Para matar o tempo: uma “academie” voltada para os divertimentos no Rio de Janeiro do século XIX

29/12/2014

por Fabio Peres[i]

A história é curiosa. Nos meses finais de 1857 foi encontrado durante um passeio ao Corcovado o estatuto de uma nova associação inaugurada na Corte: a Academie pour tuer le temps (em tradução livre, Academia para matar o tempo).

Tudo levava a crer que no local da descoberta foi realizada uma sessão magna, uma ocasião solene e festiva de criação da “nobilíssima” academia (nomeada, vale destacar, com o adjetivo “nacional”). Não era para menos, o “curioso manuscrito” se encontrava em meio a garrafas quebradas e escritos variados, entre romances e programas ministeriais, dentro de um chapéu da mais fina qualidade.

O narrador da história, que assina como Dr. Soledade na seção Comunicado do Correio Mercantil (23/11/1857, p.2), descreve na integra os estatutos da inusitada associação fundada na capital do Império. Ficamos sabendo, logo no primeiro artigo, que o “utilíssimo e agradabilíssimo” propósito da Academie é “passar a vida suave e naturalmente”.

Os artigos seguintes não são menos reveladores do ethos que animava a instituição.

Além do número de “ilustres” sócios ser ilimitado (art. 2º), não havia presidente nem secretários, a sua “mesa é a mesa dos banquetes, do jogo, das irmandades, da costureira, e a mesa-redonda” (art. 3º). Seus membros eram de todo tipo; honorários, efetivos, transitórios, aspirantes e jubilados (art. 5º) que – pela “honra e glória da academia” – nunca perderiam “festa alguma, como sejam paradas, fogos de artifício, presepes, romarias e festas pontifical, ficando sempre à porta da igreja para não ouvirem sermão” (art. 17º).

As sessões magnas deveriam ser constituídas por discursos que versassem somente sobre “dançarinas, moda, passeios, cantoras, bailes, visitas, jantares, tratamentos oficiais, genealogias, brasões, equipagens, caçadas, jogos de prendas, charadas, pescarias, preços de fazendas e força muscular” (art. 15º). Todos os sócios, aliás, deveriam “tomar um ar de importância catedrática em todas essas questões” (art. 20º)

As reuniões ordinárias, por sua vez, demonstram uma relação particular com a cidade, podendo ser realizadas em “todas as partidas e bailes, nas galerias das câmaras e do júri, na rua do Ouvidor, da Quitanda  e botequins, nos teatros, nos circos, no Jardim Botânico, no Passeio Público, nas festas de grandes cantarolas, no cais Pharoux, nas barcas de vapor, em S. Domingos, no Catete, Paquetá, Penha, no hipódromo, nas praias onde houver regata, nos fogos de artifício, nas boticas velhas, nos armarinhos novos e no templo da Petalógica[ii]” (art.4º).

Notável entusiasmo era compensado com a proibição aos sócios e sócias de se levantarem antes das 10 horas da manhã e deitarem antes das 2 horas da madrugada, sendo reconhecidos com o título de benemérito aqueles que “fizerem duas sestas por dia e comerem dois jantares” (art. 16º).

Havia, por outro lado, uma preocupação com a formação intelectual dos sócios. Com o objetivo de que “não degenerem pela ignorância” era recomendada a leitura “exclusiva de certos livros e jornais” (art. 9º), mas eram expressamente proibidas outras obras como a bíblia sagrada, as de Bossuet, as dos santos padres, entre outras.

Por certo, a história toda não passava de burla. Contudo, a narrativa apresenta indícios de ser bem mais séria do que parece. A ironia atroz por trás de uma suposta Academie na sede do Império aponta para os intrincados dilemas de uma nação, cujos caminhos, na visão do autor, eram incertos e tortuosos.

O próprio nome da instituição em francês – Academie pour tuer le temps – não é fortuito. O Dr. Soledade, ao que parece fazendo um trocadilho (com aves, marionetes e o prefixo franc-), levanta a hipótese da associação ser “obra de alguns francolins ou francatripas[iii], notáveis pelo seu aspecto fisionómico, trajo e evoluções singularíssimas”.

O deboche aos estrangeirismos em terras nacionais pode ser observado na premiação aos sócios, prevista no artigo 10, que empregarem em seus discursos palavras estrangeiras: “O francês servirá para tudo que não for maquinas e caminhos de ferro; o espanhol para provérbios e exagerações e o italiano exclusivamente para a música. Em matérias sentimentais e gastronômicas é permitida a língua da Torre de Babel” (23/11/1857, p.2).

No caso da política, haveria certas restrições, embora também fosse estimulado o uso de vocábulos estranhos ao português: “Os sócios que se ocuparem de política pessoal, única permitida por ser a mais geral, usarão de termos ingleses, porque o francês, o alemão, o russo, o italiano, lazarônico, o turco, o árabe, o indostânico, o tártaro, o chim e o paraguaio têm seus inconvenientes na atualidade” (art. 11º, grifos do autor).

Já na literatura encorajava-se a leitura de romances modernos, sobretudo, do novelista francês Paul de Kock (1793-1871)[iv], de poemas épicos e didáticos, dos folhetins, de todas as comédias do teatro francês (principalmente as que ridicularizavam os maridos), entre outros (art. 9º). Aliás, os estrangeiros gozariam das mesmas regalias que os sócios brasileiros.

Vejamos que na semana anterior o Dr. Soledade já alertara seu sobrinho sobre algumas de suas preocupações[v]:

O que convém já e já é combater ideias com ideias, é preparar os ânimos para uma reorganização social pelo exemplo e pelos meios de uma educação que faça do menino um cidadão em vez de um brilhante papagaio. Estimaria hoje muito mais se tivessem-me ensinado bem a minha língua do que o fizeram obrigando-me a perder tempo em traduzir outras e a ficar uma espécie de Babel, como outros muitos que por aí andam recolhendo palavras e compondo a mais ridícula algaravia que se conhece. […] Tudo está falsificado entre nós, e tudo vai se falsificando (Correio Mercantil, 16/11/1857, p.1-2, grifos nossos).

 

Tais inquietudes não se limitavam à formação intelectual, mas também à própria corporeidade que, entre outras coisas, perdia os elementos de uma suposta identidade – ou melhor, “natureza” – nacional (informada, sem dúvida, por um viés de gênero):

A beleza americana, a gentil morena, a filha do sol, a virgem que tem seu rosto e porte os atrativos da idade das flores, empasta as faces de arrebiques, faz do seu rosto um rosto de mármore à força do pó de arroz e outros místicos, para que se não conheça quando enrubesce ou empalidece! Para que servem essas faces caiadas que à luz do gás, no teatro lírico, se parecem com cara de gesso?!  O que denota isto senão que a mulher, a melhor coisa entre nós, já não é aquela boa mãe de família, mas uma cômica arrebicada, e suas filhas bonecas da rua do Ouvidor, que só servem para estadear por cima do horrível balão os tecidos da moda, dessa soberana vertiginosa de todos os espíritos fúteis? A arte dos tempos corrompidos não repara os estragos da natureza (Correio Mercantil, 16/11/1857, p. 2, grifos nossos).

Sobre os homens sua análise não é menos lancinante:

Tu não vês todos os rapazes do meu tempo, e aqueles que achei no mundo varões formados, funcionários públicos, como estão com o cabelo tão pretinho? Quanto nitrato de parta e quantas dores de cabeça não andam por aí! Com que fim escondem eles as cãs honrosas, a coroa respeitosa da velhice, para se confundirem com rapazes, que deles com razão tanto escarnecem? Talvez tenham razão. Quem não passou da juventude não é digno de ostentar os sinais da venerada velhice; é um perfeito e ridículo anacronismo ver a idade do conselho privada da experiência; mas há de ser muito dura essa vida contrafeita, esse pelejar contínuo contra a ordem natural contra as modificações fisiológicas da idade […] (Correio Mercantil, 16/11/1857, p. 2, grifos nossos).

As transformações pelas quais passavam a sociedade brasileira e, em especial, a fluminense eram vistas com desconfiança; evidências de um declínio moral e político articuladas a certos modismos, luxos e frivolidades:

Todo os fatos do sibaritismo, todas as reduções do epicurismo, representadas no pote de banha todo dourado, na latinha de conservas, na caixa de papelão, no almanak das modas, nas águas cheirosas, nos arrebiques da rua do Ouvidor, têm um grande atrativo para nós; a modista e o cabelereiro andam de sege e fazem fortunas colossais!… Tudo que não é trabalho intelectual prospera: o pensamento ainda não se legalizou na tarifa social, ainda vive como em contrabando. Onde está o espírito militar da nossa mocidade? Onde está o espírito público da outra juventude? O seu entusiasmo é para as cômicas e cantoras […]  (Correio Mercantil, 16/11/1857, p. 2, grifos nossos).

E alerta:

Escuta: Temos na nossa terra um grupo de que se quer arrogar o privilégio dos Brâmanes e constituir-se uma carta particular e sagrada! Olha que este grupo está estragando o teu país com uma espécie de oligarquia sem se lembrar que o Brasil é um dos países mais felizes do mundo, porque ainda não conhece o que é nobreza e clero […].

À luz desses comentários, a leitura dos estatutos da excêntrica Academie ganha novos contornos e um colorido especial. Contrastes e incongruências das sociedades política, intelectual, artística e econômica –  responsáveis em parte pelo futuro da nação – são objeto de sátira e ironia, muitas vezes de forma espirituosa, porém mordaz. Por exemplo, sobre a composição dos sócios – em contraste (nem tanto assim) à outra academia, que também se fundou na Corte – o Dr. Soledade comenta:

Pelas notas que encontrei à margem e por um discurso apenso aos tais estatutos, vim ao conhecimento de que esta sociedade está em guerra com outra intitulada Il dolce far niente, o que me não maravilha, pois é sempre motivo de rivalidades a concorrência ao mesmo fim. A primeira academia é composta de quase todos os candidatos à diplomacia; de bancarroteiros que quebraram para mais se consolidarem, homens que fizeram ponto na bolsa alheia; de alguns tesoureiros demitidos, processados e absolvidos; de antigos protetores da agricultura africana; de testamenteiros fidelíssimos: de cantores desafinados por darem notas falsas; de agentes de subscrições filantrópicas; de postulantes a empregos, e de alguns fumistas que evaporam 24 charutos por dia. […] A outra academia, que parece pender mais para as ideias transmontanas, é composta de gente jubilada e provecta; tem uma boa parte do nosso corpo diplomático; tem até ministros de estado, generais formados e reformados, todos os deputados e senadores que sairão Cíceros e Demostenes num parlamento de mudos; tem altos conselheiros e todos os nossos grandes estadistas que publicarão obras no ano de 2857!! Pelos estatutos verá claramente os seus fins e o quanto a nossa pátria e o futuro têm que esperar dela. O nosso governo deveria olhar seriamente para uma associação que tanto auxilia no fiat voluntas tua (Correio Mercantil, 23/11/1857, p. 2, grifos do autor).

 

Nota-se, aliás, que a associação concorrente Il Dolce Far Niente, segundo o autor, foi fundada por uma “comissão composta por dois cônegos, dois frades e alguns empregados em comissões literárias, um dos quais é membro do Instituto Histórico”.

Ninguém fica de fora: Estado, mercado, artistas, jornalistas, intelectuais e mesmo clubes são objetos de uma crítica ferrenha.  A composição social da Academie é inclusive regulamentada nos artigos 6º e 7º de acordo com as características hierárquicas valorizadas pela associação, entre as quais figura a participação nos divertimentos oferecidos na sociedade fluminense:

Art. 6º. Só poderão ser membros honorários os empregados aposentados com menos de 40 anos de idade e em prefeita saúde; membros efetivos todos os consumidores de heranças ou pensionistas de viúvas abastadas; membros transitórios todos os fazendeiros que vêm passar o inverno na corte, os deputados de voto certo, os provincianos requerentes e em expectativa, os que esperam solução de grandes empresas, os candidatos às mitras, os diplomatas com licença, e todos os requerem graças por serviços impessoais ou esperam pagamento do tesouro. Art. 7º. Os membros jubilados deverão provar que têm mais 12:000$000 de renda anual em apólices, ações bancais ou aluguéis de prédios e que estes são cobrados por seus procuradores; deverão jurar perpétuo celibato e a obrigação de viajar de tempo e tempo pelas hospedarias do velho mundo. Além destes requisitos deverão ser sócios de todos os clubes e círculos, assinantes de todos os teatros, cassinos, hipódromos, regatas, noites fluminenses e de todos os beliquetes (grifos do autor).

De modo geral, todas as críticas têm um eixo central: a preocupação com os rumos e as incongruências de uma nação recém-independente. Na verdade, o autor não parece ser contra os divertimentos em si, mas contra um tipo social que se estava conformando na sociedade imperial, que insistia – para utilizar os termos de Schwarz (2001, p.74)[vi] – em “adorar, citar, macaquear, saquear, adaptar ou devorar estas maneiras e modas todas, de modo que refletissem, na sua falha, a espécie de torcicolo cultural em que nos reconhecemos”.  Em todo caso, a vida social carioca na metade do século XIX parecia ser bastante divertida, embora muito mais séria do que se imaginava.

 

[i] Esse post é fruto das conversas e pesquisas realizadas no âmbito do projeto “O corpo da nação: educando o físico, disciplinando o espírito, forjando o país: as práticas corporais institucionalizadas na sociedade da Corte (1831-1889)”, que conta com o apoio da FAPERJ e do CNPq e é coordenado por Victor Andrade de Melo.

[ii] Informações sobre a Sociedade Petalógica, que supostamente o autor faz referência, podem ser encontradas no post de Mires Batista Bender (29/08/2014), disponível em: http://sapereaudelivros.blogspot.com.br/2014/08/voce-sabe-sociedade-petalogica.html) e na crônica de 11/09/1864 de Machado de Assis da série Ao Acaso (Crônicas da Semana), disponível em  http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/cronica/macr04.htm. De acordo com Machado “A sociedade Petalógica, como é sabido, teve nascimento na antiga casa do finado e sempre chorado Paula Brito. Quando a sociedade nasceu já estava feita; não se mudou nada ao que havia, porque os membros de então eram aqueles que já se reuniam diariamente na casa do finado editor e jornalista. Cuidavam muitos que; por ser petalógica, a sociedade nada podia empreender ­que fosse sério; mas enganaram-se; a Petalógica tinha sempre dois semblantes; um jovial, para as práticas íntimas e familiares; outro sisudo, para os casos que demandassem gravidade. Todos a vimos, pois, sempre à frente das manifestações públicas nos dias santos, da história brasileira. Ainda neste ano a velha associação (honni soit qui mal y pense!) mostrou-se animada do mesmo entusiasmo de todos os anos”.

[iii] Maiores informações ver Diccionario da língua brasileira. (Pinto, 1832) e Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (2009).

[iv] Maiores informações ver NADAF, Y. O romance-folhetim francês no Brasil: um percurso histórico. Letras, Santa Maria, v. 19, n. 2, p. 119–138, jul./dez. 2009. Disponível em: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/letras/article/view/12014/7428 ; PAES, Alessandra Pantoja. Das imagens de si ao mundo das edições: Paul de Kock, romancista popular, 2013. Dissertação (Mestrado em Letras), UFPA. Disponível em http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/arquivos/dissertacao_alessandra_paes.pdf

[v] Vale destacar que o gênero literário utilizado pelo autor (i.e. carta pessoal, que denomina como ementário) desempenha um papel central nos propósitos dos textos.

[vi] SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: ____. Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.59-83.


A grandeza dos pequenos

29/07/2012

Por Edônio Alves

O espaço que ocupo neste blog tem a função de apresentar ao nosso internauta-leitor o produto dos meus estudos e reflexões sobre a intersecção do futebol com a literatura. Ambos, paixões minhas, tanto o futebol como a literatura são, na minha modesta compreensão das coisas, campos de expressão e atuação humanos em que a surpresa, o aleatório, a singularidade de tudo que vemos ou podemos fazer reponta como uma marca particular da nossa ação no mundo. Sendo assim, cabe ao escritor, ao poeta, no caso da literatura, por exemplo, agir na sua escrita a partir de um olhar inaugurador de realidades novas; a partir de uma mirada descortinadora de possibilidades inéditas para a prática da existência humana. Mesmo que tais possibilidades inovadoras – eis o segredo de tudo isso – sejam passíveis de concretização apenas no universo da linguagem, uma vez que a vida em si mesmo é limitada. Fazemos arte, já dizia o poeta, porque viver não basta. Ou no dizer de outro bardo: “Simplesmente viver, meu cão faz isso e muito bem!”.

Pois bem. Quanto ao futebol, ele nos encanta precisamente pelo mesmo motivo, penso eu. Por ser um jogo que envolve e emociona seus praticantes e admiradores não apenas pelos efeitos e resultados práticos que produz (a vitória da equipe que conseguir marcar mais gols no adversário), mas sim, e talvez principalmente, pelo conjunto de sentidos e significados que comunica para além de sua visualidade objetiva e imediata. Ou seja: o futebol, paradoxalmente, talvez encante muito mais pelo que não se vê dentro do campo quando se assiste ao seu espetáculo diretamente, mesmo que esta experiência seja por si só gratificante e prazerosa. Quiçá, repita-se, o futebol encante mesmo é pelo que se sente e se experimenta ao vivenciá-lo como fenômeno pleno de cultura dentro e fora dos gramados.

Sim, porque, curiosamente, o futebol é um jogo que extrapola as suas próprias regras.  Entendido em sentido amplo, ele começa antes dos 90 minutos regulamentares de uma partida e vai além deles; é um jogo que não se resume aos poucos personagens que o praticam diretamente nos gramados ou campos de várzea, e – mais significativo ainda – é um jogo que não se encerra no mero espaço delimitado para a sua prática, tornando-se, assim, portanto, ao menos para nós, brasileiros, bem mais do que uma prática esportiva: “é a síntese complexa da cultura brasileira, é a sua metalinguagem”, no dizer do sociólogo Maurício Murad.

Portanto, penso eu, entendido assim dá para ver a clara e visceral ligação do futebol com a prática da literatura. Ambos são uma espécie de jogo humano (um mediado por uma bola; outro mediado pela linguagem) em que os jogadores realizam em campo mais ou menos a mesma coisa: a revelação da surpresa; do inesperado; do ainda não visto como potencialidade realizadora latente e prenhe de significados. É só “ver” a sensação que sentimos ao lermos um poema verdadeiramente original e bem realizado esteticamente; ou um romance, um conto, uma crônica, no caso da literatura. Ou uma bela e inesperada jogada de efeito (um drible desconcertante ou um golaço) no caso do futebol.

 Digo isso porque há pouco mais de duas semanas essa certeza foi reforçada em mim quando recebi um singelo presente de um amigo meu e fiquei intrigado com uma coisa que tal gesto de amizade me realçou: a noção que devemos ter da pequenez e da grandeza de todas as coisas. Louco por futebol como eu, meu amigo me presenteou com um desses souvenirs de clubes brasileiros feitos para serem colados na geladeira e, portanto, para ficarem à nossa vista sempre que entramos na cozinha para fazermos algo do cotidiano doméstico. Conhecendo-me como me conhece, o amigo sabia que aquele não era o clube da minha predileção, mas também sabia que nutro por aquela agremiação esportiva uma admiração ímpar. O tal clube, já dá para dizer, era o Íbis, de Pernambuco, considerado e conhecido no mundo futebolístico como o pior clube do mundo. Talvez justamente por isso, o tal presente tenha me inquietado tanto.

Pois digo que a inquietação foi tamanha que resolvi, a partir dela, como já anunciei aqui, utilizá-la para digredir sobre a relação do futebol com a literatura a partir de um tema que esta relação me sugeriu: a noção que temos da grandeza e pequenez de todas as coisas.

A ideia de fundo, enraizada em todas as culturas, é a de que sempre nos orientamos sob os dados da realidade baseados num providencial senso de horizontalidade e, principalmente, de verticalidade, por assim dizer. Isto é, consideramos sempre que há coisas superiores – os gestos nobres, as ações heroicas, por exemplo –, mas também coisas pequenas, inferiores, tais como os gestos mesquinhos, as ações pusilânimes, enfim, as atitudes menores ou covardias inclassificáveis.

Trazendo essa discussão para o mundo do futebol, nos debatemos sempre com o hábito de colocarmos num patamar superior de nossa consideração e estima os chamados clubes grandes do futebol brasileiro, a exemplo do Flamengo, Fluminense, Corinthians, Grêmio, Palmeiras, Vasco, entre outros; e, por oposição de valores, empurramos para a prateleira dos cacarecos insignificantes os ditos clubes pequenos, a exemplo do Brasil de Pelotas, Baré de Roraima, Fast Clube do Amazonas, Dom Pedro do Distrito Federal, Gurany de Sobral, Sinop do Mato Grosso, e, principalmente, a estrela maior dessa constelação de times menores: o Íbis, de Pernambuco, que tem esta posição de destaque entre os pequenos por ser considerado unanimemente como “o pior clube do mundo”, com inscrição no livro dos recordes e tudo.

Trouxe o Íbis para esta nossa conversa de agora porque entendo ser ele (o glorioso Íbis, o pior de todos os times do planeta) um exemplo palpitante do quanto é arbitrária a nossa maneira hierárquica de olharmos para a realidade. Para atestar essa arbitrariedade em julgarmos as coisas do mundo, podemos dizer, por exemplo, que algo pode ser grande justamente por comportar-se como algo pequeno; humilde na sua maneira de ser, nem soberbo nem ostentatório das virtudes que lhes é constituinte, enfim, singelo na sua grandeza de ser pequeno.

O contrário pode também ser verdadeiro, conjecturo eu, ampliando o exemplo: algo pode ser pequeno justamente por insistentemente querer ser grande, pretender assentar a sua existência num patamar além dos limites do seu próprio tamanho, ostentar uma grandeza que nada mais é do que a face oculta da sua própria pequenez.  

É aqui, meus caros leitores, que reponta a grandeza do Íbis no cenário do futebol brasileiro. Não se preocupando em querer ser o melhor, o maior, contenta-se o Íbis na modéstia de ser o pior, e por isso é grande. E a sua grandeza, com efeito, é invejável. Alguém já viu o Íbis perdendo o sono por estar metido em dívidas impagáveis? Pois este não é o atual caso do Flamengo, do Corinthians, do Vasco e de muitas outras figurinhas carimbadas do futebol brasileiro, que só sobrevivem empurrando os débitos (e alguns dirigentes) com a barriga? Não, ninguém nunca viu tal problema com o Ìbis. Ninguém nunca viu o Íbis chorando ou lamentando as perdas constantes que lhe caem nos ombros. Fundando um paradoxo genial, são as derrotas as maiores conquistas do Íbis e isso é o exemplo maior de sua grandeza.

Não, o caso do Íbis é outro, meus amigos, outro porque o Íbis é grande. Grande até na sua infinita generosidade. Assim são as coisas desse mundo se as observarmos bem. O grande pode ser justamente o pequeno e o pequeno pode ser precisamente o grande. Tudo depende da maneira como olhamos o mundo e o mundo, todos nós sabemos, não passa de uma bola: esse objeto distinto de todos os outros – sem quinas, pontas, dorso ou face, igual a si mesmo em todas as direções de superfícies – que rola e quica como se animado por uma força interna, projetável e abraçável como nenhum outro, no dizer do poeta. E os poetas têm sempre razão!

 


É carnaval! Vamos bailar!

18/02/2012

Por Victor Andrade de Melo

Aproveitando que estamos em pleno domingo de carnaval (a essa altura devo estar perdido por algum dos blocos desse meu maravilhoso Rio de Janeiro), vou seguir a ideia de minha amiga Valéria, que no ano passado aproveitou a festa momesca para fazer um post temático.

Falarei de dança, um tema que tem me apaixonado ultimamente.

Não falo aqui da dança que se apresenta nos teatros, mas da dança de salão. Em meados do século XIX, as sociedades dançantes e os bailes tornaram-se espaços sociais muito valorizados na Corte, em um momento em que se estabeleceu uma nova dinâmica pública das diversões. José de Alencar, em crônica publicada no Correio Mercantil de 1 de outubro de 1854, ironizava:

Se os antigos, que não tinham baile, nem teatros líricos, nem concertos, nem clubes, nem corridas, e que se contentavam com algum sarau de vez em quando, inventaram os dias santos para filarem assim dois dias de descanso, nós, que temos durante a semana todo esse enorme acréscimo de trabalho imposto pela sociedade, nós que já fomos privados dos dias santos, devemos em todo o rigor da justiça lograr mais um dia de descanso, e juntar a terça-feira à segunda, a fim de poder na quinta encerrar o trabalho, com o espírito calmo e o corpo bem disposto.

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Um baile no século XIX

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Entre os cronistas, José Maria da Silva Paranhos, o futuro Visconde de Rio Branco, era o que narrava com mais entusiasmo os bailes, que, aliás, não costumava perder: era um habitué das atividades oferecidas pelos primeiros clubes recreativos que se organizaram no Rio de Janeiro, por ele citados em sua crônica publicada no Jornal do Comércio de 24 de fevereiro de 1851:

São numerosas as sociedades de baile, de dança, musicais e dramáticas que atualmente existem no Rio de Janeiro. Aí vão os títulos das que neste momento me lembram. Sociedades de baile: Cassino Fluminense, Cassino da Floresta, Recreação Campestre, Recreação Brasileira, Terpsícore, Lísia, Paraíso, Ulisséa, Sílfide, Nova Eleusina, Vestal, Fidelidade, Filo-Euterpe, Assembleia Familiar Fluminense e Amante do Recreio.

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A sede do Cassino Fluminense é a terceira da esquerda para direita. Hoje é a abandonada sede do Automóvel Club (Rua do Passeio). Do seu lado esquerdo é a atual Escola de Música da UFRJ, na época a Biblioteca Nacional

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Descrevendo com detalhes as festas dançantes, que frequentava junto com a “mais fina flor da sociedade carioca”, Paranhos chegou, certa feita, a afirmar sobre um evento promovido pela Sociedade Recreação Campestre: “Foi, no meu sentir, o mais importante acontecimento da semana”. Em outra ocasião é até mais enfático: “O baile! O baile é sempre o baile! Estas interjeições exprimem as mais sérias preocupações, os mais vivos e afetuosos sentimentos da atual sociedade fluminense”.

Para Paranhos, tais atividades eram uma expressão de uma nova forma de relacionamentos sociais, segundo seu olhar “mais democráticos”, menos marcados pelos “constrangimentos da tirânica etiqueta”. Melhor definindo: “Todas as classes aí estão representadas – as artes, as letras, a indústria, a lavoura e o comércio; o funcionário civil e o militar, grandes e pequenos, a inteligência e o dinheiro, o talento e a felicidade, o nacional e o estrangeiro”. Obviamente o cronista se refere às elites, que adotam costumes mais distendidos, frutos, inclusive, dos mais frequentes contatos na esfera pública.

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José Maria da Silva Paranhos

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Outro cronista da época, Francisco Otaviano não se mostrava tão entusiasta quanto Paranhos, mas também não deixa de reconhecer a importância dos bailes, para ele tão complexos, um “resumo de todas as ciências e artes”, que para descrevê-los bem só se houvesse um “bailólogo”. Já José de Alencar não perde a oportunidade de, junto com o registro do gosto social por tais encontros, fazer uma sutil crítica:

 Começa a estação dos bailes e dos saraus. O Campestre dá a sua primeira partida por estes dias; o Cassino nos promete uma bela noite antes do fim do mês. Teremos naturalmente, como nos anos passados, uma febre dançante. Ninguém escapará à epidemia; e até alguns malévolos espelham que o próprio ministério fará uma contradança.

Tal era a importância da dança na época, muitas escolas começaram a oferecê-la como conteúdo, por vezes até por solicitação dos pais (como o Colégio Pedro II).

Mas esse é tema para outro post.

Vamos aos blocos!! Alalaô-ô-ô-ô-ô-ô.