Esportes, Rock, Juventude, Televisão e Cigarros Hollywood: uma combinação de sucessos

11/03/2024

André Alexandre Guimarães Couto

Olá, leitoras(es):

Durante algumas décadas, mais precisamente entre o final dos anos 1970 e os anos 1990, uma marca de cigarros era bastante popular no Brasil: a “Hollywood”. Era um produto da empresa Souza Cruz, empresa criada pelo português Albino Souza Cruz em 1903, na cidade do Rio de Janeiro.

Apesar do sucesso da marca ter atingido o ápice no final do século passado, sua criação data de 1931. O slogan “O Sucesso” veio logo a seguir, muito provavelmente em torno da associação do nome da marca com a indústria cinematográfica norte americana que tinha aberto um grande polo do entretenimento do cinema no distrito de Hollywood em Los Angeles, desde o início dos anos 1910. Os cinemas brasileiros, por sua vez, recebiam as produções de lá e os jornais do Rio de Janeiro publicavam os cartazes dos filmes, inclusive alguns eram acompanhados de crônicas e artigos sobre estas películas.

Na imagem abaixo, temos uma propaganda de 1962, na revista O Cruzeiro. Um casal branco, aparentemente de no mínimo classe média (devido aos seus trajes e cortes de cabelos e a frase “bom gosto” na peça publicitária) se divertem num jogo de cartas.

Imagem 1: Propaganda (1962). Fonte: https://museudapropaganda.com/2019/04/19/hollywood-1962/.

Todavia, apenas nos anos 1970 a marca completaria o seu slogan com “Isso é Hollywood, o Sucesso!” e se tornava aos poucos duplamente popular: era um dos cigarros mais baratos do mercado brasileiro e conseguia atingir um público cada vez mais jovem. Para tanto, as propagandas televisivas seriam fundamentais. A estratégia principal era veicular músicas em sua maioria voltadas para o rock ou pop internacional (principalmente o primeiro), todas na língua inglesa, com imagens de esportes de aventura, sempre recheadas de atores e figurantes jovens e felizes, além de paisagens exuberantes nos céus, mares e terra (ou, muitas vezes, combinando estes três elementos).

Apesar dos aparelhos de televisão no Brasil com imagens coloridas ainda ser um artigo de luxo nos anos 1970, na década seguinte o processo de produção destes equipamentos vai popularizando esta tecnologia entre as camadas menos abastadas da sociedade brasileira. Para uma parte significativa da população, a televisão era um dos principais veículos de acesso à cultura e, cabe lembrar, os anos 1980 seriam um momento de ampla divulgação de um novo formato de rock: o de arena. Para muitos jovens, o consumo do rock passava por poucas rádios dedicadas a este gênero musical (como a Fluminense FM, de Niterói) e, por vezes, nas propagandas televisivas, como as da marca Hollywood. O boom do rock nacional, com o surgimento de muitas bandas, justamente numa conjuntura de decadência da ditadura militar brasileira, cada vez mais contestada pela juventude estudantil, contribuiu bastante para aumentar o consumo de novos modelos musicais.

O fato é que propagandas de cigarros aliadas a temas esportivos não eram uma grande novidade na comunicação brasileira. Desde as primeiras décadas do século XX, algumas marcas já faziam esta associação, o que continuou a existir ao longo de todo o século seja por empresas nacionais, sejam as estrangeiras. A questão do hábito de fumar como distinção social era um elemento importante nos costumes e comportamentos e não raro podíamos ver peças publicitárias com discursos apoiados por profissionais da saúde referendando os respectivos produtos anunciados. Teríamos vários exemplos a apresentar, mas não cabe aqui tratarmos disso. Se não era uma ideia nova, por que, então, Hollywood fazia tanto sucesso a partir principalmente dos anos 1980? Acreditamos que a resposta está na combinação dos vários fatores que se apresentam no título deste post: a música do rock de arena, a imagem colada com os esportes de aventura, a ideia de uma “juventude vigorosa”, o acesso “fácil” e rápido pelo veículo da televisão (o que não excluía outras peças publicitárias, encontradas em outdoor, revistas e jornais, por exemplos, como podemos visualizar logo abaixo), tudo isso num caldeirão de contestação política, com ares de liberdade e experimentação de novos estilos musicais.

Imagem 2: Propaganda gráfica de Hollywood. Fonte: https://www.atelierecordar.com.br/single-post/2016/09/23/cigarros-hollywood.

Em nossa opinião, a fórmula deu tanto certo que o modelo foi replicado até o final dos anos 1990, mesmo em contexto histórico distinto. Inclusive, a marca patrocinou um dos principais festivais de rock no país, o Hollywood Rock (realizado no Rio de Janeiro e em São Paulo, de 1988 a 1996). E chegou a lançar 3 coletâneas de músicas veiculadas pela marca nas propagandas televisivas chamadas de “Isto é Hollywood”. No entanto, a partir daí, a propaganda de cigarros no Brasil passou cada vez mais ser contestada pelos órgãos públicos de saúde, a ponto da proibição de sua veiculação no início dos anos 2000.

Ao todo, foram aproximadamente 90 músicas/propagandas ao longo de três décadas, com destaque para nomes importantes do rock internacional como Van Halen, Whitesnake, The Police, Yes, Journey, Tina Turner, Rush e tantos outros. Para ter acesso à lista completa, sugiro dar uma olhada neste site: https://open.spotify.com/playlist/0VMZAyQ80vmDu1ZwcSVd9K?si=8990cb9962f74546&nd=1&dlsi=97c0a268aa8e4154. Nele, é possível ouvir quase todas elas.

É difícil escolher a propaganda mais interessante ou marcante (até porque, convenhamos, isso é deveras subjetivo). Mas, seguem estas aqui:

O vídeo acima é de uma banda inglesa chamada Phenomena e a canção “Did it all for love”, apresentada aqui na propaganda, apresenta as imagens de um grupo de jovens brancos (é o que podemos observar em todas as fontes que utilizamos para análise) em busca de aventura praticando rafting em um rio caudaloso. É uma típica imagem fílmica de cinema de aventura norte americano, inclusive o tipo físico dos atores reforçam estas primeiras impressões. Não temos informações suficientes sobre a produção destes clipes, mas não nos surpreenderíamos se a mesma estive por conta de agências de publicidade norte americanas. Por ora, é uma mera suposição. A letra da música, apesar do teor romântico, traz expressões que colam com as belas imagens da prática esportiva/paisagens da natureza, como, por exemplo: “Nós atiramos os dados/Jogamos o jogo/Fizemos tudo pelo amor/Faremos tudo de novo”. O sucesso (praticamente o único desta banda/projeto inglesa, que aqui contou com a participação de John Wetton, do Asia) de 1987, chegou para a maioria do público brasileiro via peça publicitária da Hollywood. Hoje, a música ainda é um marco do rock pop dos anos 1980.

Outra música importante foi “Break through the barrier”, interpretada pela norte americana Tina Turner em 1990. Aqui a propaganda entra literalmente em outra paisagem: a neve.

Percebe-se que o modelo de apresentação é mantido: grupos de jovens aventureiros em diálogo cênico com a natureza exuberante. Uma corrida de snowmobile (conhecido como moto de neve) demonstrada como uma prática esportiva emocionante e vigorosa, com direito a saltos na neve, tendo ao fundo uma bela vegetação e sob um sol brilhante. Não por acaso, um dos veículos que aparece em destaque é totalmente da cor vermelha, refletindo a principal tonalidade da marca do cigarro. A letra escrita por Andre Cymone e Gardner Cole trata de superação (não fica muito claro se é por conta de um romance), mas, mais uma vez traz uma boa sintonia com as imagens apresentadas, como no trecho: “Como uma fênix que surge/Não há nenhuma montanha muito alta/Eu continuarei empurrando até que eu penetre a barreira”. Um detalhe importante: esta canção fora gravada por Tina Turner para a trilha sonora do filme “Dias de Trovão”, que narra a história de um piloto de corridas tentando ultrapassar suas barreiras pessoais e esportivas. No Brasil, o comercial popularizou bastante a música, pois a mesma não se encontrava em nenhum álbum além da trilha sonora original. No final da peça, já percebemos a mudança na legislação brasileira, com a mensagem do Ministério da Saúde advertindo sobre os males trazidos pelo fumo. Em outro filme publicitário da marca, Tina também interpretaria “The Best” (1989).

Para finalizarmos, trazemos uma peça de 1987, que lançava o produto Hollywood Lights, um cigarro mais “leve” e sofisticado. Para tanto, a música “When I see you again”, da banda anglo-americana Fleetwood Mac foi utilizada.

A “leveza” do produto é demonstrada pela prática do balonismo combinada com a asa delta, duas modalidades que trazem a ideia de romper limites, com aventura e beleza, mas com o sempre diálogo com a natureza também aqui exuberante. Interessante é que o início do filme apresenta o grupo de aventureiros jovens em veículos esportivos terrestres como motos e jipes (com cores vermelhas, é claro) antes de escolherem o melhor local para o lançamento das práticas aéreas. Aliás, a cor vermelha também é enfatizada nas jaquetas dos atores, nos balões e nas asas delta, apesar do azul e branco também aparecerem, pois o produto também tinha estas cores. O início da peça traz um ator explicando as qualidades do cigarro, de forma quase pedagógica. Por fim, aqui temos o aviso do Ministério da Saúde mais discreto, num retângulo dentro da cena final do filme. Como já dissemo, a partir dos anos 1990, isso mudaria de forma bem peculiar, principalmente visualmente.

Enfim, a marca Hollywood, apesar de ter sido interrompida por questões de adequação comercial em 2020, deixou raízes importantes para além de um público fumante. Ou seja, conseguiu associar a divulgação da marca com músicas que deitaram raízes na memória afetiva dos que foram telespectadores nos anos 1980 e 1990. Canções que traziam a ideia de uma juventude aventureira e apreciadora de uma natureza vibrante e bela, mesmo que distante da realidade social e econômica dos brasileiros.

Observações:

A empresa Souza Cruz hoje é chamada de BAT Brasil e é subsidiária da British American Tobbaco.

Referências:

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Ascensão e queda da propaganda tabagista. (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/ascencao-e-queda-da-propaganda-tabagista/. Publicado em: 30 mai. 2011.


Estádio Alfonso López Pumarejo e Estádio Nemesio Camacho (El Campín): as praças esportivas dos Jogos Bolivarianos de 1938

04/12/2023

Por Eduardo de Souza Gomes – eduardogomes.historia@gmail.com

No cenário de desenvolvimento dos primeiros Jogos Bolivarianos em 1938, os principais fatores que podem ser destacado e relacionados à movimentação econômica foram, sem dúvidas, a criação de dois estádios na cidade de Bogotá: o Estádio Alfonso López Pumarejo (Estádio da Cidade Universitária), localizado na Cidade Universitária da Universidad Nacional de Colômbia – Sede Bogotá; e o Estádio Nemesio Camacho (El Campín), uma das maiores e mais conhecidas sedes esportivas do país até a atualidade.

O Estádio da Cidade Universitária, criado em proporções menores se comparado ao El Campín e com uma proposta de ser, de fato, um estádio universitário, foi importante por sediar diversas modalidades do referido evento, tal como reconfigurar a capital colombiana com mais uma possibilidade de espaço para a construção de distintas formas de sociabilidade a partir do esporte.

Estádio da Cidade Universitária na inauguração dos Jogos Bolivarianos de 1938. Foto: Universidad EAFIT.

Já no El Campín, mais do que construir novos espaços de sociabilidade e de prática para distintas atividades, foi marcante a necessidade de se pensar o esporte enquanto uma possibilidade de espetáculo. Pensou-se no futebol como parte de um mercado. Ou seja, dentro de um padrão relacionado à indústria cultural, ocorria a interligação do esporte com os padrões capitalistas da modernidade pensada na Colômbia.

El Campín. Foto: Conmebol

Clark entende que essa espetacularização no cenário contemporâneo se trata de

[…] uma tentativa – parcial e inacabada – de trazer ao campo teórico uma série variada de sintomas em geral tratados pela sociologia burguesa ou pela esquerda convencional como etiquetas anedóticas aplicadas de forma um tanto leviana à velha ordem econômica: “consumismo”, por exemplo, ou “sociedade do lazer”; a emergência dos meios de comunicação de massa, a expansão da publicidade, a hipertrofia das diversões oficiais (CLARK, 2004, p. 43).

As motivações para a efetivação da construção daquelas que se tornariam as duas principais praças esportivas da capital, se deu por distintas questões. Dentre os interesses envolvidos e motivações oriundas da construção dos dois estádios, David Quitián Roldán  destaca que

Na ocasião, dizia-se: Em relação ao esporte, basta dar alguns indícios: […] a construção do estádio National University (parte de um complexo projeto de complexo esportivo) obedeceu à ideia inglesa, aperfeiçoada pela tradição norte-americana, de um campus onde a energia da juventude será canalizada para a combinação de estudo e agonismo sublimado pelo esporte, que de fato é a base de todos os campis desses países […]. Ao contrário, ninguém menos que Jorge Eliécer Gaitán, com sua visão populista e como prefeito de Bogotá, resolveu a polêmica sobre os rumos do esporte ao insistir, contra a ideia do governo, em colocar um polo popular alternativo ao esporte da capital, com a criação do estádio Nemesio Camacho, mais conhecido como El Campín. Foi uma decisão de encruzilhada (QUITIÁN ROLDÁN, 2009, p. 3, tradução nossa).

Essa perspectiva de consolidar um mercado via esporte se materializava no país desde a década anterior, a partir de preocupações diversas e questionamentos que surgiam na população de então. Ruiz Patiño destaca, ao analisar a Ley 80, legislação que teve como objetivo institucionalizar a prática da Educação Física e dos esportes no país, que

A lei foi necessária graças às diferentes preocupações que emergiram de forma decisiva de diferentes setores da população: 1) a chegada à Colômbia da pedagogia moderna e da nova escola, com o Ginásio Moderno à frente; 2) a modernização do ensino religioso em espaços populares de escolas, como as instituições La Salle; 3) a importância do esporte para a higiene, impulsionado pela medicina, e 4) o debate sobre a raça e a importância de evitar sua “degeneração”, por meio do esporte (RUIZ PATIÑO, 2009, tradução nossa).

O olhar das elites do país nos anos 1930, no que se diz respeito à resolução de conflitos e tensões, foi a de considerar parâmetros entendidos como “mais modernos e civilizados” enquanto caminhos, deixando de lado a violência e os conflitos de outrora para, assim, dar lugar a um caminho mais diplomático e negociador (BENNINGHOFF, 2001).

Aprofundando tal análise, é possível inferir que o cenário econômico não se desconectava dos caminhos políticos do país. E, em 1938, os interesses do governo passavam diretamente pelo esporte e seus equipamentos. Tentando vincular Bogotá a uma ideia de desenvolvimento acadêmico e científico, buscou-se assim estabelecer um parâmetro diplomático onde a capital do país fosse vista como um modelo em distintos quesitos, inclusive acadêmicos: “López acreditava que Bogotá deveria estar intimamente ligada à vida da universidade e acreditava que manter o estádio inserido nesse espaço era um bom pretexto para alcançá-lo.” (ACOSTA, 2013, p. 34 e 56, tradução nossa).

Não à toa, foi nesse cenário que o governo comprou os prédios e espaços necessários, então pertencentes a José Joaquim Vargas, para a construção da Cidade Universitária da Universidad Nacional em Bogotá, local onde também foi construído o estádio universitário (NIÑO, 2003, p. 172).

A planta do local integrava dois estádios: um para o futebol e outro para o atletismo que, com o tempo, acabaram sendo fundidos em um único projeto, até pela questão da viabilidade econômica (NIÑO, 2003, p. 56). Inclusive, um espaço para a construção de um campo de beisebol, esporte que se consolidou com maior força na região do caribe do país, havia sido pensado a priori. As obras do estádio Alfonso López Pumarejo se iniciaram em setembro de 1937, tendo sido concluídas para as competições em junho de 1938. Algumas dificuldades ocorreram, como cita Acosta:

Por sua vez, o estádio da Universidade Nacional também enfrentou dificuldades políticas, como foi o caso do pretexto que Carlos Arango Vélez deu para sua renúncia à prefeitura em 6 de maio de 1936: a localização da cidade universitária contribuiu para a valorização das terras vizinhas da família presidencial, o que representava “oportunismo” e “desonestidade”. Gaitán, na época, usou os mesmos motivos de Arango para se opor à construção de uma arena esportiva que rivalizasse com a da cidade (ACOSTA, 2013, p. 57, tradução nossa).

No caso de El Campín, é importante destacar que o projeto para a construção de um “Estádio Nacional” é anterior ao de consolidação dos Jogos Bolivarianos enquanto evento festivo no país. Já era previsto na Ley 12 de 1934, que tinha como objetivo a reorganização do Ministério de Educação da Colômbia, dialogando com a Ley 80 que versava sobre os esportes no país, que se construísse um estádio de grande porte na Colômbia. Destaca Acosta que

Esta lei cria o quadro legal que permite, a 10 de setembro do mesmo ano, à Câmara Municipal nomear “uma comissão que está em parceria com a Comissão Nacional de Educação Física (CNEF) para estudar o procedimento a adoptar para realizar a criação do Estádio Nacional.” (ACOSTA, 2013, p. 53, tradução nossa).

No mesmo ano, em 17 de novembro, um comunicado foi enviado ao prefeito de Bogotá, Junior Pardo Dávila, onde foi solicitado pela CNEF que “ao Conselho Pró-Centenário da cidade que inclua nas obras urbanas os projetos de um Estádio ou praça esportiva, com um orçamento mínimo de $ 400.000 (quatrocentos mil pesos)” (ACOSTA, 2013, p. 53, tradução nossa).

Em 1935, foi criada uma junta destinada a desenvolver o projeto de construção do estádio. De início e com o aval presidencial, se pensou em construir uma praça esportiva que se vinculasse à Universidad Nacional (que depois, seria o Estádio da Cidade Universitária). Porém, a proposta de construir um espaço esportivo universitário não foi bem aceita por todos. Por exemplo, Jorge Eliécer Gaitán, liderança histórica do Partido Liberal e um dos maiores nomes desse campo político até sua morte em 1948, se opôs à parte desse olhar então defendido por López Pumarejo. Entendia que o estádio deveria ir além do mundo acadêmico, sendo assim também destinado ao povo e fazendo rodar, economicamente e culturalmente, a vida social dessa parcela da sociedade.

Não que o Estádio da Cidade Universitária, que também veio a ser construído, se destinasse apenas ao público acadêmico. Mas pelo menos no âmbito do discurso e das narrativas, a defesa daqueles que eram contrários efetivava-se no sentido de apontar para uma possível predominância do público das universidades em algo que deveria “ser de todos”. Por isso, foram para frente as duas ideias, já que vincular o esporte às universidades era também parte importante do projeto de López Pumarejo. Destaca Zea, que “Gaitán diminuiu o tom polêmico, quando o terreno foi doado para a construção do estádio de Bogotá.” (ZEA, 1987, p. 34, tradução nossa). Acosta destaca que a temática do estádio voltou à tona em

3 de janeiro de 1936, quando o CNEF comunica ao Ministro da Educação, Jorge Zalamea, que “Don Luis Camacho M. [um aliado da causa de Gaitán] deu a Bogotá 43 alqueires de graça para construir o Estádio”. Em seguida, no dia 6 de fevereiro, é processada a doação do terreno. Em um gesto de reciprocidade, a Câmara lhe envia uma carta de agradecimento informando que o estádio terá o nome de seu pai, Nemésio Camacho. Diante do gesto de generosidade do empresário, a classe trabalhadora decidiu não ficar para trás e por isso a Unión Deportiva Obrera (UDO) aprovou por unanimidade em sua sessão de 6 de fevereiro uma “doação feita para o estádio de Bogotá”. Em uma sessão de 14 de fevereiro, o Conselho rejeitou a oferta dizendo que “por ordem presidencial [ele] foi ordenado a arquivar (ACOSTA, 2013, p. 54, tradução nossa).

Gaitán se esforçou para conseguir 350 mil pesos em agosto de 1936, visando a construção do estádio. A partir de um Decreto (n. 268), ficou destinada tal verba para a construção do “estádio nacional”, tendo os atrasos em sua obra gerado manifestações nas ruas de Bogotá.

Junto com seus dois estádios, inaugurou cinco playgrounds para crianças de bairros populares e foi definido um período de quatro anos para comprar “a arena de touros ao custo de 190.000 pesos, para usá-la no tênis, basquete e concertos” (El Tiempo, 15 de maio de 1938, p. 7, tradução nossa).

A agenda esportiva passou, assim, a fazer parte também de uma agenda do entretenimento, pautada por questões relacionadas diretamente ao mercado do país. O esporte em geral, como não foi diferente em outros cenários em que a ideia de modernidade fruto da industrialização burguesa foi consolidada, se fez presente neste processo. Com isso, a consolidação da construção de equipamentos culturais diversos (como os estádios) e outras obras abertas às questões do lazer, são explicitações desse processo. Como destaca Acosta sobre o El Campín:

O palco representou aquela integração “uteromimética” de que fala Gabriel Restrepo. Nesse sentido, o estádio El Campín continua a ser um “útero” acolhedor, mas Alfonso López tornou-se um belo “óvulo” dentro de um “útero” maior: a alma mater. Podemos dizer também que, embora o esporte tenha se tornado uma diversão para a população desde os anos 20, com o boxe, e nos anos 30, com o atletismo e o futebol, entre outros; a construção dos estádios significou a transição definitiva de Bogotá para o esporte como espetáculo, que talvez seja sua característica mais visível em nossos dias e constitui uma das expressões mais importantes das sociedades modernas (ACOSTA, 2013, p. 58, tradução nossa).

Já na inauguração dos jogos, o Estádio da Cidade Universitária recebeu um grande público, digno de grandes eventos mundiais, não só no esporte, mas também de eventos como festas cívicas ou diplomáticas. Importante como marco e pontapé inicial dos jogos, o estádio se caracterizou como um dos pontos altos dos Jogos Bolivarianos organizados na Colômbia, tendo logo em sua primeira aparição alcançado um público de mais de vinte mil pessoas (El Siglo, 06 de agosto de 1938, p. 9). Como é destacado no calor do momento pelo periódico bogotano El Siglo,

Mais de 20.000 pessoas compareceram ao Estádio Ciudad Universitaria para testemunhar a abertura dos Jogos. […] Os Jogos Esportivos Bolivarianos foram solenemente inaugurados ontem à tarde no amplo estádio universitário. Mais de seiscentos atletas que participarão das competições bolivarianas, desfilaram em frente à tribuna presidencial – O doutor Alfonso López declarou solenemente inaugurados os jogos – A apresentação no estádio das delegações esportivas – O emocionante ato de soltar os pombos que partiram na direção aos países bolivarianos, anunciando a abertura dos jogos – As cerimônias formais realizadas – A exibição das bandeiras, aos acordes dos hinos dos países particulares (El Siglo, 06 de agosto de 1938, p. 9).

Tal público explicitou muito mais que a euforia dos colombianos pelo início dos jogos e a paixão desse povo pelos esportes. Demonstrou também a força econômica que um evento desse porte poderia gerar, sendo mais do que necessário, se o lucro também for um dos objetivos da festa, se consolidar localidades e espaços destinados a esses fins, como eram os recém-criados El Campín e o Estádio da Cidade Universitária.

As partidas eram sempre muito exaltadas pela imprensa, que também destacava a beleza dos estádios e a importância desses para a efetivação dos jogos. Um exemplo foi a partida entre Peru, que seria o campeão do torneio de futebol, com a Colômbia, por essa mesma modalidade. Tendo inaugurado o certame para os colombianos, alguns periódicos aproveitaram-se do fato de ser esse um dos jogos mais esperados até então, para exaltar parte da organização e estrutura construída pelo país para o evento, como o próprio estádio El Campín. Como vemos nas páginas de El Espectador:

Nada menos que 50.000 pessoas assistirão esta manhã à inauguração do grande estádio municipal <El Campín>, uma das belas conquistas inauguradas no centenário. […] Depois que as bandas tocaram o Hino Bolivariano, escrito por Alfredo Gómez Jaime, o Hino Nacional foi tocado na entrada do presidente com sua comitiva. O Luégo deu início ao desfile da Educação Física e da guarda olímpica […]. A organização do trânsito foi digna de admiração e a que se implantou para que o público pudesse entrar e sair com conforto (El Espectador, 15 de agosto de 1938, p. 3, tradução nossa).

Assim, fica notório o quanto o público foi importante para se consolidar os interesses, não só diplomáticos, mas também econômicos dos agentes fomentadores do evento. Se na inauguração do Estádio da Cidade Universitária teve-se aproximadamente 20.000 espectadores, em El Campín esse número mais do que dobrou, deixando explícito a formação de um “mercado ao redor” do evento esportivo que se desenvolvia, característica essa que foi importante para a consolidação do campo esportivo colombiano.

Referências bibliográficas

ACOSTA, Andrés. Elementos sociohistóricos intervinientes en la construcción de los estadios Alfonso López e El Campín para los primeros Juegos Bolivarianos: Bogotá, 1938. Revista Colombiana de Sociologia, Bogotá, v. 36, n. 01, p. 43-62, jan-jun 2013.

BENNINGHOFF, F. ¿Cuánta tierra civilizada hay en Colombia? Guerras, fútbol y élites en Bogotá 1850-1920. (Trabajo de grado),Departamento de Historia, Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2001.

CLARK, T.J. A pintura da vida moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

NIÑO, C. Murcia. Arquitectura y Estado. Contexto y significado del Ministerio de Obras Públicas. Colombia 1905-1960. Bogotá: UniversidadNacional de Colombia, 2003.

QUITIÁN ROLDÁN, David Leonardo. Gaitán, el fútbol y la Universidad Nacional. En Asciende, Memorias Cátedra Jorge Eliécer Gaitán. Sociología 50 años. Clase 9. Universidad Nacional, Bogotá, 2009, p. 2-15.

RUIZ PATIÑO, Jorge Humberto. La política del sport: elites y deporte en la construcción de la nación colombiana, 1903-1925. 2009. 139 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Políticos) – Pontificia Universidad Javeriana, Bogotá, 2009.

ZEA, S. 1987. Esponjas del Caribe Colombiano. Bogotá: INVEMAR, 1987.


Esportes de alto rendimento na Literatura de Cordel

04/12/2023

Elcio Loureiro Cornelsen

Nos últimos tempos, temos nos dedicado a estudos sobre a representação de esportes e práticas corporais na Literatura de Cordel. Até o presente momento, desses estudos resultaram os artigos “O futebol na Literatura de Cordel” (CORNELSEN, 2021), “A capoeira na Literatura de Cordel” (CORNELSEN, 2023) e, respectivamente, “O circo na Literatura de Cordel” (CORNELSEN, 2023).

Dando sequência a esses estudos, nosso enfoque recai neste artigo sobre a representação de esportes de alto rendimento na Literatura de Cordel, em folhetos publicados nas últimas duas décadas. Para isso, selecionamos os seguintes folhetos que formam nosso corpus de análise: Vanderlei Cordeiro de Lima: o papa-léguas do mundo (2004), de Manoel Santamaría, e Álvaro Cezar: o Ironman baiano (2011), de Antônio Vieira.

Inicialmente, devemos considerar a definição de esporte de alto rendimento. De acordo com Rafaella Cristina Campos, Mônica Carvalho Alves Cappelle e Luiz Henrique Rezende Maciel, baseados em estudo de Armindo Laissane Dimande, “[c]aracteriza-se o esporte de alto rendimento como estruturado, orientado a uma tarefa e com demanda de comprometimento e esforço, sendo esse o nível que define o esporte profissional, bem como o ápice da carreira esportiva” (CAMPOS; CAPPELLE; MACIEL, 2017, p. 33). Já Mariana Hollweg Dias e Edson Luiz André de Sousa ressaltam que “[t]emos então, nesse tipo de prática esportiva, a busca de um ideal de desempenho, um ideal de perfeição a ser atingido o qual só um corpo perfeitamente treinado, delineado, potente é capaz de atingir” (DIAS; SOUSA, 2012, p. 735-736).

A seguir, analisaremos brevemente os dois folhetos indicados, levando em conta que se trata de “folhetos noticiosos” (MEYER, 1980, p. 3) ou “folhetos de circunstância” (MAXADO, 1980, p. 53-54), pois decorrem do apelo que determinados eventos e celebridades do mundo esportivo têm nos meios de comunicação e nas redes sociais. Segundo Dias e Sousa (2012, p. 731), “[a] grande expressividade do esporte de alto rendimento em nossa cultura fica evidente em razão do destaque dado pela mídia a campeonatos e ligas nacionais e mundiais relacionados aos diferentes tipos de esportes e, em especial aos Jogos Olímpicos com todo o seu glamour”.

O esporte de alto rendimento no folheto de cordel Vanderlei Cordeiro de Lima: o papa-léguas do mundo

Iniciemos nossa análise pelo folheto Vanderlei Cordeiro de Lima: o papa-léguas do mundo (2004), do cordelista mineiro Manoel Santamaría (Manoel Alves de Souza), autor de folhetos como Constituição e Constituinte, A chegada de Tancredo no céu, Drummond, o poeta de Itabira e A volta do galinho, entre outros. Uma das primeiras estrofes de Vanderlei Cordeiro de Lima: o papa-léguas do mundo ratifica exatamente esse caráter de “folheto noticioso” ou “de circunstância”, mencionado anteriormente: “Pela trilha da notícia/ Que anda na boca do povo/ Eu pego o tema no ar/ E abordo de um jeito novo./ O poeta cordelista,/ Ao seu modo, é um cronista,/ Se alguém duvidar eu provo.” (SANTAMARIA, 2004, p. 1) Aliás, como pode ser notado, trata-se de um folheto composto por estrofes em septilhas, métrica em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, rimas nos versos 2, 4 e 7, e rimas paralelas nos versos 5 e 6, segundo a estrutura a-b-c-b-d-d-b, uma das formas tradicionais de composição na literatura de cordel, em diálogo com o cancioneiro popular.

A capa do folheto de Antônio Vieira

(disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176 . Acesso em: 01 dez. 2023)

Já em termos de conteúdo, como o próprio título enuncia, trata-se de um folheto dedicado a Vanderlei Cordeiro de Lima (1969*), ex-atleta brasileiro, bicampeão da Maratona nos Jogos Panamericanos, nas edições de Winnipeg em 1999 e Santo Domingo em 2003, e Medalha de Bronze na Maratona, nos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004, maior feito em sua vitoriosa carreira. Certamente, tal feito inspirou o poeta popular Manoel Santamaría na composição de seus versos: “Venho versejar a saga/ De um atleta de verdade./ A luta de um campeão/ Contra a adversidade,/ E os tropeços na jornada,/ Para traçar sua estrada,/ E abismar campo e cidade.” (SANTAMARIA, 2004, p. 2).

O folheto Vanderlei Cordeiro de Lima: o papa-léguas do mundo é marcado por forte tom crítico em relação ao descaso de governos brasileiros com políticas públicas que promovam o esporte em geral e, sobretudo, o esporte de alto rendimento. Sem dúvida, conforme a seguinte estrofe, aspectos biográficos do ex-maratonista colaboram para evidenciar esse quadro: “Vanderlei Cordeiro Lima,/ Um ex-cortador de cana,/ Cravou seu nome com sangue,/ Lágrimas, suor e… gana./ De bóia-fria ao calor/ Passional do torcedor…/ Carreata e caravana.” (SANTAMARIA, 2004, p. 2) Trata-se, pois, daquele que teve de superar as adversidades para se tornar um atleta de ponta. Nos versos do poeta, seriam casos excepcionais de superação, que chamam à atenção por sua suposta singularidade frente à falta de investimento de verba pública em programas que visem a elevar o esporte de alto rendimento no país: “O atleta corre atrás/ Do COB, implora favor./ Um Governo vota a verba,/ O outro não dá valor,/ Mas salvam bancos falidos/ Por diretores bandidos/ Com bilhões no exterior.” (SANTAMARIA, 2004, p. 7) É algo, aliás, que parece ser padrão em relatos de ex-atletas, como destacam Campos, Cappelle e Maciel (2017, p. 39) em estudo realizado em 2017: “Fica claro que a carreira esportiva, no contexto estudado, é precária, uma vez que os ex-atletas, ao se engajar na prática esportiva não disponibilizavam de condições financeiras suficientes para se dedicar exclusi­vamente a essa carreira”. Ainda segundo esses autores, a carreira de atleta de alto rendimento prevê algumas fases pelas quais, certamente, o protagonista do folheto em questão teve de passar:

A carreira esportiva engloba diversas fases, do início ao alto rendimento até a finalização da carreira competi­tiva. Os atletas passam por processos de captação e sele­ção, longos períodos de formação envolvendo treinamento e competições, comprometimento das relações sociais e familiares, adaptação física de acordo com a modalidade praticada, socializam-se no ambiente esportivo, alcançam o alto nível e, finalmente, cessam a prática sistemática do desporto de forma voluntária (autônoma) ou compul­sória (lesão, por exemplo). (CAMPOS; CAPPELLE MACIEL, 2017, p. 33)

Sem dúvida, a formação do atleta de alto rendimento demanda apoio financeiro, seja de patrocinadores, clubes, federações e órgãos públicos governamentais associados ao Esporte. No caso do folheto de Manoel Santamaría, a crítica recai tanto sobre governos, quando sobre o Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Cabe, entretanto, um esclarecimento: conforme bem aponta Gabriela Klein Mees (2014, p. 43), “[o] COB é uma entidade de organização não governamental que atua no desenvolvimento dos esportes olímpicos no Brasil, com o foco nas Confederações”. Por certo, desde o contexto dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, muito se alterou em relação a políticas públicas de incentivo ao esporte de alto rendimento no Brasil, que nos permite relativizar a crítica que o poeta faz tanto ao COB, quanto aos Governos Federais até 2004.[1] Em contraponto a essa visão, entretanto, Thatiana Stacanelli Teixeira e Mônica Carvalho Alves Cappelle são categóricas em afirmar que “[a] ausência de incentivos e garantias do Estado foi percebida como um dos inúmeros empecilhos para profissionais da carreira esportiva, pois não havia e ainda não há regulamentação sobre aposentadoria e direitos trabalhistas, assim como não havia progressão profissional, sendo o ápice chegar ao nível de alto rendimento” (TEIXEIRA; CAPPELLE, 2023, p. 95).

Todavia, o maior destaque nesse folheto de Manoel Santamaría recai sobre o episódio da Maratona nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, quando Vanderlei Cordeiro de Lima liderava a prova e foi interceptado por Cornelius “Neil” Horan, ex-padre irlandês que invadiu a pista, agarrou o atleta brasileiro e o impediu de prosseguir, quando estava cerca de 150 metros à frente do segundo colocado. Um espectador grego, Polyvios Kossivas, conseguiu libertar Vanderlei dos braços de Horan, de modo que o atleta retornou à pista, mas não conseguiu manter seu rendimento e foi ultrapassado por outros dois atletas. Não obstante o ocorrido, o maratonista conseguiu concluir a prova e chegar em 3º lugar, ganhando a Medalha de Bronze, assim referenciado pelo poeta em seus versos: “Maratonista chocante,/ Vanderlei respirou fundo./ Voltou à pista buscando/ Retornar cada segundo,/ Ganhou bronze em vez de ouro,/ Mas o seu maior tesouro/ Foi conquistar todo mundo.” (SANTAMARIA, 2004, p. 4)

Devido ao ocorrido, Vanderlei Cordeiro de Lima recebeu premiação especial do Comitê Olímpico Internacional: “Sexto atleta em toda a História/ A receber a medalha/ Pierre de Coubertin,/ Do COI, que abrandou a falha:/ Para quem merece o louro/ No pico do pódio, em ouro,/ Isso é apenas migalha.” (SANTAMARIA, 2004, p. 3) Mesmo assim, o poeta reconhece o feito do atleta e seu significado simbólico para o esporte mundial: “Foi a vitória do esporte/ E da determinação./ Ainda reencontrou/ durante a premiação/ O grego que fez História,/ Coroando a trajetória/ Desse atleta campeão.” (SANTAMARIA, 2004, p. 5)

O esporte de alto rendimento no folheto de cordel Álvaro Cézar: o Ironman baiano

O segundo folheto de cordel que aborda o tema do esporte de alto rendimento, selecionado para análise neste breve estudo, é Álvaro Cezar: o Ironman baiano (2006), do compositor, poeta e cordelista Antônio Vieira (1959-2007), natural de Santo Amaro, no Estado da Bahia, e autor de folhetos como Popó do Maculelê de Santo Amaro, Histórias que o povo conta, Acara-jé, o mesmo que comer fogo, entre outros. Conforme o título indica, o protagonista desse folheto é o atleta Álvaro Cezar, conterrâneo de Antônio Vieira e atleta que disputou e concluiu as provas do triathlon no Mundial de 1994, realizado no Havaí. Os seguintes versos destacam o desempenho de Álvaro Cezar: “Mas destaque ao triathlon/ Nossa perna dá e leva/ Conhecimento pra todos/ Que no poema navega/ Nessa tal modalidade/ Uma das autoridades/ É o Ironman Álvaro Cezar.” (VIEIRA, 2006, p. 3). Nota-se, aliás, que esse folheto é composto por estrofação em septilha, métrica em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, e estrutura a-b-c-b-d-d-b, com rimas nos versos 2, 4 e 7, e rimas paralelas nos versos 5 e 6, dialogando também com a composição do cancioneiro popular.

A capa do folheto de Antônio Vieira

(disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176 . Acesso em: 01 dez. 2023)

Modalidade que engloba provas de longa distância de natação, ciclismo e corrida, a prova de Ironman surgiu em 1978, quando foi realizada a primeira competição da modalidade, por iniciativa de John Collins (1936*), capitão da marinha norte-americana, no Havaí. O poeta popular também dedica alguns versos a esse pioneiro e ao surgimento da competição: “Qual atleta é mais completo?/ Será o maratonista?/ Ou seria o nadador?/ Quem sabe até o ciclista…/ Me respondam, não enrolem!/ Disse o comandante Colins/ Certa vez numa entrevista.// Um desafio inconteste/ Foi derivado daí/ Uma espécie de loucura/ 77, Havaí/ Correr em Honolulu/ Pedalar em Oahu/ Atravessar Waikiki.” (VIEIRA, 2006, p. 4). A partir de então, seria realizado o Campeonato Mundial de Ironman, de quatro em quatro anos, no Havaí, sendo que a marca “Ironman” é propriedade da World Triathlon Corporation (WTC).

Sem dúvida, o Ironman exige do atleta excelente preparo físico, resistência e elevado desempenho. Esse aspecto é assim expressado nos versos do poeta: “Para ser um Ironman/ Não basta apenas vontade/ Tem que ter preparação/ Muito vigor e idade/ Preparação adequada/ Pra não dar com os burros n’água/ Ter que parar na metade” (VIEIRA, 2006, p. 4). O poeta não deixa também de destacar todo o esforço e preparo que tal modalidade exige dos atletas: “Um atleta que aspira/ Um dia ser Ironman/ No preparo específico/ Não pode ter nhen-nhen-nhen!/ Pelo menos por dois anos/ Se dedicando, treinando/ Pro resultado obter” (VIEIRA, 2006, p. 4).

Por sua vez, cabe ressaltar também que, nas primeiras estrofes do folheto Álvaro Cezar: o Ironman baiano, o poeta remonta à Grécia Antiga como berço dos jogos atléticos na cultura ocidental: “A história que vou contar/ Remonta a antiguidade/ Precisamente a Grega/ Base da sociedade/ Grécia de Esparta e Atenas/ Duas cidades helenas/ De muita notoriedade// A Grécia que no passado/ Teve na competição/ Principal característica/ Da vida do cidadão/ Os jogos faziam parte/ Ao lado, também da arte/ Da própria religião” (VIEIRA, 2006, p. 1). Como apontam Campos, Cappelle e Maciel, “[p]ode ser observado através da história que atletas de destaque são tratados desde a Grécia Antiga como pessoas de des­taque na sociedade, sendo que, em períodos atuais, esse destaque traz inclusive, um grande retorno financeiro, em certas modalidades.” (CAMPOS; CAPPELLE; MACIEL, 2017, p. 34)

Portanto, a associação que o poeta estabelece entre a Grécia Antiga e o triathlon moderno se pauta por tal destaque que atletas alcançam na sociedade desde os primórdios de práticas esportivas na cultura ocidental. Nesse sentido, não podemos deixar de pensar nas odes do poeta grego Píndaro (518-467 A.E.C.) dedicadas a atletas vencedores nas mais variadas modalidades disputadas em Olímpia. Um exemplo disso são os versos da “Olímpica XIII”, dedicados a Xenofonte de Corinto, vencedor na corrida do estádio e no pentatlo em 464 A.E.C.: “Suas vitórias em Olímpia/ parecem já ter sido anteriormente contadas;/ e as futuras eu poderia claramente celebrar depois./ […] E as vitórias sob o cume do Parnaso/ são seis; e tão numerosas em Argos e em/ Tebas; e aquelas que o altar soberano de Zeus Lício,/ que reina entre os Árcades, testemunhará.” (PÍNDARO, 2016, p. 153) Trata-se, pois, de versos marcados pelo discurso epidítico de enaltecimento, algo que, guardadas as devidas proporções, se revela também nos versos do cordelista Antônio Vieira: “Ironman, homem de ferro/ Aquele que superou/ Os limites de si próprio/ O clima, cansaço, a dor/ Nadou e alcançou a meta/ Pedalou a bicicleta/ Correu e a pé chegou” (VIEIRA, 2006, p. 3). Inclusive, as próprias marcas atingidas por Álvaro Cezar durante a competição em 1994 são referenciadas no folheto, concluindo com um verso adaptado do famoso versículo bíblico (Mateus 22:21): “E depois de 15 horas/ De disputa ele leva/ Uma hora e trinta e nove/ Nadando no grande pega/ Seis e cinquenta, pedala/ Mais seis correndo, chegava/ Dai a Cezar o que é de Cezar” (VIEIRA, 2006, p. 8) Este, aliás, é um aspecto que se diferencia das odes de Píndaro, pois o poeta grego, célebre por suas odes triunfais e epinícios, não trazia em seus versos detalhes sobre as competições. Ao invés disso, enaltecia a nobreza e a linhagem dos atletas, que representavam suas cidades, como é o caso citado acima, do atleta Xenofonte, da cidade grega de Corinto. E devemos ressaltar também que, conforme aponta Johannes Theodor Kakridis (2004, p. 166), “para os helenos antigos, o atletismo constituía uma segunda religião”, algo distinto do atletismo na era moderna.

Além disso, Álvaro Cezar, tricampeão brasileiro, campeão sul-americano e vice-campeão panamericano de Triathlon, é decantado nos versos de Antônio Vieira também por outras iniciativas tomadas por ele no âmbito do esporte de alto rendimento, pois, além de atleta, também tornou-se incentivador e promotor de competições, conforme indicam os seguintes versos: “E além de competir/ Ainda é promotor/ De eventos esportivos/ Um grande incentivador/ Do esporte como forma/ De fortalecer a bola/ Pra não entrar numa de horror// É o criador da prova/ Circuito de Entre Rios/ Pra onde vieram ciclistas/ Do mundo e todo Brasil/ A prova se tornaria/ A maior cá da Bahia/ Dito por quem competiu” (VIEIRA, 2006, p. 7).

Por fim, constata-se também a exemplaridade de atletas de alto rendimento para futuras gerações, explorada nos versos do poeta popular, compondo uma estrofe em acróstico, ou seja, com as iniciais de cada verso formando a assinatura do cordelista – V-I-E-I-R-A: “Vejam esse seu exemplo/ Incentivo é algo sério/ É importante pra tudo/ Inspira jovens e velhos/ Realizar grandes feitos/ Álvaro faz sem mistérios” (VIEIRA, 2006, p. 9).

Considerações gerais

Os dois exemplos do tratamento temático do esporte de alto rendimento em folhetos de cordel evidenciaram que as carreiras bem sucedidas de seus protagonistas – Vanderlei Cordeiro de Lima e, respectivamente, Álvaro Cezar – foram marcadas também por dificuldades que demandaram muito esforço, dedicação, superação e resistência. Em ambos, a questão do financiamento da carreira atlética é abordada em uma perspectiva crítica, algo que potencializa ainda mais tais dificuldades, tornando os atletas autênticas exceções em um cenário que ainda carece de uma ampliação significativa do incentivo à seleção e formação de jovens atletas nas diversas modalidades do esporte de alto rendimento.

Entretanto, devemos considerar também que o quadro apontado por Manoel Santamaría e, respectivamente, Antônio Vieira se alterou sensivelmente quanto à questão do financiamento da carreira atlética. Conforme argumentam Dias e Sousa (2012, p. 731), “[h]oje os atletas de ponta recebem dinheiro para treinar, fazendo da prática esportiva o seu meio de sustento. Eles são patrocinados por grandes marcas, tornam-se garotos propaganda de empresas dos mais variados setores, já que são ídolos de grande parte dos consumidores”. De modo semelhante, Teixeira e Cappelle afirmam que “o atleta como maior legado olímpico, ou seja, a pessoa em si se torna uma referência para as demais, […]. E em períodos atuais, este destaque traz, inclusive, retorno financeiro como patrocínios e empregos de publicidade” (TEIXEIRA; CAPPELLE, 2023, p. 89). Porém, deve-se ter em mente também que, de modo crítico, “dessa forma envolvidos com toda a máquina capitalista, os atletas são muitas vezes tratados como mais uma mercadoria. O rendimento diz o quanto cada um deles vale” (DIAS; SOUSA, 2012, p. 731). E, ainda nesse sentido, em um quadro bem atual, “muitos atletas brasileiros encerram a profissão esportiva, já que são raros os que conseguem apoio financeiro para arcar com os custos de vida e estudos”, de modo que “são obrigados a deixar as competições e ingressar no mercado de trabalho em áreas paralelas para garantir as condições de sustento”, uma vez que “a dedicação ao esporte não garante esse suporte, cenário este que demonstra a grande instabilidade e incerteza que marcam a profissão” (TEIXEIRA; CAPPELLE, 2023, p. 90).

Sendo assim, como bem aponta Mariana Hollweg Dias (2009, p. 12), “o esporte configura-se como cenário que permite refletir sobre importantes questões da contemporaneidade como a competitividade, a seletividade, o lugar de destaque que assume a imagem e, em especial, o lugar do corpo assujeitado à técnica”. E a Literatura de Cordel colabora para registrar, poeticamente, não só os feitos desses atletas de ponta, como também suas carreiras marcadas por certo caráter épico, de superação das dificuldades e de conquistas que transformam atletas como Vanderlei Cordeiro de Lima e Álvaro Cezar em autênticos mitos do esporte de alto rendimento.

Referências bibliográficas

CAMPOS, Rafaella Cristina; CAPPELLE, Mônica Carvalho Alves; MACIEL, Luiz Henrique Rezende. Carreira esportiva: o esporte de alto rendimento como trabalho, profissão e carreira. Revista Brasileira de Orientação Profissional. v. 18, n. 1, p. 31-41, jan.-jun./2017. DOI: http://dx.doi.org/10.26707/1984-7270/2017v18n1p31

CORNELSEN, Elcio Loureiro. A capoeira na Literatura de Cordel. Historia(s) do SPORT (Blog). Rio de Janeiro, 21 ago. 2023. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 27 nov. 2023.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. O circo na Literatura de Cordel. BELA – Blog de Estudos do Lazer. Belo Horizonte, 24 ago. 2023. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 27 nov. 2023.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. O futebol na Literatura de Cordel. Ludopédio. São Paulo, v. 144, n. 26, 14 jun. 2021. Disponível em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/o-futebol-na-literatura-de-cordel/. Acesso em: 27 nov. 2023.

DIAS, Mariana Hollweg. Sobre o esporte de alto rendimento: reflexões a partir da psicanálise e da utopia. Dissertação, Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, 2009. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/17209. Acesso em: 01 dez. 2023.

DIAS, Mariana Hollweg; SOUSA, Edson Luiz André de. Esporte de alto rendimento: reflexões psicanalíticas e utópicas. Psicologia & Sociedade. v. 24, n. 3, p. 729-738, 2012. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=309326585025. Acesso em: 01 dez. 2023.

KAKRIDIS, Johannes Theodor. Atletismo na poesia e na arte. In: YALOURIS, Nicolaos. Os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga. trad. Luiz Alberto Machado Cabral, São Paulo: Odysseus, 2004, p. 159-171.

MAXADO, Franklin. O que é literatura de cordel?. Rio de Janeiro: Codecri, 1980.

MEES, Gabriela Klein. Políticas públicas do esporte de alto rendimento no Brasil: fatores políticos esportivos que influenciam e contribuem para o sucesso. Dissertação, Porto Alegre, RS: Escola de Educação Física; Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, 2014. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/127332. Acesso em: 01 dez. 2023.

MEYER, Marlyse. Literatura de cordel: muitas histórias, muita poesia… In: MEYER, Marlyse (org.). Autores de cordel. São Paulo: Abril Educação, 1980, p. 3-5.

PÍNDARO. Olímpica 13: a Xenofonte de Corinto, vencedor na corrida do estádio e no pentatlo (464 a.C.). In: PÍNDARO. As odes olímpicas de Píndaro. Trad. Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha, Rio de Janeiro: 7Letras, 2016, p. 145-158.

SANTAMARIA, Manoel. Vanderlei Cordeiro de Lima: o papa-léguas do mundo. Niterói, RJ: Ed. do Autor, 2004.

TEIXEIRA, Thatiana Stacanelli; CAPPELLE, Mônica Carvalho Alves. A carreira esportiva de alto rendimento e o equilíbrio entre trabalho e vida privada. Revista Gestão em Análise, Fortaleza, v. 12, n. 1, p. 85-102, jan./abr. 2023. Disponível em: https://periodicos.unichristus.edu.br/gestao/article/view/4540. Acesso em: 01 dez. 2023.

VIEIRA, Antônio. Álvaro Cezar: o Ironman baiano. Santo Amaro, BA: Ed. do Autor, 2011.

Nota

[1] Para informações precisas sobre esse tema, sugere-se a leitura da Dissertação de Mestrado de Gabriela Klein Mess, intitulada Políticas públicas do esporte de alto rendimento no Brasil: fatores políticos esportivos que influenciam e contribuem para o sucesso (Porto Alegre, RS: Escola de Educação Física; Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, 2014). Destaque especial recai sobre as reflexões em torno das atuações do Ministério do Esporte (ME), do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e das confederações esportivas, sendo estes dois últimos entidades de organização não governamental, e também da promulgação da Lei Agnelo/Piva, Lei nº 10.264, a qual determina o repasse de 2% da arrecadação total das loterias federais ao COB e ao Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) para investimento em políticas de formação esportiva.


As “Seleções de Ouro” e a Literatura de Cordel – Quando duas artes populares se encontram

08/05/2023

Elcio Loureiro Cornelsen

Introdução – o encontro de duas artes populares

É de conhecimento geral que a Literatura de Cordel, sem dúvida uma das manifestações populares mais significativas da cultura brasileira, muito bem definida por Rosilene Alves de Melo (2019, p. 245) como “uma expressão da voz popular, da memória e da identidade nacional”, não ficou alheia à popularização do futebol no Brasil, sobretudo a partir da década de 1930.

Em pesquisa concluída recentemente, fizemos um mapeamento de 160 títulos em diversos acervos e publicações. De acordo com nosso inventário, as primeiras publicações datam das décadas de 1950 e 1960: Duelo Vasco x Flamengo: drama, comédia, futebol: história popular dedicada aos seus fãs e torcedores (Nilópolis, RJ: Gráfica Universal, 1954), de Pedro Ferreira dos Santos, A vitória do Brasil (sem local: sem editora, 195-), de João Severo de Lima, Copa do Mundo: 1962 (Nova Cruz, RN: Lux, 1962), de Raul de Carvalho, O Brasil na Copa do Mundo (sem local: sem editora, 1962), de Cuíca de Santo Amaro, e Peleja de Garrincha com Pelé (São Paulo: Prelúdio, 1965), de Antônio Teodoro dos Santos. Não obstante o fato de que este conjunto inicial de obras seja lacunar, já nos é possível identificar alguns temas: a rivalidade clubística entre o Clube de Regatas Vasco da Gama e o Flamengo de Futebol e Regatas já nos anos 1950; o interesse pelos craques da época; a participação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962.

Todavia, foi na década de 1970 que se publicou o maior número de folhetos de cordel com o tema do futebol, em um total de 42 títulos inventariados. O tema que mais mobilizou cordelistas a escreverem seus folhetos de futebol nessa década, sem dúvida, foi a conquista do tricampeonato mundial pela Seleção Brasileira na Copa do México, em 1970. Ao todo, foram identificados em nosso inventário 14 folhetos com esse tema: Brasil tricampeão de futebol: história em versos dos três campeonatos (São Paulo: Prelúdio, 197-) e Brasil tricampeão do mundo (Aracaju, SE: Ed. do Autor, 1970), ambos de Manoel d’Almeida Filho; O Brasil tricampeão (sem local: A Voz da Poesia, 1970), de Mestre Azulão [nome artístico de José João dos Santos); Brasil 4×1 tricampeão mundial (Bezerros, PE: Ed. do Autor, 1970), de José Francisco Borges, Versos sobre as vitórias da Seleção Brasileira e a cheia de 70 (Recife, PE: Ed. do Autor, 1970), de Manoel Florentino Duarte; Romance da Copa de 70 (Gurupi, TO: Gráfica São Geraldo, 197-), de Napoleão Gomes Ferreira; A nossa Copa do Mundo 70 (Brasília, DF: Ed. do Autor, 1975), de Carolino Leóbas; Brasil 1958-1962-1970: tricampeão do mundo 4×1: campeão dos campeões (Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1970), de Palito; A vitória do Brasil: a Seleção Brasileira: o Brasil é Tricampeão (Campina Grande, PB: Ed. do Autor, 1970), de Antonio Patrício; Brasil tricampeão (Juazeiro do Norte, CE: Ed. do Autor, 197-), de Geraldo Amâncio Pereira; Brasil tricampeão: toda história da taça que é nossa pra sempre (Natal, RN: Clima, 1970), de W. Pinheiro; A vitória do Brasil na IX Copa do Mundo (sem local: Ed. do Autor, 197-), de João Severo da Silva; A Seleção Brasileira ganhou mais um canecão (4×1) (Recife, PE: Ed. do Autor, 1976) e Brasil campeão do mundo 1970: agora a taça é nossa (sem local: sem editora, 19–), ambos de José Soares.

Há décadas, alguns estudiosos da Literatura de Cordel têm afirmado que, inicialmente, o principal tema que despertou a atenção de cordelistas foram as conquistas da Seleção Brasileira. Dentre eles, figura Ivan Cavalcanti Proença, um dos pioneiros nos estudos sobre Literatura de Cordel nos anos 1970 e 1980. Na obra Futebol e palavra (1981), Proença dedica cinco preciosas páginas ao gênero cordel, como parte do capítulo intitulado “A Literatura no(do) Futebol” (PROENÇA, 1981, p. 9-51). Nas referidas páginas, descobrimos que folhetos foram publicados, pelo menos, desde a época da primeira conquista do título mundial pela Seleção Brasileira em 1958, na Suécia. De acordo com o autor,

[o]s poetas de cordel – […] – atentos ao rádio inicialmente, e às transmissões de TV, depois, registraram as façanhas de nossos jogadores: Liêdo Maranhão, folclorista de Pernambuco, coletou esse material, reunindo 18 folhetos de cordel, todos a partir do tema “O Brasil nas Copas” (matéria também publicada pelo ‘O Globo’). (PROENÇA, 1981, p. 17)

Ao todo, Ivan Cavalcanti Proença apresenta em seu livro fragmentos de oito folhetos de sete cordelistas diferentes: Francisco Ferreira de Paula, da Paraíba (Copa de 1958 e, respectivamente, Copa de 1970); José Severo de Lima, da Paraíba (Copa de 1958); Alípio Bispo dos Santos, da Bahia (Copa de 1962); Palito (Severino Marques de Souza), de Pernambuco (Copa de 1970); Manuel D’Almeida Filho, de Sergipe (Copa de 1970), Minelvino Francisco Silva, da Bahia (Copa de 1970); José Maria Rodrigues, do Rio de Janeiro (Copa de 1978). Em um estudo recente, a historiadora britânica Courtney Campbell indica outros dois folhetos de autoria de José Gomes e, respectivamente, de Manuel D’Almeida Filho, publicados no contexto do Mundial de 1958, disputado na Suécia:

A maior parte da literatura de cordel com tema de futebol narra um torneio vitorioso da Copa do Mundo ou sua partida final. ‘O Brasil na Copa do Mundo’ e ‘A vitória do Brasil na VI Copa do Mundo’, por exemplo, relatam cada partida, elogiam os jogadores e o técnico e afirmam que a conquista do Brasil na Copa de 1958 foi uma das maiores glórias do Brasil (Gomes, 1958; D’Almeida Filho, 1958). A rara menção de regiões evoca um sentimento de unidade nacional ao invés de divisão.[1] (CAMPBELL, 2019, p. 735; tradução nossa)

Outro pesquisador que menciona a presença do futebol como tema em folhetos de cordel é Raymond Cantel, ao afirmar que “[o] futebol é o único esporte que chama a atenção dos poetas do ‘cordel’ e apenas em ocasiões especiais, quando a Seleção Brasileira vence o campeonato mundial, por exemplo, quando aparecem numerosos folhetos fazendo vibrar os acordes patrióticos” (CANTEL, 1993, p. 73; tradução nossa).[2] Segundo o pesquisador francês, “[g]eralmente, são composições medíocres inspiradas em jornais. O mundo dos poetas de cordel quase não tem relação direta com o das grandes equipes internacionais” (CANTEL, 1993, p. 73; tradução nossa).[3]

De maneira precisa, como pudemos observar anteriormente, o escritor e jornalista Ivan Cavalcanti Proença, membro da Academia Carioca de Letras, reflete sobre o impacto que as conquistas dos três primeiros campeonatos mundiais tiveram sobre os cordelistas, a ponto de se tornarem tema de seus folhetos. Quase quatro décadas mais tarde, de maneira semelhante, Courtney Campbell também analisa e tira suas conclusões sobre o modo como cordelistas se dedicaram a tratar das memoráveis conquistas da Seleção Brasileira em seus folhetos:

Em 1962 e 1970, ambos os anos em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo, essa forma de cordel reaparece, mas outras características da nacionalidade brasileira começaram a surgir. W. Pinheiro, em um cordel que detalha cada partida da Copa do Mundo de 1970, explica que o Brasil deve servir de exemplo para o resto do mundo.[4] (CAMPBELL, 2019, p. 736; tradução nossa)

Aparentemente, estamos diante de uma possível chave de entrada do futebol no âmbito da produção artística de cordelistas, apontada tanto por Ivan Cavalcanti Proença, quanto por Raymond Cantel e, respectivamente, Courtney Campbell: os êxitos esportivos da Seleção Brasileira como um dos pilares para a construção da identidade nacional.

Conforme demonstraremos a seguir, se a Literatura de Cordel se origina de relatos orais com traços poéticos, em que “o folheto impresso se tornou o suporte dessa forma poética até então marcada pela oralidade”, se formando “enquanto sistema literário a partir do final do século XIX” (MELO, 2019, p. 247-248), tornando-se uma forma literária popular no Brasil, o futebol, um dos vértices da cultura brasileira, fornece à Literatura de Cordel inúmeros temas, cantados pelos cordelistas em seus longos poemas rimados.

Para este breve estudo, baseados nos apontamentos anteriores, elegemos como corpus de análise três cordéis que têm por tema Copas do Mundo de futebol, com objetivo de evidenciarmos aspectos específicos de tal relação na “era de ouro” da Seleção Brasileira: Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962), de Raul de Carvalho; O Brasil na Copa do Mundo (1962), de Cuíca do Santo Amaro; O Brasil tricampeão (1970), de José João dos Santos, o “Mestre Azulão”.

O folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi

Iniciaremos nossa análise pelo folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962), do cordelista Raul de Carvalho, uma espécie de ode à Seleção Brasileira que conquistou o bicampeonato mundial de futebol no Chile. Em termos formais, esse folheto é composto por 95 estrofes em sextilhas, com versificação em redondilha maior, de sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-b, traços característicos da Literatura de Cordel, e apresenta na capa a reprodução de uma fotografia da Seleção Brasileira. Aliás, o número elevado de estrofes (95) e de páginas (20) evidencia que estamos diante de um tipo textual “romance”, conforme postulado por Marlyse Meyer (1980, p. 3-4), e não de um tipo textual “folheto noticioso” que, em geral, possui apenas 32 estrofes e 08 páginas.

Além disso, esse folheto apresenta algo peculiar, não tão comum na Literatura de Cordel: um preâmbulo em prosa, que antecede à primeira estrofe:

A mais emocionante e sensacional campanha de atração futebolística da atualidade, aonde os brasileiros consagraram-se Bi-Campeões mundial de futebol, dominando e envolvendo de maneira espetacular, seus bravos e lutadores adversários.            

Onde tiveram a magnifica oportunidade de ofertarem ao público mundial, e com especialidade ao distinto povo brasileiro a hegemonia com a verdadeira classe e técnica do futebol Nacional. (CARVALHO, 1962, p. 1)

Além do tom superlativo evocado pela conquista, o cordelista apresenta o escrete como hegemônico em relação aos “seus bravos e lutadores adversários”, estabelecendo “a verdadeira classe e técnica do futebol Nacional”. Em sequência ao preâmbulo, o poeta constrói seu ethos de religiosidade e fé, antes de cantar em seus versos o torneio propriamente dito:

Ó meu “Jesus radiante”

dai-me luz e inspiração

para eu descrever em verso

com a maior sensação

como foi que os brasileiros

ganharam o Bi-Campeão.

(CARVALHO, 1962, p. 1)[5]

Trata-se de algo relativamente comum em folhetos desse tipo, em que a fé também é um elemento emocional do próprio torcer pelo escrete canarinho. Logo em seguida, o poeta enaltece em seus versos mais uma conquista da Seleção Brasileira, como continuidade do triunfo celebrado na Suécia, em 1958:

No ano cincoenta e oito

o Brasil foi “Campeão”

jogaram lá na Suécia

com o (mesmo) no coração

este ano lá no Chile

ganharam o Bi-Campeão.

(CARVALHO, 1962, p. 1)

Seus versos revelam também que o poeta associa o desempenho da Seleção Brasileira ao sentimento de identidade nacional, algo que, de fato, se estabeleceu em termos de representatividade esportiva e que se consolidou com a conquista do tricampeonato no México, em 1970, mas que já se evidenciava no folheto do início da década de 1960:

O Brasil tem uma equipe

que luta com heroísmo

sabendo se conduzir

pelo seu patriotismo

demonstrando disciplina

categoria e civismo.

CARVALHO, 1962, p. 2)

Desse modo, a Seleção é definida nesses versos por suas supostas virtudes: “heroísmo”, “patriotismo”, “disciplina”, “categoria” e “civismo”. E o poeta não deixa de destacar em seus versos também sua cor de camisa característica, idealizada por Aldyr Garcia Schlee em 1953, que a tornaria famosa mundo afora:

A equipe do Brasil

conhecida por Canarinho

lutou e ganhou o título

que estava em seu caminho

de volta foi recebida

com muito amôr e carinho.

(CARVALHO, 1962, p. 2)

Cabe ressaltar que foi o primeiro título conquistado pela Seleção jogando na final do torneio com a camisa canarinho, uma vez que, em 1958, os anfitriões suecos também jogavam com camisa amarela, o que gerou a necessidade de a CBD lançar mão da camisa azul na final. No referido folheto, o poeta também expressa seu desejo de fazer jus ao desempenho da Seleção na Copa do Chile, contando a saga que a levou a mais uma conquista mundial:

Falando sôbre o Brasil

eu quero então relatar

bem minuciosamente

sem cousa alguma aumentar

como portou-se este team

e como soube lutar

(CARVALHO, 1962, p. 3)

Cada jogador daquela Seleção foi agraciado pelos versos do poeta: o goleiro Gilmar, Mauro, Djalma Santos, Nilton Santos, Zózimo, Zito, Didi, Garrincha, Vavá, Amarildo, que substituiu Pelé lesionado após a primeira partida, e Zagalo. Mas é Garrincha aquele que se sobressai em seus versos:

Garrincha é o maior

de todos os mundiais

envolveu todas as defesas

com seus “DRIBLES” infernais

deixando desnorteados

de um a um seus rivais.

(CARVALHO, 1962, p. 19)

O folheto do poeta potiguar Raul de Carvalho, portanto, se enquadra no eixo temático “acontecimento de repercussão social”, conforme classificação proposta por Maria Elisabeth de Albuquerque (2011, p. 63), pautado por um tipo textual “romance” (MEYER, 1980, p. 3-4), em que os feitos da Seleção Brasileira nos gramados chilenos é cantado com traços épicos, jogo a jogo.

O folheto O Brasil na Copa do Mundo (1962)

Outro folheto dedicado à Seleção Brasileira e a um momento muito especial em sua história, o da conquista do bicampeonato mundial, é O Brasil na Copa do Mundo (1962), do cordelista Cuíca de Santo Amaro, apelido do poeta soteropolitano José Gomes Filho, autor de inúmeros folhetos publicados dos anos 1930 a meados dos anos 1960. Antes da estampa de seu nome na capa, figurava também a expressão “Autoria D’ele o Tal!”

Como é comum em folhetos de cordel, a capa é composta por imagem de xilogravura ou por reprodução fotográfica. No caso do folheto O Brasil na Copa do Mundo, publicado em 1962, figura uma fotografia da Seleção Brasileira que conquistou o Mundial naquele ano, no Chile. Logo na primeira estrofe, é possível notar que o folheto foi publicado após a conquista do título de bicampeão:

O Brasil conservou

Bem alto o seu pedestal

Honrou o seu grande nome

Impoz a sua moral

Demonstrando ser mesmo

O Campeão Mundial

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 1)

Em sua composição o folheto O Brasil na Copa do Mundo apresenta um total de 32 estrofes, com estrofação em sextilhas e versificação em redondilha maior, ou seja, em sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-b, composição típica do gênero cordel. Os totais de estrofes (32) e, respectivamente, de páginas (08) demonstram que se trata do tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3-4). Certo tom de religiosidade também se expressa nos versos de Cuíca de Santo Amaro ao decantar a façanha brasileira no Mundial do Chile, naquela máxima popular de que “Deus é brasileiro”:

Porque no Brasil

Onde Cristo foi nascer

Tinha de progredir

Havia de crescer

Portanto o Brasil

Só tinha que vencer

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 1)

Estudiosos do cordel apontam para o fato de que um dos temas preferidos dos poetas populares são os acontecimentos de grande projeção no cotidiano: fatos políticos, crimes, escândalos, tragédias, mas também eventos esportivos, sobretudo quando envolvem a participação da Seleção Brasileira em torneios mundiais. Ao perceber o potencial de tais eventos para atrair o público leitor de seus folhetos, Cuíca de Santo Amaro foi um pioneiro em produzir, com seus versos, uma ode laudatória àquela Seleção comandada pelo técnico Aymoré Moreira:

Parabéns ao Aimoré Moreira

O príncipe dos treinadores

Pelo estímulo e confiança

Aos nossos jogadores

Quem envia-lhes parabéns

É o decano dos Trovadores

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 8)

E com a ausência do Rei Pelé, lesionado logo no segundo jogo do torneio, contra a seleção da Tchecoslováquia, sendo substituído por Amarildo, o “Possesso”, o maior destaque dentre os titulares do selecionado canarinho ficou para Mané Garrincha, conforme demonstram os seguintes versos do poeta popular:

Sim!… o Garrincha

Jogador fenomenal

Seu Mané das pernas tortas

Como ele não tem igual

Infeliz se não fosse ele

Do quadro Nacional

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 6)

Para o cordelista, foi algo digno de se registrar na memória dos brasileiros:

O feito do Brasil

Nesta sua trajetória

Jamais Brasileiros!…

Sairá da nossa memória

Ficando também gravado

Nas páginas da nossa história

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 8)

Por fim, ressalta-se que, não obstante o tom épico da vitória, o poeta se limita apenas a dedicar estrofes a apenas uma partida do torneio, justamente a final, disputada em 17 de junho de 1962 contra a seleção da Tchecoslováquia, derrotada pela Seleção Brasileira, pelo placar de 3×1, com gols de Amarildo, Zito e Vavá.

O folheto O Brasil tricampeão

Como terceira obra exemplar que compõe nosso corpus de análise, selecionamos o folheto O Brasil tricampeão (1970), do cordelista paraibano José João dos Santos, o “Mestre Azulão”, que se tornaria um dos fundadores da famosa Feira de São Cristóvão, centro da cultura nordestina no Rio de Janeiro. Em sua capa, o folheto apresenta uma fotografia em que aparecem o treinador da Seleção Zagallo e o capitão Carlos Alberto, trajados com ternos contendo o distintivo da CBD – a Confederação Brasileira de Desportos – e segurando a taça Jules Rimet, conquistada definitivamente no Mundial do México em 1970. Provavelmente, trata-se de reprodução de uma fotografia tirada durante a visita dos integrantes da Seleção e da Comissão Técnica à capital federal e aos detentores do poder em seu regresso ao Brasil. Não é por acaso que, logo na primeira estrofe, o tom ufanista se faz presente:

Desportista brasileiro

De conhecimento profundo,

Vibrai com patriotismo,

Hora, minuto e segundo,

O Brasil trouxe com glória

Os triunfos da vitória

Na grande Copa do Mundo.

(SANTOS, 1970, p. 1)

O folheto O Brasil tricampeão apresenta a composição típica desse gênero literário, ou seja, 32 estrofes, com estrofação em septilhas e versificação em redondilha maior, em sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-d-b. Outra estrofe desse folheto parece reverberar um dos versos do jingle daquela Copa, “Pra frente, Brasil!”, de autoria de Miguel Gustavo:

Salve o Brasil verde-louro,

Salve a nossa seleção,

Pelé, Jair, Rivelino,

Gérson, Clodô e Tostão,

Que mostraram a nossa raça

Trazendo a glória e a Taça

Ao Brasil tri campeão.

(SANTOS, 1970, p. 1)

O folheto traz também como registro uma estrofe que transmite certo olhar crítico para o treinador e jornalista esportivo João Saldanha, demitido do cargo em 17 de março de 1970 e substituído por Zagallo, afastado de sua função por divergências políticas e pela inferência dos detentores do poder na Seleção Brasileira:

João Saldanha se enganou

Com seu plano e sua lei

Depois da grande vitória

Êle disse assim que eu sei

(Esta me serviu de escola

O nosso Pelé na bola

Me mostrou que ainda é rei).

(SANTOS, 1970, p. 2)

Não falta também nesse folheto uma estrofe que expresse a imensa alegria da torcida brasileira após a conquista do tri:

O Brasil vibrou em festa

Da cidade até a roça

Foguetes, bandas de música,

Com bebida e farra grossa,

Blocos nas ruas pulando

E torcedores gritando,

Viva a Deus que a Copa é nossa.

(SANTOS, 1970, p. 5)

Ao final, o poeta enaltece o futebol como sendo a manifestação cultural e esportiva em que o congraçamento, aparentemente, supera a diferença social:

Assim foi a grande festa

Zuando num tom profundo

Unindo ricos e pobres,

Leigo, justo e vagabundo,

Aclamando êste é Brasil

O tri campeão do mundo.

(SANTOS, 1970, p. 8)

Em O Brasil tricampeão, o cordelista dedica uma estrofe a cada partida disputada e vencida pelos comandados de Zagallo. O número de estrofes (32) e, respectivamente, de páginas (08) demonstra que se trata do tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3-4), em que o poeta canta, com traços épicos, as façanhas da Seleção nos gramados mexicanos.

As Copas do Mundo de futebol na Literatura de Cordel – à guisa de conclusão

Nosso breve estudo evidenciou a significativa presença temática do futebol no âmbito da literatura de cordel. No dia 19 de setembro de 2018, a Literatura de Cordel foi reconhecida como Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Tal reconhecimento atesta a relevância da chamada “poesia popular” (PROENÇA, 1976, p. 28) para a cultura brasileira. Fundada em 07 de setembro de 1988, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), com sede no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, tem contribuído para manter viva a memória e a produção dessa manifestação cultural típica da Região Nordeste, mas que também se expandiu para outros centros urbanos do país. Contando com um acervo de mais de 13 mil títulos, a ABLC (http://www.ablc.com.br/noticias/ ), sem dúvida, é uma excelente referência para pesquisas sobre a Literatura de Cordel.

A expressão “Seleções de Ouro” de nosso título foi inspirada na seguinte estrofe do folheto O Brasil tricampeão, do Mestre Azulão:

Nossa seleção de ouro

Tem a quentura do Sol,

Joga com classe e não teme

Time de fama e farol

Desta vez o brasileiro

Mostrou para o mundo inteiro

Que é rei no futebol.

(SANTOS, 1970, p. 1)

Os mitos do “futebol arte” e, respectivamente, do Brasil como “país do futebol” foram pavimentados pelas conquistas de 1958, 1962 e 1970. Nesse sentido, os três folhetos de cordel analisados neste estudo atestam a construção narrativa sobre os feitos daquelas “Seleções de Ouro”, muitas vezes pautada por clichês. Além disso, todos os três se enquadram no eixo temático “acontecimento de repercussão social” (ALBUQUERQUE, 211, p. 63), dois deles – O Brasil na Copa do Mundo (1962) e O Brasil tricampeão (1970) – se configuram de acordo com o tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3), composto por 32 estrofes e 08 páginas, enquanto o folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962) se enquadra no tipo textual “romance” (MEYER, 1980, p. 3-4), composto por 95 estrofes e 20 páginas.

Ainda em relação a questões de ordem formal, constatamos o predomínio da versificação em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, com rimas cruzadas (com estrutura a-b-c-b-d-b), típicas desse gênero literário, porém, com uma ligeira variação em relação ao folheto O Brasil tricampeão, que apresenta estrofação em septilha (com estrutura a-b-c-b-d-d-b).

Por fim, em relação ao modo de apresentar as conquistas da Seleção Brasileira em 1962 e 1970, há um aspecto em comum entre os três folhetos analisados: todos enaltecem o desempenho vitorioso da Seleção, após terminados os torneios. Todos eles demonstram também que, sem dúvida, as artes do futebol e do cordel se encontram nesse rico manancial da poesia e da cultura popular brasileira.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Maria Elisabeth Baltar Carneiro de. Literatura Popular de Cordel: dos ciclos temáticos à classificação bibliográfica. (doutorado em letras). João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba, 2011.

CAMPBELL, Courtney. The Northeast plays football, too: World Cup Soccer and regional identity in the Brazilian Northeast. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 32, n. 68, p. 720-743, set./dez. 2019. Disponível em: https://orcid.org/0000-0001-6918-6382 . Acesso em: 15 jun. 2022.

CANTEL, Raymond. La littérature populaire brésilienne. Poitiers: Centre de Recherches Latino-Américaines, 1993.

CARVALHO, Raul de. Copa do Mundo: 1962 – Os Reis do Bi. Nova Cruz, RN: Lux, 1962. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Literatura%20de%20Cordel%20-%20C0001%20a%20C7176&PagFis=21299&Pesq=copa%20do%20mundo. Acesso em: 30 mar. 2023.

CUÍCA DE SANTO AMARO. O Brasil na Copa do Mundo. Sem local: Edição do Autor, 1962, 8p. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176. Acesso em: 27 abr. 2023.

IPHAN. Literatura de Cordel – Dossiê de Registro. Brasília, DF: IPHAN, 2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Descritivo(1).pdf . Acesso em: 15 jun. 2022.

MELO, Rosilene Alves de. Do rapa ao registro: a literatura de cordel como patrimônio cultural do Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Dossiê: Cordel e patrimônio. São Paulo, n. 72, p. 245-261, abr. 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/157060. Acesso em: 30 jun. 2022.

MELO, Rosilene Alves de. Literatura de Cordel: conceitos, intelectuais, arquivos. Projeto História. São Paulo, v. 65, p. 66-99, mai./ago. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.23925/2176-2767.2019v65p66-99 . Acesso em: 15 jun. 2022.

MEYER, Marlyse. Autores de cordel. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

PROENÇA, Ivan Cavalcanti. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, Brasília: INL, 1976.

PROENÇA, Ivan Cavalcanti Futebol e palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.

SANTOS, José João dos [Mestre Azulão]. O Brasil tricampeão. Sem local: A Voz da Poesia, 1970. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176. Acesso em: 27 abr. 2023.

Notas

[1]

No original:

Most football-themed cordel literature narrates a victorious World Cup tournament or its final match. ‘O Brasil na Copa do Mundo’ and ‘A vitória do Brasil na VI Copa do Mundo’, for example, relate each match, praise the players and the coach, and claim that Brazil’s 1958 World Cup win was one of Brazil’s greatest glories (Gomes, 1958; D’Almeida Filho, 1958). The rare mention of regions evokes a sense of national unity instead of divide.

[2]

No original:

Le football est le seul sport qui retienne l’attencion des poètes du cordel et  seulement dans les grandes occasions, quand l’équipe du Brésil remporte le championnat du monde, par exemple. Alors paraissent de nombreuses brochures qui font vibrer la corde patriotique.

[3]

No original:

Généralement ce sont des compositions médiocres inspirées par les journaux. Le monde des poètes du cordel n’a guère de rapports directs avec celui des grandes équipes internationales.

[4]

No original:

In 1962 and 1970, both years in which Brazil won the World Cup tournament, this form of cordel reappears, but other characteristics of Brazilian nationality began to surface. W. Pinheiro, in a cordel that details each match of the 1970 World Cup, explains that Brazil should serve as an example for the rest of the world.

[5] Nas citações de cordel, mantivemos sempre o texto original, mesmo que estes contenham alguns lapsos de digitação ou de redação.


Jornal dos Sports ou das Tragédias?

25/04/2023

André Alexandre Guimarães Couto

Olá, leitoras(es):

Neste breve post, vamos viajar à primeira metade dos anos 1980, quando o Jornal dos Sports (JS) adotou uma linha editorial diferente do que fazia anteriormente. Adquirido pela família Velloso em 1980, o jornal tentara aumentar sua vendagem por meio de uma estratégia peculiar, mas não necessariamente inovadora no meio jornalístico: destacavam-se notícias com apelo à violência e às tragédias urbanas. Para tanto, uma região metropolitana como a da cidade do Rio de Janeiro era uma reservatório de matérias primas para as manchetes, imagens e textos com esta intenção editorial.

O clã Velloso, empresários e proprietários de supermercados e drogarias, era formado por Climério, Waldemar e Venâncio, e substituíra a gestão de Cacilda Fernandes de Souza, segunda esposa e herdeira de Mário Júlio Rodrigues (que, por sua vez, era filho de Mário Rodrigues Filho). Contavam com o apoio político de mais um integrante da família: Napoleão Velloso, deputado estadual pelo PMDB e que passara a escrever em uma coluna fixa, sobre temas diversos, mas principalmente das políticas públicas do estado.

Nos primeiros anos da gestão Velloso, a atenção era voltada para a tradição do jornal na cobertura poliesportiva, com grande ênfase para o futebol dos grandes clubes cariocas e da seleção brasileira. Inclusive, houve um grande investimento para a cobertura da Copa do mundo de futebol FIFA em 1982, na Espanha.

Para além do esporte, outros temas eram priorizados como educação, concursos públicos, funcionalismo público, mercado de trabalho e emprego e política fluminense. Outros assuntos como cultura, carnaval e religião também eram comuns nas páginas do JS. Cabe lembrar que a conjuntura na primeira metade da década de 1980 compreendia o final de uma ditadura militar e de gradual abertura política, inclusive com as eleições diretas em 1982 para cargos legislativos e governador de estado. No Rio, vencera um candidato da esquerda, Leonel Brizola, pelo PDT. No campo econômico, um contexto de muita crise econômica e financeira, com índices inflacionários bem elevados, o que impactava diretamente na renda e no custo de vida da classe trabalhadora.

A escolha pelas matérias sobre educação tinham muito a ver com o crescimento do movimento estudantil e suas manifestações políticas e culturais, dentro da conjuntura de abertura democrática, mas também uma forma de captação de recursos junto aos cursos preparatórios, escolas e universidades privadas, por meio de anúncios nas páginas do jornal.

Mas, na apresentação do periódico e na construção das matérias, o que explica a virada para um tom discursivo policialesco e repleto de emoções derivadas de tragédias e violências? Temos algumas hipóteses, mas vamos ver um exemplo relevante antes:

Imagem 1: Capa do Jornal dos Sports, 3/12/1984.

Como podemos observar acima, temos o destaque para uma notícia da conquista do segundo turno do campeonato carioca (Taça Rio) pelo Vasco, mas compartilhada com temas como a violência urbana. A chamada para a matéria da segunda página (curta, contrapondo-se ao destaque da capa), contava a história de uma casal, morador de Belford Roxo, que resolvera fazer sexo no quintal da própria casa e, diante da presença de vizinhos curiosos e não convidados, o homem resolvera afastá-los disparando tiros, o que resultou em três homens internados em estado grave no Hospital Getúlio Vargas.

Temos, desta forma, a partir do final de 1984 e se estendendo ao ano seguinte, uma estratégia de competir com outros jornais da cena urbana carioca como O Dia e Última Hora, cujas linhas editoriais abusavam da exposição da violência da cidade e região metropolitana. No caso do JS, emoções e paixões pelo esporte se misturavam em ondas de curiosidade mórbida do público leitor, tentando aproximar sentimentos diversos do torcedor.

A estratégia de vendagem do jornal aliava-se ainda com o discurso de “protetor do povo”, como no destaque de que o JS teria sido o único jornal no Rio de Janeiro que não aumentara os valores das edições.

No exemplo abaixo, a exploração da tragédia humana pode ser percebida em mais de uma matéria:

Imagem 2: Capa do Jornal dos Sports, 31/01/1985.

O exemplar acima destaca mais uma história policial, a de uma chacina no Sumaré, sendo possível que tivesse a implicação de um policial civil no crime. Duas outras matérias dividiam o espaço com a cobertura esportiva (esta dando destaque para o desempenho de dois clubes cariocas, Fluminense e Vasco, no recém iniciado Campeonato Brasileiro de 1985): a de uma ameaça epidêmica de tifo na cidade do Rio de Janeiro e a de uma tragédia no mar, junto à Praça Mauá.

Mortes e cadáveres eram comuns nesta nova linha editorial para o período. Quando mais nítida a imagem da tragédia, mais interesse advinha do público leitor. Pelo menos era o que a empresa/jornal acreditava.

Imagem 3: Capa do Jornal dos Sports, 14/09/1985.

No exemplo acima, o desfecho trágico de um sequestro era mote para um convite aos leitores a comprarem o jornal para conhecer mais sobre a história recheada de mistério, sangue, morte, esquartejamento. Tudo isso numa capa que chamava a atenção sobre as contratações de dois grandes jogadores pelo Flamengo (Sócrates e a possibilidade de chegada de Renato Gaúcho).

Esporte e tragédia caminhavam de mãos dadas entre o final de 1984 e ao longo do ano de 1985. A violência e os dramas urbanos permeavam o interesse de leitores/torcedores, ávidos por emoções e sentimentos para além do esporte.

Referências

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967-1988). 2008. 771 f. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX – v. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.


Revista Recorde: notícias, breve balanço e novo número no ar

15/12/2022

Por Rafael Fortes

Está no ar o número de dezembro de 2022 de Recorde: Revista de História do Esporte, cujo sumário está ao final deste texto. São nove artigos e uma resenha (em dois idiomas). O total de artigos nas duas edições deste ano, 24, provavelmente é o recorde (perdão, não resisti) nestes 15 anos de revista, ao longo dos quais colocamos no ar 30 números, sempre em junho e dezembro, sem atraso. Como se costuma dizer por aí, quinze anos não são quinze dias, nem quinze meses.

A imagem da capa é essa aí embaixo. Está na Brasiliana Fotográfica Digital, da Biblioteca Nacional, e foi sugerida por Victor Melo.

Título: “Em recreio. Um grupo de aprendizes após 10 minutos de ginástica sueca.” NP 145
– Foto de album comemorativo do 5º mês de funcionamento da Escola.
– Local: Maceió (AL)
– Ano: 1910
Fonte: Brasiliana Fotográfica Digital
https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/7907

*  *  *

Aproveito a oportunidade para discorrer um pouco mais sobre a Recorde e alguns desdobramentos recentes.

Após severos problemas nos dois últimos anos, em 2022 conseguimos retomar o padrão de trato com os autores e de prazos nos fluxos de avaliação e publicação. Reformulamos a Equipe Editorial, com a mudança de função de alguns membros e a entrada de outros. Fica aqui meu agradecimento a todos pelo trabalho desempenhado ao longo deste ano, em especial a dois contingentes de colegas queridos:

  • Aos membros do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer, no qual Recorde foi planejada, iniciada e continua sendo feita. Um grande salve àqueles que atuaram como editores responsáveis por anos específicos passados de publicação da revista;
  • Aos que entraram na equipe este ano – Igor Maciel da Silva, Leonardo do Couto Gomes, Letícia Cristina Lima Moraes e Vitor Lucas de Faria Pessoa -, bem como àqueles que colaboraram em diferentes funções. (Todas elas, é sempre importante registrar, não remuneradas, como é costume no nosso sistema científico, há décadas subfinanciado e baseado grandemente em trabalho amador e voluntário, como se estes adjetivos não fossem uma antítese da própria ideia de trabalho.)

*  *  *

Quanto à circulação e reconhecimento internacional, trago indícios animadores. Um deles é a continuidade da procura por parte de cientistas que escrevem trabalhos em idiomas distintos do português. Em 2022 veiculamos quatro artigos em espanhol (três de pesquisadores sediados na Argentina e um nos Estados Unidos), e uma resenha em inglês (de pesquisador atuante no Canadá).

Temos contado também com o apoio inestimável de periódicos, instituições e colegas do exterior. Entre as publicações científicas, durante anos o Journal of Sport History, por meio de diferentes editores, autorizou que traduzíssemos para a língua portuguesa e publicássemos artigos, medida essencial para o estabelecimento e consolidação de nossa revista. Vale mencionar também Materiales para la Historia del Deporte, periódico sediado na Espanha e que, em certa medida, nos inspirou.

Entre as instituições, obtivemos apoio em dois editais de apoio a periódicos da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). A North American Society for Sport History (NASSH), entidade científica responsável pelo Journal of Sport History, foi fundamental na viabilização do acordo para as traduções mencionado acima.

Quanto aos colegas estrangeiros, tivemos o privilégio de estabelecer diferentes parcerias e colaborações, algumas pontuais, outras duradouras.

Douglas Booth nos apoiou de diferentes formas ao longo dos anos, inclusive cedendo artigos para tradução e viabilizando contatos e parcerias internacionais. O número publicado esta semana traz uma resenha inédita dele a respeito do livro póstumo From Sea-Bathing to Beach-Going: A Social History of the Beach in Rio de Janeiro, Brazil (capa acima), de Bert Barickman, editado por Hendrik Kraay e Bryan McCann. Bert foi um interlocutor de muitos anos e uma das primeiras pessoas a me incentivar a pesquisar as relações entre surfe, juventude e cultura, tema de minha pesquisa de doutorado e de investigações posteriores. Nossa primeira conversa se deu num bar do Arco do Teles. Foi ele quem escolheu o local, próximo à estação das Barcas – o primeiro exemplo da imensa gentileza que o caracterizava, pois eu morava em Niterói. Ao longo dos anos, nos encontrávamos a cada vinda dele ao Rio para sua pesquisa sobre as praias (discorri melhor sobre isso neste texto). Seu trabalho não foi finalizado a tempo por ele, que nos deixou de forma precoce em novembro de 2016. Graças ao trabalho dos editores citados e de outras pessoas, em 2022 finalmente o material rascunhado por Barickman veio à luz. A resenha de Booth – disponível em inglês e em português – faz jus à grandeza da obra, que já tive a oportunidade de ler.

Em vida, Bert infelizmente publicou apenas dois artigos com resultados parciais da pesquisa de mais de uma década. Ao mesmo tempo em que lamentei e lamente imensamente seu falecimento, me vem sempre ao rosto um leve sorriso quando lembro que seu último artigo publicado em vida saiu em junho de 2016 na Recorde: Medindo maiôs e correndo atrás de homens sem camisa: a polícia e as praias cariocas, 1920-1950. Eu e Victor Melo levamos um tempo para convencê-lo, fosse pelo perfeccionismo que lhe marcava, fosse por sua sempre cheíssima agenda de trabalho, na qual muitas vezes doava generosamente tempo para ajudar os outros, sobretudo orientandos e ex-orientandos. O artigo foi traduzido para o inglês e constitui o último e mais extenso capítulo do livro. O original em português que publicamos tem 66 páginas. Porque, né, de que adianta editar voluntariamente uma revista científica se ficarmos limitados a copiar a tacanhez das normas e práticas da maioria dos demais periódicos e das agências de fomento? Neste caso particular, quanto teríamos perdido de uma pesquisa fora-de-série se tivéssemos nos apegado ao máximo de 15 ou 20 páginas exigido por tantas publicações por aí?

O estímulo e interesse de Douglas Booth e de Murray Phillips (atual presidente da NASSH) por Recorde ao longo dos anos tem sido muito importante. O livro Routledge Handbook of Sport History (capa abaixo), organizado por ambos e Carly Adams e lançado em 2021, há um capítulo sobre Recorde na parte 5, dedicada aos periódicos científicos de história do esporte. Sobre a trajetória da revista, foi publicado também, em 2021, o artigo Recorde: Revista de História do Esporte – Um cenário dos seus 13 anos de publicações.

Diversos colegas da América Latina e Península Ibérica também têm colaborado conosco, aos quais agradecemos ao mencionarmos o nome de Pablo Scharagrodsky.

Alguns destes colegas nos concederam entrevistas que vêm sendo publicadas desde que criei esta seção em 2016. Creio que ela contribui para oferecer aos interessados um tipo de diferente de leitura, assim como a possibilitar uma apresentação dos autores, de seus trabalhos e trajetórias de maneira um pouco menos formal e mais livre, bem como saber um pouco de suas trajetórias de vida e de sua ligação com o esporte. Até o momento publicamos entrevistas com os pesquisadores Carles Santacana (realizada por Euclides de Freitas Couto), Douglas Booth, Glen Thompson, João Malaia e Robert Edelman, bem como com a jornalista e narradora Isabelly Morais (realizada por Silvana Vilodre Goellner).

*  *  *

Aos interessados em publicar, informo que Recorde recebe artigos, resenhas e entrevistas em regime de fluxo contínuo. As contribuições devem ser enviadas diretamente para o email revistarecorde@gmail.com .

Abaixo, como informado no início, segue o sumário da edição atual. Que venham mais 30 números e 15 anos/volumes.

*  *  *

v. 15, n. 2 (2022)

Sumário

Artigos

Luciano Arancibia Agüero
César Teixeira Castilho, Elcio Loureiro Cornelsen, Gustavo Cerqueira Guimarães
Sarah Teixeira Soutto Mayor, Georgino Jorge de Souza Neto, Silvio Ricardo da Silva
Felipe Tavares Paes Lopes, Camila Caldeira Nunes Dias, Claudio Luís de Camargo Penteado
Lizandra de Souza Lima, Coriolano P. da Rocha Junior
Everton de Albuquerque Cavalcanti, Vinícius Machado de Oliveira, Juliano de Souza, André Mendes Capraro
Marina de Mattos Dantas
Helcio Hebert Neto
Thayla Rebouças de Oliveira, Eduardo Vinícius Mota e Silva

Resenhas

Douglas Booth
Douglas Booth

O AVANÇO DO SKATE FEMININO*

23/05/2022

Leonardo Brandão

Historiador e Professor Universitário

@leobrandao77

“Não se nasce mulher; torna-se mulher”. Esta frase pertence a escritora Simone de Beauvoir (1908 – 1986), a qual, através do livro intitulado “O Segundo Sexo”, lançado em 1949, contribuiu para questionar os lugares de sujeito que a sociedade patriarcal reservava para as mulheres, uma vez que a posição das mulheres na sociedade era (ainda é?) determinada por fatores culturais e sociais. A reflexão de Beauvoir exerceu forte influência no movimento feminista e, desde então, muitas conquistas foram obtidas.

Embora, nos últimos anos, estejamos vivendo no país uma espécie de retrocesso civilizatório, ainda assim, quando observamos o skate feminino, há motivos de sobra para nos orgulharmos. Rayssa Leal, Gabriela Mazetto, Yndiara Asp, Virgina Fortes, Pipa Souza, Priscila Morais, Esther Solano, Giovana Dias, Vitória Mendonça, Atali Mendes, Kemily Suiara, Pamela Rosa, Marina Gabriela, Vitória Bortolo, Karen Feitosa, Agatha Pinheiro, entre muitas outras, estão ora elevando o nível das manobras nas competições, ora manobrando em pistas e/ou filmando pelas ruas. Num Brasil que insiste em caminhar para trás, essa maior presença das mulheres no skate é um sinal de progresso.

E o que falar da História do Skate Feminino? Embora saibamos que, desde o início elas sempre estiveram sobre o carrinho, os estudos sobre este tema ainda são escassos. No Brasil, quem ajudou a preencher um pouco dessa lacuna foi a pesquisadora Márcia Luiza Figueira, estudiosa que produziu a primeira tese de doutorado específico sobre skate feminino, intitulado “Skate para meninas: modos de se fazer ver em um esporte em construção”, defendida em 2008 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Num capítulo publicado no livro “Skate & Skatistas: questões contemporâneas”, Márcia Figueira evidenciou algumas conquistas do skate feminino a partir da virada do milênio. Ela lembra que um passo importante no aumento de sua visibilidade foi dado pela revista CemporcentoSKATE em 2001, quando foi inaugurado o encarte 100%SkateGirl, no qual a skatista Giuliana Ricomini estreou a seção “ponto de vista”. No ano seguinte, em 2002, na segunda edição desse encarte, seu editorial explicava:

“Há muito que as meninas ambicionavam um espaço só seu na revista. Pediram, clamaram, reclamaram (e mais uma infinidade de outros verbos). Sobretudo elas ANDARAM de skate. Por isso CONSEGUIRAM […] insistiram em andar de skate, em acertar manobras, em correr campeonatos, em evoluir”.

As meninas (eu prefiro o termo mulheres) foram conquistando seus espaços nos veículos de mídia especializado. No ano de 2004, a extinta revista Tribo também passou a dedicar uma seção para elas, intitulado Lilith. Neste mesmo ano, segundo os estudos de Marcia Figueira, Alexandre Vianna, que na época presidia a Confederação Brasileira de Skate (CBSk), afirmou ser “legal ver as meninas se unindo na construção de um espaço e de uma identidade dentro do skate nacional”.

Um marco importante nessa batalha por visibilidade ocorreu em julho de 2006, época da simbólica publicação da centésima edição da revista CemporcentoSKATE. Nela, pela primeira vez, uma skatista aparecia na capa dessa revista. Tratava-se da skatista Eliana Sosco, com uma manobra (noseslide) descendo um corrimão de escadaria, fotografada por Renato Custódio.

Daí em diante muitas outras conquistas ocorreram, como a capa da Ligiane Xuxinha na edição de setembro de 2011 ou o sucesso internacional da skatista Letícia Bufoni, por exemplo. Mesmo no universo acadêmico, surgiram mais mulheres pesquisando a prática do skate. Em 2014, Allana Joyce Scopel defendeu na UFMG a dissertação de Mestrado “A apropriação do Parque da Juventude pelos Skatistas”; e em 2016, na FURG, Juliana Cotting Teixeira defendeu a dissertação “Cenas Urbanas: skatistas, ocupação da cidade e produção de subjetividades”.

Além disso, muitas crews de skate feminino surgiram, como as Pantaneiras Skate Girls na cidade de Campo Grande/MS (encabeçado pela skatista Edduarda Grego) ou as Batateiras, em São Paulo, que surgiram com o intuito de incentivar e fomentar o skate feminino. As Batateiras, inclusive, figuraram no documentário Skate Le Monde, produzido para a televisão francesa TV5 Monde[1].

A história do skate feminino é rica e merece muito mais investigação e registro. As primeiras praticantes, a luta por visibilidade, o preconceito, a corporalidade, questões de gênero, etnia e tantos outros enfoques são possíveis. O trabalho de Marcia Figueira foi pioneiro ao desbravar o assunto, mas outros estudos podem ser feitos. E aí, você skatista que está fazendo ou pretende fazer uma faculdade? Que tal este tema para um Trabalho de Conclusão de Curso? Pois, afinal, vamos combinar que o universo do skate ficou muito mais interessante com a presença das mulheres!

* Este post é uma versão levemente modificada do texto “Sim, elas podem!”, publicado na edição impressa da revista CemporcentoSKATE, edição n. 220, de out/nov de 2021.

[1] O episódio pode ser visto em: https://www.tv5unis.ca/videos/skate-le-monde/saisons/1/episodes/9

 


IMAGENS DO LAZER NA PINTURA, NA ERA BIEDERMEIER

25/10/2021

Elcio Loureiro Cornelsen

INTRODUÇÃO

A era da história alemã na primeira metade do século XIX é conhecida pelo termo “Biedermeier” e tem como marcos temporais o Congresso de Viena, de 1815, e a Revolução de Março de 1848. Tais marcos nos permitem inferir que, se o início do período é marcado pela política restauradora no sentido de garantir as fronteiras dos diversos Estados, que vigoravam antes das invasões napoleônicas, seu fim culmina com movimentos revolucionários burgueses contra os poderes monárquicos (KITCHEN, 2013).

Na historiografia, o período em questão deve seu conceito definidor, cunhado a posteriori, ao professor e poeta Gottlieb Biedermaier, personagem literária criada por Ludwig Eichrodt e Adolf Kußmaul. Tal personagem possuiria dois traços característicos: ter bom coração e ser um pequeno burguês conservador. O historiador Martin Kitchen define com precisão o espírito da época a partir da etimologia do sobrenome da personagem:

[…] “Bieder” significa convencional, comedido e um tanto insípido, com mais do que apenas um vestígio de provincianismo presunçoso. “Maier” é a pessoa comum, o João de Souza ou da Silva. Era um reflexo da atmosfera de paz e tranquilidade da restauração depois dos dias tumultuados da revolução. […] (KITCHEN, 2013, p. 54)

O termo “Biedermeier”, com esta grafia, impôs-se como designação a partir do final do século XIX, inicialmente nos âmbitos da Arquitetura e das Artes Plásticas. E é justamente nas Artes Plásticas do período que recai o interesse do presente estudo, no intuito de analisar imagens do lazer em obras de dois pintores: Adrian Ludwig Richter (1803-1884) e Carl Spitzweg (1808-1885). Em termos metodológicos, foram selecionadas três pinturas de cada um, cobrindo o período de 1830 a 1850. Ressalta-se, ainda, que corroboramos o posicionamento do historiador Victor Andrade de Melo que, baseado em reflexões de Peter Burke, considera “as obras de arte como fontes históricas propriamente ditas (…), e não como ilustrações” (MELO, 2009, p. 21).

O ESPÍRITO BIEDERMEIER E O LAZER NA PINTURA DE CARL SPITZWEG

Uma das características principais da primeira fase da pintura de Carl Spitzweg Spitzweg é o retrato de pessoas em seu ambiente pequeno burguês, que desfrutam do tempo de diversas maneiras, incluindo atividades de lazer em ambientes fechados e, sobretudo, na natureza, bem ao gosto do idílio provinciano que marca o espírito Biedermeier. Uma famosa pintura de Carl Spitzweg que retrata ambiente fechado, mas que evidencia atividades de lazer, é “Bücherwurm” (“Traça”. Fig. 1), de 1848, em que vemos um homem de mais idade bem vestido sobre uma escada, diante de estante repleta de livros até o teto, e este parece ler avidamente um deles, segura outro livro aberto em outra mão, prende ao tronco com o braço outro livro, e tem mais um livro preso entre os joelhos, denotando o gosto pela leitura.

Fig. 1 – “Traça”. Fonte: Wikimedia Commons

Mas é, sobretudo, nas pinturas de Carl Spitzweg que retratam cenas na natureza que se evidenciam práticas de lazer. Uma das mais famosas é “Sonntagsspaziergang” (“Passeio ao domingo”; Fig. 2), de 1841. Nela, é retratada uma família em seu passeio dominical, em um dia de sol, em meio a um campo de centeio. São cinco figuras que se deslocam pela trilha, da direita para a esquerda: à frente, o homem corpulento protege-se do sol com a cartola espetada na bengala, seguido da mulher bem vestida usando chapéu e segurando uma sombrinha. Um pouco mais atrás, há uma menina que também se protege do sol com uma sombrinha, seguida de uma adolescente, bem vestida como a mãe, e, um pouco mais para traz, distraída com a caça de borboletas, aparece uma menina. No quadro, predomina a atmosfera do idílio rural em um dia de descanso, em que a família passeia e leva cestos para um piquenique.

Fig. 2 – “Passeio ao domingo”. Fonte: Wikimedia Commons

Outra pintura de destaque, quando se toma por tema o lazer, é “Der Schmetterlingjäger” (“O caçador de borboletas”; Fig. 3), de 1840. Nela, visualizamos em primeiro plano, do lado esquerdo, duas borboletas azuis, e mais ao fundo, no centro, um homem todo aparamentado, com cantil, mochila e outros apetrechos, segurando na mão direita uma longa haste com uma rede diminuta na ponta.

Fig. 3 – “O caçador de borboletas”. Fonte: Wikimedia Commons

Ao redor e no fundo, é representada uma natureza aparentemente selvagem, com árvores, arbustos, roseiras e plantas rasteiras. O homem se desloca em uma trilha íngreme, à caça das borboletas. Essa pintura denota não só a caça de borboletas, como também o colecionismo como atividade de lazer.

O ESPÍRITO BIEDERMEIER E O LAZER NA PINTURA DE ADRIAN LUDWIG RICHTER

Uma das características principais da pintura de Adrian Ludwig Richter é o predomínio de paisagens panorâmicas que transmitem um sentido de leveza e harmonia com o elemento humano. Uma delas é “Abendandacht im Walde” (“Prece noturna na floresta”; Fig. 4), de 1842, em que as copas de duas árvores frondosas servem de abrigo para o descanso de um grupo de mulheres e de crianças, mas também de carneiros. Algumas jovens estão sentadas, enquanto outras mulheres estão ajoelhadas, e duas estão em pé, com as mãos em posição de oração.

Fig. 4 – “Prece noturna na floresta”. Fonte: Wikimedia Commons

Assim como Carl Spitzweg, Adrian Ludwig Richter valoriza também em suas pinturas passeios e caminhadas ao ar livre como atividades de lazer. Um de seus quadros, intitulado “Italienische Landschaft mit ruhenden Wandersleuten” (“Paisagem italiana com caminhantes descansando”; Fig.5), de 1833, retrata uma cena em que homens, mulheres e crianças descansam à beira do caminho, assim como animais. Todavia, as pessoas estão modestamente vestidas, parecem integrar uma família, a hierarquia entre elas parece se expressar através da figura do homem em pé, enquanto a mulher, sentada, acolhe uma de suas filhas pequenas, e logo atrás está uma mulher de mais idade, provavelmente a avó, e um homem mais jovem, à esquerda das demais figuras, comodamente sentado. Há também objetos que remetem a uma pausa para piquenique.

Fig. 5 – “Paisagem italiana com caminhantes descansando”. Fonte: Wikimedia Commons

Sem dúvida, a atmosfera idílica predomina nas pinturas de Adrian Ludwig Richter, sempre explorada pela construção de imagens de harmonia entre a paisagem natural, as pessoas e os animais. Outro exemplo disso é o quadro “Frühlingsabend” (“Noite de primavera”; Fig. 6), de 1844, em que vemos ao centro um casal de amantes, bem vestidos, sentados contemplando o fim do entardecer e a chegada da noite, tendo ao lado um cão pastor e algumas ovelhas deitadas na relva.

Fig. 6 – “Noite de primavera”. Fonte: Wikimedia Commons

Nas pinturas de Richter, predominam imagens do lazer associadas ao descanso e à contemplação da natureza, num sentido quase religioso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise de pinturas de Carl Spitzweg e Adrian Ludwig Richter, objetivo do presente estudo, evidenciou que elas tanto refletem o espírito da época, quanto transmitem em imagens do lazer valores sociais decorrentes da política de Restauração. Sobretudo, figuras da burguesia, seja o pequeno burguês ou o abastado, são retratadas em atividades de lazer, seja a família que passeia em um domingo, que reflete a hierarquia de papeis sociais, seja o indivíduo em sua relação com a natureza, em que predomina a harmonia, o desfrute e a fruição. São imagens que não reservam espaço para a miséria e a pobreza que atingia amplamente os Estados alemães no período, nem o aumento populacional e o crescente processo de urbanização e de industrialização (KITCHEN, 2013).

Por se tratar de estudo em andamento, ainda há aspectos que demandam desenvolvimento, entre outros, a análise de obras de outros pintores do período, dentre eles, Moritz von Schwind, Friedrich Gauermann e Eduard Gaertner, que nos permitam uma avaliação precisa se havia uniformidade na representação de imagens do lazer, ou se havia também trabalhos distintos que possam ter produzido um contradiscurso, revelando a complexidade social e as correntes políticas antagônicas que se moviam entre a restauração conservadora de 1815 e o ímpeto revolucionário de 1848.

REFERÊNCIAS

KITCHEN, M. História da Alemanha moderna de 1800 aos dias de hoje. Tradução: Cláudia Gerpe Duarte. São Paulo: Cultrix, 2013.

MELO, V. A. de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.


Simpósio Nacional de História

27/05/2021

Programação Simpósio de História do Esporte e das Práticas Corporais (69)

31º. Simpósio Nacional de História – ANPUH 2021

Simpósio 69: História do Esporte e das Práticas Corporais

Coordenação:

Prof. Dr. Coriolano Pereira da Rocha Junior (UFBA)

Prof. Dr. André Alexandre Guimarães Couto (CEFET/RJ)

Orientações gerais:

  • As mesas estão compostas por aproximaçáo temática.
  • As sessões acontecerão entre 14h e 16h e entre 16h e 18h.
  • Cada fala terá 15min e 1h de debate por sessão.
  • A última sessão fica guardada para avaliação e organização do simpósio para 2023.

Programação

20/07 – SESSÃO 1: 14h/16h

Sistema de Informações do Arquivo Nacional: potencialidades da pesquisa sobre o esporte e a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985)

Rafael Fortes Soares, João Manuel Casquinha Malaia Santos

Recorde: Revista de História do Esporte – um panorama de suas publicações (2008-2020)

Leonardo do Couto Gomes

Sociologia e História do Esporte: novos diálogos possíveis?

Euclides de Freitas Couto

Mídia Impressa e Esporte: Notas Históricas

Caio Cesar Serpa Madeira

20/07- SESSÃO 2: 16h/18h

Esporte, propaganda política e consenso social nas comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil (1972): síntese e desdobramento de uma pesquisa

Bruno Duarte Rei

Sugestões metodológicas para o estudo de processos civilizadores a partir das práticas de lazer: uma análise psicogenética em Monte Alegre – PR

Ana Flávia Braun Vieira

Entre tangos e batuques: as danças nos clubes sociais da cidade do Salvador entre os anos de 1912 e 1935

Viviane Rocha Viana

21/07- SESSÃO 1: 14h/16h

O jogo das ressignificações: uma outra história do futebol em Porto Alegre (1903-1909)

Gérson Wasen Fraga

Masculinidades varzeanas: virilidade e idade na organização do futebol amador em Belo Horizonte (anos 1950 a 1980)

Raphael Rajão Ribeiro

O futebol e suas relações com o narcotráfico na Colômbia: uma análise introdutória

Eduardo de Souza Gomes

Qual a cor do seu grito? Copa das Confederações, Jornada de Junho de 2013 e os movimentos sociais na cidade de Fortaleza

Thiago Oliveira Braga

21/07- SESSÃO 2: 16h/18h

Urbanização, trabalho e futebol na cidade de Santos (1892 – 1920)

André Luiz Rodrigues Carreira

Filmes de esporte (futebol) como um gênero cinematográfico: uma proposta de pesquisa

Luiz Carlos Ribeiro de Sant’ana

O futuro das torcidas: das charangas à guinada antifascista na Ultras Resistência Coral

Caio Lucas Morais Pinheiro

Da fidalguia à commodity: uma história econômica do futebol mundial evidenciada no surgimento do “padrão-FIFA” (fins do século XX e início do XXI)

Raul de Paiva Oliveira Castro

22/07- SESSÃO 1: 14h/16h

O Polo Aquático Brasileiro nos Jogos Olímpicos de 1920

João Paulo Maciel de Azevedo

Polo Master – Um espaço “aquático” de memória, sociabilidade e lazer

Alvaro Vicente Graça Truppel Pereira do Cabo

Pugilistas italianos e identidade nacional no jornal imigrante Il Pasquino Coloniale (décadas de 1920 e 1930)

Igor Cavalcante Doi

A Formação do Jiu-Jitsu Brasileiro em Salvador e no Rio de Janeiro: um estudo histórico comparado

Luan Alves Machado

22/07- SESSÃO 2: 16h/18h

As Práticas Corporais no Cotidiano de uma Escola Americana no Sertão: ritos e rituais

Rúbia Mara de Sousa Lapa Cunha

Ofício dos Mestres e Pandemia na percepção dos Capoeiras: narrativas e estratégias na Roda

Zuleika Stefânia Sabino Roque

GINÁSTICA EM ACADEMIA: a práxis em Salvador entre 1975 a 1988

Amanda Azevedo Flores

A natação em Juazeiro da Bahia: registros históricos nas décadas de 1970 – 1990

Joelzio dos Santos Oliveira / Christiane Garcia Macedo

23/07- SESSÃO 1: 14h/16h

Alcyr Ferraro: materializador da formação em educação física na Bahia

Roberto Gondim Pires

Jogos Escolares na Bahia entre as décadas 1950 e 1980: Um olhar sobre a História

Natanael Vaz Sampaio Junior

História da formação de professores de Educação Física da Bahia na década de 1970

Maria Elisa Gomes Lemos

Os primórdios da formação de professores de educação física no Pará (1930-1940)

Carmen Lilia da Cunha Faro

23/07- SESSÃO 2: 16h/18h – AVALIAÇÃO FINAL E DEFINIÇÃO DA COORDENAÇÃO 2021/2023


Um clube de ciclismo no bairro de Realengo

20/03/2021

Por Victor Andrade de Melo

.

Este post é parte de um artigo que escrevi com o camarada Nei Jorge Santos Júnior e acabou de ser publicado na revista Antíteses (v. 13, n. 26, jul./dez. 2020). Quem curtir e desejar acessar o texto completo, pode encontrá-lo aqui: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/40025

—-xxx—

Nos anos 1920, foram criados dois clubes de ciclismo pioneiros no subúrbio, o Ciclo Suburbano Clube (de Madureira) e o Velo Esportivo de Ramos. Na década de 1930, várias sociedades semelhantes foram fundadas nos bairros da região. Segundo Melo e Santos Junior (2020): “Juntamente com o futebol, o esporte do pedal parece ter sido, naquele momento, por suas características, o que mais percorreu a cidade de ponta a ponta, criando uma certa capilaridade e estímulo para a prática” (p. 13).

Para entender a criação do Realengo Pedal, deve-se ter em conta as mudanças que houve no bairro. De um lado, se fortaleceu uma sociedade civil que em definitivo assumiu a liderança das reivindicações locais, semelhante ao que ocorria em outras regiões do subúrbio. De outro lado, não se reduziu a importância das unidades do Exército. Os militares de mais alta patente seguiam integrando a elite local.

.

Vista Aérea de Realengo/ Escola de Aeronáutica Militar, 1939.
Acervo: Museu Aeroespacial.
Disponível em: < http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/7352&gt;.

.

Nesse cenário, houve uma dinamização da vida social. Deve-se fazer uma referência à abertura, em 1938, do Cine Theatro Realengo, uma grande sala que acolhia mais de 1000 pessoas. Por seu estilo arquitetônico, pelas fitas exibidas, pela movimentação causada ao seu redor, foi mais um dos indicadores da circulação de ideias de modernidade no bairro.

O ciclismo era um esporte que mobilizava noções interessantes à elite local. Desde o século XIX, era encarado como sinal de civilização e progresso, exponenciando símbolos que se forjaram ao redor do uso das bicicletas: velocidade, mobilidade, liberdade.

Melo e Santos Junior (2020) sugerem que, naqueles anos 1930, a bicicleta “ainda era um produto caro, mas já bem mais barato do que fora no século XIX, quando era totalmente importada. Na primeira metade do XX, já era montada no Brasil e a indústria nacional produzia algumas peças” (p. 14). De toda maneira, mesmo que começando a se popularizar, o ciclismo ainda se tratava de uma modalidade majoritariamente praticada por gente de estratos médios ou altos, o que seria também um fator de diferenciação num bairro em que o popular futebol se espraiava.

Um primeiro indício da prática do ciclismo no bairro foi identificado em 1930, o anúncio de uma competição promovida pelo Cycle Carioca Club de Realengo. A notícia dá a crer que era um evento muito bem organizado. Todavia, não conseguimos mais informações sobre ele, bem como sobre a sociedade promotora.

.

Estação de Realengo, 1903.
Revista da Semana, 15 nov. 1903.
Disponível em: <http://www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_rj_mangaratiba/fotos/realengo9061.jpg&gt;.

.

Ainda se pode ver sua participação em algumas provas, como uma promovida pelo Velo Esportivo de Ramos, em 1931, mas a agremiação parece mesmo ter sido de curta duração. De toda forma, deixou latente a ideia de que, em Realengo, havia interessados no ciclismo.

Esse interesse ficou claro alguns anos depois, em dezembro de 1937, quando uma sociedade carnavalesca, Caprichosos de Realengo, realizou o “Dia Esportivo de Realengo”. Atraíram muitos interessados as provas organizadas pela Liga Carioca de Ciclismo e Motociclismo por meio de seu diretor Oswaldo Moreira Guimarães, funcionário civil da Escola Militar, “um dos grandes animadores do esporte do pedal nos subúrbios”, promotor de muitas competições importantes do ciclismo carioca.

Um cronista celebrou o evento como uma ocasião para estimular a prática e revelar valores da região, uma “oportunidade para mostrarem a sua fibra”. Em 1938, fundou-se o Realengo Pedal Clube, com sede na Estrada Real de Santa Cruz. Logo estava filiado à Liga Carioca e participando das provas pela entidade promovidas. Em maio, obteve inclusive bons resultados em competição realizada no Campo de São Cristóvão.

.

Dirigível no campo de tiro de Realengo, 1894.
Acervo: Musée de L’Air Le Bourget.
Disponível em: < http://historia-de-realengo.blogspot.com/2009/11/historias-perdidas-no-tempo-pioneiros.html&gt;.

.

No mesmo ano, a agremiação promoveu pela primeira vez o Circuito Ciclístico de Realengo, em homenagem e contando com apoio do comércio da região. Essa foi uma ocorrência comum em muitos bairros do subúrbio, o incentivo do setor a ações que contribuíssem para o desenvolvimento local, para o forjar de uma ideia de que na área também se estruturavam iniciativas que expressavam adesão a ideais de civilização e progresso.

Um dos ciclistas da agremiação, João Athayde, logo se destacou nas competições, tornando-se mais famoso quando se tornou detentor de um dos primeiros recordes aferidos da modalidade no Brasil. Sua ascensão foi meteórica. Meses antes disputara uma prova para iniciantes dos subúrbios, num momento em que o Realengo Pedal começou a se destacar por inscrever grande número de competidores.

.

Equipe do Realengo Pedal Clube.
Esporte Ilustrado, 28 dez. 1938, p. 28.

.

Quem eram esses ciclistas mais usuais? Já citamos o vencedor João Carneiro Athayde, funcionário do Ministério da Agricultura. Abel Lopes Garcia foi um costumeiro competidor, chegando a obter bons resultados em muitas pelejas; nada conseguimos saber sua vinculação laboral, somente que era morador de Realengo. O mesmo pode-se dizer de Acyr Gevarzoni, Alceu de Oliveira Souza, José Ribeiro da Silva (atleta negro que depois se transferiu para o Ciclo Suburbano) e Francisco Gomes Bezerra.

A falta de outras referências que não as esportivas nos dá a noção de que se tratava de “gente comum”, isso é, trabalhadores de estrato médio que se dedicavam ao esporte em seu tempo disponível. A propósito, também não localizamos muitas informações sobre a diretoria da agremiação. O único mais conhecido era José Reny de Araujo, antigo ciclista, dirigente e organizador de provas.

No ano de fundação, o clube participou da principal prova do ciclismo fluminense à ocasião, o Circuito do Rio de Janeiro, já na sua sexta edição. Entre os 13 clubes que tomaram parte na peleja, foi um dos cinco que mais inscreveu atletas, entre os quais o vencedor, o citado João Athayde.

Nessa edição, se explicitou uma disputa que vinha se delineando nos anos anteriores em função do espraiamento do ciclismo pela cidade:

Há um detalhe interessante que o público desconhece e que se torna necessário esclarecer. Existe uma rivalidade esportiva entre os ciclistas da cidade e os suburbanos, e nunca houve uma oportunidade para um confronto de forças como o que agora se oferece.

Percebe-se no discurso a oposição entre a “cidade” e o “subúrbio”, como se esse não fizesse parte do primeiro. Deve-se considerar que o jornal A Noite, promotor da competição, estimulava essa rivalidade para chamar a atenção do público, mas, na verdade, ela vinha mesmo se acentuando em função dos bons resultados obtidos por ciclistas do Ciclo Suburbano (MELO, SANTOS JUNIOR, 2020). Um cronista chegou a comentar que “sabido (…) é que os subúrbios têm sido um verdadeiro celeiro de bons corredores”.

Na ocasião do VI Circuito do Rio de Janeiro, outro ciclista do subúrbio se destacou, um dos que se tornaria dos mais vitoriosos de seu tempo, Lavoura (Antonio Teixeira da Fonseca), da União Ciclística de Campo Grande. Essas conquistas eram muito valorizadas pelas lideranças suburbanas, mobilizadas como indicador dos avanços civilizacionais da região.

Em 1940, ainda estava ativo o Realengo Pedal Clube. Participou de competições, em algumas obtendo bons resultados, e promoveu sua prova anual, parte do calendário ciclístico da Liga. Marcou presença até mesmo na atividade de encerramento da temporada. No ano seguinte, contudo, já não encontramos mais notícias sobre a agremiação.

Não conseguimos saber os motivos para seu fim. Identificamos que alguns ciclistas se transferiram para a União Ciclística de Campo Grande, entre os quais João Athayde, que seguiu obtendo bons resultados. De toda forma, ainda que breve, foi marcante a trajetória do Realengo Pedal Clube, expressão das mudanças e particularidades daquele bairro da zona suburbana.

.

* Referência

MELO, Victor Andrade de; SANTOS JUNIOR, Nei Jorge. Faces da modernidade: a experiência do Ciclo Suburbano Clube (Madureira/Rio de Janeiro – décadas de 1920-1960). Revista Tempo e Argumento, 12(30), e0202, 2020. https://doi.org/10.5965/2175180312302020e0202