médico, pedagógico ou das “armas”.

De fato, saberes sobre a prática foram sendo paulatinamente incorporados e difundidos por atores e instituições que se atribuíam o domínio de tal conhecimento (como mostrado aqui, aqui e aqui). Mas esses eram mais heterogêneos e estavam mais em disputa do que determinadas narrativas parecem fazer acreditar: por exemplo, a “modernidade da ginástica” supostamente mostraria a “sua submissão, quase total, ao mundo da higiene, da medicina e da moral” (SOARES, 2009, p. 140).

Mesmo reconhecendo a pertinência de alguns desses argumentos – ou seja, as relações entre medicina, ciência, educação, ginástica e exercícios corporais diversos – o que estamos sugerindo é que elas não são suficientes para dar conta de entender a complexidade da presença da modalidade no cenário fluminense no decorrer daquele século.  Mas os pormenores dessa história ficarão para um próximo post.

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[1] Observa-se, aliás, que outros fantasmas rodam outras disciplinas, como é o caso do etnocentrismo na antropologia.


UM PIONEIRO CLUBE DO BARRETO (NITERÓI)

27/01/2019

Por Victor Andrade de Melo

Como já informei em outro post, em breve, se tudo der certo, lançarei um livro sobre a vida esportiva de Niterói. Este post é um extrato dessa obra, a parte dedicada a discutir uma pioneira agremiação que foi fundada no Barreto, um dos bairros mais interessantes da Cidade Sorriso.

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Foi em 1881 que surgiram, em Niterói, os primeiros indícios de fundação de uma agremiação dedicada às corridas a pé, uma reunião realizada no Congresso Literário Guarany. Em julho, realizou-se a primeira atividade do Clube Atlético Brasileiro, evento promovido nas terras de Domingos Moutinho – conhecido dirigente da Companhia Carris Urbano –, localizadas no Largo do Barreto, na ocasião situado à beira da Praia dos Coqueiros.

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Anúncio de corridas do Clube Atlético Brasileiro
O Fluminense, 17 jul. 1881, p. 4.

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Na ocasião, o Barreto começava a passar por um processo de transição, deixando de ser somente caracterizado pela existência de propriedades rurais e tornando-se mais urbanizado, alterações que se intensificariam mais ao fim do século, quando foram instaladas diversas iniciativas industriais.

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Em vermelho, o Largo do Barreto (atual Praça Enéias de Castro), local do Clube Atlético Brazileiro. Em azul, a Praia dos Coqueiros. Em laranja, o Cemitério do Maruí. Em lilás, a Ponta D´Areia. Em verde, o Hipódromo Guanabara.

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Uma das principais responsáveis pela dinamização do Clube Atlético Brasileiro foi a família Tutte do Couto. Proprietários de terras no bairro, talvez por sua ascendência britânica, alguns de seus membros tiveram forte envolvimento com o esporte. Frederico (futuramente um dos protagonistas da criação do Hipódromo Guanabara e do Clube Olímpico Guanabarense), Alberto, Henrique e Julieta atuaram como dirigentes, organizadores de eventos e competidores nas provas.

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Vista panorâmica do Barreto
Disponível em: <http://grupoprazerdejogar.blogspot.com/&gt;

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Outras importantes personalidades de Niterói ajudaram na dinamização e participaram ativamente das iniciativas do Clube Atlético Brasileiro, em geral, como usual, gente ligada à burguesia urbana da cidade. Entre os mais conhecidos, podemos citar os March, moradores do Barreto, filhos do médico Guilherme March -– o comerciante W. March, o tipógrafo Jorge March, os futuros médico e professor Adolfo March e o Edmundo March.

A agremiação manteve-se ativa entre os anos de 1881 e 1888, promovendo eventos que contavam com participação de grande público, majoritariamente gente de Niterói, especialmente do Barreto. A possibilidade de apostar, bem como a presença de uma banda de música, normalmente uma sociedade musical local, garantia a animação. As provas, para homens e mulheres, mesclavam corridas de diferentes distâncias e formatos com alguns jogos atléticos, como saltos.

Os competidores eram associados do Clube Atlético, ainda que, a partir de determinado momento, bastasse pagar uma taxa para qualquer interessado poder tomar parte nas contendas. Pelo pioneirismo, citemos os nomes das mulheres que mais usualmente disputaram provas, um envolvimento considerado um sinal de que a cidade progredia e passava a respeitar mais o novo protagonismo feminino: a já citada Julieta Couto; Amanda Peña, filha do comerciante e consul do Uruguai Eric Peña; a filha do maestro Oscar Guanabarino, Julieta Guanabarino.

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Cemitério do Maruí, Capela de São Pedro, 1918
Disponível: < https://www.facebook.com/OlharNictheroy/&gt;

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Os cronistas de Niterói costumeiramente saudaram as iniciativas do Clube Atlético, as considerando como contributos para a “educação física” da população, uma necessidade urbana relacionada às preocupações com a higiene e a saúde, sem as quais, no seu olhar, a capital não progrediria e superaria seu aspecto rural e colonial.

Além disso, seria uma feliz estratégia para combater o pernicioso ócio e ocupar, de forma adequada e produtiva, o tempo livre, como bem sugeriu o cronista Genesdio, o sempre atento Alfredo Azamor:

É com esses exercícios que se prepara uma geração de fortes e animosos cidadãos; é com esses clubes que se arrancam dezenas de jovens da ociosidade e do vício (…). Um abraço fraternal, pois, a esses moços que sabem atrair-se útil e honestamente, fortalecendo o corpo para revigorar o espírito. Parabéns a Niterói, parabéns ao Clube Atlético do Barreto (O Fluminense, 28 jul. 1882, p. 1).

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Anúncio do Clube Atlético Brasileiro
O Fluminense, 19 jun. 1885, p. 4

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Outro importante cronista, Luiz Fernandes, encarava as iniciativas como forma de combater o marasmo em Niterói. Para ele, uma cidade que aspirava consolidar-se como capital não podia ser tão rebelde a divertimentos, já que esses eram uma marca do desenvolvimento civilizacional. A seu ver, o esporte era uma diversão superior que poderia contribuir para forjar novos comportamentos da população niteroiense.

Para esse cronista, a grande contribuição da agremiação teria sido gestar um gosto pelos exercícios físicos, algo que estimulou a criação de dois outros clubes semelhantes. Um deles teve trajetória de curta duração e foi de menor alcance, ainda que não menos elogiado pelos periodistas. Dinamizado pelos alunos do Liceu Popular, o Clube Atlético Juvenil funcionou entre 1886 e 1888, sendo suas provas promovidas no Largo da Memória, atual Praça do Rink. A outra iniciativa causou maior impacto e deixou muitas marcas na memória de Niterói: o Clube Olímpico Guanabarense.

Isso é tema para outro post…ou para quem desejar ler o livro que, oxalá, logo estará disponível!

PS: Informações mais aprofundadas sobre o Clube Atlético Brasileiro em breve estarão disponíveis em um artigo aprovado na revista História da Educação (O espetáculo que educa o corpo: clubes atléticos na cidade de Niterói dos anos 1880).

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